Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
SOUSA, Everthon Cosme de; BASTOS, Rafael Schneider. ADEMAFIA E O SANTO AMARO: transformação social a partir do skate e da
mobilização popular. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 9, nº 20, pp. 62-94, janeiro-abril de 2023.
Submissão em: 03/06/2022. Aceito em: 31/01/2023
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons 62
SEÇÃO ARTIGOS
ADEMAFIA E O SANTO AMARO:
transformação social a partir do skate e da mobilização popular
ADEMAFIA AND SANTO AMARO:
social transformation from skateboarding and popular mobilization
ADEMAFIA Y SANTO AMARO:
transformación social desde el skate y la movilización popular
Everthon Cosme de Sousa1
Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Faculdade de Formação de Professores
(UERJ/FFP),
Rio de Janeiro, Brasil
e-mail: everthongeo@gmail.com
Rafael Schneider Bastos2
Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Faculdade de Formação de Professores
(UERJ/FFP),
Rio de Janeiro, Brasil
e-mail: schneiderrafael1997@gmail.com
Resumo
O intuito deste artigo é apresentar o Instituto Ademafia e apontar como, principalmente através do skate, este
influenciou uma série de transformações sociais de caráter popular na comunidade do Santo Amaro, localizada no
bairro do Catete, zona sul do Rio de Janeiro RJ. Comunidade esta, que acumulou marcas profundas de
desigualdade ocasionadas pelo desamparo governamental e pela má organização do espaço urbano, em função de
políticas neoliberais. Através das metodologias de levantamento bibliográfico e pesquisas de campo, pôde-se
analisar o processo histórico de ocupação do local, e com as entrevistas, observar um fenômeno de colaboração
mútua entre os moradores e o instituto, que teve nas aulas de skate oferecidas para as crianças da comunidade o
seu ponto de partida. Pudemos compreender que os esforços dos agentes envolvidos têm resultado em uma
ressignificação do espaço do Santo Amaro e configurado um movimento de resistência, transformando a
comunidade em um local de oportunidades para a juventude e crescente aumento da qualidade de vida.
Palavras-chave
Ademafia; Favela; Santo Amaro; Skate; Social.
1
Graduando em Geografia da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(FFP/UERJ) e bolsista extensionista da UERJ pelo cleo de pesquisa e extensão: Urbano, Território e Mudanças
Contemporâneas (NUTEMC).
2
Graduando em Geografia da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(FFP/UERJ) e bolsista de Iniciação Científica do CNPq pelo Núcleo de pesquisa e extensão: Urbano, Território e
Mudanças Contemporâneas (NUTEMC).
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
SOUSA, Everthon Cosme de; BASTOS, Rafael Schneider. ADEMAFIA E O SANTO AMARO: transformação social a partir do skate e da
mobilização popular. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 9, nº 20, pp. 62-94, janeiro-abril de 2023.
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Abstract
The purpose of this article is to present the Ademafia Institute and point out how, mainly through skateboarding,
it influenced a series of community-based social transformations in Santo Amaro, located in the Catete
neighborhood, south of Rio de Janeiro - RJ. This community has been affected by deep social inequality caused
by governmental helplessness and poor organization of urban space related to neoliberal policies. This study relied
on bibliographic surveys and field research to analyze the historical process of occupation of the Santo Amaro
community. The researchers conducted interviews which indicated strong mutual collaboration between the
residents and the Institute, set off by the skate classes offered to the children of the community. We were able to
understand that the efforts of the involved parties have resulted in a resignification of the public space of the Santo
Amaro community and have formed a resistance movement, transforming the community into a place of
opportunities for youth and improving their quality of life.
Keywords
Ademafia; Favela; Santo Amaro; Skateboarding; Social.
Resumen
El objetivo de este artículo es presentar el Instituto Ademafia y señalar cómo, principalmente a través del skate,
influyó en una serie de transformaciones sociales de carácter popular en la comunidad Santo Amaro, ubicada en
el barrio de Catete, zona sur de Río de Janeiro - RJ. Esta comunidad, acumuló profundas huellas de desigualdad
provocadas por el abandono estatal y la mala organización del espacio urbano por las políticas neoliberales. A
través de las metodologías de levantamiento bibliográfico e investigación de campo, fue posible analizar el proceso
histórico de ocupación del lugar y con las entrevistas observar un fenómeno de colaboración mutua entre los
pobladores y el instituto, que tuvo en las clases de skate ofrecidas a los niños de la comunidad tu punto de partida.
Hemos entendido que el esfuerzo de los agentes involucrados ha resultado en una resignificación del espacio Santo
Amaro y configurado en un movimiento de resistencia, transformando la comunidad en un lugar de oportunidades
para la juventud y un aumento creciente de la calidad de vida.
Palabras-clave
Ademafia; Favela; Santo Amaro; Skate; Social.
Introdução
Este artigo tem como objetivo principal abordar o processo de transformação social que
está ocorrendo na comunidade do Santo Amaro, apresentando o coletivo e instituto Ademafia
como protagonista deste fenômeno, ao utilizar o skate como sua ferramenta principal. Os
objetivos secundários são: expor a necessidade de ações sociais gerada pela carência de
políticas públicas na comunidade; apresentar o trabalho do Instituto Ademafia e as
potencialidades da prática do skate; apontar as atividades realizadas na comunidade e seus
respectivos impactos sociais.
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Na primeira parte do artigo iremos fazer uma contextualização histórica do processo de
ocupação da comunidade onde o Ademafia surgiu e atua até hoje além de abordarmos a
relação da comunidade com o Estado. Pretendemos, com essa parte, discorrer sobre o processo
de ocupação histórica da favela e sua ligação com os fenômenos urbanos e econômicos
existentes no estado do Rio de Janeiro durante o período, além de demonstrar o porquê da
necessidade do instituto, ao abordar todo o processo de segregação, exclusão e espoliação que
a comunidade sofreu pelo Estado, a partir de governanças de caráter neoliberal, empreendedor
e punitivo. Na segunda parte apresentamos o Ademafia, sua história de criação e sua relação
com a favela do Santo Amaro. Abordamos os objetivos e as potencialidades do trabalho por
eles realizado, dando ênfase na importância que a prática do skate tem na formação e atuação
do coletivo e para seu potencial transformador. Na terceira parte, procuramos analisar as
atividades, projetos e ações realizadas pelo Ademafia na comunidade e os impactos positivos
que estes causaram.
Para a obtenção dos resultados pretendidos na pesquisa, foram realizados diversos
trabalhos de campo na comunidade do Santo Amaro, onde houve uma observação minuciosa
do local de estudo. Foram feitas visitas aos espaços da comunidade vinculados ao lazer, à
cultura, aos coletivos existentes, às principais áreas de tráfego e aos empreendimentos locais,
vivenciando, assim, diversas atividades cotidianas. Tal experiência possibilitou reunir uma
variedade de registros fotográficos e informações adquiridas principalmente através de
entrevistas, conversas em grupo e na observação do espaço.
As entrevistas foram realizadas entre 08 de junho de 2021 a 28 de setembro de 2021,
todas dentro da comunidade e com o auxílio de questionários preparados para diferentes perfis
de entrevistados, entre eles: os membros do Instituto Ademafia, pais e alunos atendidos pelas
atividades do Instituto, moradores da comunidade, artistas e empreendedores locais e variadas
lideranças do lugar, como o presidente da Associação de Moradores do Santo Amaro (Sabiá) e
os idealizadores de outras iniciativas que atuam no local, como os organizadores do Coletivo
Ame o Santo Amaro (Lucas Pessoa e Dayse Fernandes). As entrevistas consistiram em
perguntas acerca da realidade vivida na comunidade, a opinião dos moradores sobre o Ademafia
e os outros grupos que atuam no local, a percepção da prática do skate e a relação do Estado
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com a comunidade. As perguntas foram formuladas no intuito de obter apenas um panorama
geral, não tendo sido replicadas no desenvolvimento deste artigo. Além das entrevistas, também
realizamos um extenso levantamento de bibliografia, legislações e dados secundários sobre a
localidade de estudo e as temáticas relacionadas.
