Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
VALFRÉ, Lorenzo Gonçalves. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A MERCADORIA-MORADIA E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO
URBANO. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, nº 21, pp. 73-97, maio-agosto de 2023.
Submissão em: 10/02/2023. Aceito em: 19/06/2023.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons
73
SEÇÃO ARTIGOS
CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A MERCADORIA-MORADIA E A
PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO
THEORETICAL CONSIDERATIONS ON THE HOUSING-COMMODITY AND THE
PRODUCTION OF URBAN SPACE
CONSIDERACIONES TEÓRICAS SOBRE LA VIVIENDA-MERCANCÍA Y LA
PRODUCCIÓN DEL ESPACIO URBANO
Lorenzo Gonçalves Valfré1
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano
e Regional da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (IPPUR/UFRJ),
Rio de Janeiro, Brasil
e-mail: lorenzo934@gmail.com
Resumo
A moradia é, com efeito, o bem imobiliário de maior complexidade das cidades. Não possui forte dimensão
simbólica, material e social, mas também está atrelada fisicamente a uma fração específica e não reprodutível do
espaço urbano, o que significa que acessar uma moradia é também acessar, com maior ou menor facilidade, os
diversos valores de uso da cidade. Nesse sentido, o objetivo deste artigo é desenvolver considerações teóricas
acerca da produção capitalista desse bem, assim como do espaço urbano de modo geral, resgatando para tanto,
principalmente, expoentes da sociologia urbana marxista, bem como alguns dos postulados de Marx e Engels - em
especial a teoria da renda da terra desse primeiro. Acreditamos que tais considerações possuem forte relevância
para a compreensão das particularidades da produção habitacional e do espaço urbano atuais, bem como o potencial
de servirem como subsídios para futuros trabalhos inseridos nessa temática, sobre os quais apontamos, ao fim,
alguns direcionamentos de atual importância - em especial o que chamamos de "nova produção rentista".
Palavras-chave
Moradia; Espaço urbano; Renda da terra; Solo urbano
1
Doutorando em Planejamento Urbano e Regional no IPPUR/UFRJ. Possui graduação em Arquitetura e
Urbanismo pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e mestrado em Planejamento Urbano e Regional
pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(IPPUR/UFRJ). O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior Brasil (CAPES) Código de Financiamento 001.
Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
VALFRÉ, Lorenzo Gonçalves. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A MERCADORIA-MORADIA E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO
URBANO. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, nº 21, pp. 73-97, maio-agosto de 2023.
Submissão em: 10/02/2023. Aceito em: 19/06/2023.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons
74
Abstract
Housing is the most complex real estate asset in cities. Not only does it have a strong and important symbolic,
material and social component, but it is also physically linked to a specific and non-reproducible fraction of the
urban space, which means that accessing a dwelling is also, above all, accessing with greater or lesser ease the
various use values of the city. In this sense, the objective of this article is to offer theoretical considerations about
the production of this good, as well as the urban space in general, rescuing for this, in particular, exponents of
marxist urban sociology, as well as some of the postulates of K. Marx and F. Engels. We believe that such
considerations have strong relevance for understanding the particularities of housing production and urban space,
as well as the potential to serve as subsidies for future works inserted in this theme, on which we point out, at the
end, some directions of current importance - in particular what we call the “new rentier production”.
Keywords
Housing; Urban space; Ground rent; Urban land
Resumen
La vivienda es el activo inmobiliario más complejo de las ciudades. No sólo tiene un fuerte e importante
componente simbólico, material y social, sino que además está ligado físicamente a una fracción específica e
irreproducible del espacio urbano, por lo que acceder a una vivienda es también, sobre todo, acceder con mayor o
menor facilidad a los distintos valores de uso de la ciudad. En este sentido, el objetivo de este artículo es ofrecer
consideraciones teóricas sobre la producción de este bien, así como del espacio urbano en general, rescatando para
ello, en particular, exponentes de la sociología urbana marxista, así como algunos de los postulados de K. Marx y
F. Engels. Creemos que tales consideraciones tienen fuerte relevancia para la comprensión de las particularidades
de la producción habitacional y del espacio urbano, así como el potencial de servir como subsidios para futuros
trabajos insertos en esta temática, sobre los cuales señalamos, al final, algunas direcciones de importancia en la
actualidad - en particular lo que llamamos la “nueva producción rentista”.
