Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
MONDARDO, Marcos Leandro; CHAPARRO, Roberto Lopes. MOBILIZAÇÕES DO “JUNHO INDÍGENA” DE 2021 CONTRA O PL 490
E O MARCO TEMPORAL NO BRASIL: cidadania, autonomia e resistência. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, 21, pp. 130-164,
maio-agosto de 2023.
Submissão em: 26/07/2023. Aceito em: 28/08/2023.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons 130
SEÇÃO ARTIGOS
MOBILIZAÇÕES DO “JUNHO INDÍGENA” DE 2021 CONTRA O PL 490 E O
MARCO TEMPORAL NO BRASIL: cidadania, autonomia e resistência
MOBILIZATIONS OF THE “INDIGENOUS JUNE OF 2021 AGAINST PL 490 AND
THE TEMPORAL MARK IN BRAZIL: citizenship, autonomy and resistance
MOVILIZACIONES DEL “JUNIO INDÍGENA” DE 2021 CONTRA EL PL 490 Y LA
MARCA TEMPORAL EN BRASIL: ciudadanía, autonomía y resistencia
Marcos Leandro Mondardo1
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD),
Mato Grosso do Sul, Brasil
e-mail: marcosmondardo@yahoo.com.br
Roberto Lopes Chaparro2
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD),
Mato Grosso do Sul, Brasil
e-mail: robertochaparro10@hotmail.com
Resumo
O ano de 2021 foi histórico para a luta dos povos indígenas no Brasil, seja pelo combate à Covid-19 nos seus
territórios, seja na luta para reafirmar seus direitos garantidos constitucionalmente e que estão ameaçados diante
do PL 490/2007, que tramita no Congresso Nacional sobre a tese do marco temporal, ainda em processo de votação
no Supremo Tribunal Federal (STF). O objetivo deste texto foi, assim, analisar a mobilização realizada pelo
Movimento Indígena no Brasil no mês de junho de 2021, denominado de “Junho Indígena”, contra o PL 490/2007
e a tese do marco temporal e os seus impactos na existência dos povos indígenas. Realizou-se uma pesquisa
qualitativa para levantar as ações realizadas no período por meio de publicações em redes sociais de organizações
e lideranças indígenas, complementadas com informações oriundas de sites, jornais e blogs do movimento indígena
e indigenista. Os resultados foram sistematizados e categorizados por meio da análise de conteúdo proposta por
Bardin. Os dados revelam que a capacidade de articulação nacional do Movimento Indígena capilarizou ações em
todas as cinco regiões do Brasil e performou manifestações variadas em diversos arranjos espaciais,
principalmente, bloqueios de tráfegos em rodovias e protestos em ambientes urbanos.
Palavras-chave
Movimento indígena; Marco Temporal; direitos territoriais, Terras Indígenas.
1
Doutor e pós-doutor em Geografia pela Universidade Federal Fluminense. É professor do curso de Graduação e
Pós-Graduação em Geografia na Universidade Federal de Grande Dourados. Tem experiência na área de
Geografia, com ênfase em geografias indígenas, geografias Guarani e comunidades tradicionais no Brasil. É
líder do Núcleo de Pesquisa sobre Território e Fronteira (NUTEF/UFGD).
2
Graduado em Psicologia pela Universidade Federal da Grande Dourados. Mestrando em Geografia pelo
Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFGD
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E O MARCO TEMPORAL NO BRASIL: cidadania, autonomia e resistência. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, 21, pp. 130-164,
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Abstract
The year 2021 was a historic one for the struggle of indigenous peoples in Brazil, both in the fight against Covid-
19 in their territories and in the fight to reaffirm their constitutionally guaranteed rights, which are under threat in
the face of Bill of Law 490/2007, which is being processed in the National Congress on the temporal milestone
thesis, still in the process of being voted on by the Federal Supreme Court (STF). The aim of this text was therefore
to analyze the mobilization carried out by the Indigenous Movement in Brazil in June 2021, known as Indigenous
June, against PL 490/2007 and the temporal milestone thesis and its impacts on the existence of indigenous
peoples. Qualitative research was carried out to identify the actions taken during the period through social media
posts by indigenous organizations and leaders, supplemented with information from websites, newspapers and
blogs of the indigenous and indigenist movement. The results were systematized and categorized using the content
analysis proposed by Bardin. The data reveals that the Indigenous Movement's capacity for national articulation
has capillarized actions in all five regions of Brazil and performed varied manifestations in different spatial
arrangements, mainly traffic blockades on highways and protests in urban environments.
Keywords
Indigenous movement; Temporal Milestone; territorial rights, Indigenous Lands.
Resumen
El año 2021 fue histórico para la lucha de los pueblos indígenas en Brasil, tanto en la lucha contra la Covid-19 en
sus territorios como en la lucha por la reafirmación de sus derechos constitucionalmente garantizados, amenazados
ante el Proyecto de Ley 490/2007 (PL 490/2007), que se tramita en el Congreso Nacional sobre la tesis del marco
temporal, aún en proceso de votación en el Supremo Tribunal Federal (STF). El objetivo de este texto fue, por lo
tanto, analizar la movilización realizada por el Movimiento Indígena en Brasil en junio de 2021, conocida como
"Junio Indígena", contra el PL 490/2007 y la tesis del marco temporal y sus impactos sobre la existencia de los
pueblos indígenas. Se realizó una investigación cualitativa para recopilar información sobre las acciones llevadas
a cabo durante el período a través de publicaciones en las redes sociales de organizaciones y líderes indígenas,
complementada con información de sitios web, periódicos y blogs del movimiento indígena e indigenista. Los
resultados fueron sistematizados y categorizados utilizando el análisis de contenido propuesto por Bardin. Los
datos revelan que la capacidad de articulación nacional del Movimiento Indígena ha capilarizado acciones en las
cinco regiones de Brasil y realizado manifestaciones variadas en diferentes disposiciones espaciales,
principalmente bloqueos de tráfico en carreteras y protestas en entornos urbanos.
Palabras clave
Movimiento indígena; Marco Temporal; derechos territoriales, Tierras Indígenas.
Nossa luta é por nossos Povos, sim, mas também pelo futuro de todos e todas as
brasileiras e pela humanidade inteira! Lutamos por um projeto civilizatório de país e
de mundo. Um projeto baseado nos princípios do respeito à democracia, aos direitos
humanos, à justiça, ao cuidado com o meio ambiente e com a Mãe Natureza; um
projeto que respeite a diversidade étnica e cultural do país do qual fazemos parte, com
mais de 305 povos diferentes e 284 línguas indígenas [...] (APIB, 2022, p. 1).
Introdução
O ano de 2021 marcou a luta dos povos indígenas no Brasil. Seja pelo combate à
Covid-19 nos seus territórios, seja na luta para reafirmar seus direitos garantidos
constitucionalmente e que estão ameaçados diante do PL 490/2007, que tramita no Congresso
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Nacional sobre a tese do marco temporal, ainda em processo de votação no Supremo Tribunal
Federal (STF).
Os ataques aos direitos indígenas provenientes do Congresso Nacional geram temor
nos povos, uma vez que o parlamento brasileiro, atualmente, é composto por 257 parlamentares
da chamada “bancada ruralista”, expoente do poder político econômico do agronegócio e dos
ruralistas brasileiros (Viveiros De Castro, 2020) que, assim, formam um bloco hegemônico. O
referido PL 490/2007 foi protocolado em 20 de março de 2007 e em 2021 voltou a tramitar no
Congresso Nacional, sendo aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania
(CCJC) da Câmara dos Deputados em 23 de junho.
De modo geral, os pontos desse substitutivo que mais preocupam os povos indígenas
dizem respeito a: ele gera a possibilidade de a União retomar Terras Indígenas T.I.s
demarcadas onde ocorram a “alteração dos traços culturais da comunidade”; abre espaço para
a prática do garimpo e atividades mineradoras em T.I.s; gera a possibilidade de acordos
econômicos entre indígenas e não-indígenas, de modo a explorar economicamente áreas de
T.I.s; abre a possibilidade do estabelecimento de atividades diversas dentro de T.I.s sem
consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas; gera a possibilidade de contatar povos
isolados diante de interesses da União; se baseia no marco temporal como critério para a
demarcação de T.I.s; e, viola uma série de tratados internacionais sobre os povos indígenas aos
quais o Brasil assina e é signatário (Brasil, 2021, p. 24).