Tais procedimentos foram considerados junto às reflexões teóricas realizadas a partir da
Tríade Lefebvriana, de Henri Lefebvre (2006): Espaço Concebido, Espaço Percebido e Espaço
Vivido, que correspondem respectivamente ao espaço mental ou representações do espaço, ao
espaço físico ou material e ao espaço experiencial ou cotidiano (SILVA, 2020). Também foi
utilizado o conceito de Ação Social, de Ana Clara Torres Ribeiro (2011), que compreende as
ações libertárias que ocorrem de dentro para fora, rumando ao descobrimento de uma nova
realidade, tendo os próprios sujeitos sociais como viabilizadores da mesma. Estes conceitos
foram utilizados ao longo do artigo para pensar a espacialidade da temática em questão, assim
como para compreendermos a lógica da ação perpetuada em nosso objeto de análise.
Esta pesquisa se pautou na metodologia da geografia das existências (SILVA, 2014),
que almeja instituir uma nova forma de enxergar e interpretar o espaço, o mundo, valorizando
o cotidiano e o banal como seu método dialógico e estabelecendo conexão com o objeto de
estudo, o que possibilita a compreensão das complexas geograficidades das populações
subalternizadas. Esta metodologia procura permitir uma pesquisa que produza conhecimento a
partir da visibilização dos sujeitos, assim como da compreensão de suas formas de pensar e
agir.
Santo Amaro: uma contextualização histórica e a relação com o Estado
Santo Amaro é uma comunidade que se localiza no bairro do Catete, na Zona Sul do
Rio de Janeiro. Possui, segundo a SABREN (Sistema de Assentamentos de Baixa Renda), uma
área ocupada de 36.704 até o ano de 2018, com 2.166 habitantes e 649 domicílios (Censo
2010)
3
.
3
Segundo moradores e o presidente da associação de moradores local, este número está defasado, pois houve um
grande aumento no mero da população e de domicílios na comunidade. Este fato pode ter a ver com a crise
econômica que o Brasil enfrenta desde meados de 2016, assim como com a pandemia de COVID-19, eventos que
acarretaram em impactos econômicos negativos na população. Além destes possíveis motivos, a comunidade é
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A comunidade possui duas entradas, sendo a principal através da Rua Luís Onófre
Alves, onde é possível a entrada de veículos, e a segunda através da rua Pedro Américo, onde
se localiza a escadaria que leva à comunidade. Santo Amaro é uma favela relativamente
pequena (Figura 1), possui uma quadra poliesportiva, mas nenhuma creche ou escola e nenhum
centro médico. As construções são relativamente altas, sendo comum a ocorrência de sobrados
de até três andares ou mais; as ruas são basicamente vielas, impossibilitando o tráfego de
automóveis.
Figura 1: Mapa de localização da comunidade do Santo Amaro
Fonte: Acervo pessoal (2021)
A ocupação do morro onde hoje se encontra a comunidade do Santo Amaro teve início
na década de 1940 bem antes da criação oficial do bairro Catete, que veio a acontecer somente
considerada uma favela “tranquila”, devido à inexistência de conflitos entre facções rivais desde a década de 1990,
e um grande hiato desde a última operação policial.
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em 1981 , em meio ao maior processo de expansão das favelas no município do Rio de Janeiro.
Este processo acontecia em decorrência do elevado crescimento urbano na cidade (ABREU,
2006 e CAMPOS, 2005) e do aumento na oferta de empregos devido à mão de obra barata.
Nesta época, a maioria dos favelados trabalhava no setor terciário, seguido da construção civil
e dos serviços domésticos, a grande maioria sem precisar sair de sua zona de residência
(ABREU, 2006).
Segundo Campos (2005, p. 73.), “em 1948, o censo das favelas contabilizou 105 delas,
para uma população de 138.837 habitantes [no município]”. Esse fenômeno de crescimento
urbano ocasionou loteamentos nas encostas e, posteriormente, a ocupação das mesmas pelas
classes mais pobres movimentação esta que também foi muito influenciada pela
implementação de políticas urbanas na região central da cidade, que reformularam o seu uso,
abdicando da obrigação de abrigar a população de baixa renda. Grande parte da população que
ocupou as encostas, propiciando a criação das favelas, era oriunda de outros estados,
acompanhando um forte movimento migratório, que no caso do morro Santo Amaro, vinha
principalmente da região Nordeste e do estado de Minas Gerais (SILVA; LIMA, 2015). Estes
movimentos migratórios, no entanto, prevaleceram somente até a década de 1970 (CAMPOS,
2005). Sobre a origem da favela do Santo Amaro, o Sistema de Assentamento de Baixa Renda
(SABREN), aponta que:
[...] a rua Santo Amaro surgiu em 1852, quando as terras da Chácara do Conselheiro
Amaro Velho foram parceladas. Como este parcelamento resultou em lotes estreitos
e profundos, os proprietários ocuparam apenas a faixa próxima à rua, deixando toda a
parte de encosta vazia, o que propiciou a invasão da área, durante a década de 1940.
Nos anos 1960, já existiam na área cerca de 76 moradias sem luz elétrica. A partir de
então, com a chegada dos imigrantes da região Nordeste e do estado de Minas Gerais,
a ocupação se consolidou e se estendeu até chegar à conformação atual (DATA RIO,
2021).
De 1950 a 1964 houve um aumento do valor do solo na Zona Sul do Rio de Janeiro.
Junto a este fato, as distâncias cada vez maiores entre os locais de emprego e os novos
loteamentos, o congelamento dos aluguéis e a consequente diminuição das ofertas de moradia,
resultaram em uma “crise habitacional generalizada, que afetou principalmente a população
pobre” (ABREU, 2006, p. 116.). A população favelada multiplicou-se em decorrência,
mostrando um fracasso das políticas habitacionais da época. Na década de 1950 ainda houve o
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quase colapso das infraestruturas físicas na região, com o acesso à Zona Sul se tornando um
problema, o que complicava ainda mais a vida dos trabalhadores (ABREU, 2006).
Para contextualizarmos o processo de ocupação da comunidade do Santo Amaro, é
essencial que analisemos as mudanças no cenário político e econômico do município do Rio de
Janeiro de maneira geral. No culo XIX, o local onde hoje se localiza o Catete teve um
adensamento populacional com a vinda de imigrantes, serviços e comércios dos mais variados,
o que atraiu a população de alta renda e de status, como políticos e artistas. Em 1897 o Palácio
do Catete se tornou a sede do governo federal, transformando o local em um importante centro
político e socioeconômico do país. Contudo, na cada de 1960, com a sede do poder executivo
sendo transferida para Brasília, junto com a transferência da capital, o local entrou em
decadência com a desvalorização dos imóveis, esfriamento das atividades econômicas e saída
de parte da população de alta renda para outras localidades. Para piorar, as obras vinculadas à
expansão das linhas de metrô na cidade acarretaram em mais prejuízos para o bairro:
Antes caminhos fundamentais para a zona sul, as ruas do Catete, Pedro Américo e
Bento Lisboa tornam-se apenas vias de acesso opcionais, fato que muitos moradores
perceberam como sinal de perda de importância do bairro na cidade.(...) Para culminar
entre 1975 e 1981, as obras de construção do metrô impõem um cotidiano caótico ao
Catete: enormes buracos foram abertos nas calçadas, o trânsito foi desviado em vários
trechos, 55 casas, além de uma escola e a estação de bondes do Largo do Machado,
foram demolidas; outras tantas casas foram desapropriadas; muitas lojas comerciais
fecharam (CARVALHO, 2007, p. 13 apud SILVA; LIMA, 2015, p. 42).
As favelas do Rio de Janeiro, não apenas hoje, mas desde o início, sempre sofreram com
a estigmatização do espaço, tendo a sua imagem projetada como algum tipo de perigo social
para a sociedade, em especial para a burguesia pensamento muito relacionado à questão de
cor, atingindo principalmente o negro favelado.
Conforme nos lembra Campos (2005), tanto a favela quanto a criminalização dos mais
pobres deve ser contextualizada com a história socioespacial da cidade, já que ao longo desse
processo, fica evidente que os interesses dos grupos socialmente dominantes sempre estiveram
por trás da segregação espacial imposta a esses segmentos sociais, seja por meio do uso das
forças repressoras do Estado, ou por meio das muitas legislações segregacionistas de caráter
econômico e etnorracial. Estas eram respaldadas, na época, pelos discursos jornalísticos,
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políticos e acadêmicos higienistas, que serviram para perpetuar a distância social entre o pobre
favelado e as classes mais abastadas.
