Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
SOUSA, Victor. Que rostos tem o ensino de Geografia? Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 9, nº 18, pp. 149-167, maio-agosto de 2022.
Submissão em: 19/07/2022. Aceito em: 11/07/2022.
ISSN: 2316-8544
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SEÇÃO ARTIGOS
QUE ROSTOS TEM O ENSINO DE GEOGRAFIA?
WHAT FACE DOES GEOGRAPHY TEACHING HAVE?
¿QUÉ ROSTROS TIENES LA ENSENÃNZA DE LA GEOGRAFÍA?
Victor Pereira de Sousa
1
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Rio de Janeiro, Brasil
e-mail: victordesousa@outlook.com.br
Resumo
Embora as discussões acerca do ensino de Geografia no Brasil não sejam novas no Brasil, a atualidade e
diversidade de seus temas e análises são facilmente reconhecidas. Contudo, é possível perceber uma abstração
diante dos rostos que fazem os processos de ensino-aprendizagem em Geografia, desconsiderando o trabalho com
as diferenças na produção do espaço, incluindo o espaço escolar. Assim, o presente texto tem como objetivo refletir
sobre para quem ensinamos Geografia em nossas escolas. Para tanto, eu promovo um diálogo entre os estudos
queer e a interseccionalidade a fim de questionar as possibilidades do fazer geográfico que construímos pela prática
espacial de nossa existência: a corporeidade. Portanto, desde uma perspectiva queer interseccional e para além das
questões de gênero, sexualidades e raça, é fundamental repensarmos um ensino de Geografia que nos possibilite
percorrer por outros horizontes, desestabilizando barreiras e ultrapassando fronteiras.
Palavras-chave
Estudos queer; Interseccionalidade; Gênero; Sexualidades; Raça.
1
Mestrando em Geografia (PPGGEO/UFRRJ). Especialista em Antropologia (UCAM) e em Filosofia e Direitos
Humanos (UCAM). Licenciado em Geografia (UERJ), em Pedagogia (UNIRIO), e em Ciências Sociais
(UNICSUL). Membro e pesquisador da COLETIVA, Grupo de Pesquisa em Geografia, Existências, Cultura e
Cotidiano (PPGGEO/UFRRJ), e do BAFO!, Grupo de Pesquisa em Ética, Currículo e Diferença (PPGE/UFRJ).
Membro e pesquisador do LEQUE, Laboratório de Estudos Queers em Educação (PPGE/UFRJ).
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Abstract
Although the discussions about Geography Teaching are not new in Brazil, the relevance and diversity of its
themes and analyzes are easily perceived. However, it is possible to perceive an abstraction in front of the faces
that make the teaching-learning processes in Geography, disregarding the work with the differences in the
production of space, including the school space. Thus, the present paper aims to reflect to whom we teach
Geography in our schools. To this end, I promote a dialogue between queer studies and intersectionality in order
to question the possibilities of the geographical doing that we build through the spatial practice of our existence:
corporeity. Therefore, from an intersectional queer perspective and beyond the issues of gender, sexualities and
race, it is essential to rethink the Geography Teaching that allows us to travel through other horizons, destabilizing
barriers and crossing borders.
Keywords
Queer Studies; Intersectionality; Gender; Sexualities; Race
Resumen
Las discusiones sobre la enseñanza de la Geografía en Brasil no son nuevas y aún repercuten en muchas
orientaciones de análisis sobre el tema. Sin embargo, es posible percibir que hay una abstracción frente a los rostros
que construyen los procesos de enseñanza-aprendizaje en Geografía, desconsiderando el trabajo con las diferencias
en la producción del espacio, incluido el espacio escolar. Así, el presente trabajo pretende reflexionar para quiénes
enseñamos Geografía en escuelas brasileñas, utilizando, para ello, diálogos entre los estudios queer y la
interseccionalidad para tensionar posibilidades de diálogo con el hacer geográfico que construimos a través de la
práctica espacial de nuestra existencia: la corporeidad. Por ello, además de las cuestiones de género, sexualidades
y raza, es fundamental repensar, desde una perspectiva queer interseccional, una enseñanza de la Geografía que
nos permita transitar por otros horizontes más allá de los que ya hemos construido hasta ahora, desestabilizando
barreras y cruzando fronteras.
Palabras-clave
Estudios queer; Interseccionalidad; Género; Sexualidades; Raza.
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Introdução
Gritemos, pois, na defesa de um projeto de educação e ensino de geografia que tenha nas
vozes e ações dos diferentes sujeitos sua razão de ser!
(GIROTTO, 2017, p. 439).
As inquietações acerca do ensino de Geografia no Brasil são muitas e, há muito tempo,
têm sido assunto de pautas em discussões sobre esse tema e, também, em torno de outros
conceitos que não são sinônimos, mas se complementam, como Geografia Escolar e Educação
Geográfica. Portanto, não é contemporânea a problematização do ensino de Geografia, visto
por diferentes horizontes de estudos, pesquisas e práticas didático-pedagógicas. Mas, essas
problemáticas têm se preocupado com uma Geografia ensinada para quem? Muito se produz
sobre a relação do ensino da ciência geográfica diante dos anseios discentes, da formação
cidadã, da formação docente inicial e continuada, dos currículos e políticas educacionais.