à tese do marco temporal é uma tese do agronegócio, do neodesenvolvimentismo, e
revela uma das facetas do colonialismo interno brasileiro, que postula que a data de
promulgação da Constituição Federal do Brasil (CFB), 05 de outubro de 1998, deve ser o linde
temporal a se considerar como referência para a ocupação tradicional dos povos indígenas que
buscam a demarcação de suas terras. A partir dessa proposição, os povos que não estivessem
nos seus territórios considerados tradicionais na referida data, ou, não têm meios de comprovar
que neles estavam, podem perder o seu direito à terra.
Em junho de 2021 o STF retomou o julgamento sobre a disputa de parte do território
Ibirama-Laklanõ, no qual o Governo do Estado de Santa Catarina moveu uma ação de
reintegração de posse contra o povo Xokleng, se pautando no marco temporal. A Suprema Corte
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atribuiu ao julgamento o status de repercussão geral, o que significa que o que for decidido no
caso, será o parâmetro a ser seguido em todos os outros casos relacionados a demarcação de
T.I.s.
Negar o direito originário à terra inviabiliza a reprodução física e cultural destes povos,
uma vez que este direito é o mais fundamental, colocando assim suas existências em risco. Os
povos, guardiões da T/terra e de tudo que nela e dela vive, representam obstáculos à expansão
extrativista do Capital, barreiras ao “desenvolvimento”. A ideia de que as Terras Indígenas são
obstáculos ao desenvolvimento é conservadora, pois esse “desenvolvimento” é pensado numa
perspectiva puramente econômica, considerando, apenas, o circuito superior da economia.
Ailton Krenak (2020), visto como um importante intelectual indígena, que lança “flechas” por
meio das suas ideias, do saber e da voz indígena na academia, assinala que a ideia de
“desenvolver” alude ao des-envolver, ao separar os povos da natureza.
Apesar de serem povos em constante resistência desde o período colonial (Cruz, 2017),
o Movimento Indígena, enquanto movimento social organizado, começou a emergir na
década de 1970, em contraponto aos ideais e práticas desenvolvimentistas da ditadura (1964-
1985), em que não havia espaço para os povos indígenas no seu projeto de país (Munduruku,
2012). As primeiras articulações do movimento começaram quando em 1972 é criado o
CIMI
3
(Conselho Indigenista Missionário) e em 1974 se realiza a primeira Assembleia
Indígena, espaços cosmopolíticos nos quais indígenas de diferentes regiões do Brasil se reuniam
para partilhar problemas e juntos pensar soluções.
Foi nesse contexto, que em 1980 é organizada a União das Nações Indígenas, buscando
articular e organizar as lutas e pautas dos povos em todo o país (CIMI, 2008). A partir disso, o
Movimento Indígena se tornou personagem importantíssimo no processo de redemocratização
que o Brasil viveu na década de 1980 e na Constituinte de 1988 (Viegas, 2017).
Com relação a isso, Baniwa (2007, p. 129) salienta que “no Brasil, de fato existe desde
a década de 1970, o que podemos chamar de Movimento Indígena Brasileiro”, isto é, um
3
O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) foi criado em 1972 como organismo anexo à Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil CNBB, sendo de sua alçada articular, organizar, subsidiar o trabalho da Igreja Católica no
Brasil junto aos povos indígenas.
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esforço conjunto e articulado de lideranças, povos e organizações indígenas em volta de uma
agenda comum de luta, como é a agenda pela terra, saúde, educação e outros direitos”.
Atualmente, o Movimento Indígena Brasileiro luta e resiste frente ao avanço do capital sobre
os territórios e modos de vida tradicionais e a partir do exercício de resistência (Viveiros De
Castro, 2020) transformam suas vidas em luta.
Perante o cenário contemporâneo de ameaças, em 2021 o Movimento Indígena se
articulou em todo o Brasil. Com ações entre os meses de junho a agosto de 2021, a “Primavera
Indígena” levantou-se (APIB, 2021). Em Brasília, onde o PL 490 e o marco temporal foram à
votação, o Movimento Indígena protagonizou acampamentos para acompanhar os trâmites. Em
junho de 2021, indígenas de todo o país, se reuniram na capital federal no acampamento
Levante Pela Terra, com a participação de cerca de 850 indígenas de 50 povos (CIMI, 2021).
Em agosto de 2021, o acampamento Levante Pela Vida reuniu mais de 6.000 indígenas de 170
povos, sendo a maior mobilização do Movimento Indígena Brasileiro pós-constituinte de 1988,
até então (CIMI, 2021). Somadas a essas ações centrais, houve mobilizações regionais e locais,
em todas as regiões do Brasil.
O presente trabalho objetiva fazer, em um primeiro momento, breves considerações
sobre o PL 490/2007 e a tese do marco temporal, para, assim, discutir os seus impactos na
existência física e cultural dos povos indígenas do Brasil, e, em seguida, analisar a mobilização
realizada pelo Movimento Indígena diante de tais ameaças. Para elencar as ações executadas
pelos indígenas, realizamos por meio de plataformas digitais
4
, um levantamento das
mobilizações por eles organizadas no mês de junho de 2021, denominado de “Junho Indígena”,
mês em que o PL 490 foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJC)
da Câmara dos Deputados e em que se iniciou o julgamento do caso da Terra Indígena Ibirama
Laklanõ (situada no estado de Santa Catarina) pelo STF.
Itinerário metodológico
4
Essa estratégia metodológica foi utilizada devido ao avanço da pandemia de Covid-19 no Brasil, com as medidas
sanitárias em vigor e a vacinação ainda nas etapas inicias.
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A pesquisa foi realizada por meio das plataformas digitais Facebook e Google. Ao
todo, foram identificadas 178 ações do movimento indígena durante o mês de junho de 2021.
O levantamento na plataforma de rede social Facebook consistiu em analisar as postagens
realizadas no mês de junho de 2021, por 10 páginas da rede social, de modo a identificar as
postagens que relataram ações e mobilizações referentes à luta indígena contra o PL 490 e o
marco temporal. Na tabela 1, estão descritas as 10 páginas das redes sociais que foram utilizadas
no levantamento, juntamente com o endereço virtual de cada uma:
Tabela 1 Redes sociais pesquisadas
Rede social
Endereço virtual
Articulação dos Povos Indígenas do
Brasil APIB
https://www.facebook.com/apiboficial
Aty Guasu Grande Assembleia
Guarani e Kaiowá
https://www.facebook.com/atyguasu
Articulação dos Povos e
Organizações Indígenas do Nordeste,
Minas Gerais e Espírito Santo
APOINME
https://www.facebook.com/apoinme.brasil
Articulação dos Povos Indígenas da
Região Sul ARPINSUL
https://www.facebook.com/arpinsulindigenas
Articulação dos Povos Indígenas da
Região Sudeste ARPINSUDESTE
https://www.facebook.com/Arpin-Sudeste-
120282683105100
Coordenação das Organizações
Indígenas da Amazônia Brasileira
COIAB
https://www.facebook.com/coiabamazoniaoficial
Conselho do Povo Terena
https://www.facebook.com/conselhoterena
Comissão Guarani Yvyrupa CGY
https://www.facebook.com/yvyrupa
Sonia Bone Guajajara
https://www.facebook.com/GuajajaraSonia
Mídia Índia
https://www.facebook.com/VozDosPovos
Fonte: Elaborado pelos autores
A escolha dessas páginas para comporem fontes do levantamento se justifica por
serem: a página da APIB, por ser da articulação nacional do Movimento Indígena, reunindo
informações provenientes das outras 7 páginas regionais; 7 delas (Aty Guasu, APOINME,
ARPINSUL, ARPINSUDESTE, COIAB, Conselho do Povo Terena e Comissão Guarani
Yvyrupa CGY) de associações indígenas regionais, que juntas abrangem o Movimento
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Indígena de todo o território nacional; a página da Sonia Guajajara, importante liderança
indígena e, à época, coordenadora nacional da APIB
5
; e, a página da Mídia Índia, por ser um
portal de mídia alternativa e de abrangência nacional, criado em 6 de abril de 2017, que divulga
informações de forma independente a respeito do Movimento Indígena e suas ações.
Essas páginas são ativas na rede social, com postagens constantes acerca das ações
realizadas pelo movimento indígena. Além disso, todas apresentaram uma atuação e atualização
quase que diária das ações realizadas do chamado “Junho Indígena”. As buscas no Facebook,
excluindo os relatos que se repetiram, corresponderam a 73
6
(41%) das ações levantadas.