Palabras clave
Vivienda; Espacio urbano; Renta de la tierra; Suelo urbano
Introdução
Assim como o vestuário ou a alimentação, a moradia se apresenta como um dos
elementos centrais da existência humana, dadas as necessidades básicas como proteção e lugar
de reposição de energia, que o consumo desse valor de uso satisfaz. Diferente desses dois
primeiros elementos, entretanto, a moradia é também um bem imóvel. Está atrelada a uma
fração específica do globo terrestre e tem pouco potencial para sua completa renovação
material
2
ao contrário das plantações agrícolas, por exemplo na medida em que a
durabilidade desse bem, assim como a quantidade de dinheiro e outros recursos necessários à
2
Isso é claramente refletido, atual e historicamente, quando observamos a reconversão de casas coloniais em
cortiços, no final do século XIX, ou a realização de retrofits em edifícios verticalizados antigos, no início do século
XXI, nos centros das metrópoles brasileiras, ao invés da simples demolição e construção de um novo bem
imobiliário.
Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
VALFRÉ, Lorenzo Gonçalves. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A MERCADORIA-MORADIA E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO
URBANO. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, nº 21, pp. 73-97, maio-agosto de 2023.
Submissão em: 10/02/2023. Aceito em: 19/06/2023.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons
75
sua produção, são demasiadamente grandes. Mais importante, entretanto, é que o consumo da
moradia, ou de bens imobiliários de modo geral, se no seu próprio local de produção, ou
seja, em uma parcela de solo urbano.
Embora esses três elementos citados apresentem diferenças quanto à fixação no espaço
de suas produções, eles possuem em comum o fato de serem essenciais para a existência
humana. Em um determinado ponto histórico, essa questão adquire um sentido completamente
distinto. Trata-se do momento em que uma esmagadora parcela da população é despossuída de
seus meios de produção e transformada em trabalhadores livres e condicionados a vender sua
força de trabalho como forma de subsistência. Antes elementos centrais da existência humana,
com o desenvolvimento histórico do modo de produção capitalista, esses se transformam em
itens indispensáveis de uma cesta destinada a possibilitar a reprodução da força de trabalho e a
manutenção desse novo sistema de relações.
Não citamos, inicialmente, apenas vestuário, alimentação e moradia sem motivos. De
fato, tais elementos podem ser considerados como os mais básicos e indispensáveis à essa
reprodução, o que também é destacado por Engels (2008) em sua paradigmática obra sobre a
situação da classe trabalhadora na Inglaterra. No entanto, é notável que, com o desenvolvimento
desse modo de produção, outras necessidades e elementos imóveis passam a fazer parte da
dimensão dos bens de consumo da população, como sistemas educacionais, de saúde, lazer e
outros, configurando um processo de produção do espaço urbano em que, mediado por agentes
capitalistas e também por agentes por vezes alheios aos interesses de mercado, gera como
resultado uma dinâmica constituição e subdivisão das cidades em espaços de consumo coletivo
essenciais à reprodução da força de trabalho e espaços de produção e circulação de mercadorias
(Castells, 2020).
Mas a moradia, presente de forma consideravelmente predominante nas cidades, em
relação aos outros objetos imobiliários, possui uma complexidade especial. Bourdieu (2006),
em síntese, considera esse bem como dotado de um componente simbólico forte, na medida em
que exprime, de forma durável e exacerbada, os gostos, meios e condições sociais de seus
usuários, além de, devido a seu alto custo, representar um investimento financeiro importante
para o presente e para as futuras gerações de uma determinada família. De fato, sobre esse
Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
VALFRÉ, Lorenzo Gonçalves. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A MERCADORIA-MORADIA E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO
URBANO. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, nº 21, pp. 73-97, maio-agosto de 2023.
Submissão em: 10/02/2023. Aceito em: 19/06/2023.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons
76
primeiro ponto, é notável que, com exceção de experiências como políticas habitacionais de
interesse social de grande envergadura nas quais, em função da tentativa de redução de
custos, se busca produzir moradias padronizadas e homogêneas , moradias tendem a ser
produzidas de formas distintas umas das outras, em uma espécie de tentativa de criar, muitas
vezes, um objeto singular e não reprodutível a partir da intencionalidade de seu agente produtor
ou promotor.