Podemos utilizar como exemplo legislações que: privilegiavam as elites dominantes na
repartição do solo urbano e rural; não permitiam, perante a condição de alforriado, o pleiteio de
propriedades; impediam a inclusão da população negra no mercado de trabalho urbano este
último sob o discurso de os mesmos não serem capazes de se adaptarem ao trabalho livre, isto
no final do séc. XIX (CAMPOS, 2005 e SEYFERTH, 1995), havendo, inclusive, incentivos à
imigração europeia, para se apossarem das vagas de trabalho e embranquecerem a população
(CAMPOS, 2005 e SEYFERTH, 1995).
Considerando que o mercado de trabalho foi vedado, considerando que houve um
impedimento legal da formação de um campesinato agrário ainda no período da "Lei
de Terras", considerando que o instrumento da educação serviu, ainda mais, para
aumentar as distâncias sociais no período republicano, considerando que os menores
desvalidos continuam a ser armazenados em grandes depósitos públicos, o que a
sociedade espera, então, de seus excluídos? (CAMPOS, 2005, p. 162).
Com isto, fica claro o papel sistemático do Estado no processo de exclusão socioespacial
e de negação do acesso aos direitos básicos, como saúde, educação, moradia, etc.,
marginalizando esta parcela da população e os expulsando em direção às áreas menos
valorizadas do solo urbano. Como se não bastasse, políticas como as de antivadiagem
4
eram
feitas para punir estes que, perante tais legislações supracitadas, eram impedidos de trabalhar
no meio urbano e acabavam por ficar dispersos pelas ruas, ou seja, uma constante perseguição
do Estado e da sociedade para com tais indivíduos.
Discursos que vinculavam as favelas aos riscos pandêmicos e à violência urbana foram
muito presentes na história das favelas no Rio de Janeiro, este último se mantendo até os dias
atuais, e sendo acompanhado do recente discurso ecológico elitista, que culpa a população
periférica pelos impactos ambientais curiosamente apenas nas áreas de interesse imobiliário
(SILVA; LIMA, 2015). Junto com a violência das forças policiais, respaldaram-se diversas
4
A vadiagem é uma contravenção prevista no artigo 59 do decreto-lei 3.688 de 1941. A lei classifica como
vadiagem "entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe
assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita". A pena pode
variar entre 15 dias e três meses. (FREIRE; OLIVEIRA, 2010).
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políticas de discriminação étnica, sendo a polícia submetida aos interesses das classes
dominantes, de caráter punitivo e racista e treinada para matar. (CAMPOS, 2005). Como diz
Campos (2005, p. 161): “historicamente, as relações entre os mais pobres e o Estado sempre se
deram no limite do conflito, favorecendo as elites, que, em última instância, dominam o
aparelho de repressão”.
De acordo com Lefebvre (2006), o espaço é concebido pelos planificadores, arquitetos
e intelectuais para seguirem uma determinada ordem, que neste caso, é uma ordem excludente,
sendo necessário lembrar que, na cidade capitalista, os espaços são pensados para servirem aos
interesses dominantes. Nesta lógica, o espaço geográfico da cidade do Rio de Janeiro não foi
pensado para ser ocupado por estes indivíduos, que, ao serem “caçados” pelas forças
dominantes da sociedade, configuraram novos meios de se ocupar o espaço, sucedendo então,
a ocupação das favelas, como a comunidade do Santo Amaro. Dessa forma, precisamos
considerar que, esses indivíduos que atuam às margens do que foi projetado pelo Estado,
configuram assim, algum tipo de resistência ao poder constituído, colocando-se não apenas
como sujeitos responsáveis pela história socioespacial da cidade (CAMPOS, 2005), mas
também como atuantes na produção social desse espaço. Em relação ao conflito entre a favela,
a classe dominante e o Estado, Campos (2005) diz:
A relação entre favela e Estado e classes dominantes sempre foi problemática e quase
sempre conflituosa, tendo em vista a ilegalidade da ocupação e os estigmas que foram
criados para respaldar toda e qualquer ação contra os indivíduos que ocupavam esses
espaços (CAMPOS, 2005, p. 73).
Um claro exemplo da atuação do Estado através dos interesses das classes dominantes
nas favelas, foi o da ocupação da Força Nacional na comunidade do Santo Amaro, iniciada
em 18 de maio de 2012, através da justificativa de acabar com os problemas da falta de
segurança, vinculados ao tráfico existente e aos usuários de crack
5
, que residiam no local e
5
“O crack ou qualquer outra droga ilícita funciona assim como um pretexto para legitimar a atuação repressiva
do governo municipal através das suas diferentes secretarias (no caso, SEOP, SMAS), sendo auxiliados, inclusive,
por outros órgãos municipais inclusive a Companhia de Limpeza Urbana - (que, durante as operações,
responsabiliza-se por coletar os pertences dos usuários recolhidos) uma verdadeira “operação de guerra” visando
remover toda a sujeira da cidade ou melhor, das áreas de maior visibilidade. Para tanto, tais operações costumam
contar com o apoio da mídia, que não se cansa de propagandear os efeitos nocivos do crack o que seria muito
bom, se fosse isso mas que, para além, associa-o quase que diretamente aos segmentos que maculam a imagem
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incomodavam a população do bairro do Catete. Esta ocupação foi muito incentivada pela
instalação da sede do Bope (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de
Janeiro) no dia 28 de dezembro de 2000, na favela Tavares Bastos vizinha da favela do Santo
Amaro , que institucionalizou esta tática de ocupação (CÂMARA, 2011), pois perante as
entidades responsáveis, foi de enorme sucesso na pacificação da favela. A ocupação também
foi influenciada pela “política de tolerância zero” implementada pela prefeitura do Rio de
Janeiro em função dos megaeventos que estavam por vir. Essa política, por sua vez, foi
inspirada na experiência novaiorquina de tolerância zero, realizada nas ações do ex-chefe de
polícia de Nova Iorque, William Bratton.
Com o apoio do governo federal pelo uso das forças armadas, começou-se uma
ocupação na favela que visava o controle, vigilância e domínio do território, de caráter punitivo
para com os moradores, e valendo-se de uma visão estereotipada da favela, fundada em
preconceitos e racismo, numa tática de criminalização e combate à população pobre (MAIA,
2013) através das entrevistas realizadas, recebemos diversos relatos de violência policial e
militar constante, em uma rotina que chegava a cerca de três abordagens por dia, no primeiro
ano de ocupação.
A ocupação fazia parte de uma política do Estado de construir uma ordem urbana, onde
as formas de viver que não se enquadrem no modelo desejado são fortemente atacadas, através
de uma administração que se utiliza do poder punitivo como ferramenta de opressão sob as
camadas mais humildes da sociedade. (MAIA, 2013). Basicamente, busca-se compensar a
desregulação social pela expansão do Estado Penal (MAIA, 2013), visando restabelecer a
ordem pública, conservar e melhorar os espaços públicos, tornando-os mais seguros ao uso,
acabando com a “desordem” urbana, combatendo pequenos delitos e melhorando a qualidade
de vida. Tudo isto com enfoque nos locais de população de maior renda, que vivem em volta
da favela, como em Santa Teresa e em partes mais elitizadas do Catete, por exemplo.
que se pretende atribuir à Cidade, ao mesmo tempo em que arregimenta “simpatizantes” das medidas higienistas
atualizadas na história do Rio de Janeiro. Assim, legitima-se uma intervenção que encara o problema do crack
“como algo da área da segurança pública, e não da assistência social””. (MAIA, 2013, p. 11).
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O Estado legitima estas ões que violam os direitos da população através de
argumentos econômicos, por meio de gestões focadas apenas no aproveitamento e avanço do
capital, “pacificando” favelas que se encontram em áreas de interesse financeiro e próximas a
fixos de muita importância como aeroportos, por exemplo e grandes empreendimentos
(CÂMARA, 2011).
Quando analisamos o contexto da época, onde o Rio de Janeiro se preparava para sediar
as Olimpíadas de 2016 e os jogos da Copa do Mundo de 2014, percebemos uma clara vontade,
por parte da governança urbana, de “vender” a cidade, no intuito de atrair o capital exterior,
grandes investimentos e o turismo, além de valorizar os locais centrais. O governo trabalhou
arduamente para melhorar a imagem que a cidade passava para os empresários e o exterior.
Fica nítida, assim, a submissão das ações do Estado perante o interesse do capital privado,
havendo um planejamento urbano neoliberal, que deixa de lado as questões sociais e à vontade
dos citadinos, e foca na atração de investimentos e no empreendedorismo urbano, se utilizando
dos megaeventos como ferramenta para tal (SILVA; LIMA, 2015).