Para obter informações complementares aos relatos de ações obtidos pelo Facebook e
encontrar novos relatos de ações, foi realizado também um levantamento na plataforma de
pesquisas Google, utilizando palavras-chave. Tal levantamento objetivou coletar informações
de ações realizadas no “Junho Indígena” em posts de redes sociais (de páginas não utilizadas
em nosso levantamento inicial), em sites ou em matérias de jornais. Estas buscas foram
realizadas durante o mês de julho de 2021.
A pesquisa na plataforma Google foi realizada utilizando 9 conjuntos diferentes de
palavras-chave aplicadas em 4 dias diferentes ao longo do mês de julho de 2021, de modo a
tentar minimizar ao máximo a lógica algorítmica empregada pela plataforma, que tende a
uniformizar os resultados de busca a partir das preferências de cada usuário, com base no seu
histórico de pesquisas e navegação (Google, 2021). Utilizamos dessa estratégia na tentativa de
ampliar as possibilidades dos resultados apresentados na busca. As palavras-chave utilizadas,
os resultados apresentados e a data da busca seguem listados na tabela 2:
5
Nas eleições de 2022 foi eleita deputada federal e, no início de 2023, tornou-se a primeira Ministra do Ministério
dos Povos Indígenas.
6
O número de relatos por página: APIB - 30 (41,1%), ARPINSUL - 11 (15,1%), Sonia Guajajara - 11 (15,1%),
ARPINSUDESTE - 7 (9,6%), APOINME - 5 (6,8%), Comissão Guarani Yvyrupa - 3 (4,1%), Mídia Índia - 2
(2,7%) e AtyGuasu - 1 (1,4%). A página Conselho do Povo Terena não apresentou nenhuma postagem referente.
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Tabela 2 Delineamento do levantamento
Palavras-chave
Resultados
Bloqueio de rodovias marco temporal indígenas
67
Bloqueio de rodovias PL 490 indígenas
61
Bloqueio de rodovias marco temporal indígenas junho 2021
49
Bloqueio de rodovias PL 490 indígenas junho 2021
44
Protestos PL 490 indígenas junho 2021
121
Protestos marco temporal indígenas junho 2021
97
Protestos de indígenas em Brasília marco temporal junho
2021
102
Protestos de indígenas em Brasília PL 490 junho 2021
114
Protestos indígenas 22 e 23 junho marco temporal PL 490
64
Fonte: Elaborado pelos autores
Ao todo, o Google apresentou 719 resultados para as buscas pelas palavras-chave.
Entretanto, 614 desses resultados se tratavam de notícias repetidas e também de conteúdos que
não continham as informações desejadas para compor o levantamento, sendo excluídos. Desse
modo, ao final obtemos 105
7
(59%) relatos de ações do Junho Indígena provenientes da busca
das palavras-chave nessa plataforma.
Em um primeiro momento, as 178 ações obtidas ao final do levantamento foram
organizadas em planilhas, de modo a identificar as seguintes categorias: localidade (cidade e
estado), tipo de ação, ambiente da ação (urbano, rural, rodovias, aldeias) e grupos étnicos
presentes em cada mobilização registrada. Os dados foram arranjados e analisados a partir da
técnica de análise de conteúdo, que consiste em um conjunto de procedimentos para
investigação das comunicações, objetivando sistematizar e descrever informações (Bardin,
2016).
Em um segundo momento, partimos para a análise categorial, passando à totalidade
do conteúdo pela peneira da classificação e do recenseamento, a partir da frequência de
presença de determinados itens. Diante disso, em cada categoria foi realizada uma
sistematização, obedecendo ao princípio de objetividade e racionalização, de modo a identificar
7
Esse número se divide em: matérias de jornais - 77 (73,3%), artigos em sites de movimentos sociais, indígenas e
indigenistas - 21 (20%), e postagens em redes sociais - 7 (6,7%).
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quais indicadores mais se destacavam dentro de cada categoria, elencando isso em números e
porcentagem. Bardin (2016) aponta o método de categorias como uma forma de introduzir uma
ordem, a partir dos critérios estabelecidos, na desordem presente dos dados inicialmente
planilhados sem nenhum padrão inicial. Desse modo, diante dos objetivos dessa pesquisa, foi
possível obter um panorama das ações do “Junho Indígena” a partir das informações coletadas.
Exposição dos resultados
No geral, essas 178 ações consistiram em 6 categorias de análise a partir do seu teor,
conforme apresentados na tabela 3:
Tabela 3 Ações realizadas pelo Movimento Indígena durante o “Junho indígena”
Tipo de ação
%
Bloqueio de tráfego
89
50
Protestos
82
46
Encontros Políticos
2
1,1
Produção e entrega de documentos
2
1,1
Vigílias
2
1,1
Acampamento
1
0,6
Total
178
100%
Fonte: Elaborado pelos autores
Essas ações se deram em rodovias e ferrovias, no espaço urbano das cidades, e,
também, em diversas aldeias, de todas as regiões do país. Na tabela 4 é possível observar como
as 178 ações se dividiram/organizaram em cada um desses espaços.
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Tabela 4 Distribuição geográfica das ações realizadas pelo movimento indígena durante o
Junho indígena”
Tipo de ação
%
Manifestações em rodovias e ferrovias
93
52,3
Manifestações urbanas
66
37,0
Manifestações em aldeias
19
10,7
Total
178
100%
Fonte: Elaborado pelos autores.
Distribuídas em todo o território nacional, tais ações se apresentaram em 19 estados e
no Distrito Federal, e nas 5 macrorregiões econômicas do Brasil (tabela 5).
Tabela 5 Distribuição das ações do “Junho Indígena” por Unidade da Federação
Unidade da
Federação
%
Unidade da
Federação
%
DF
35
19,7
RR
5
2,9
MS
18
10,1
AC
4
2,2
SP
15
8,4
AL
4
2,2
MA
13
7,3
MG
4
2,2
SC
13
7,3
AM
3
1,7
PA
12
6,7
RJ
3
1,7
PR
12
6,7
RO
3
1,7
RS
12
6,7
MT
2
1,1
BA
11
6,2
ES
2
1,1
CE
6
3,5
RN
1
0,6
Fonte: Elaborado pelos autores.
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
MONDARDO, Marcos Leandro; CHAPARRO, Roberto Lopes. MOBILIZAÇÕES DO “JUNHO INDÍGENA” DE 2021 CONTRA O PL 490
E O MARCO TEMPORAL NO BRASIL: cidadania, autonomia e resistência. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, 21, pp. 130-164,
maio-agosto de 2023.
Submissão em: 26/07/2023. Aceito em: 28/08/2023.
ISSN: 2316-8544
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A divisão por regiões político-administrativas consiste em: Região Centro-Oeste, 55
ações (30,9%), Região Sul, 37 ações (20,8%), Região Nordeste, 35 ações (19,7%), Região
Norte, 27 ações (15,1%), Região Sudeste, 24 ações (13,5%). Identificamos, no geral, a presença
e participação de 76 povos, número que consiste em cerca de 25% dos 305 povos que habitam
o Brasil, segundo o Censo do IBGE (2010). Os 9 povos que mais se fizeram presentes nas ações
constam na tabela 6.
Tabela 6 Povos presentes nas ações do “junho indígena”
Povos
Nº de ações
%
Kaingang
13
7,9
Guarani
13
7,9
Guarani Mbya
11
6,8
Guarani e Kaiowá
10
5,7
Munduruku
8
4,9
Guajajara
7
4,3
Pataxó
7
4,3
Terena
5
3,1
Tupi Guarani
4
2,5
Fonte: Elaborado pelos autores.
Feita essa contextualização, é possível traçar análise de cada uma das categorias de
ações: ações em rodovias e ferrovias, ações no ambiente urbano e ações em aldeias. As 93 ações
em rodovias e ferrovias se deram em 4 categorias de análise: manifestações com bloqueio de
rodovia, com 87 ações (93,5%), manifestações sem bloqueio de rodovia, com 3 ações (3,2%),
manifestações com bloqueio de ferrovia, com 2 ações (2,2%) e vigília em rodovia, com 1 ação
(1,1%). Tais ações fizeram-se presentes em 14 estados, conforme a tabela 7.