Denotando ainda mais a complexidade desse bem, a moradia ainda apresenta uma
localização e, portanto, uma distância em relação aos outros elementos de consumo, de
produção e simbólicos das cidades. Nesse sentido, ela não está atrelada a uma parcela de
terra: onde reina o modo de produção capitalista, está atrelada ao espaço urbano, constituindo
materialmente parte de uma divisão social e simbólica do espaço, que se estabelece a partir de
um conjunto dinâmico de processos de produção capitalista do ambiente construído e, mais
precisamente, a partir de uma hierarquização de preços fundiários que ocorre em função dos
usos mais rentáveis que podem se estabelecer com a utilização do solo urbano (Ribeiro, 1997).
Não constitui, como também é um dos fatores ativos essenciais do seu estabelecimento,
especialmente quando consideramos as relações muito próximas entre segregação residencial,
poderes de reivindicação distintos em função do poder econômico, benefícios líquidos gerados
pelas ações do Estado e desigualdades urbanas, como Vetter et al. (1981) bem destaca.
Em resumo, nos parece claramente que a moradia, por si e aqui nos referimos
meramente às suas propriedades enquanto valor de uso construído e altamente visível aos outros
apresenta uma inerente complexidade, dada a importância e magnitude de suas dimensões
material, social e simbólica. Não só isso, mas, atrelada à sua localização, decorrente de ser um
bem imóvel, a moradia impulsiona ainda mais tais dimensões, além de complementar seu valor
de uso ao comportar também o acesso a esse outro conjunto de valores de uso e elementos
materiais mais ou menos socialmente valorizados das cidades (Ribeiro, 1997). De que forma,
por fim, se produz a moradia? Mais especificamente, quem produz, e com quais intenções?
Quais são as condições históricas para as diferentes formas de produção da moradia, em
especial a forma de produção capitalista? São alguns dos questionamentos que pretendemos
Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
VALFRÉ, Lorenzo Gonçalves. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A MERCADORIA-MORADIA E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO
URBANO. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, nº 21, pp. 73-97, maio-agosto de 2023.
Submissão em: 10/02/2023. Aceito em: 19/06/2023.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons
77
responder e sobre os quais procuramos estabelecer algumas reflexões a partir da elaboração
deste artigo.
Se a terra, dinheiro e trabalho se tornam mercadorias no capitalismo (Polanyi, 1980), é
certo que a moradia, por vezes construída muito mais tempo do que a própria existência
desse modo de produção, também o faz. No entanto, em algum momento, a moradia não apenas
se torna mercadoria, mas passa a ser, efetivamente, produzida como mercadoria e,
principalmente, a circular como capital. Se torna mercadoria-moradia e capital-moradia,
apresentando características muito peculiares de produção e circulação, bem como processos
muito específicos de transformação da mais-valia em lucro, renda e juros, nomeadamente a
partir do surgimento do capital incorporador.
É notável, nesse sentido, que uma série de autores tenham se debruçado sobre a análise
da produção do espaço urbano e das particularidades da produção e precificação dos bens
imobiliários e, mais especificamente, da moradia, em especial os expoentes da chamada
sociologia urbana francesa, como C. Topalov, A. Lipietz e J. Lojkine. No Brasil, embora essa
discussão tenha tido também uma considerável proficuidade nas últimas duas décadas do século
XX, a partir de trabalhos como Singer (2017), Smolka (1987) e Ribeiro (1997), é marcante que
esse impulso se perdeu nas primeiras duas décadas do século XXI. Não obstante, acreditamos
que as bases teóricas que sustentam esses (e outros) trabalhos ainda permanecem extremamente
relevantes para se compreender características e mecanismos essenciais da produção
imobiliária e seus efeitos sobre a cidade, tornando relevante a realização de trabalhos inseridos
nesse campo específico.