Contudo, é possível encontrarmos uma abstração em muitas dessas discussões que não elencam
quem são essas pessoas. De que população brasileira estamos falando?
O geógrafo Ruy Moreira demonstrou essa preocupação ao propor um discurso do avesso
da Geografia que se ensina em nosso país ao questionar: “Tem cara de que/quem o Brasil?”
(MOREIRA, 2014, p. 131). E não para por aí, pois, “É de se indagar, assim, que Brasil a
Geografia do Brasil que se ensina faz então desfilar. Qual é o Brasil do professor?” (MOREIRA,
2014, p. 131). E a problematização diante de sua percepção elucida que:
Duas linhas de respostas se desdobram de imediato frente a essas perguntas. Uma que
apresenta o Brasil como um todo formado de reunião de partes tão diferenciadas umas
das outras que esse todo acaba por não ter uma face propriamente de sociedade
brasileira. Outra que oculta por trás de expressões adjetivas como país tropical, país-
continente, país-potência, país do futuro, país em desenvolvimento, país emergente
uma leitura que se passa de uma concepção de país, não de sociedade com sujeitos de
carne e osso propriamente. Discursos de um país sem rosto que o personalize. São
discursos de politização pela despolitização do sujeito [...]. (MOREIRA, 2014, p.
131).
de se concordar que muito se fala sobre sujeito nas concepções em torno de um
ensino de Geografia emancipatório, autônomo e democrático, que seja capaz de contribuir para
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uma formação cidadã amplamente construída por uma leitura crítica-reflexiva de mundo, mas
que, em muito, esconde discursos que sejam capazes de personalizar quem são essas pessoas
desse Brasil tão desigual, que politize esses sujeitos por meio do ensino de uma ciência
geográfica que ao encontro das diferentes existências que se constituem e são constituídas
em nosso tecido social.
Assim, instigado pela provocação de Ruy Moreira (2014), o presente texto tem como
objetivo refletir sobre os rostos para quem ensinamos Geografia no Brasil. Para tanto, o trabalho
com os possíveis diálogos entre os estudos queer, a interseccionalidade e o ensino de Geografia
são fundamentais para a problemática levantada nesse estudo, pois a construção teórico-
metodológica ultrapassa as fronteiras científicas da Geografia e se encontra no desafio dialógico
do conflito e da ressignificação.
Certamente, Ruy Moreira (2014) em seu livro não adentra os campos de gênero,
sexualidades e raça, mas abre caminhos para diálogos entre os estudos queer e a
interseccionalidade ao endereçarmos nossas indagações por meio de um ensino de Geografia
crítico nesses campos de análise.
Cabe ressaltar que ensino de geografia na perspectiva crítica, pressupõe a
compreensão da escola como um espaço que promove a construção de um
conhecimento que tenha sentido na vida do educando, que por sua vez, passa a
apreender a geografia como uma disciplina que possibilita desvelar a realidade, por
meio da compreensão das relações contraditórias que se desenvolvem no contexto
social (SILVA; ROCHA, 2020, p. 66).
Portanto, faz-se necessária a compreensão de que nossos corpos discentes e docentes
carregam consigo implicações de gênero, sexualidades, raça e classe. E é, fundamental, então,
o embasamento dos estudos queer e da interseccionalidade para que as abstrações sejam
personalizadas politicamente em rostos que são verdadeiramente as diferentes faces do nosso
Brasil. Cabe ressaltar que não é o objetivo desse estudo buscar reduzir as pessoas a seus gêneros,
sexualidades e raças, mas sim, tangenciar outras perspectivas para o ensino de Geografia que
considere esses elementos como fatores da existência humana que são imprescindíveis na
produção do espaço, inclusive o espaço escolar.
Logo, não há nenhuma pretensão nas linhas desse texto em responder a pergunta trazida
em seu título, pois, o que realmente interessa é a percepção da potencialidade do trabalho com
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a diferença no ensino de Geografia, compreendendo que esses rostos são muitos e que não há
nenhuma intenção de reduzi-los a nenhum tipo de classificação.
Ainda, é fundamental esclarecer que esse estudo também não versa sobre a possibilidade
de se trabalhar com possíveis conteúdos de gênero, sexualidades e raça no ensino de Geografia.
Isso porque, parte-se da compreensão de que essas são problemáticas que já estão inseridas nos
conteúdos trabalhados em Geografia na sala de aula da Educação Básica, como nas relações do
campo, na cidade e no urbano, no mundo do trabalho, na globalização, dentre tantos outros. A
viabilidade do trabalho está, justamente, em se pensar o ensino de Geografia pelo fazer
geográfico (SILVA, 2014), considerando que ele é primeiramente construído nos processos de
ensino-aprendizagem que se constituem entre docentes e discentes.
Desse modo, não se trata de pensar em um ensino de Geografia para se ensinar sobre
gênero, sexualidades ou raça. Não se trata de um ensino de Geografia que abram “novasportas
ou janelas, mas que as derrubem. Quando Ariovaldo Umbelino de Oliveira (2008) chamou
atenção “para onde vai o ensino de Geografia?”, podemos hoje pensar em: o que podemos com
o ensino de Geografia? Reafirmando que tanto o barulho quanto o silêncio dizem muito sobre
o que podemos.