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MONDARDO, Marcos Leandro; CHAPARRO, Roberto Lopes. MOBILIZAÇÕES DO “JUNHO INDÍGENA” DE 2021 CONTRA O PL 490
E O MARCO TEMPORAL NO BRASIL: cidadania, autonomia e resistência. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, 21, pp. 130-164,
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Tabela 7 Distribuição das ações em rodovias e ferrovias por unidade da federação
Unidade da
Federação
%
Unidade da
Federação
%
MS
16
17,2
CE
6
6,4
MA
12
12,9
RR
5
5,4
SC
12
12,9
AL
3
3,2
BA
9
9,7
MG
3
3,2
SP
8
8,6
AC
2
2,2
RS
8
8,6
RJ
1
1,1
PR
7
7,5
PA
1
1,1
Fonte: Elaborado pelos autores.
Dos 76 povos presentes no levantamento, 36 (47,4%) participaram de ações em
rodovias e ferrovias. Cabe ressaltar que das 93 ações desse tipo, em 62 (66,7%) a fonte
identificou os povos presentes, das quais em 16 mais de um povo estiveram presentes. Em 31
(33,3%) não foram identificados os povos que participaram. Os 9 povos que mais participaram
dessas ações seguem na tabela 8.
Tabela 8 Povos indígenas presentes nas ações em rodovias e ferrovias
Quais povos participaram?
%
Kaingang
11
12,7
Guarani e Kaiowá
9
10,3
Guarani
8
9,2
Guajajara
6
6,8
Pataxó
6
6,8
Guarani Mbya
4
4,5
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E O MARCO TEMPORAL NO BRASIL: cidadania, autonomia e resistência. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, 21, pp. 130-164,
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Terena
4
4,5
Tupi Guarani
3
3,4
Wassu Cocal
3
3,4
Fonte: Elaborado pelos autores.
as 66 ações que foram realizadas no perímetro urbano podem ser divididas em 7
categorias de análise: protestos nas ruas (marchas), com 26 ações (39,4%), protestos em prédios
públicos, com 24 ações (36,4%), protestos em praças e parques, com 10 ações (15,1%), entrega
de documentos, com 2 ações (3%), encontros políticos, com 2 ações (3%), realização de
acampamentos, com 1 ação (1,5%) e realização de vigília, também com 1 ação (1,5%). Ações
desse tipo se fizeram presentes em 14 estados e no Distrito Federal, conforme exposição da
tabela 9.
Tabela 9 Distribuição das ações urbanas por unidade da federação
Unidades da
Federação
%
Unidades da
Federação
%
DF
35
53,0
RJ
2
3,0
SP
6
9,1
PR
2
3,0
RS
4
6,1
ES
1
1,5
RO
3
4,5
MG
1
1,5
AM
3
4,5
SC
1
1,5
PA
2
3,0
AL
1
1,5
BA
2
3,0
RN
1
1,5
AC
2
3,0
-
-
-
Fonte: Elaborado pelos autores.
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Nesta categoria, 44 povos estiveram presentes (57,9%). Das 66 ações no contexto
urbano, em 45 (68,2%) delas a fonte não informou os povos participantes, o que indica que
ainda mais povos podem ter participado de tais ações. Em 21 (31,8%) ações a fonte informou
os povos participantes, de modo que em 8 delas mais de um povo se mobilizou. Entre os povos
que participaram das mobilizações urbanas, os que mais se fizeram presentes foram os Guarani
Mbya, em 6 ações (9,1%), os Guarani, em 4 ações (6,1%), os Munduruku, em 3 ações (3,0%),
e os Kokama, também em 3 ações (3,0%).
Por fim, todas as 19 ações realizadas no interior das aldeias e territórios tradicionais,
constituíram-se de protestos, com faixas e cartazes contra o marco temporal e PL 490/2007,
além de danças e cânticos de afirmação tradicional e de resistência. Esse tipo de ação foi
apontado em 7 estados: Pará (PA), com 9 ações (47,3%), Paraná (PR), com 3 ações (15,8%),
Mato Grosso (MT) e Mato Grosso do Sul (MS), com 2 ações cada (10,5% cada), e, São Paulo
(SP), Espírito Santo (ES) e Maranhão (MA), com 1 ação em cada (5,3%) cada. Dos 76 povos
presentes no levantamento, 12 (9,1%) realizaram mobilizações no interior de seus territórios.
Porém, novamente vale o destaque que em 15 (78,9%) das 19 ações a fonte não identificou
quais povos realizaram a mobilização, sendo que em apenas 4 (21,1%) isso foi informado.
Desse modo, nessa categoria de ação o povo Munduruku foi o que mais realizou ações, com 5
(31,3%).
Na figura 1, é possível observar como as manifestações se deram praticamente em todo
o território nacional. Embora as manifestações nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste
apresentem uma concentração mais acentuada, podemos ver também uma prevalência no
Nordeste, principalmente nas áreas litorâneas e de forma um pouco mais dispersa na região
Norte. No Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo ocorrem mobilizações
concentradas na luta pela demarcação dos territórios tradicionalmente ocupados, pois estes são
estados de reivindicações históricas de terras de povos indígenas que foram expulsos e
espoliados. No Mato Grosso do Sul forte incidência de manifestações na faixa de fronteira
com o Paraguai, no extremo sul do estado, área fortemente marcada pela disputa por terras e
territórios entre indígenas Guarani e Kaiowá e fazendeiros do agronegócio. Se analisarmos as
ações de bloqueio de rodovias (91), podemos pensar em uma teia a partir do mapa viário (a rede
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urbana), onde as intervenções do Movimento Indígena atingem boa parte do território nacional
por meio das rodovias. Em Brasília (ao centro), o coração da articulação do Movimento
Indígena, as manifestações se concentraram e se adensaram pela área urbana da cidade por esta
ser o espaço político de análise e votação junto ao Supremo Tribunal Federal (STF). Nesse
recorte focal do mapa, é possível ver que as manifestações se deram no interior da cidade de
Brasília, demonstrando a capacidade da ocupação da cidade pelo Movimento Indígena
organizado. O mapa demonstra, sobretudo, o fenômeno mais importante, que é o deslocamento
da luta da cidade para o campo.
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Figura 1 Atos contra o PL 490 e o marco temporal no Brasil 2021
Fonte: Marcos Leandro Mondardo e Alice Lucas de Souza Gomes.
Breves considerações sobre o PL 490/2007 e a tese do marco temporal
O PL 490 e seus principais pontos, descritos na introdução deste trabalho, é rechaçado
pelos povos indígenas, pois veem que ele defende apenas interesses econômicos do agronegócio
neoextrativista brasileiro, de expansão sobre os territórios tradicionais, sendo uma interpretação
tendenciosa da Constituição Federal de 1988 voltada a esse fim. Para o Movimento Indígena o
intuito do PL é “criar óbices eternos e intransponíveis aos processos de demarcação, para torná-
los impraticáveis, inexequíveis e infindáveis” (APIB et al., 2021, p. 1).
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Além disso, em diversos pontos o substitutivo apresenta inconsistência jurídica. O
artigo do PL estabelece o marco temporal para a demarcação de T.I.s, situação ainda não
votada pelo STF e que não pode ser colocada como um fato jurídico (Dos Santos; Gomas,
2021). Juristas afirmam que o PL é inconstitucional, pois: o artigo da Constituição Federal
do Brasil (CFB) garante que não podem ser retirados os direitos e garantias individuais o
direito dos povos indígenas a suas terras é coletivo firmados em suas alíneas, tais como os
direitos dos povos indígenas assegurados no artigo 231, que lhes estabelecem a titularidade
permanente de seus direitos coletivos e ainda ordena ao Estado brasileiro o dever de demarcar
as T.I.s e garantir a integridade de seu usufruto; os direitos dos povos tradicionais constituem
cláusula pétrea da CFB, de modo que não podem ser modificados por Lei Federal, o que para
juristas, caracteriza um vício de formalidade
8
, caracterizando uma inconstitucionalidade formal
(APIB; et al, 2021).
Ademais, o PL é caracterizado pela falta de consulta aos povos indígenas e seus
representantes, seja em debates, discussões ou audiências públicas, o que reforça o vício de
formalidade (Eloy Terena, 2021). Agrega-se a isto, o fato de o PL, por mais que diga respeito
diretamente à vida e aos territórios dos povos indígenas, não considera os seus modos de vida
na sua elaboração, desrespeitando suas cosmologias e sistemas de organização tradicionais.