Sob um discurso de melhorias e benfeitorias inclusive de geração de empregos e
aumento na renda e na qualidade de vida para a população (CASTRO; FERREIRA, 2019) ,
são executadas políticas excludentes e segregacionistas de intervenção urbana e territorial
que visam valorizar a cidade e colocá-la numa melhor posição na hierarquia interurbana
(SILVA; LIMA, 2015). Esse viés acaba aumentando as desigualdades sociais na cidade: é um
“modelo de gestão urbana empreendedorista neoliberal em curso na cidade, submetida aos
interesses dos agentes econômicos que compõe a coalizão de poder que sustenta esse projeto”.
(CASTRO; FERREIRA, 2019, p. 142).
Além dos megaeventos, vale citar o enorme interesse que os grandes investimentos
circundantes à comunidade do Santo Amaro, na época, tinham na ocupação, visando à
valorização de seus empreendimentos. Sobre estes empreendimentos, Maia (2013) diz:
[...] constata-se um crescente interesse por parte da iniciativa privada cujo pontapé
inicial foi dado pelo empresário Eike Batista, com a aquisição da concessão da Marina
e da compra do Hotel Glória -, de investir na localidade, o que tem feito disparar o
preço dos imóveis (um aumento de cerca de 200%, segundo estimativas do Sindicato
de Habitação do Rio -SECOVI-Rio), expulsando, direta ou indiretamente, antigos
moradores da localidade. O grupo comandado pelo referido empresário (o EBX)
investe, ainda, no projeto de “Corredor Cultural da Glória, que pretende transformar
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
SOUSA, Everthon Cosme de; BASTOS, Rafael Schneider. ADEMAFIA E O SANTO AMARO: transformação social a partir do skate e da
mobilização popular. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 9, nº 20, pp. 64-94, janeiro-abril de 2023.
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o morro da Igreja de Nossa Senhora da Glória numa espécie de Montmartre
Carioca” (Schmidt, 2012, p2, Rio), que abrigará artistas, floristas e sicos, dando
um ar francês ao bairro (MAIA, 2013, p. 15-16).
A ocupação se encerrou no ano de 2015, resultando na volta do tráfico (SILVA; LIMA,
2015) e no fim do policiamento na comunidade, sem que qualquer tipo de projeto social, obras
de infraestrutura ou melhoria no acesso aos serviços, bens e necessidades básicas fossem
implementados pelo governo
6
(como deixaram claro os moradores entrevistados). Isto
demonstra a real intenção desta ocupação, além de reforçar nossos argumentos sobre a mesma
e sobre a péssima atuação do Estado na comunidade, servindo apenas aos interesses da elite e
em função das políticas neoliberais.
Para analisar as transformações realizadas na comunidade do Santo Amaro por
determinados atores, é impossível não notar, em primeiro plano, o descaso e abandono
praticados pelo Estado no local, sinalizados desde a falta de serviços públicos até a ausência de
dados demográficos precisos sobre a comunidade por parte de órgãos governamentais.
É preciso se ater ao fato de que o abandono também é uma forma de se fazer política,
sendo esta, uma tática fundamental e muito utilizada por governos neoliberais, na intenção
de conceber um espaço em que a carência por serviços básicos, a miséria generalizada e a
ausência de políticas sociais, seja marca e fator condicionante para a configuração dos meios
de vida. Trata-se de uma tentativa de enxugar a receita do Estado, direcionando seus esforços
única e exclusivamente para setores e espaços de maior interesse econômico e realizando um
planejamento urbano pautado na captação de investimentos, em troca de uma cidade a ser
comercializada (SILVA; LIMA, 2015). Os espaços rentáveis entram na mira, muitas vezes em
processos de gentrificação, e por outro lado ocorre a abdicação da responsabilidade para com
os espaços teoricamente não rentáveis. Esses que, na maioria das vezes, são habitados por
6
Para viabilizar a ocupação da força nacional na comunidade do Santo Amaro, milhões de reais foram
movimentados dos cofres públicos e, no fim das contas, os resultados inexpressivos não fizeram jus à quantidade
de dinheiro envolvido. Segundo o Ministério da Justiça, em três anos de ocupação o custo total já ultrapassava 23
milhões de reais, destinados principalmente para pagar as diárias dos servidores envolvidos e a manutenção e
combustível dos veículos utilizados. Durante esse período, apenas 2,4 kg de drogas foram apreendidos na
comunidade, tendo como parte desse total a minúscula quantidade de 573 gramas de crack a droga que
teoricamente era o principal motivo da intervenção.
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pessoas de menor poder aquisitivo, especialmente as favelas. Sobre isso, Campos (2005) nos
lembra:
A concentração de favelas e de população favelada deve ser entendida dentro do
contexto da exclusão econômica e social, sobretudo naqueles casos em que o Estado
é o principal agente do processo. Nesse sentido, SOUZA (1996b:445) escreve que
“tem-se, com a crise fiscal do Estado e a penetração do ideário neoliberal, uma
desobrigação ainda maior do Estado para com os pobres urbanos, ou seja, a
diminuição da já pequena presença ‘social’ da ‘ordem’ capitalista formal (CAMPOS,
2005, p. 106).
Nesses espaços socioeconomicamente excluídos, pouquíssimos investimentos em
setores sociais como saúde, educação e infraestrutura básica são realizados. A presença do
Estado é canalizada em maior parte através das incursões policiais e outras situações em que se
justifiquem o uso da força e a presença de agentes militares medidas muito pautadas na forma
como a sociedade percebe estes espaços.
Mesmo com a falta de qualidade de vida promovida intencionalmente, cada vez mais
pessoas procuram as favelas como opção de moradia. Isso porque a “escolha” de morar nas
favelas se dá principalmente pela influência de fatores socioeconômicos, que acompanha um
movimento de ascensão do empobrecimento urbano.
A juventude é uma das partes mais afetadas pelo empobrecimento urbano, e a falta de
oportunidade para ela tem papel fundamental nas estruturas de violência instaladas nesses
espaços. Isso porque, na sociedade capitalista, não existe a possibilidade de sobrevivência sem
renda e, com a indisponibilidade de novos postos de trabalho, a juventude é levada de encontro
à criminalidade (CAMPOS, 2005). Sendo assim, é importante refletir que, essa ideologia
neoliberal de desobrigação do Estado para com os seus deveres sociais, faz das favelas áreas
muito importantes para o ganho de votos e para a manutenção de mão de obra barata. Além
disso, as converte em terrenos férteis para o crescimento de alternativas de vida que sejam
enquadradas na ilegalidade, como o tráfico de drogas, o que colabora para as estruturas de
violência e torna o Estado responsável indireto pela morte precoce dos jovens da favela.
É indispensável o investimento em projetos de capacitação profissional e em geração de
empregos como medidas de proteção à juventude favelada, e também em projetos de iniciação
à cultura e ao esporte, para que de maneira preventiva, as novas gerações sejam alcançadas por
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serviços e atividades que diversifiquem seu cotidiano e que ofereçam oportunidades fora da
lógica de criminalidade concebida pelo resultado das políticas de esquecimento. Acontece que,
na falta dessas iniciativas por parte do Estado, outros atores surgem assumindo o papel de
transformadores sociais, e dentro das muitas limitações impostas, mobilizam as forças
solidárias a seu alcance e criam verdadeiras redes de colaboração dentro das favelas. Têm o
intuito de influir em uma percepção diferenciada desses espaços e produzir novas
possibilidades, alcançar por eles mesmos a transformação social, o que, no caso da
comunidade do Santo Amaro, pode ser observado através do trabalho realizado pelo Instituto
Ademafia.
Ademafia: origem, ascensão e o espaço percebido
O Ademafia é um coletivo que surgiu em 2014 na cidade do Rio de Janeiro utilizando o
skate como sua bandeira principal. Na praça XV tradicional local de encontro dos skatistas
surgiu do acaso o nome que deu origem ao movimento, e que é uma brincadeira com o nome
de seu criador, Ademar Lucas. Tamanha a sua versatilidade, hoje o Ademafia também pode ser
identificado por diversas outras definições, assumindo o formato de crew, instituto, marca de
roupa, produtora cultural e canal de vídeos do Youtube
7
. Este último, que conta com cerca de
720 vídeos e uma comunidade de 192 mil inscritos até o momento, se tornou o principal
potencializador de reconhecimento do coletivo, principalmente por conta da webserie Adelife,
que visa apresentar ao público as personalidades envolvidas e seu cotidiano. Sendo assim, a
internet e as redes se configuraram como ferramenta de papel fundamental para a trajetória do
coletivo.