Ensinar e aprender, refletir e dialogar: uma Geografia outra
Vivemos em um país fraturado exponencialmente, em suas diferentes escalas, que traz
consigo marcas da violência contra pessoas que não se enquadram em um padrão ocidental que
valoriza primordialmente o homem branco cristão e cis-heterossexual, dessa forma, tudo junto.
Assim, é fundamental destacar que a primeira característica marcante de nossa
formação socioespacial, sob a lógica capitalista, é a violência, constituída, também,
pela reprodução de genocídios. Fundado, primeiramente, no genocídio indígena,
ocultado, muitas vezes, pelo discurso do “bom selvagem” e da “missão civilizatória”
dos portugueses-bandeirantes, foi seguido por contínuos genocídios (das populações
de origem africana, das mulheres, dos grupos LGBTQ). São genocídios porque afetam
grupos sociais específicos, não se distribuindo de forma igual entre todos os sujeitos
que habitam o território brasileiro. Não se trata, no entanto, de processo que se encerra
no passado. Sua reprodução se mantém, cotidiana, em diferentes territórios do país
(GIROTTO; GIORDANI, 2019, p. 117).
E essa dimensão é fundamental para compreendermos que o ensino de Geografia não
pode estar ileso à essas problemáticas, pois, seja enquanto docentes ou enquanto discentes,
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estamos atravessados diariamente por essas questões e, como nos esclarece Alex Ratts (2016,
p. 117), Apesar de parecerem temas novos, as questões étnico-raciais e de gênero, relativas a
‘negros’, ‘indígenas’ e ‘mulheres’, são mencionadas em textos identificados como pertencentes
à vertente crítica da geografia escolar dos anos 1980”. Mas onde tais questões se inserem no
ensino de Geografia? A afirmação trazida por Alex Ratts (2016) corrobora com a ideia de que:
Defender a geografia como disciplina na escola pressupõe compreender os seus
sentidos no processo de humanização, que é sempre, em nossa perspectiva, um
processo de retomada da humanidade que nos é retirada, a todo momento, em uma
sociedade marcada pela espoliação, precarização e genocídio (GIROTTO;
GIORDANI, 2019, p. 128).
Portanto, compreender a Geografia no campo das humanidades requer a compreensão
de que essa ciência enquanto disciplina escolar precisa romper com as barreiras do
tradicionalismo academicista e dos conservadorismos, possibilitando outros meios de ensinar e
de aprender através de reflexões e diálogos que permitam que esse horizonte não seja reduzido
aos muros escolares. É preciso ir além. É preciso reescrever histórias, derrubar muros, recriar e
ressignificar o que a dialogicidade do próprio ato de existir enquanto ser humano constituído
também por cultura e construtor social é capaz de nos proporcionar.
É, então, considerar a importância do fazer geográfico enquanto fator de existência
humana. Como nos afirma Catia Antonia da Silva (2014), o fazer geográfico se quando
ensinamos, quando pesquisamos, quando assumimos nossa existência geograficamente na
produção do espaço. Além disso, a Geografia como “ciência do mundo da vida” (SILVA, 2014,
p. 20) faz sentido quando damos sentido a ela. E, como afirma a autora, O que sentido na
ciência é a construção de sentidos, do sentido de fazer Geografia, fazemos quando ensinamos,
fazemos quando pesquisamos, fazemos quando aprendemos com o outro. Fazemos Geografia
quando estamos desencantados com o mundo” (SILVA, 2014, p. 31). Dessa forma, a Geografia
se constrói não enquanto campo científico, mas também no fazer de nossas vivências
cotidianas, movimentadas pelo trabalho com a diferença que nos constitui enquanto seres
humanos e que por nós também é constituída.
Como ato de criação, o ensinar-aprender geografia pressupõe a mediação da palavra,
nunca tomada como grafia vazia, desconectada do universo sensível dos sujeitos. A
palavra é sempre social, histórica e espacialmente referenciada; expressa localizações
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e contextos, formas de ser e estar no mundo, trajetórias e geografias. Pela palavra, as
representações e experiências dos estudantes se revelam e é possível construir
mediações para o aprender que se constitui ato de pensamento (GIROTO;
GIORDANI, 2019, p. 122).
Notoriamente, não se está falando de ensinar nas escolas uma Geografia que não seja
embasada pela ciência, mas sim, que o ato de criação do fazer geográfico está também em
nossos cotidianos e que se constrói pelas nossas existências, e que é fundamental que ao se
construírem processos de ensino-aprendizagem em Geografia isso seja levado em consideração.
É importante ressaltar, ainda, que quando estamos falando de ensino de Geografia, aqui,
seguimos pela perspectiva de que ensinar e aprender são vias de mão dupla que percorrem tanto
quem é docente quanto quem é discente, pois a ideia de docência enquanto transmissão de
conhecimento não cabe nas linhas desse texto, apesar de a Base Nacional Comum Curricular
(BNCC), ainda defenderem em suas propostas um ensino pautado em uma suposta transmissão
tecnicista de conteúdos estruturados em habilidades e competências (GIROTTO, 2017).