Para os povos originários, a T/terra não é vista como recurso ou propriedade, mas como um ser
vivo, sendo compreendida como uma extensão da vida do corpo (Haesbaert, 2020). A lógica
que norteia o PL é o neoextrativismo do agronegócio que vê a terra como um recurso natural.
Quanto à tese do marco temporal um fator que lhe atravessa diz respeito ao processo
de expropriação e expulsão de territórios, o renitente esbulho, que muitos povos sofreram ao
longo dos séculos antes dos ditames da CFB de 1988. O processo desenvolvimentista brasileiro
dito civilizatório é marcado pela retirada forçada e violenta de povos e comunidades
de seus territórios, e em que durante o século XX o próprio Estado Brasileiro foi autor, com o
antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) até 1967 e a Fundação Nacional do Índio
8
No Direito, o vício de inconstitucionalidade formal é atribuído ao processo de elaboração das normas jurídicas,
ocorrendo quando, ao elaborar uma Lei, por exemplo, são desrespeitadas as disposições previstas na Constituição
que guiam a criação de Leis (TJDF, 2021).
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(FUNAI) a partir de 1967, e, principalmente, durante o regime militar (1964-1985). A tese
aponta que é necessária a comprovação documentada (posse de direito civil) de que os povos
indígenas habitavam determinado território antes de 1988 e dele foram expulsas, para que se
possa então fazer valer o renitente esbulho.
O processo histórico e geográfico brasileiro que é marcado pela invasão de Pindorama
9
pelos exploradores europeus, caracterizado pela tomada forçada e violenta dos territórios dos
povos tradicionais que aqui viviam, o que é totalmente negado pelo referido enunciado jurídico.
O marco temporal desconsidera completamente o processo de espoliação de terras e remoção
forçada de seus territórios sofridos pelos povos indígenas, da maneira como foi, sem
comprovação documentada, pelo contrário, marcado pelo extermínio violento de povos e
comunidades, por vezes, inteiras, como, por exemplo, nas missões dos bandeirantes e dos
“bugreiros” na região Sul do país. Em tempos de negacionismo científico, o negacionismo
histórico e geográfico emerge com a tese do marco temporal.
Outro fator é que a tese é contrária à Teoria do Indigenato, que fundamenta os direitos
indígenas na CFB de 1988. Proposto pelo jurista João Mendes Júnior (1912), ainda no começo
do século XX, o argumento garante que o direito à terra é um direito originário e
consuetudinário (e o mais fundamental de todos os direitos) dos povos indígenas, sendo, então,
congênito. Por originário, entende-se como um direito anterior ao próprio Estado e a
Constituição. Assim sendo, os territórios indígenas não podem ser compreendidos como sendo
criados e concedidos pelo Estado, e sim, um direito fundamental, natural, indubitável e inegável
aos primeiros habitantes do que hoje é o Brasil. Cabe ao Estado, então, apenas reconhecer esse
direito pré-existente (Cunha, 2021).
Ainda, nessa perspectiva, Cunha (1985, p. 42) frisa que o respeito à terra indígena é
a condição sinequa non de sua sobrevivência. Por isso, toda medida que não parta dessa
exigência, cedo ou tarde, implicará o extermínio violento ou gradativo dessas populações”. A
teoria do Indigenato adotada na Constituição aponta que o uso e ocupação da terra e do território
pelos povos indígenas é pautada na tradicionalidade da ocupação, de modo que o usufruto e
9
Nome ao qual os povos indígenas que viviam antes da invasão europeia chamavam o território que hoje
chamamos de Brasil. Do Tupi-Guarani, “Terra das Palmeiras”.
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reconhecimento de pertencimento de tais territórios se baseia na relação com base nos costumes,
tradições e espiritualidade dos povos para com os territórios e não em uma ocupação e posse
pautada no direito civil, como a tese do marco temporal exige quando faz menção ao renitente
esbulho. A teoria do Indigenato foi defendida no voto do Ministro Edson Fachin, o primeiro a
votar no julgamento do RE. 1.017.365, ao passo que rechaçou a tese do marco temporal e
reafirmou o direito originário dos povos sobre seus territórios.
A tese, portanto, se mostra como inconstitucional, ferindo os artigos 231 e 232 da CFB,
e pode-se dizer que o “marco temporal é uma mentira jurídica” (Botelho, 2021). Diante disso,
entende-se que a tese do marco temporal se pauta apenas nos interesses de grupos de poder,
políticos e econômicos voltados ao agronegócio, frigoríficos, mineradoras, dentre outros setores
vinculados ao neoextrativismo, e em nada beneficiam os povos indígenas.
Essa articulação jurídico-político de grupos ligados ao agronegócio na ofensiva a
retirada de direitos dos povos indígenas, expõem o caráter necropolítico (Mbembe, 2016),
suicidário (Virilio, 1999; Safatle, 2020a; 2020b), colonial (Sartori Júnior, 2016) e de racismo
estrutural (Almeida, 2018) do Estado Brasileiro e de seus dispositivos. Com relação ao Estado
brasileiro, em nossa pesquisa, fazemos uso do filósofo camaronês Mbembe (2016) e seu
conceito de necropolítica, que define a política, a partir do grupo soberano de poder que dela
usufrui, usada como meio para exercer o direito de matar e/ou deixar morrer, necropoder. A
partir dessa conceituação propomos a leitura da relação entre a política de morte, necropolítica,
com a abordagem do “Estado Suicidário”, cunhado pelo filósofo francês Paul Virilio (1999), e
desenvolvido para entender o contexto brasileiro por Vladimir Safatle (2020a; 2020b). O Estado
Suicidário se refere a um Estado que, para além da necropolítica, também exerce o direito de
matar sobre si próprio, seus dispositivos, e as estruturas que o compõem e justificam, de forma
que seu fim inevitável se torna a sua autodestruição e de suas macro-estruturas sociais.
Nesse contexto, pode-se considerar que a tese do marco temporal é perversa e deve ser
repudiada também por sua natureza moral, ambiental e econômica. Do ponto de vista moral,
devemos observar que a dívida histórica da sociedade e do Estado Brasileiro com os povos
tradicionais é enorme e jamais poderá quitada, embora alguns avanços tenham ocorrido e
garantido direitos a eles, como ocorreu com a CFB de 1988.
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Nesse sentido, Comparato et al (2021, p. 36-37) destaca que a tese do marco temporal,
“não passa de uma tentativa torpe de interromper esse processo de reparação e de
reconhecimento de direitos, legitimando a violência e a usurpação de terras indígenas. E o que
é torpe e vil, ainda que revestido de manto de legalidade, não é moralmente aceitável.
Assim, entendemos o papel do Direito como Justiça, conforme aponta o jurista Silvio
Almeida (2018). Para ele, quando observado de tal maneira o direito torna-se sinônimo de um
valor elevado de Justiça, para além das normas jurídicas (direito como norma). É necessário,
então, ética na aplicação das normas jurídicas. Ao se colocar tais valores como pilares para o
Direito, uma tese como o marco temporal e o PL 490 jamais chegariam a ser cogitados. Para o
autor, A vida, a liberdade, a igualdade e a propriedade são valores que devem ser cultivados por
toda a humanidade, e mesmo que não estejam positivados expressamente amparados por uma
norma jurídica emanada por autoridade instituída , devem ser protegidos (Almeida, 2018, p.
101).
Entretanto, o Direito faz parte da ossatura de poder do Estado, como uma extensão dos
poderes políticos e econômicos, e usado por grupos políticos e ideológicos que, no exercício
desses poderes, muitas vezes os fazem como dispositivo de dominação e espoliação. Ainda,
conforme Silvio Almeida:
Se o direito é produzido pelas instituições que, por sua vez, são resultantes das lutas
pelo poder na sociedade, as leis são uma extensão do poder político do grupo que
detém o poder institucional. O Direito, nesse caso, é meio e não fim; o direito é uma
tecnologia de controle social utilizada para a consecução de objetivos políticos e
para a correção do funcionamento institucional (Almeida, 2018, p. 105, grifo nosso).
Contemporaneamente, se vê muitos grupos de extrema-direita chegando ao poder em
países pelo mundo, o que ocasiona no advento de leis de cunho racista, como as leis anti-
imigração e/ou imposição de drásticas restrições econômicas aos grupos minoritários (Almeida,
2018). Pode-se observar essa relação no ataque aos direitos originários dos povos indígenas,
que passaram a ter seus direitos questionados principalmente com o advento do
conservadorismo no Brasil, que chegou ao poder em 2019, na figura do presidente Jair
Bolsonaro, declaradamente contrário aos direitos indígenas e à demarcação de suas terras, sendo
um ferrenho defensor do agronegócio, setor econômico que o apoiou massivamente.