Visando fornecer conteúdo alternativo em meio aos conturbados acontecimentos
principalmente políticos de 2013, como as Jornadas de Junho e a ascensão da violência no
Rio de Janeiro, Ademar e seus amigos procuraram no ano seguinte, promover a cultura
skateboard no Youtube. Por meio da filmagem do dia-a-dia, utilizar a plataforma para gerar
visibilidade e impulsionar os talentos locais, da arte, da música e principalmente do skateboard.
7
ADEMAFIA. YouTube, 2013. Página inicial. Disponível em:
<https://www.youtube.com/channel/UC63S58vWTVXO_t5D8y4wx8Q>. Acesso em: 08 jun. 2021.
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A popularidade do canal cresceu e a variedade de conteúdos oferecidos acompanhou o
crescimento, abordando variadas áreas de interesse da juventude, como a arte urbana, a moda e
o lifestyle. Sobre o principal criador:
Ademar Luquinhas, podemos afirmar, é alguém que vem atuando, por meio do skate,
no sentido de fazer revelar representações outras, seja do território da favela, seja do
território simbólico de sua subcultura. Nascido e criado na comunidade de Santo
Amaro, da Zona Sul do Rio, é um proeminente representante dos skatistas na cidade.
Fundador do Coletivo Ademafia, realiza vídeos de skate e organiza eventos,
movimentando a cultura urbana da cidade (PEREIRA et al., 2020, p. 144).
Apesar do nome Ademafia ter surgido na Praça XV e do coletivo ter influência em muito
além do Santo Amaro, foi nesta comunidade que os principais representantes do coletivo
moravam, ou eram assíduos frequentadores. A vivência, o cotidiano, o pertencimento e a
memória foram ferramentas que moldaram completamente a forma como o coletivo age, tendo
com o tempo principalmente após o início da pandemia do COVID-19 voltado sua atenção
cada vez mais para a própria comunidade.
Os maiores projetos sociais e atividades tocados pelo coletivo, assim como sua sede, se
localizam no Santo Amaro, sendo nítida uma relação intrínseca do Ademafia com o lugar. Com
isso se pode fazer um vínculo com o conceito de Ação Social de Ana Clara Torres Ribeiro
(2011), pois o coletivo tem suas ações totalmente guiadas pelos conhecimentos obtidos através
da vivência e armazenados na memória muito vinculada ao sentimento dos próprios sujeitos,
conforme os mesmos praticam o seu cotidiano. Isto acaba por oferecer uma nova faceta da
territorialização na comunidade, principalmente através do uso e da racionalidade, e caracteriza
um processo social coletivo de resistência, imbuído de consciência e sentido (SCHIPPER;
SILVA, 2012), feito em grande parte pelos próprios moradores o que reflete a dinâmica real
desta comunidade e de suas demandas sociais.
O Ademafia reflete a representação social de toda uma comunidade ativa, que devido à
modernização e à colonialidade (RIBEIRO, 2011) impostas e mantidas pela elite dominante,
tem a sua voz silenciada e suas necessidades ignoradas, principalmente pelo Estado. Tudo isto
sendo possível através do uso da tecnologia como ferramenta excepcional para a difusão de
conteúdo e informações, além da facilitação do diálogo entre indivíduos de diferentes esferas.
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Com a grande popularidade do canal do Youtube, criou-se a marca Ademafia, assim
como uma intensa catálise para com os movimentos sociais, artistas e grupos ligados às formas
de expressão urbana, que precisavam de ajuda para a disseminação de seu trabalho. O Ademafia
se torna um potencial divulgador de atividades, grupos e artistas da periferia ou não, mas todos
vinculados ao urbano; através do canal mostram a realidade, o cotidiano e a vivência da
juventude na cidade; se torna influenciador digital e propagador de conteúdos essencial para a
cena cultural local, principalmente a da periferia justamente a mais marginalizada.
Segundo os principais atuantes do Ademafia, a ampliação das perspectivas da juventude
local é um dos principais objetivos do Instituto, e isso pode ser percebido nos muitos casos
conhecidos por quem acompanha o canal deles. Foram inúmeros os artistas que ganharam
oportunidade de visibilidade no canal Ademafia e hoje se encontram em posições de sucesso
na indústria musical. Além disso, no canal também estão presentes muitas histórias de jovens
skatistas que cruzaram estados e países para apresentar as suas manobras e vivenciar culturas
diferentes. Em conversa com o skatista e gerenciador de conteúdo Gabriel Bila, que também é
um dos principais fundadores do coletivo, foi dito que sua primeira viagem internacional só foi
possível graças às atividades do canal. O Ademafia, através de seu crescimento, conseguiu
realizar diversos projetos e atividades culturais, educacionais, eventos dos mais diversos tipos,
viagens, shows, festas e fez vínculos com diversas marcas ao longo de sua existência,
percorrendo todo o círculo cultural e social do meio urbano e da juventude.
Henri Lefebvre (2006) ressalta, na teoria do espaço social, que o espaço concebido é
pensado em primeiro plano e minuciosamente por atores que tradicionalmente não possuem
nenhum compromisso com a população periférica, e, portanto, na maioria das vezes manifestam
nas suas práticas, interesses que são consequentemente antagônicos à existência da população
periférica enquanto cidadãos munidos de direitos sociais. Sobre o espaço concebido e seus
elaboradores, Lefebvre (2006) destaca:
As representações do espaço, ou seja, o espaço concebido, aquele dos cientistas, dos
planificadores, dos urbanistas, dos tecnocratas “retalhadores” e “agenciadores”, de
certos artistas próximos da cientificidade, identificando o vivido e o percebido ao
concebido [...]. É o espaço dominante numa sociedade (um modo de produção). As
concepções do espaço tenderiam [...] para um sistema de signos verbais, portanto,
elaborados intelectualmente (LEFEBVRE, 2006, p. 40).
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Considerando que o espaço periférico do Rio de Janeiro é um espaço concebido
propositalmente à marginalização e com dificuldade de acesso à direitos e oportunidades,
entendemos que a entrega do espaço a esses significados perpassa pelos seus ocupantes, e
imprescindivelmente pela juventude, que é principalmente nessa parcela da população que
reside o maior potencial de libertação dessas amarras sociais. O que podemos observar dos
agentes do Ademafia e dos alcançados pelo seu trabalho é, acima de tudo, um rompimento com
a lógica imposta aos jovens da periferia, através da ampliação de horizontes pela cooperação e
principalmente pelo incentivo à prática da arte e do skate.
O skate, sobretudo o street skate (skate de rua), protagoniza desde o início o papel de
ferramenta principal das ações do Ademafia. Para além do movimento e deslocamento, o skate
estimulou esses jovens a perceber e viver o espaço de outras formas. Ao desenvolver a
criatividade de seus praticantes, ressignifica os usos dos objetos e incorpora novos fluxos ao
mobiliário urbano, como os bancos das praças, as escadarias e corrimãos, o que coloca os
skatistas como verdadeiros estabelecedores das espacialidades (PEREIRA et al., 2020). Esse
fenômeno de inquietação no espaço leva-os constantemente à busca por outros “picos”
8
e,
portanto, novos lugares que possibilitem realizar novas conexões e consequentemente a
agregação de experiências e horizontes outrora desconhecidos.
Que fazem os jovens skaters do espaço urbano da cidade? Eles reinventam-no, dando-
lhe novos usos e, desse modo, produzem um novo espaço, distinto do original. O corpo
do skater dialoga com a arquitetura do espaço por onde desliza, como se nesse “corpo
a corpo” se produzisse uma nova discursividade urbana. O skater recusa aceitar o
espaço como um dado pré-existente. Dá-lhe uma existência própria quando o desafia
a usos diferentes dos previstos ou pré-estabelecidos (PAIS, 2005, p. 58 apud
PEREIRA et al., 2020, p. 97).
Quando o skatista ocupa e produz novas estruturas de significado no espaço urbano,
acontece uma reconfiguração no espaço, onde o skatista é colocado dentro, e não mais à
margem do ambiente urbano (PEREIRA et al., 2020). É preciso considerar que, apesar da ideia
de cidade democrática difundida principalmente com o advento das cidades globais, o espaço
urbano é concebido em sua essência com uma ordem a ser seguida, que geralmente é
8
Locais onde a arquitetura ou os objetos colocados no ambiente propiciam a prática do skate.