Consideraremos, em contrapartida, que estar na posição de docente é um contínuo ato
de ensinar e de aprender conjuntamente, assim como, estar como discente também permeia o
ensinar e o aprender. Por isso, prezamos pela mediação, pela humanização, pelo diálogo, como
nos ensinou Paulo Freire (1967; 1968; 1992; 1996). Enfatizamos as palavras de Ana Giordani
(2019, p. 5), ao elucidar que:
Quando falamos em docência, estamos nos referindo a uma atividade profissional e
social que é atravessada por diversos vetores, como a formação acadêmica, as
políticas sobre o trabalho, as políticas de educação, as expectativas sociais, as
demandas das comunidades escolares e as trajetórias pessoais e profissionais dos
próprios docentes. Trata-se de uma profissão de extrema complexidade, com um papel
social (ou papéis sociais) de reconhecida relevância, mesmo que passemos, hoje, por
um momento de latentes tentativas de desvalorização. Aliás, contraditoriamente,
podemos entender que as pressões atuais sobre a profissão derivam do
reconhecimento do valor social e estratégico do magistério. Por estarem “na ponta”
das políticas, no lugar sensível da materialização das intenções dos projetos
dominantes, são as professoras e os professores que carregam, no cotidiano, o possível
da política e a potência do conflito.
Pois, muitas vezes, esquecemos também que quem exerce à docência tem um rosto,
constrói sua existência no espaço e produz a diferença em sociedade. O ensino de Geografia
pensado somente para o corpo discente acaba por invisibilizar à docência como parte do ato de
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criação do fazer geográfico em sala de aula, além de instrumentalizar o ensino para que as
crianças e adolescentes aprendam aquilo que lhes é transmitido tecnicamente.
Portanto, o ensinar e o aprender Geografia ultrapassa posições docentes e discentes, mas
também as une, entendendo os seres humanos enquanto processo contínuo de produção de
existência, de construção de saberes e concepções que nos permitem a trans-forma-ação de
seres biológicos em seres culturais, enquanto agentes endógenos nas e das relações sociais. Para
tanto, é fundamental o reconhecimento de nossas diferenças, de nossas existências e da
complexidade que elas têm ao fazerem parte da produção do espaço. Sendo, portanto, elementos
fundamentais para serem considerados ao se ensinar e aprender Geografia.
Estudos queer, interseccionalidade e ensino de Geografia: diálogos possíveis
Os estudos queer nos possibilitam a compreensão de outras formas de ser, estar e existir
que não se enquadram em padrões reducionistas que dicotomizam seres humanos e fragmentam
nosso tecido social. É um exercício contínuo de insurgência de quem, como aponta Megg
Rayara de Oliveira (2020), não está nem ao centro e nem à margem. É como um balé que não
tem coreografia, mas que se dança. É como nadar em águas desconhecidas de um oceano que
se sabe o nome. É e não é, e não precisa haver especulações na contramão do próprio existir,
do próprio viver. Portanto, trata-se de um “[...] corpo compreendido como um campo de batalha
[...]” (LEOPOLDO, 2020, p. 24). Sendo assim:
O queer [...] não se trata de uma identidade, mas, sobretudo, de um questionamento
contínuo das identidades, um questionamento aos processos de naturalização e
normatização. Pensando nesse dado, é preciso que determinados grupos escutem essa
outra voz que é o queer, essa voz que, inexoravelmente, chegou em dado momento a
interpelá-los, não se tornando apenas uma temática de seus colóquios. O queer vai
questionar esses saberes de forma contundente e propor, a todo momento, que haja
dentro desses grupos uma mutação (LEOPOLDO, 2020, p. 29).
Além disso, Richard Miskolci (2021) ressalta que os estudos queer foram originados
por feministas. Assim, “Teresa de Lauretis foi a primeira teórica a utilizar o termo queer, mas
dela também surgiu uma das primeiras críticas: a teoria queer havia se transformado numa
criatura conceitualmente vazia da indústria cultural” (PEREIRA, 2020, p. 89). Portanto, é
preciso atenção para não cair no reducionismo de associar demasiadamente os estudos queer
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aos de gênero, sexualidades, LGBTI+ e feminismos, como nos lembra Thiago Ranniery (2017,
p. 26):
O limite está em perder de vista como se sugere uma integração das posições num
todo único ao tratar teorias distintas de formas unificadas, desconsiderando
especificidades e retirando-lhes a força. Não se trata de negar a importância desses
campos para a “teoria queer” ou mesmo para as lutas políticas contemporâneas no
campo da educação, nem praticar o descrédito de bens intelectuais, mas quiçá advertir
quanto à tendência de equipará-los. Esta não é, por sua vez, uma defesa em favor de
um retorno à disciplinarização, delimitando até onde vai o alcance de cada uma das
perspectivas teóricas, mas, ao contrário, é sobre como vale ressaltar as vicissitudes
para que não sejam obliteradas em nome de negociar as possibilidades de
investigação.
Não se trata, também, de dizer que tais questões não sejam importantes para os estudos
queer, mas sim, de apontar que os interesses de cada perspectiva de estudo não podem ser
reduzidos a uma coisa só, circunscritos por meio de uma simplicidade conceitual, teórica e
política que não existe. Há, sem dúvidas, muitas complexidades em torno dessa discussão, mas
“A própria evidência do termo ‘queer’ recobre um elenco significativo de questões que incidem
principalmente sobre o centramento em uma tematização específica” (RANNIERY, 2017, p.