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Além disso, a tese do marco temporal é problemática do ponto de vista ambiental e da
conservação da floresta em na Amazônia, onde se situa a grande maioria das T.I.s
demarcadas. São as terras indígenas as áreas mais preservadas da Floresta Amazônica, e, em
todas as perdas de vegetação nativa que ocorreu no Brasil nos últimos 36 anos, apenas 1,6%
foram em territórios indígenas (MAPBIOMAS, 2022).
Do mesmo modo, da perspectiva econômica, a tese não pode ser considerada rentável.
Em agosto de 2021, durante entrevista ao célebre programa Roda Viva, da TV Cultura, o
presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), Marcello Brito, quando
questionado sobre argumentos de que caso a tese fosse rejeitada pelo STF o agronegócio
brasileiro e consequentemente a economia brasileira teriam prejuízos, o mesmo respondeu: “O
agro não precisa invadir terra indígena para crescer, o agro não precisa invadir terra indígena
para se refazer... O resultado desse julgamento [do marco temporal] vai mostrar muito que país
nós somos pro futuro, que país nós queremos ser no futuro” (Brito, 2021).
Ele aponta que nenhum dos estudos e dados apresentados com tais argumentações
tinham bases e métodos empíricos e científicos, e ainda reforça a ideia de que hoje no Brasil
existe excedente de terras para o agronegócio e não escassez. O que falta para aumentar os
lucros do setor não é terra em si, e sim modernização da produtividade, isto é, são as tecnologias.
Tudo isso é bastante significativo partindo de um nome de tamanha importância dentro do setor
do agronegócio brasileiro. Todos esses aspectos expõem o caráter colonial, racista e
necropolítico, tanto do PL 490/2007, quanto da tese do marco temporal, sendo mais uma forma
de grupos hegemônicos atacarem as vidas (corpos), terras e territórios dos povos indígenas no
país.
Discussão e Análise dos dados produzidos ao longo do levantamento
O mês de junho de 2021 foi histórico para o movimento indígena brasileiro pela
articulação a nível nacional que conseguiu realizar. É admirável principalmente quando
pensamos em toda a dinâmica que tornou possível a mobilização, e as demandas, como custos
com transporte, alimentação e estadia no Acampamento Levante Pela Terra, realizado em
Brasília, bem como toda a organização e mobilização exigidos pelos outros atos realizados no
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
MONDARDO, Marcos Leandro; CHAPARRO, Roberto Lopes. MOBILIZAÇÕES DO “JUNHO INDÍGENA” DE 2021 CONTRA O PL 490
E O MARCO TEMPORAL NO BRASIL: cidadania, autonomia e resistência. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, 21, pp. 130-164,
maio-agosto de 2023.
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restante do país. Tudo isso, sem contar com o apoio do poder público, do grande Capital e de
ONGs, e em muitos lugares com as mobilizações sendo vistas com hostilidade e violência.
Outro aspecto relevante é o fato de que 41% dos dados deste levantamento foram
provenientes de informações sistematizadas pelo próprio Movimento Indígena em suas páginas
no Facebook. A mídia indígena tem cada vez mais se destacado na confecção, produção e
reprodução de imagens e narrativas nas redes sociais. Protagonizadas por jovens indígenas, esse
tipo de comunicação contribui para romper com os modelos tradicionais e hegemônicos de
comunicação, não participativos e alinhados a grupos políticos conservadores e ao agronegócio
(Pelacani; Guerra, 2022). Tais condições fazem das redes sociais do próprio Movimento
Indígena uma importante fonte de informações e dados sobre suas realidades.
Seguindo, o panorama que este texto evidencia, denota a amplitude que tais ações
tiveram. Amplitude essa que pode ser vista no âmbito geográfico, por serem realizadas em 19
Unidades da Federação e no Distrito Federal e presentes em todas as 5 regiões do país, com
ações em aldeias, ambientes urbanos e rodovias, demonstrando a unidade e potente capacidade
de mobilização e capilaridade do Movimento Indígena Brasileiro.
Essa forte abrangência geográfica caracterizou o Movimento Indígena no Brasil em
seus primórdios, na década de 70, com a realização das primeiras Assembleias Indígenas, marco
importante da história do movimento, juntando indígenas de diferentes regiões e etnias,
colocando os povos para falarem de suas demandas e reivindicar os seus direitos e que foram
realizadas em MT, PA, MS, RS, AP e RR (Schwade, 2021).
Tal amplitude é expressa também nos povos presentes, onde o levantamento apontou
76 povos participantes das ações, cerca de 25% dos 305 povos que habitam o Brasil segundo o
IBGE (2012). Essa ampla participação é mais um indicador que expõe o quão o Movimento
Indígena Brasileiro é plural e abrangente. A presença significativa de povos nas mobilizações
denota a superação de contradições, divergências, atritos e oposição de ideias que podem se
fazer presentes devido as cosmovisões por vezes distintas.
E é essa característica que forma o Movimento Indígena Brasileiro, que como aponta
Baniwa (2007, p. 230) “é feito e composto por uma enorme diversidade de povos, culturas, de
situações políticas, econômicas, e de diferentes histórias e níveis de contato”. Ainda, segundo
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o autor, o peso desse movimento de unidade ganha ainda mais impacto quando caminha em
direção contrária a lógica colonialista de separação e ruptura, que fez o povo lutar contra povo
durante muitos anos no Brasil (Baniwa, 2007).
Tal colocação se alinha ao que Munduruku (2012) expressa quando aponta que o
Movimento Indígena se fortaleceu quando povos e comunidades passaram a olhar e lutar pelas
demandas também de outros povos e territórios, para além de suas comunidades, o que ele
chama de sentimento de fraternidade indígena. Tal posicionamento caminha em direção ao que
Durham (1983) considera como sendo um deixar de ser minoria em si e se tornar em minoria
para si, o que permite aos povos indígenas do Brasil emergirem como sujeitos políticos e
coletivos. É esse espírito de coletividade, sem, contudo, suprimir as nuances de cada povo, que
particulariza as ações indígenas, sendo o seu movimento uma forma de existência coletiva.
Alinhado a isso, a APIB apontou que:
Reafirmamos que nossa união é fundamental para avançarmos, juntos, rumo ao nosso
projeto de país plurinacional, de paz, justiça, e harmonia com nossa e Natureza.
Foi isso que nossos ancestrais compreenderam: não há espaço para a divisão, para o
sectarismo, para qualquer tipo de violência entre nós (APIB 2022, p. 1, grifo nosso).
Nada mais impactante para se reafirmar essa fraternidade do que a luta contra o PL490
e o marco temporal, com ameaças substanciais contra os territórios e a vida dos povos do país.
Entretanto, a luta não é pelos povos do Brasil, mas pela humanidade, haja vista a importância
que os territórios indígenas exercem sobre a conservação das florestas e biomas, principalmente
na Amazônia, que apresenta extrema importância para o equilíbrio climático em nosso planeta.
Quanto a isso, a APIB considerou que:
A nossa luta não é apenas para preservar a vida dos nossos povos, mas da humanidade
inteira, hoje gravemente ameaçada pela política de extermínio e devastação da Mãe
Natureza promovida pelas elites econômicas que herdaram a ganância do poder
colonial, mercantilista e feudal expansionista e de governantes como o genocida
Jair Bolsonaro (APIB, 2021, p. 1).
Outra face da amplitude da mobilização é vista nos diferentes tipos de ações realizadas,
seja com aspectos interventivos e de ação direta, como bloqueios, protestos e acampamentos,
seja na luta política e institucional, como nos encontros políticos e confecção de documentos,
apresentando uma interessante gama de frentes possíveis para a luta. Exemplo disso se no
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twittaço realizado em 22 de junho, onde a #PL490NÃO teve mais de 60 mil menções e chamou
a atenção dos internautas para as ameaças que os povos indígenas no Brasil estavam vivendo
no momento. Esse contexto demonstra a potência da ocupação e apropriação dos espaços pelo
movimento, sejam físicos ou digitais.