Desse modo, o objetivo central deste artigo é resgatar parte dessa discussão sobre a
produção do espaço urbano e fornecer, com isso, algumas contribuições e subsídios teóricos
nesse sentido, em especial a partir de um olhar sobre a mercadoria-moradia e o capital
incorporador. Não temos a pretensão de realizar uma sistematização ou um panorama do
conjunto dos trabalhos e autores que se debruçaram sobre esse campo
3
, mas sim estabelecer
algumas bases que são, em larga medida, comuns à grande parte desses, e ainda de forte
3
Para isso, ver C. Topalov. Fazer a história da pesquisa urbana. A experiência francesa desde 1965. Espaço &
Debate, n. 23 (1988)
Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
VALFRÉ, Lorenzo Gonçalves. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A MERCADORIA-MORADIA E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO
URBANO. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, nº 21, pp. 73-97, maio-agosto de 2023.
Submissão em: 10/02/2023. Aceito em: 19/06/2023.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons
78
relevância e potencial explicativo sobre os atuais fenômenos de produção do espaço urbano,
ademais de oferecer algumas contribuições nossas acerca das particularidades produtivas e de
circulação da mercadoria-moradia.
Por fim, a exposição está dividida em outras cinco seções, além desta introdução. Na
primeira serão tratados alguns pressupostos iniciais acerca da natureza da questão fundiária e
da produção do espaço urbano. Na segunda, será feita uma breve exposição da teoria da renda
da terra de Marx. Na terceira, buscaremos transpor algumas das noções dessa teoria para o caso
da produção do espaço urbano. Na quarta, trataremos, de forma mais enfática, sobre o capital
incorporador e as particularidades da mercadoria-moradia. Por fim, na última seção traçamos
considerações finais, buscando direcionar futuros trabalhos inseridos na temática da produção
do espaço urbano e da produção habitacional a partir dessa perspectiva, em especial, destacando
brevemente a influência do capital financeiro nessa produção.
Produção do espaço urbano: considerações iniciais
A discussão a respeito da produção do espaço urbano e, de modo mais concreto, da
produção imobiliária, acreditamos, deve sempre partir de uma análise sobre a natureza da
questão fundiária, visto que a produção de qualquer objeto imóvel se dá em uma determinada
porção do solo urbano, tornando necessária a compreensão de seus mecanismos de precificação
e valorização. Nesse sentido, o pressuposto que é um dos pilares fundamentais dessa discussão,
e que, portanto, as análises desse campo devem considerar, é de que a terra, embora não tenha
valor visto ser um bem natural e não produzido por meio de trabalho , é passível de
adquirir um preço (Marx, 2017). Isso significa que, se não existe uma oferta reguladora desse
bem, a compreensão de como se seu processo de precificação e valorização requer
considerações mais particulares do que uma simples explicação com base em uma lei da oferta
e demanda por terra, como Ribeiro (1997) bem destaca.
De fato, na medida em que não existe um mercado de “produtores de terra”, gerando
uma determinada oferta, os preços fundiários somente podem se estabelecer a partir de uma
demanda que, no entanto, é especificamente capitalista, por esse recurso naturalmente escasso
(Ribeiro, 1997). Em outras palavras, a terra, ou o solo urbano, adquire um preço em função do
Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
VALFRÉ, Lorenzo Gonçalves. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A MERCADORIA-MORADIA E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO
URBANO. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, nº 21, pp. 73-97, maio-agosto de 2023.
Submissão em: 10/02/2023. Aceito em: 19/06/2023.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons
79
fato de que os mais diversos capitais necessitam dela para se valorizarem e se reproduzirem.
Essa premissa inicial representa a base de uma rie de rupturas, e subentende uma variedade
de processos históricos que tiveram de ocorrer para que esse mercado fundiário existisse, em
especial a despossessão dos trabalhadores, que destacamos no início deste artigo, e a
separação entre capital e a propriedade fundiária, ou seja, a transformação do solo em
mercadoria (Topalov, 1979).