25). É importante perceber, então, “[...] que a imprecisão pode ter utilidade. Uma clareza nos
seus usos pode ser mistificadora e remeter a essencialismos contra os quais a ‘teoria queer’ tem
se voltado, podendo ser associada a uma ideia de univocidade e de autoridade inquestionável”
(RANNIERY, 2017, p. 25).
É importante mencionar, também, que as questões raciais não se encontram à margem
dos estudos queer, pois, como afirma Caterina Rea (2018, p. 118) “A crítica Queer of Color
pretende se diferenciar das outras produções queer que poderiam ser definidas como brancas,
pois centradas na dissidência sexual e de gênero, conferindo um papel secundário aos outros
marcadores sociais”. Sendo, então, uma plataforma política que “contesta o primado do sujeito
colonial branco e de classe média, que se tornou central na teoria queer dominante” (REA,
2018, p. 122).
Portanto, é fundamental a compreensão de que “Repensar o queer e a dissidência sexual
de forma interseccional e repensar a interseccionalidade em uma perspectiva queer, apontando
para suas significações teóricas e suas possibilidades de utilizações políticas e militantes,
constitui uma das linhas da crítica Queer of Color” (REA, 2018, p. 125). Sendo assim, a
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constituição de movimentos que não se isolam, constituindo outros horizontes de análise por
parte dos estudos queer e suas relações com a interseccionalidade.
Contudo, vale destacar que a presente pesquisa aqui não se trata de uma produção da
crítica Queer of Color em relação às questões de gênero, sexualidades e raça. A pesquisa, na
verdade, busca relacionar os estudos queer e a interseccionalidade para problematizar as
relações de gênero, sexualidades e raça no ensino de Geografia por meio do fazer geográfico.
Portanto, não aqui a intenção de delimitar os estudos Queer of Color à relação entre os
estudos queer e a interseccionalidade, pois compreende-se que essa plataforma política vai além
disso. A menção a essa vertente aqui se encontra na possibilidade de visualizar caminhos que
relacionem gênero, sexualidades e raça mas não só isso por parte dos estudos queer em uma
perspectiva interseccional. Todavia, entende-se que essa complexa relação aqui se dá por outro
caminho, encontrando elo nos diálogos entre os estudos queer e a interseccionalidade.
Patricia Hill Collins e Sirma Bilge (2021, p. 64) nos atentam, assim, para a possível
relação entre a interseccionalidade e os estudos queer, pois:
[...] estudos sobre queers de cor usam a interseccionalidade como estrutura analítica
para desafiar tanto a teoria queer quanto a interseccionalidade como campo de
investigação. Aqui, a interseccionalidade funciona como uma ferramenta analítica
para abordar a ênfase excessiva da teoria queer na branquitude, nas experiências da
classe média e nas preocupações do Norte global, bem como em sua postura anti-
identitária. Para especialistas queer e trans que se interessam pela categoria de cor, as
identidades coletivas são não apenas politicamente estratégicas, como
psicologicamente importantes para queers e trans de cor em uma sociedade com
comunidades LGBTQ racistas. Em contrapartida, especialistas queer desafiam a
heteronormatividade nos estudos interseccionais. Isso implica entender que o termo
queerdesestabiliza a própria ideia de comportamento normal queer”, portanto,
torna-se um conjunto de ações, um verbo, não o que uma pessoa é ou tem. Esse
entendimento de queer dificulta a normalização da interseccionalidade pelos grupos
dominantes ou sua assimilação no “mesmo de sempre”. Nesse sentido, esses
pensadores e essas pensadoras são a própria “interseccionalidade queer”. Criticar a
heteronormatividade na interseccionalidade cria espaço para novas questões sobre as
relações de poder e a sexualidade e para entendimentos sobre a resistência às
hierarquias sociais.
Mas, como afirmam as autoras, “a interseccionalidade não é simplesmente uma
heurística para a investigação intelectual, mas também uma importante estratégia de
investigação para o trabalho de justiça social (COLLINS; BILGE, 2021, p. 66). Então,
repensar o ensino de Geografia por meio de uma perspectiva queer interseccional é um
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exercício intelectual que preza pela emancipação como pressuposto para uma escola que não
trabalhe a diferença pelos meios da opressão. O ensino de Geografia, aqui, se constitui como
uma possibilidade de trabalho com a justiça social, produzindo possíveis caminhos para uma
prática interseccional crítica.
A interseccionalidade como forma de investigação crítica invoca um amplo uso de
estruturas interseccionais para estudar uma variedade de fenômenos sociais [...] em
contextos locais, regionais, nacionais e globais. A interseccionalidade como prática
crítica faz o mesmo, mas de maneiras que, explicitamente, desafiam o status quo e
visam a transformar as relações de poder (COLLINS; BILGE, 2021, p. 53).
Como aponta Alex Ratts (2016), um tempo a interseccionalidade não era apresentada
como hoje, mas estava presente no pensamento de intelectuais negras que nos atentavam para
essas problemáticas que se entrecruzam sobre indivíduos que fogem às normatizações e
padronizações branco ocidental cis-heterossexual cristã. Sem vírgulas porque tudo junto.