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excludente, com fixos que existem para atender a uma determinada função e determinados
indivíduos e classes sociais. Sendo assim, podemos reconhecer o skate não apenas como uma
ferramenta para a prática desportiva, mas também como uma ferramenta de transgressão desse
ordenamento urbano pensado pelos ditos planificadores e demais agentes citados por Lefebvre
(2006) no que tange à produção do espaço social. Conforme ressalta Pereira et al. (2020), para
o skatista, a transgressão é inerente à sua prática, tendo na cidade não um conjunto mais ou
menos organizado arquitetonicamente para ser obedecido, mas sim um conjunto de obstáculos
a serem superados.
Sobre ordenamento urbano, subversão e as variadas formas de ocupação da cidade,
podemos traçar um paralelo entre o skate e as favelas: ambos são formas alternativas de se
apropriar do espaço e que, por muitas vezes o envolvidas em conflitos e disputas que
geralmente estão associadas ao pânico moral ou ao interesse das forças dominantes. Sem
desconsiderar, é claro, que os conflitos que envolvem as favelas também estão profundamente
envoltos em problemas estruturais e mais complexos, como o preconceito de raça e de classe.
Se ampliarmos o nosso olhar, talvez possamos encontrar outras formas de ocupação
da cidade que também se dão por meio de disputas simbólicas e conflitos
conflagrados. Por exemplo, o que alguns chamam de “desordem” urbana, outros
chamam de favelas. O ordenamento urbano é uma forma de exclusão do que não se
enquadra nos modelos autoritários de alguns projetos de cidade. A subversão, a
transgressão ou a reapropriação dos espaços podem ser percebidas como sujeira,
vandalismo, destruição, provocação, perigo. Ou, ao contrário, podem ser incorporadas
como ações inclusivas e cheias de criatividade (PEREIRA et al., 2020, p. 105).
Quando falamos da juventude favelada do Rio de Janeiro, falamos sobre indivíduos que
em muitos dos casos não possuem oportunidade de viver a vida urbana pelo menos não a vida
urbana em plenitude, dotada de lazer e usufruto dos bens e serviços oferecidos na cidade. O
skate nesse caso entra como um instrumento capaz de inserir os indivíduos na cidade, rompendo
barreiras e bolhas socioespaciais, e o Ademafia entra como para além de muitas outras funções
intermediador dessa inserção. Além disso, também é preciso considerar o potencial do skate
como estimulador da sociabilidade, lazer e cultura, e como gerador de espaços livres e
representativos, que acolhem e agrupam, influenciando a participação social (PEREIRA et al.,
2020) o que é muito importante para jovens de periferia, que em boa parte das vezes são
marginalizados ou segregados.
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Em dezembro de 2020, ocorreu a institucionalização dos trabalhos do coletivo, sediando
na comunidade do Santo Amaro o IACE (Instituto Ademafia de Cultura e Esporte). Com isso,
o skate adentrou de vez pelas escadarias da comunidade, se tornando parte da vida da população
e ampliando possibilidades e perspectivas para a juventude local, além de auxiliá-la no processo
de construção de identidades e apresentá-la a novas formas de se vivenciar a vida urbana, ou
seja, facilitando o acesso do direito à cidade.
Transformação social: o impacto do Ademafia na comunidade do Santo Amaro
Ao falarmos sobre o trabalho institucional do Ademafia, é imprescindível apontar sua
atuação com as crianças da comunidade do Santo Amaro, tendo batizado o grupo de “Tropinha
do S.A.” – S.A. fazendo referência ao nome da comunidade e como uma forma de enaltecer o
pertencimento ao seu local de origem. O instituto realiza aulas de skate semanais às terças-
feiras e quintas-feiras, de manhã e de tarde, respectivamente, no intuito de aumentar o alcance
das aulas, se adaptando aos horários escolares para não haver conflitos. Com a
institucionalização do Ademafia, mais funções foram incorporadas para lidar com a crescente
demanda de obrigações; Dona Socorro (mãe do Ademar), Raquel e Kelma (irmãs do Ademar),
são algumas das pessoas que hoje atuam ativamente em várias áreas do instituto, apesar de
estarem presentes desde o início da trajetória do Ademafia.
Até o momento de nossa pesquisa, 49 crianças eram atendidas pelas aulas de skate
(Figura 2), que contam com obstáculos em sua maioria, doados pelo Instituto Bob Burnquist
, materiais de proteção (capacetes, joelheiras, cotoveleiras), skates os dois últimos doados
por skateshops e associações parceiras e com os instrutores, visando uma prática segura e
saudável. As aulas acontecem na quadra poliesportiva Santo Amaro, que apesar de ter sido
inaugurada em maio de 2016, foi recentemente revitalizada, pelos moradores e em colaboração
com o instituto e artistas parceiros. Segundo entrevistas realizadas com os pais e mães das
crianças da “tropinha”, valores como: senso de coletividade, força de vontade e dedicação,
foram fortemente estimulados nas aulas de skate do instituto, além de que elas identificam uma
melhora considerável na sociabilidade, coordenação motora e saúde de seus filhos.
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Figura 2: Fotografia de Ademar Lucas (ao centro) e a tropinha do S.A na aula de skate, junto
ao instrutor Carlos Eduardo “Escamoso” (à direita)
Fonte: Rafael Sacharny (2021)
Como bem explicitam Siqueira (2019) e Galliano et al. (2020) em seus trabalhos, a
prática do skate está diretamente vinculada à saúde física e mental dos praticantes, pois pode
proporcionar: a manutenção do IMC (índice de massa corporal) na média; a diminuição das
medidas de cintura e quadril o que é positivo ; a melhora da flexibilidade lombar; o aumento
da agilidade, do equilíbrio com ambas as pernas e da potência e resistência musculares; além
de gerar maiores habilidades físicas e motoras, dar maior aptidão cardiovascular, diminuir as
chances de lesões musculares e trazer benefícios à saúde mental, através da diminuição do
estresse sendo também uma atividade terapêutica.
É preciso também destacar a importância da prática do skate como meio de socialização
e fortalecimento da coletividade, fatores que impactam diretamente na promoção da saúde e na
construção de espaços sociais e ambientes saudáveis. De acordo com Siqueira (2019), a
promoção da saúde perpassa pela maior participação social, autonomia e controle por parte dos
indivíduos, o que torna evidente a importância da coletividade na consolidação destes
processos.
Neste sentido, os skatistas quando propõem compartilhar suas percepções, nos
apresentam subsídios para pensar em ações mais inclusivas na cidade e na
comunidade. Se aproximar desses grupos e apoiá-los em suas atividades favorecem
criação e desenvolvimento de estilos de vida saudáveis, podendo estimular espaços
sociais reconhecidos e assistidos pelo poder público (SIQUEIRA, 2019, p. 95).
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Sendo assim, torna-se evidente que a atividade principal realizada nas dependências do
instituto as aulas de skate age diretamente na formação das crianças do Santo Amaro,
proporcionando impactos positivos a sua saúde física e mental e encorajando os valores de
união e coletividade, que são inerentes à boa relação interpessoal, seja na comunidade ou fora
dela.
As atividades da Tropinha do S.A. não se restringem ao espaço da quadra poliesportiva,
sendo as crianças frequentemente levadas para conhecerem projetos relacionados com o skate,
cultura ou outras formas de lazer e expressão, dentro e fora do estado. Assim, além de
estabelecerem conexões não restritas à comunidade, colecionam experiências diversas,
ampliam suas percepções de mundo, se apropriam de distintos espaços, expandem sua
mobilidade pelo urbano e rompem as barreiras socioespaciais as quais são expostos. Nada disto
seria possível sem a parceria com outros coletivos de skate, como: Coletivo Skate Maré, Santo
Skate e a ONG Social Skate, este último localizado no município de Poá SP.
Além das aulas de skate, a quadra poliesportiva do Santo Amaro é usada frequentemente
como palco de eventos como os de natal e dia das crianças, quando acontecem atrações musicais
e oficinas de incentivo à arte, como as oficinas de grafite, circo e fotografia, além de atividades
lúdicas que proporcionam um dia inteiro de dedicação às crianças da comunidade.
O espaço físico do Instituto, que fica logo ao lado da quadra, é utilizado também como
área de lazer para as crianças, já que uma biblioteca com livros infantis para estimular a
leitura e eventuais exibições de filmes com direito a pipoca para os pequenos espectadores
atividade esta que foi batizada de cinecria.