Estas ações diretas, sejam os bloqueios, sejam o twittaços e ações nas redes sociais,
revelam que, a luta dos indígenas é por e pelo espaço, afinal o espaço importa para as lutas
sociais como propõe Doreen Massey (2005). Nessa direção, Rogério Haesbaert (2014) também
considera que para a compreensão destes movimentos de resistência e organização coletiva
contemporâneos, é fundamental considerar a relevância do espaço para a construção de tais
estratégias, vendo o território por meio da ação política, como por parte dos indígenas em
movimento.
Aspecto relevante da mobilização do Junho Indígena foram ações realizadas em
espaços públicos, do cotidiano e de circulação de pessoas e veículos, como rodovias, ruas e
avenidas, praças e parques. Antes de prosseguir a discussão, contudo, é interessante uma breve
contextualização dos conceitos de espaço público e espaço político. O espaço público
caracteriza-se por ser a esfera da cidadania e das expressões políticas dos segmentos e grupos
sociais, sejam nas cidades (físico), na mídia (discursivo) ou na internet (online) (Castro, 2018).
Desse modo, os espaços públicos são lugares em que as problemáticas vividas pela população
podem se transformar em debates, diálogos e possibilidades de mudanças, quando expressas e
manifestas. São, então, “canais de comunicação e de visibilidade de oposições” (Gomes, 2018,
p. 117).
São nesses lugares que a materialidade da vida nas sociedades modernas se organiza,
e rodovias, ruas, calçadas, meios-fios, faixas de pedestres, semáforos e sinalizações de trânsito
se tornam símbolos da cidadania, onde pessoas que possuem seus direitos (de locomoção) e
deveres (por exemplo, respeitar o semáforo), circulam e se expressam, reproduzindo a vida
social. Nesses espaços, então, veiculam-se uma infinidade de “repertórios, verbais, gestuais,
comportamentais, do vestuário, das formas de apresentação, enfim, de tudo aquilo que produz
significação social(Gomes, 2018, p. 118). E essas manifestações agregam em si um caráter
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comunicativo: não importa o quanto de atenção ou mobilização evoquem, cada manifestação
que passa por um espaço público se transforma em comunicação (IBID).
E é essa comunicação que o Movimento Indígena pretende ao organizar e mobilizar
ações no espaço público. Em mais um momento de ameaças em sua história, os povos que se
mobilizam buscam expor a todos, indígenas e não-indígenas, o tamanho do risco que correm e,
concomitantemente, toda a sociedade. É um apelo para se fazer valer a cidadania indígena, que
toda a sociedade conheça e perceba a luta indígena. Mesmo que uma pessoa não busque saber
da luta indígena, a luta vai até ela, seja na mobilização na rua, na praça, na rodovia. É um ponto
crucial do caráter educativo do Movimento Indígena (Munduruku, 2012), mostrar a sociedade
branca que todos serão afetados igualmente pelo PL 490 e marco temporal, que não é problema
só dos indígenas.
Toda essa movimentação em direção a cidade, as ruas, praças, ao espaço público é
uma forma de levar, para além da aldeia, os problemas dos povos e suas comunidades
tradicionais, talvez não através de uma fraternidade indígena, conforme pensou Daniel
Munduruku, mas em uma fraternidade para todos. Ao explorar o poder comunicacional do
espaço público o Movimento Indígena realiza um convite ao diálogo para toda a sociedade,
deixando evidente que a luta não é só mais de indígena para indígena, e sim por todos aqueles
que se entendam enquanto cidadãos.
Castro (2018) aponta que estes espaços de comunicação e visibilidade podem ainda
apresentar caráter político quando perpassados por fenômenos políticos, transpondo nesses
casos o aspecto de encontro e do ver e ser visto, em palco de atividades políticas. Em um espaço
político, portanto, o público se transforma “em arenas de demandas, conflitos e ação, o que os
investe de caráter político” (Castro, 2018). Podemos, assim, pensar na Praça da Cidadania, em
Brasília, espaço público de circulação e encontro de pessoas no dia a dia, que, com a
manifestação política do Acampamento Levante Pela Terra passa também a ser um espaço
político, de lutas e reinvindicações. Ainda, seguindo, a linha de raciocínio dessa geógrafa, o
espaço político abriga disputas de interesses, narrativas e performances políticas. Ela aponta:
O espaço político é então um lugar mobilizado para o confronto, onde os homens
agem coletivamente com uma intenção, o lugar da defesa de interesses, da negociação
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e da disputa de poder sobre os acordos em relação às normas necessárias ao convívio
pacífico entre diferentes visões de mundo (Castro, 2018, p. 23).
para Gomes (2018) o caráter político do espaço público se faz não só em momentos
de mobilizações mais diretas, mas também no dia a dia. Ele assinala que cotidianamente nesses
espaços são reproduzidas ações que podem ser concebidas como manifestações políticas, como
comportamentos, formas de se apresentar e se comunicar, ações subversivas ou questionadoras,
entre outras. Podemos pensar no fato de que um indígena, ao transitar por uma rua usando
artefatos e se comunicando em sua ngua materna, embora não estando em uma mobilização
política planejada, não deixa de possuir uma atitude política inerente as suas ações. Diante de
sujeitos que tenham posicionamentos dessa natureza, o autor afirma que “ao se manifestar
produzem formas de adesão e de conflito, ou seja, produzem um diálogo a respeito da
possibilidade de se incorporar ou não essas ações, em outros termos, surge um diálogo político”
(IBID, p. 116).
Assim, consegue-se ver a importância de vários elementos presentes nas manifestações
do Junho Indígena analisadas, como a presença de faixas de afirmação tradicional e palavras de
ordem contra o agronegócio e o Capital, cartazes escritos em línguas tradicionais, rodas de
cantos, danças e rezas tradicionais, adornos e pinturas corporais. É esta a comunicação política
de um grupo que se coloca em luta diante dos silenciamentos que sofrem cotidianamente.
A presença de ações de bloqueio de tráfego, principalmente em rodovias, apresenta
um símbolo marcante da luta indígena contra o marco temporal, apontadas pelo levantamento
com 52,3% das ações. As rodovias, pelo que representam, sendo o meio de escoamento da
produção do agronegócio, com intensa circulação de mercadorias têm suma importância para o
grande Capital Agrário. Ao exercer o direito cidadão de se manifestar nas rodovias e
bloqueando o tráfego, principalmente de caminhões com grãos, o Movimento Indígena manda
um importante recado para as elites agrárias, comunicando que farão o que for preciso para se
defenderem dos ataques aos seus territórios e suas vidas.
Nesse tipo de intervenção o levantamento apontou destaque para o estado de Mato
Grosso do Sul, marcado fortemente pela economia e influência (cultural e ideológica) do
agronegócio, e que se destaca com 16 ações, realizadas principalmente pelos Guarani e Kaiowá.
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Os conflitos pela terra envolvendo produtores rurais e populações indígenas são constantes no
estado (CIMI, 2021), que vive a tensão desse tipo de conflito, tornando essas ações ainda mais
emblemáticas e corajosas.
As ações interventivas em rodovias e ferrovias estiveram presentes em 14 Unidades
da Federação, das 5 regiões do país, o que, junto as ações realizadas em Brasília, nos permite
pensar em uma teia de resistência realizada pelo Movimento Indígena no mês de junho de 2021,
que se espalhou por todo o país através do seu centro, o coração do movimento, o Acampamento
Levante Pela Terra em Brasília.
A presença de ações no ambiente urbano (37%) demonstra um aspecto importante do
movimento, a mobilização para fora das aldeias, indo em direção à sociedade e cultura não-
indígenas clamar por apoio, visibilidade e escuta. Se o não-indígena não ouve ou não busca
conhecer a luta e demandas da causa indígena, ela se dirige até a cidade, ocupa espaços e expõe
suas reivindicações.
Conforme vimos anteriormente, são nos espaços urbanos, com sua infraestrutura e
equipamentos coletivos, que o suporte à vida em comum, nas ruas, avenidas, praças e
parques. Assim sendo, tais espaços de uso e vivência comum, carregam significados, sendo
arena de conflitos e disputas, de festas e celebrações (Castro, 2018). Atribuem-se, então, a
partilha e a exposição da luta, cabendo a sociedade escolher se abraça a causa ou não.