Logo, Audre Lorde (2019), Beatriz Nascimento (2021), Ângela Davis (2016), Lélia
Gonzalez (2020), Sueli Carneiro (2011), bell hooks
2
(2019) entre outras intelectuais, nos
atentavam tempos sobre as questões interseccionais do racismo e do sexismo, principalmente
no corpo da mulher negra. Mas, a interseccionalidade ganha uma forma sistematizada com
Kimberlé Crenshaw (2022), que é a responsável por “dar nome” a essas questões já trabalhadas
muitos anos, conceituando a interseccionalidade. Além disso, em 1851, Sojourner Truth já
impactava as pessoas presentes na Convenção dos Direitos da Mulher, em Ohio, nos Estados
Unidos, com seu discurso E eu não sou uma mulher?, registrado por Fances Gages (RIBEIRO,
2017), que hoje impacta o mundo, onde denunciava as violências vividas enquanto foi
escravizada e, também, enquanto mulher negra.
“Tal conceito é uma sensibilidade analítica, pensada por feministas negras cujas
experiências e reinvindicações intelectuais eram inobservadas tanto pelo feminismo branco
quanto pelo movimento antirracista, a rigor, focado nos homens negros” (AKOTIRENE, 2020,
p. 18). E, desse modo, “[...] a interseccionalidade exige orientação geopolítica” (AKOTIRENE,
2020, p. 31), que as problemáticas destacadas por esse conceito não acontecem de forma
2
Deu-se prioridade a escrever o nome da autora em letras minúsculas, independentemente de onde ele aparece no
texto, como era de sua preferência.
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
SOUSA, Victor. Que rostos tem o ensino de Geografia? Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 9, nº 18, pp. 149-167, maio-agosto de 2022.
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igual ao longo do espaço geográfico. Basta pensarmos no imperialismo e nas desigualdades
Norte-Sul. Assim:
A interseccionalidade visa dar instrumentalidade teórico-metodológica à
inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado
produtores de avenidas identitárias em que mulheres negras são repetidas vezes
atingidas pelo cruzamento e sobreposição de gênero, raça e classe, modernos aparatos
coloniais (AKOTIRENE, 2020, p. 19).
É importante salientar, ainda, que as preocupações geopolíticas também se inserem nos
estudos queer, uma vez que os mesmos são originados no Norte global e sofrem muitas críticas
sobre sua aplicação nos países do Sul. Contudo, Pedro Paulo Pereira (2020) nos esclarece que
não se trata de uma aplicação, mas sim de uma localização daquilo que chamamos de queer
aqui nos países abaixo da linha do Equador, e reconhece que os estudos queer apresentam
potencialidades muito fortes na América Latina, inclusive no Brasil, e é fundamental que a
realidade em que esses estudos vêm do Norte sejam localizadas nas diferentes realidades
vividas pelo Sul global.
Nessa perspectiva, Larissa Pelúcio (2020) nos lembra que os estudos queer chegam ao
Brasil onde o país ainda apresenta cicatrizes de um passado colonial intensamente marcado pelo
clientelismo e um sentimento de inferioridade, além da própria língua portuguesa (PELÚCIO,
2020). Assim, Larissa Pelúcio (2020) também nos atenta para como a nossa pretensão de país
emergente nos afasta de outros países que falam a língua portuguesa também herdada de
períodos coloniais, como Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Macau,
Timor Leste e Guiné Bissau. Portanto, para se referir a esse distanciamento, a autora utiliza
uma expressão muito usual na língua portuguesa falada popularmente em nosso país: no cu do
mundo.
Nesta geografia anatomizada do mundo, nós nos referimos muitas vezes ao nosso
lugar de origem como sendo periférico, ou fomos sistematicamente sendo assim
localizados e, de certa forma, acabamos reconhecendo essa geografia como legítima.
E se o mundo tem cu é porque tem também uma cabeça. Uma cabeça pensante, que
fica acima, no norte, como convêm às cabeças. Essa metáfora anatômica desenha uma
ordem política que assinala onde se produz conhecimento e onde se produzem espaços
de experimentação daquelas teorias (PELÚCIO, 2020, p. 289).
Se não houver o cuidado de realizar tal localização, o que vemos é uma reprodução
teórica do centro para a periferia que não condiz com a realidade que vivemos. Sendo
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atravessada por uma hierarquia epistemológica que não ultrapassa o campo acadêmico, e que
nem nesse campo consegue dizer muita coisa que seja realmente uma aproximação entre o
campo teórico construído pelos estudos queer e a realidade que vivemos nos trópicos. Portanto,
há uma necessidade de se pensar sobre como podemos trabalhar com esse “queer nos trópicos”
(PEREIRA, 2020), levando em consideração que “Há uma potência queer no cu do mundo”
(PELÚCIO, 2020, p. 299).
Podemos perceber, então, que estamos falando de diferença. E “A noção de diferença
emerge de muitos lugares epistemológicos: da teoria feminista, dos estudos culturais e dos
estudos subalternos, entre outras vertentes” (RATTS, 2016, p. 124). Portanto:
A diferença está no horizonte das interações sociais e políticas, nestas perspectivas,
das relações raciais (negros(as), brancos(as), mestiços(as) e outros segmentos que
podem ser racializados), de etnicidade (indígenas, quilombolas, ciganos(as) e outros
grupos que podem passar por processos de etnicização), de gênero e sexualidade
(mulheres, travestis, transexuais, homens, lésbicas, gays, bissexuais e pessoas que não
se enquadram nestas definições) (RATTS, 2016, p. 124).