Assim como comentamos anteriormente, o Ademafia emergiu como um verdadeiro
catalisador de empreendimentos parceiros e projetos que atuam em prol da cultura urbana. Não
é diferente quando falamos da escala local, que, através do reconhecimento conquistado
dentro e fora do ambiente virtual Ademar e seus colegas conseguem potencializar diferentes
iniciativas, ideias e indivíduos, como, por exemplo, no incentivo aos artistas locais. Uma destas
iniciativas foi a Toca do Bocal.
A Toca do Bocal (Figura 3) é um estúdio localizado ao lado da quadra poliesportiva que
funciona recebendo artistas iniciantes locais, providenciando equipamentos e instalação
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
SOUSA, Everthon Cosme de; BASTOS, Rafael Schneider. ADEMAFIA E O SANTO AMARO: transformação social a partir do skate e da
mobilização popular. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 9, nº 20, pp. 64-94, janeiro-abril de 2023.
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necessária para a produção e gravação de músicas. Se apresenta como uma forma de estes
indivíduos conseguirem se desenvolver não apenas enquanto artistas, mas também como
profissionais capacitados para lidar com os equipamentos e programas utilizados no processo.
Esta iniciativa é de extrema importância, tendo em vista que a maioria dos artistas iniciantes
das periferias não costuma ter a oportunidade de aprender a trabalhar com os equipamentos e
programas muito utilizados nas produções musicais ligadas aos estilos mais populares nas
favelas ultimamente (funk, rap e trap). Além disso, o fato de que os horários dos estúdios
costumam ser muito caros, o que limita o acesso destes indivíduos aos mesmos.
A Toca do Bocal se tornou um lugar de livre acesso, aprendizagem e produção musical
para os artistas do Santo Amaro. Em parceria com o Ademafia, divulga os trabalhos musicais
destes artistas, além de realizar eventos na própria comunidade, onde os mesmos podem se
apresentar e entrar de vez na cena musical.
Figura 3: Fotografia do produtor Rod (à esquerda) e do MC Eldoty (à direita) trabalhando
juntos na Toca do Bocal
Fonte: Acervo pessoal (2021)
No que se refere ao incentivo de empreendimentos locais, o bar e lounge Whiscria,
gerido por Gabriel Sousa (Figura 4) morador do Santo Amaro , é um ótimo exemplo de
como se dão as influências do Ademafia na comunidade. O estabelecimento teve seu processo
de criação realizado em parceria com membros do coletivo e hoje funciona junto aos grandes
eventos que acontecem na comunidade semanalmente, dentre eles o Rap Hour e a Roda Cultural
Santo Amaro organizados pelo próprio Whiscria e por artistas locais como MC Drin e DJ
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Jimmy Jay, na intenção de promover a cultura hip-hop. Tais eventos ajudam a movimentar a
economia local e servem como palco, para os artistas locais e os de outras comunidades se
apresentarem para um blico que não se restringe aos moradores do Santo Amaro, sendo na
verdade, a maioria dele advindo de outras localidades o que acaba gerando visibilidade para
a comunidade.
Figura 4: Fotografia de Gabriel Sousa ao lado do grafite realizado pelo artista John (também
membro do coletivo Ademafia), em frente ao espaço do Whiscria
Fonte: Acervo pessoal (2021)
Além desses eventos, acontece também semanalmente o Baile do Santo Amaro, que tem
recebido atrações compostas por grandes nomes da cena musical, como MD Chefe e Filipe Ret,
este último também crescido no Catete. Tais eventos tiveram impactos muito positivos no
cotidiano da comunidade, dentre eles a movimentação da economia nos estabelecimentos
locais. A partir de Ana Clara Torres Ribeiro, Pereira (2019) diz:
Os coletivos entendem que, para esta importante e numerosa parcela [da] população,
que enfrenta inúmeras formas de violências cotidianas, as melhorias das condições
objetivas de vida passam pela oportunidade de produzir seus próprios eventos
culturais, não necessariamente corroborando com os modelos associados ao seu par
antagônico [modelo hegemônico], mas justamente ao contrário: produzindo sua
própria cena, a seu modo, em seus espaços, em seu tempo (PEREIRA, 2019, p. 106).
Analisamos que os empreendimentos, os eventos e a popularização do trabalho
realizado pelo Ademafia têm, desta forma, colocado o Santo Amaro na rota do turismo
alternativo do Rio de Janeiro, e enquadrado a comunidade como ponto de encontro da juventude
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mobilização popular. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 9, nº 20, pp. 64-94, janeiro-abril de 2023.
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carioca e do emergente polo cultural urbano, “rompendo com a lógica econômica e territorial
do circuito cultural hegemônico” (PEREIRA, 2019, p. 106). Apesar das barreiras socioespaciais
impostas pelo Estado através da desigual distribuição dos espaços destinados a lazer e cultura
pelo município o que é atribuído a uma lógica de segregação, exclusão e espoliação no espaço
urbano , da dificuldade na realização plena da mobilidade urbana por parte da população
periférica (PEREIRA, 2019) e do desinteresse de investimentos por parte do grande mercado
nas áreas periféricas, o Ademafia conseguiu implementar um espaço cultural e de lazer
totalmente inserido na realidade e no contexto dos moradores da comunidade do Santo Amaro.
É preciso destacar para além de tudo o desempenho do Ademafia no mundo virtual
campo fundamental da atualidade. Se no início da trajetória do coletivo a virtualidade levou
visibilidade aos ‘crias’
9
do Santo Amaro, hoje os “crias” se utilizam da virtualidade, com todo
o seu talento, para realizar trabalhos diversos que exploram a máxima da criatividade e de suas
funções sociais.
Jovens como Gean Guilherme Santos Lopes, estão descobrindo na arte digital e nos
NFTs
10
, meios de se profissionalizar e de se expressar, elevando o poder de comunicação a
níveis outrora desconhecidos para a população favelada. Gean, através de sua organização
chamada Social Crypto Art, tem aliado arte e tecnologia para criar obras digitais e angariar
fundos para causas sociais, além de ajudar a viabilizar projetos do Instituto Ademafia. Um
exemplo é a elaboração da obra O Barraco, que foi criada para ajudar a reconstruir a casa do
Sr. Paulinho (ABÉ; BETHGE, 2021), morador de 73 anos da comunidade que teve sua casa
destruída por um incêndio. Além de considerar o potencial de mobilização solidária desse tipo
de trabalho, precisamos também destacar o valor libertário destas ações, que estão
providenciando, na virtualidade, uma maneira dos jovens de favela vislumbrarem novas
oportunidades e transformarem sua realidade.
O cotidiano no Santo Amaro sempre foi de batalhas diárias, onde um povo trabalhador
desce e sobe as escadarias na busca pelas melhores condições de vida que estiverem ao alcance.
9
“Cria” é um termo utilizado nas favelas para designar moradores que vivem há bastante tempo no local.
10
NFT é sigla para Non-Fungible Tokens, que em português significa Tokens Não Fungíveis. São objetos
digitais, protegidos e limitados que podem ser colecionáveis e comercializados devido à sua exclusividade.
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Contudo, com a mobilização do Instituto Ademafia e das demais iniciativas que atuam na
comunidade, a população tem ganhado reforço. O Ademafia, em cooperação com o Coletivo
Ame o Santo Amaro, a Associação de Moradores, o projeto Morro dos Campeões
11
e outros
grupos que atuam na comunidade, realizaram uma série de ações que visavam sanar os
problemas enfrentados pela comunidade, principalmente durante o período pandêmico. A
compra de uma nova bomba d’água para a comunidade, mais potente e que permite a chegada
da água às casas localizadas mais ao topo do morro; arrecadação de cestas básicas,
mantimentos, produtos de higiene básica e roupas para os moradores, principalmente durante a
pandemia de COVID-19; realização de parcerias com grupos médicos para a oferta de saúde
bucal e fisioterapia para a população local, de forma gratuita; entre outras, foram algumas das
ações realizadas com a ajuda do Instituto Ademafia e seus parceiros, que atendem cerca de 800
famílias na comunidade e 100 em comunidades vizinhas.
De acordo com Lucas Pessoa e Dayse Fernandes, diretores do Coletivo Ame o Santo
Amaro e moradores da comunidade, todas as entidades existentes na comunidade atuam em
conjunto, visando sempre o bem-estar da população, assim como o crescimento um do outro.