Em um trecho de nota da APIB, o Movimento afirma que:
Viemos a Brasília para colorir a capital federal de urucum e jenipapo, com as múltiplas
cores de nossos cocares e para demonstrar ao país e ao mundo que, assim como
aprendemos com nossos ancestrais, seguimos e seguiremos juntos, resistindo contra
os distintos projetos de extermínio que as elites, donos ou representantes do capital e
seus sucessivos governantes e aliados no Poder Legislativo têm articulado contra nós
ao longo desses 522 anos (APIB, 2022, p. 1).
Schwade tem observações acerca desse deslocamento da luta em direção às cidades.
Para o autor:
Após o período das assembleias indígenas, as preocupações começaram a se
urbanizar. A luta indígena migrou para as cidades. Virou urbana, cidadã. Neste novo
rumo, o objetivo principal passou a ser a conquista de leis mais favoráveis para os
povos indígenas. O local desta luta se tornou Brasília (Schwade, 2021, p. 46).
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Outro ponto que cabe salientar é a abrangência dessas ações realizadas no ambiente
urbano, como protestos nas ruas (marchas), protestos em prédios do poder público e em praças
e parques, denotando a forte capacidade de ocupação de espaços. Nota-se o símbolo de cada
ação; na marcha de um grupo que não mede esforços (físicos, políticos e logísticos) para lutar
pelos seus direitos e buscar aquilo que lhes pertence, suas terras originárias; nos protestos em
prédios do poder público, fazendo ser ouvidos, se o Estado não busca ouvi-los; ou nas
intervenções em praças e parques, ocupando e passando a mensagem que ali também lhes
pertence. Tal necessidade de luta se faz presente nas palavras do líder Kretã Kaingang estamos
aqui porque não temos mais escolha”, ao comentar sobre a subida na rampa do Congresso
Nacional em Brasília por manifestantes do movimento, em 8 de junho (CIMI, 2021, p. 1).
Todos esses desdobramentos apontam para uma direção: onde for possível ir, iremos.
Onde pudermos ser ouvidos, iremos! Seja na rodovia, na rua, na cidade, no parque, na praça.
Essa determinação e resistência na luta contra uma estrutura de sociedade racista e que funciona
para inviabilizar determinadas populações, como negros e indígenas (Mbembe, 2016; Almeida,
2018) assevera a força e direção que o Movimento Indígena Brasileiro tem e reforça a posição
de luta:
Lutaremos até o fim para manter o nosso direito originário às terras que
tradicionalmente ocupamos e protegemos. Fazendo parte deste país, mantendo a
nossa condição de povos culturalmente diferenciados, mesmo que autoridades
públicas e corporações privadas nos considerem empecilhos ao desenvolvimento.
Desenvolvimento esse, que desde os primórdios da invasão europeia é devastador,
etnocida, genocida e ecocida e que nos tempos atuais encontrou, e não por acaso, nesse
desgoverno, um protótipo para perpetuar o seu projeto de dominação. [...] Somos
filhos da Terra! E a Terra não é Nossa, somos nós que fazemos parte dela. É o útero
que nos gera e o colo que nos acolhe. Por isso damos a Vida por Ela. (APIB, 2021,
p. 1).
Tal posição indica o amadurecimento do movimento ao longo das décadas desde o
início de sua articulação, que nos primórdios, como aponta Munduruku (2012), ainda realizava
o trabalho de fazer o indígena se conscientizar do fato de ser indígena, e se aceitar como
indígena. Durante as décadas de 70, por exemplo, muitos indígenas se consideravam
“caboclos”, negando o pertencimento étnico (Schwade, 2021). Hoje, o Movimento demonstra
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uma capacidade grande de articulação e mobilização, sobretudo, mostrando que sabe lutar e
pelo que lutar, isto é, pela vida (corpos), por terra e território.
as manifestações no interior das aldeias e territórios afirmam, ainda, a autoafirmação
do território que se coloca em defesa e em resistência ante os ataques, sendo importante também
no sentido de educação e informação das comunidades acerca do contexto que se desenha para
além dos territórios, e de fortalecimento dos laços e da confiança dos grupos, diante dos ritos
com a presença de danças e cânticos, em ações de afirmação tradicional e de resistência. Vale
destaque o caráter educativo desse tipo de ação, formativo de cidadania aos indígenas
moradores das aldeias, o que vai ao encontro do que afirma Milton Santos (2007) quando diz
que a cidadania pode ser aprendida, assim, se enraizando a ponto de se tornar um estado de
espírito, reelaborada por meio da cultura.
Nota-se, ainda, a presença da espiritualidade, com a realização de vigílias, fortalecendo
a conexão com o sagrado e o ancestral, de onde se provém a força para luta. Ao atribuir
manifestações da espiritualidade junto às manifestações por seus direitos, a causa indígena
coaliza com o postulado por Baniwa (2007, p. 230), quando o autor afirma que “o movimento
indígena é uma junção ou uma tentativa de junção dos modelos tradicionais e modernos
(modelos dos brancos) de organização sócio-política”.
Não se pode deixar de frisar que toda essa rede de mobilizações e ações foi articulada
pela APIB, criada em 2005 para melhorar o diálogo entre as diferentes perspectivas da ação
indígena em escala nacional, e fazer as regiões e diversos povos do país direcionarem suas
intenções em comum-unidade, promovendo mudanças na forma de dialogar com o Estado, com
não-indígenas e com os próprios povos indígenas (Oliveira, 2010), e que vem se mostrando ser
um gigante meio de luta para os indígenas brasileiros.
Tópico fundamental do Movimento Indígena Brasileiro é seu caráter educativo
(Munduruku, 2007). É interessante observar tal constatação diante da leitura crítica que autores
como Milton Santos (2007) fazem acerca da alienação dos direitos cidadãos que vive grande
parte da sociedade, muito devido à “ditadura ou tirania” do consumo e o neoliberalismo. Para
o geógrafo, nossa sociedade é caracterizada por deficientes cívicos, sujeitos alienados de seus
direitos, de sua força de reivindicação e lugar de cidadão (Santos, 1999). Desse modo, o
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Movimento Indígena e toda sua interessante capacidade de articulação, mobilização, ocupação
de espaços e comunicação daquilo que reivindicam, podem ser considerados uma aula de
cidadania, diante da crise de identidade cidadã citada pelo pensador.
Considerações finais
Este texto analisou e discutiu as manifestações da mobilização do Movimento Indígena
Brasileiro em junho de 2021, denominado “Junho Indígena”. Diante da ameaça do marco
temporal e do PL 490/2007, os povos originários se viram na necessidade de lutar por seus
direitos, no caso, um direito considerado fundamental: o direito à terra. Nesse contexto, se
colocam como personagens de ameaça a vida e territórios indígenas o Estado e o capital do
agronegócio. Entretanto, é importante esclarecer que esta luta não decorre do Marco Temporal,
mas da própria História e Geografia dos povos indígenas desde a Colonização.
O contexto de pandemia que ainda se fazia presente à época do levantamento, impôs
a necessidade de acompanhamento das ações por meios remotos, como as redes sociais das
comissões e articulações indígenas, que se mostraram riquíssimas fontes de dados e meios de
comunicação importantes para o próprio Movimento. Os dados obtidos esboçam forte
capacidade de articulação do Movimento Indígena Brasileiro, que capilarizou ações em todas
as cinco regiões do país e performou manifestações variadas em diversos contextos espaciais.
Atesta-se a importância das mobilizações, principalmente realizadas em bloqueios de tráfegos
e protestos em ambientes urbanos. Tal relevância se dá, seja pelo papel crucial que as rodovias
exercem para o capital do agronegócio e pelo símbolo que representam para tal segmento da
economia, seja pela ocupação do espaço público de ruas, parques e praças para comunicar a
sociedade às demandas e luta pela vida que os povos indígenas enfrentam atualmente.
Com isso, se observa uma interessante potência educativa do Movimento Indígena
para uma consciência cidadã, pois embora suas lutas sejam pelas suas vidas (corpos), terras e
territórios, as problemáticas que combatem não afetam somente os povos indígenas, sendo
problemas de toda a sociedade, de modo que buscam então comunicar e expor o que
reivindicam como um chamado à cidadania.
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Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
MONDARDO, Marcos Leandro; CHAPARRO, Roberto Lopes. MOBILIZAÇÕES DO “JUNHO INDÍGENA” DE 2021 CONTRA O PL 490
E O MARCO TEMPORAL NO BRASIL: cidadania, autonomia e resistência. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, 21, pp. 130-164,
maio-agosto de 2023.
Submissão em: 26/07/2023. Aceito em: 28/08/2023.
ISSN: 2316-8544
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