O pré-requisito para o modo de produção capitalista é, portanto, o seguinte: os
verdadeiros cultivadores do solo são assalariados, empregados por um capitalista, o
arrendatário, que só se dedica à agricultura como campo de exploração específico do
capital, como investimento de seu capital numa esfera particular da produção. Esse
capitalista-arrendatário paga ao proprietário fundiário, ao proprietário da terra por ele
explorada, em prazos determinados, digamos anualmente, uma soma em dinheiro
fixada por contrato (exatamente do mesmo modo que o mutuário de capital monetário
paga por ele juros determinados) em troca da permissão de aplicar seu capital nesse
campo particular da produção. Essa soma de dinheiro se chama renda fundiária, não
importando se é paga por terra cultivável, terreno para construções, minas, pesqueiros,
bosques etc. Ela é paga por todo o tempo durante o qual o proprietário da terra
emprestou, alugou por contrato, o solo ao arrendatário. Nesse caso, a renda do solo é
a forma na qual se realiza economicamente a propriedade fundiária, a forma na qual
ela se valoriza. Além disso, aqui estão, reunidas e confrontadas, as três classes o
trabalhador assalariado, o capitalista industrial e o proprietário fundiário que
constituem o marco da sociedade moderna (Marx, 2017, p. 745-746).
Em termos das rupturas epistemológicas que essa consideração inicial implica, importa
destacar que, embora a estruturação das cidades se mediada e constrangida pelo preço do
solo urbano, não é a propriedade privada em si, enquanto instituição jurídica, a causa dos
problemas que estas enfrentam em função do mercado de solos. Isso porque, como se pode
inferir, a propriedade privada fundiária só adquire um conteúdo econômico na medida em que
a demanda capitalista por sua utilização, em especial na busca de lucros extraordinários, gera a
ela um preço (Marx, 2017; Topalov, 1979; Ribeiro, 1997) nos ajudando a inferir a premissa
elementar de que o preço da terra é, em larga medida, uma renda capitalizada (Marx, 2017).
Nesse sentido, e como exemplo, a socialização da propriedade fundiária, no lugar de resultar
na resolução desse problema, do contrário, geraria a liberação de um dos principais entraves da
valorização capitalista, potencializando o domínio do capital sobre a estruturação das cidades e
a reprodução dos problemas urbanos (Singer, 2017). É, portanto, o capital e seus movimentos
Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
VALFRÉ, Lorenzo Gonçalves. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A MERCADORIA-MORADIA E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO
URBANO. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, nº 21, pp. 73-97, maio-agosto de 2023.
Submissão em: 10/02/2023. Aceito em: 19/06/2023.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons
80
de valorização englobando aqui, inclusive, suas relações com outros capitais e, em especial,
com o Estado o cerne da questão, e onde devemos fundamentalmente nos concentrar.
Em resumo, podemos afirmar que a análise da produção do espaço urbano e da produção
imobiliária perpassa pela análise da relação entre capital e propriedade fundiária. Nesse sentido,
a teoria da renda da terra, conforme exposto por Marx no terceiro volume d’O Capital, se
apresenta como um subsídio teórico de grande relevância, ainda que o autor tenha concentrado
sua teoria, em larga medida, na produção agrícola
4
. Isso porque grande parte do arcabouço
conceitual e teórico estabelecido por Marx é transponível para o caso da valorização capitalista
no espaço urbano, ainda que, nessa transposição, devam ser apontadas as distinções existentes
entre os capitais inseridos nesses diferentes segmentos e espaços. Sem o compromisso ou a
pretensão de expor essa teoria em sua totalidade, mas buscando o que é de maior relevância
para a análise da produção do espaço urbano, apontaremos algumas noções nela presentes.
A Teoria da Renda da Terra de Marx
Marx estabelece sua teoria da renda da terra em parte a partir de um diálogo com a teoria
de Ricardo (1996). Para este, em síntese, a renda da terra se refere à diferença entre os produtos
originados da aplicação de duas quantidades idênticas de capital. Marx, sobre isso, chama a
atenção para dois fatores, que o ajudam didaticamente na sua exposição inicial. Em primeiro
lugar, que Ricardo considera a existência apenas da renda diferencial. Em segundo, que Ricardo
não acrescenta, em sua definição elementar, “a terra”, ou seja, a diferença entre o produto
originado de duas quantidades idênticas de capital e trabalho “numa mesma quantidade de
terreno” (Marx, 2017, p. 788). A importância de enfatizar esse último ponto, dentre vários
fatores, é de que é necessário diferenciar a renda da terra dos juros sobre o capital, que
apresentam sentidos distintos.