O Instituto Ademafia ainda almeja trazer diversas melhorias que ainda não conseguiram ser
concretizadas, mas que estão em andamento, como: reforços escolares, aulas de inglês, cursos
de extensão e um pré-vestibular, tudo na comunidade e ofertado de forma gratuita.
Observa-se que os empreendimentos, projetos, associações, grupos e atividades
existentes no Santo Amaro, formam uma espécie de rede solidária, onde a economia, as
instalações que compõem a infraestrutura da comunidade e o atendimento às necessidades da
população local, são potencializados através da cooperação mútua destes agentes sociais que
vivem na comunidade. Trata-se de um movimento de retroalimentação, onde estes agentes
realizam, através do seu cotidiano, uma ação socialmente produzida com potencial libertário
para romper com a lógica do espaço outrora concebido, em prol de um espaço, agora, vivido e
11
Morro dos Campeões é um projeto social, criado em 1997, na comunidade do Santo Amaro (RJ), que educa e
incentiva os moradores através da arte marcial do Jiu-Jitsu. Ficou muito notório pelas conquistas dos alunos no
esporte, em âmbito nacional e mundial.
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dotado de novos significados produzidos pelos próprios moradores enquanto agentes
produtores do espaço.
As atividades, projetos e ações realizadas pelo Instituto Ademafia, buscam garantir o
direito à cidade à população periférica: pressionando, através do sucesso de suas empreitadas,
o governo a revisar suas políticas urbanas; buscando a ampliação das “oportunidades
horizontais de criação de uma cultura e de um mercado próprios aos que estão em contato direto
com a violência, o racismo e a marginalidade” (PEREIRA, 2019, p. 111); garantindo a
circulação e a permanência destes indivíduos nos espaços públicos. Estas iniciativas acabam
por possibilitar a apropriação do espaço urbano pelos moradores do Santo Amaro, assim como
a plena inserção na vida urbana, não apenas por adquirirem o direito a uma cidade que
geralmente lhes é negada, mas também por trazerem da cidade para a comunidade os signos
que compõem a vida urbana. É preciso ressaltar que, “o direito à cidade não pode ser concebido
como um simples direito de visita ou de retorno às cidades tradicionais. Só pode ser formulado
como direito à vida urbana, transformada, renovada.” (LEFEBVRE, 2001, p. 117-118).
O instituto, através do potencial transformador da arte e da cultura, afeta a realidade da
população do Santo Amaro. A partir da linguagem privilegiada que é a arte (PEREIRA, 2019),
dá sentido e significado à existência desses moradores, além de trazer os olhares da metrópole
para o seu local, ampliando os horizontes geográficos tanto do resto do município em relação à
comunidade, quanto da comunidade em relação ao resto do município.
Talvez uma das ões de maior relevância seja a pintura do enorme painel grafitado
(Figura 5) nas proximidades da quadra poliesportiva e ao lado do Instituto Ademafia. Da
pintura, que foi feita em parceria com a Converse (Empresa multinacional de calçados) e com
o artista André Kajaman, vários moradores participaram do processo de feitura. Duas principais
personalidades foram escolhidas para serem homenageadas na empreitada artística: o morador
mais antigo da comunidade (Baiano) e a muito prestigiada ex-presidenta da Associação de
Moradores do Santo Amaro (Dona Marta). Tanto a pintura quanto as outras ações do Ademafia
servem para fortalecer o senso de comunidade no Santo Amaro, mostrando como, se
organizados, a população pode lutar pelos seus direitos e criar novas formas de apropriação e
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territorialização de seu espaço, num processo de desalienação e politização que ruma em
direção a novas conquistas sociais. Sobre a importância deste tipo de linguagem artística:
A linguagem e a estética das artes tornam-se veículos da exposição de críticas à
ordem contra racionalidade. Arte e cultura criam espaços de liberdade de expressão e
trocas de saberes [...] urdindo condições para a construção de outros saberes sobre a
cidade. Criam constantemente projetos éticos, estéticos e comprometidos com a
periferia [...] (RAIMUNDO, 2017, p. 146 apud PEREIRA, 2019, p. 107).
Figura 5: Fotografia do grafite realizado na comunidade do Santo Amaro, idealizado pelo
artista Kajaman
Fonte: Acervo pessoal (2021)
Quando falamos das favelas cariocas, falamos de espaços que, na grande maioria das
vezes, são estigmatizados como áreas perigosas e de paisagens degradadas, o que influencia
negativamente a visão que os próprios moradores possuem do seu lar. Portanto, a feitura do
painel de grafite no Santo Amaro é um ato que transcende o caráter de obra artística, tornando-
se também uma materialização do que é esta transformação social do Santo Amaro que aqui
tratamos de abordar, com os moradores como principais agentes do processo, sendo os
realizadores e beneficiados de suas próprias ações. É uma pintura com poder de elevar a
autoestima e o orgulho dos moradores.
Conclusão
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A comunidade do Santo Amaro, devido a sua relação conflituosa com o Estado através
da história, principalmente com o advento do Estado neoliberal e do empreendedorismo urbano,
acumulou diversas carências sociais e estruturais. Um reflexo do descaso foi percebido por nós
pela escassez de legislações, arquivos, dados oficiais e produções acadêmicas sobre a
comunidade; o que evidencia certa invisibilidade como consequência das políticas de
marginalização e abandono.
O Instituto Ademafia emergiu como entidade atuante no espaço do Santo Amaro
organizando iniciativas relacionadas principalmente ao skate, que através das aulas,
proporciona o desenvolvimento das capacidades psicomotoras e sociais dos alunos, além de
oferecer uma nova leitura sobre o espaço urbano e ampliar as perspectivas de futuro. O
Ademafia também trabalha com diversos projetos ligados à cultura, educação, saúde e lazer.
Ao aumentar as proporções de seu trabalho, o Ademafia se tornou capaz de catalisar os esforços
necessários para uma ação social que tem transformado o cotidiano da comunidade e
empoderado sua população. Considerando que essas ações são realizadas por indivíduos da
própria comunidade, como os moradores, os artistas, os empreendedores locais e os membros
das iniciativas existentes, compreendemos os mesmos como agentes da produção social do
espaço no Santo Amaro, compondo resistência frente às lógicas de marginalização e escassez
de direitos básicos que a estes são impostas.
Precisamos considerar que os muitos anos de vigência das práticas de descaso
governamental para com o Santo Amaro, resultaram em marcas profundas, que, para serem
reparadas, dependem não apenas da ação de institutos como o Ademafia, mas sim de uma
política fincada em justiça social e na garantia dos direitos humanos. Contudo, os horizontes
gerados a partir da prática do skate e da arte na comunidade, bem como a partir de todas as
outras ações aqui mencionadas, têm inspirado demais iniciativas e aproximado o Santo Amaro
de uma nova realidade, caracterizada pela ampliação das perspectivas de futuro das crianças e
pela união de toda a comunidade em prol do bem-estar coletivo.
Concluímos que as ações abordadas neste artigo perpassam imprescindivelmente pela
participação da população, que neste caso, foi obrigada a exercer um papel social integral que
normalmente deveria ser atribuído ao Estado. É necessário que as políticas públicas alcancem
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o Santo Amaro e as muitas comunidades do Rio de Janeiro que sofreram processos de
marginalização similares , para que a energia popular que é despendida para viabilizar estas
transformações sociais necessárias, possa ser convertida em energia para planejar e alcançar
objetivos para além das necessidades básicas de sobrevivência.
O desejo de mudança, somado às carências e à mobilização popular, formam um
estopim de ações sociais que abarcam diversas áreas e nuances da vida cotidiana, afetando
aspectos sociais, políticos e econômicos da vida dos cidadãos deste lugar. O instituto Ademafia,
assim como as diversas ações realizadas na comunidade do Santo Amaro, tendem a se
desenvolver, crescer, se expandir e se complexificar com o tempo especialmente após a
pandemia , como já analisado por nós pelo trajeto dos mesmos ao longo dos anos. A expansão
dessas ações tende a abarcar as áreas da saúde, educação, lazer e cultura, de modo a conseguir,
cada vez mais, o apoio de outras iniciativas. Esta rede, somada ao surgimento de outros grupos
organizados por moradores, que visem melhorias para a comunidade e o fortalecimento dos
existentes, tende a estruturar uma base cada vez mais sólida de luta e de ação social.
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