Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
ARVELOS, Teófilo Teles Pereira de. Escavando lugares. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 9, nº 18, pp. 179-181, maio-agosto de 2022.
Submissão em: 17/07/2022. Aceito em: 12/08/2022.
ISSN: 2316-8544
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SEÇÃO LEITURAS
ESCAVANDO LUGARES
DIGGING PLACES
CAVANDO EN LUGARES
Teófilo Teles Pereira de Arvelos
1
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),
São Paulo, Brasil,
e-mail: teofiloarvelos@gmail.com
Obrigado por nos ouvir.
Cheguei à Comunidade do Quilombo, na zona rural do município de Ibiá, em Minas
Gerais, com o propósito de escavar lugares. Não sou arqueólogo, paleontólogo ou geólogo,
senão um simples amante da geografia. Sou daqueles que acreditam que lugares não são
estáticos ou perenes, mas que comumente se desfazem com alguma rapidez. Constituem-se com
a atribuição solidária ou subjetiva de sentidos a certos recortes espaciais, e findam quando não
há mais significação.
Recordo um poema célebre de Manuel Bandeira, “Velha chácara”: “A casa era por
aqui… / Onde? Procuro-a eo acho. / (...) / Não existe mais a casa… / Mas o menino ainda
existe.” De fato, a casa do eu lírico desse poema não existe mais enquanto matéria, espaço
1
Técnico em eletrotécnica pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Triângulo Mineiro (IFTM)
e estudante de Geografia (licenciatura e bacharelato) na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). É autor
dos livros de poesia Parnaso e Lágrima, publicado pela editora portuguesa Chiado Books. É também colunista do
site Jornal de Patos, na seção de literatura. Atualmente, contribui com textos e pesquisas para a página História e
Direitos Indígenas no Brasil, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.
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ARVELOS, Teófilo Teles Pereira de. Escavando lugares. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 9, nº 18, pp. 179-181, maio-agosto de 2022.
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arquitetônico, ambiente construído. Mas persiste enquanto ideia. Demoliu-se cada significante
de alvenaria, apagaram-se mesmo as rugosidades, mas parece restar o lugar: ainda memória.
Na Comunidade do Quilombo, busquei escavar lugares pretéritos, os quais, porém,
revelaram-se menos pretéritos do que imaginei. Na localidade e arredores, havia, sim, vestígios
materiais de tempos passados: um muro de pedra, contornos do que foi um fosso. Mas eram
escassas e esparsas as rugosidades dos lugares que eu buscava desvendar. Não obstante, supus
que, assim como resistiram nos topônimos marcas do que eu procurava, como em “Escola
Municipal Quilombo do Ambrósio”, “Morro do Espia” e “Córrego do Quilombo”, também
deveriam resistir marcas no que Milton Santos chama de psicoesfera: o resultado imaterial de
crenças, desejos, vontades e hábitos, muitas vezes advindos do passado, que inspiram relações
interpessoais e comportamentos filosóficos e práticos no presente.
Eu que agradeço, por falarem de vocês para mim.
Comecei a escavar lugares, portanto, a partir de entrevistas. Conversando com gente
que morava no povoado e nas proximidades, perguntei sobre o que sabiam do Quilombo do
Ambrósio, que no século XVIII se instalou no que hoje é parte dos municípios mineiros de Ibiá
e Campos Altos. Deparei-me com mais desconhecimento que saber, com mais esquecimento
que memória. Do que colhi de relatos, desconfio que encontrei mais ficção que realidade, mas
não encarei isso como um problema. Versões dissonantes sobre eventos e lugares podem revelar
muitas coisas: manipulações, transformações discursivas, mudanças na psicoesfera, dinâmicas
socioespaciais.
É certo que a ensaísta canadense Lise Bourbeau (e não Freud, como erroneamente se
atribui) certa vez disse, e com razão, que aquilo que Pedro pensa de Paulo diz mais sobre o
primeiro que sobre o segundo. Em meu trabalho de campo, eu não investigava Pedro (as pessoas
que entrevistei), mas Paulo (os lugares quilombolas do passado); sem embargo, os relatos e os
silêncios que registrei me foram muito úteis, porque me fizeram pensar no que está por trás, ou
entre: o discurso, o poder. Nenhum relato ou silêncio é vazio; todos têm conteúdo.
A Comunidade do Quilombo, ao contrário do que o nome sugere, não é uma
comunidade quilombola, nem de jure, nem de facto. Com efeito, percebi mais estranhamento
que pertencimento por parte de seus moradores quando o assunto é a história e a formação
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ARVELOS, Teófilo Teles Pereira de. Escavando lugares. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 9, nº 18, pp. 179-181, maio-agosto de 2022.
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socioespacial do povoado. Não obstante, estas ainda estão de algum modo ali presentes,
influenciando-os no cotidiano. Parece que Ambrósio, o líder do quilombo, e os seus
companheiros ainda estão naquele meio, vivos e libertos.
Na verdade, eu nem havia reparado que eu falava de nós quando falava deles. Agora
percebo que, na realidade, eles também somos nós, ou nós também somos eles.
Também eu compartilhei, inicialmente, da sensação de estranheza. A realidade daquela
comunidade não é a minha, assim como não é minha a realidade dos moradores setecentistas
do quilombo. Não tenho de me defender dos brancos, constituindo lugares de resistência
aliás, eu sou branco. O bairro onde moro tem coleta seletiva e tratamento de esgoto o que
inexiste na comunidade que visitei. Mas aquelas realidades se aproximam de alguma forma da
minha, e intensamente; não por ancestralidade, mas por horizontalidade. O que compartilhamos
é espaço: o geográfico, que é totalidade; não o geométrico, no qual dois corpos não podem
ocupar o mesmo “lugar”.
Os dias que passei no povoado acabaram me fazendo sentir parte daquilo.
Recentemente, terminei a leitura de um livro singular, chamado O Mundo Inteiro Como Lugar
Estranho, do filósofo e antropólogo argentino Néstor García Canclini. No livro, o autor
combina diferentes gêneros, temas e reflexões para analisar as distintas formas de estraneidade
existentes. A leitura me ajudou a compreender o que experienciei na Comunidade do Quilombo.
O mundo inteiro pode ser vivido como lugar, que se desfaz e que se refaz, mas esse lugar
dificilmente será meu próximo. No entanto, o inverso também pode ocorrer: o lugar pode ser
vivido como mundo. Deste modo, dificilmente ele será meu estranho.
Já faz mais de três anos do fim da minha pesquisa de campo. Mas parece que agora
comecei a entender o que vivenciei. É que agora estou fazendo próximo aquilo que me era
distante: aquele lugar estranho… ora parte do meu mundo.
Não me deixe de fora. Também quero me incluir nesse nós.