Nessa perspectiva, é compreensível os diálogos entre os estudos queer e a
interseccionalidade, uma vez que a complexidade da própria existência humana, nos exige um
arcabouço amplo de conhecimentos e saberes construídos no espaço-tempo, na teoria e na
prática, possibilitando uma maior diversidade entre sujeitos que se reconhecem para além das
imposições sociais que marcam nossas (sobre)vivências.
E como dialogar com os estudos queer, a interseccionalidade e o ensino de Geografia?
De início, é preciso reconhecer que essa não é tarefa fácil. Muitas o as questões que
atravessam o ensino de Geografia, como políticas educacionais, curriculares, avaliativas,
formativas e, até mesmo, recursos como o livro didático. E isso muito colabora para um ensino
de Geografia que fale sobre “diversidade” sem que apresente os rostos dela.
Sem dúvidas, esses rostos são muito diferentes. Apesentam gêneros diferentes,
sexualidades diferentes, classes diferentes, etnias e cores de pele diferentes. A repetição da
palavra “diferentes” é proposital. É um reforço para repensarmos como corpo discente e docente
apresentam características diferentes e, na maioria das vezes, o processo de ensino-
aprendizagem desconsidera essa realidade.
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Em um estudo realizado pelas professoras Luyanne Azevedo e Ana Giordani (2019),
por exemplo, onde elas estudaram sobre como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)
trabalha com os conceitos de raça e gênero nos conteúdos pertencentes ao campo geográfico,
acabaram por descobrir que um vazio teórico-conceitual no documento no que se refere ao
trabalho com a diversidade e a diferença. As referidas autoras perceberam que a BNCC “traz
todo o tempo noções acerca da diversidade e das diferenças sem explicitar em momento algum
quais são essas diferenças, a partir de um texto vago e que promove o esvaziamento de debate
e conteúdo, se eximindo de tomadas de decisões em prol de uma educação plural” (AZEVEDO;
GIORDANI, 2019, p. 5). Assim, para as autoras:
Desta forma, o uso da palavra diversidade em detrimento da diferença ou pior, o uso
como palavras equivalentes, acabam por mascarar o real significado por trás das
palavras. Diversidade cultural e social estão atreladas à uma ideia de tolerância e
respeito, impedindo que identidades e diferenças sejam vistas como o que são:
produções sociais que envolvem relações assimétricas de poder. A visão da
diversidade traz consigo uma ideia de tolerância, de resolução de conflitos por meio
de consenso e do diálogo, sem refletir de fato as origens da diferença, reproduzindo a
ideia do dominante tolerante e dominado tolerado, de que o “outro”, o “diferente”
deve estar sempre no lugar de subalterno, de tutela, de colonizado (AZEVEDO;
GIORDANI, 2019, p. 20).
Esse é um dos muitos exemplos que mostram como a diferença é tratada com
negligência quando estamos falando em ensino de Geografia. Entender que a diferença também
é produzida por nossas existências e que, portanto, está inserida no processo de produção do
espaço em que vivemos é fundamental para compreendermos que a Geografia precisa dialogar
com as múltiplas possibilidades do fazer geográfico (SILVA, 2014), considerando que Filha
de seu tempo, como ciência, a Geografia teve a erupção de sistematização num processo lento
calcado em múltiplos condicionantes, tanto históricos quanto pelo desenvolvimento material da
sociedade, formulados a partir de postulados científicos e filosóficos (SILVA, 2014, p. 24), e
que é preciso repensarmos sobre que Geografia estamos construindo e para quem estamos.
Portanto, voltando às indagações propostas por Ruy Moreira (2014), e relacionando-as
com os estudos queer e a interseccionalidade, precisamos pensar em um ensino de Geografia
que esteja engajado com a formação cidadã diante de uma representatividade plural, política,
não neutra e posicionada. E, como os desafios são muitos, é preciso que haja uma pedagogia da
desobediência, como nos apresenta Thiffany Odara (2020). Desobedecer no sentido de resistir,
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de abrir caminhos, de trabalhar nas entrelinhas, de ultrapassar as barreiras da opressão e da
exclusão que marginalizam diariamente um quantitativo massivo de sujeitos que são
considerados aberrações, desviantes e imorais. É insurgir pela impermeabilidade, como nos
sugere Joseli Silva (2009).
Sem dúvidas, esse não é um processo que ocorre em um curto período de tempo. Toda
mudança que tensiona a ordem (im)posta é vista com olhares suspeitos e quando se trata de
mudanças que afetam diretamente os conservadorismos, precisamos firmar os pés no chão para
que os agressivos movimentos de oposição não sejam capazes de nos fazer recuar.
O contexto do mundo atual é extremamente complexo, pois nos deparamos com a
compressão espaço-tempo, mudanças das relações sociais, conjunturas que desafiam
nossa compreensão teórica e política. Logo, não é possível focar apenas na parte de
um todo, mas sim compreender o todo pelas partes (SILVA; SOUZA, 2020, p. 159).
E, para um ensino de Geografia que se preocupe em saber para quem se está ensinando,
é preciso, primeiramente, reconhecer nossa própria existência. Milton Santos (1996), ao pensar
em uma Geografia cidadã que preze por uma epistemologia da existência, afirmou haver três
possibilidades para se trabalhar a dimensão humana: “a dimensão da corporeidade, a dimensão
da individualidade e a dimensão da socialidade” entendendo que “A corporeidade ou
corporalidade trata da realidade do corpo do homem; realidade que avulta e se impõe, mais do
que antes, com a globalização” (SANTOS, 1996, p. 9-10).
E essas dimensões não se isolam uma da outra nessas possibilidades, pois:
Enquanto a corporalidade ou corporeidade é uma dimensão objetiva que conta da
forma com que eu me apresento e me vejo, que conta também das minhas
virtualidades de educação, de riqueza, da minha capacidade de mobilidade, da minha
localidade, da minha lugaridade, há dimensões que não são objetivas, mas subjetivas;
aquelas que têm a ver com a individualidade e que conduzem a considerar os graus
diversos de consciência dos homens: consciência do mundo, consciência do lugar,
consciência de si, consciência do outro, consciência de nós. Todas estas formas de
consciência têm que ver com a individualidade e lhe constituem gamas diferentes,
tendo também que ver com a transindividualidade, isto é, com as relações entre
indivíduos; relações que são uma parte das condições de produção da socialidade, isto
é, do fenômeno de estar junto. Esse fenômeno de estar junto inclui o espaço e é
incluído pelo espaço (SANTOS, 1996, p. 10).
Portanto, uma perspectiva queer interseccional é capaz de contribuir para que possamos
refletir sobre nosso fazer geográfico enquanto existências que insurgem de diferentes
possibilidades para produzirmos o espaço social. E, para isso, não a possibilidade de
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excluirmos o trabalho com a diferença dessas questões, pois assumir que nossas existências se
constroem também pelas fronteiras daquilo que consideramos por igualdade é compreender que
cada sujeito é único ao mesmo tempo que é plural. Pois:
Os “marcadores da diferença” podem ser vistos e discutidos tendo o corpo e a
corporeidade como categorias de pensamento sociais, espaciais e culturais,
antropológicas, geográficas e históricas , e, neste caso, remetidas ao espaço
escolar/acadêmico, agregando aspectos das ausências, presenças, barreiras, recusas,
discriminações etc. (RATTS, 2016, p. 124).
Dessa forma, o corpo pode ser o caminho inicial para repensarmos o ensino-
aprendizagem de Geografia na Educação Básica, reconhecendo a corporeidade como o
exercício da nossa prática espacial que se constitui, inclusive, pela dimensão cotidiana do
espaço. A corporeidade, então, nos possibilita a reflexão sobre o fazer geográfico que
construímos em nossas escolas, oportunizando novos horizontes para um ensino-aprendizagem
efetivamente democrático, emancipatório e humano.
Assim, a perspectiva queer interseccional sob a ótica da Geografia em nossas escolas é
mais do que uma resposta para possíveis incertezas, pois ela é, na verdade, um direcionamento
para outras formas de possíveis de vivenciarmos geograficamente o mundo ao nosso redor,
explorando nossa existência pela análise espacial. Não se trata, então, de um ponto de partida
nem de chegada, mas de uma outra forma de fazer aquilo que buscamos ensinar e aprender:
Geografia. “Portanto, o caminho para a mudança é longo e demandará uma busca por estratégias
que ajudem a Geografia a sair do armário!” (ESCOUTO, 2019, p. 102).
Considerações finais
Quando ensinamos, ensinamos algo para alguém. Portanto, ao ensinar Geografia,
precisamos levar em consideração que esse alguém é uma pessoa real, que tem características
próprias e que produz o espaço de acordo com sua vivência, sua corporeidade. Todo mundo
tem sua própria trajetória e isso precisa ser valorizado no processo de ensino-aprendizagem.
Além disso, quem ensina também tem um rosto, também tem uma trajetória, características
próprias e produz espaço. Afinal, nossa corporeidade está diretamente ligada à nossa existência.
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O olhar crítico interseccional em uma perspectiva queer para o ensino de Geografia se
caracteriza como uma possibilidade de análise diante dos fenômenos sociais que se entrelaçam
na escola, o trabalho com a diferença e nossas próprias existências enquanto sujeitos
geográficos. O ensino de Geografia como prática interseccional crítica tem como objetivo o
desafio de desestruturar o status quo que permeia pela invisibilização de existências no espaço
escolar, não esquecendo que os muros escolares não isolam a instituição da realidade que se
encontra fora deles. Trata-se de educar pela prática da liberdade (FREIRE, 1967) dentro de uma
pedagogia engajada (hooks, 2017) que se recusa a reproduzir opressões e abstrações por meio
de processos de ensino-aprendizagem emancipatórios, democráticos, políticos e posicionados.
Portanto, a Geografia, enquanto disciplina da Educação Básica, precisa se preocupar
sobre que rosto tem os sujeitos que estão diretamente relacionados com seu processo de ensino-
aprendizagem, não mais negligenciando gêneros, sexualidades, raças, etnias e classes como
assuntos que se cruzam e que fazem parte do cotidiano de todo mundo. Pois, para além de
abstrações, somos de carne e osso.
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