Ao contrário de Ricardo, Marx considera a existência de três tipos distintos de renda da
terra: a diferencial, absoluta e de monopólio. Nesse sentido, antes de realizarmos a transposição
4
Não obstante, tanto Marx, nos três volumes d’O Capital, quanto em especial Engels, também fizeram
considerações de grande relevância sobre a relação entre capital e a propriedade fundiária urbana, embora pouca
atenção seja dada a esse fato nos trabalhos inseridos nessa temática.
Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
VALFRÉ, Lorenzo Gonçalves. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A MERCADORIA-MORADIA E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO
URBANO. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, nº 21, pp. 73-97, maio-agosto de 2023.
Submissão em: 10/02/2023. Aceito em: 19/06/2023.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons
81
dos postulados dessa teoria para o caso da produção do espaço urbano e da mercadoria-moradia,
façamos uma breve exposição sobre essas, destacando o fato de que, para sua compreensão, é
necessário considerar que trata-se de uma análise comparativa entre terras de iguais dimensões,
e que as mercadorias produzidas nessas terras são vendidas pelo seu preço social de produção
ou seja, considerando todo o conjunto de capitalistas inseridos nesse determinado segmento
capitalista de produção eo pelo preço individual de produção gerado por um determinado
capitalista.
Em linhas gerais, a renda diferencial aparece quando certa terra possui propriedades ou
elementos em seu solo que geram uma produtividade maior e, igualmente, geram ao capitalista
que a arrenda um preço individual de produção menor, gerando a mais-valia extraordinária que
é convertida em renda. Nesse caso, a renda da terra se apresenta como a diferença entre o preço
individual de produção nessa determinada terra e o preço social de produção nesse segmento;
sua conversão de mais-valia extraordinária para renda da terra se dá eminentemente em função
do fato de que, decorrente da instituição da propriedade privada, existem proprietários que
detém o monopólio das mais diversas frações do globo terrestre, incluso onde se realiza a
produção agrícola capitalista. O exemplo que Marx utiliza para ilustrar esse tipo de renda é a
da existência de uma queda d’água em determinada terra que, devido à sua utilização para
geração de energia, determinado capital obtém vantagens produtivas com relação aos capitais
que utilizam outras formas de energia mais custosas em capital fixo em suas produções. Em
síntese, a renda diferencial se refere ao caso no qual, em função da monopolização de valores
de uso não-reprodutíveis, determinado capital dispõe de vantagens ou condições especiais de
produtividade. Trata-se, portanto, de um fator eminentemente produtivo.
Mas, se a base da compreensão da renda diferencial é de que o preço individual de
produção seja menor que o preço social de produção, o que ocorre na “pior terra”, onde não
existem propriedades ou valores de uso não-reprodutíveis que geram condições favoráveis ao
capital, não possibilitando-o gerar um preço individual de produção inferior ao preço social?
Aqui reside outro ponto de ruptura de Marx com a teoria da renda da terra de Ricardo, pois o
proprietário não arrendará nem mesmo a pior terra ao capitalista sem custos. Disso decorre que,
ao contrário da renda diferencial, na qual a base do surgimento da renda fundiária é a existência
Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
VALFRÉ, Lorenzo Gonçalves. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A MERCADORIA-MORADIA E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO
URBANO. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, nº 21, pp. 73-97, maio-agosto de 2023.
Submissão em: 10/02/2023. Aceito em: 19/06/2023.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons
82
de uma mais-valia extraordinária, na renda absoluta é a própria mais-valia gerada na produção
que será convertida, parcialmente, em renda fundiária para o proprietário da terra, além de lucro
para o capitalista. Em outras palavras, a renda absoluta existe em função da existência da
instituição jurídica da propriedade privada, enquanto a renda diferencial, embora possibilitada
também por essa instituição, também existiria sem sua existência. Ou seja, o tributo necessário
a ser pago ao proprietário da terra é internalizado no processo de produção e distribuição da
mais-valia e, somente nesse caso, tal tributo desapareceria no caso da socialização da terra
(Ribeiro, 1997).
A renda de monopólio, por sua vez, decorre do preço monopolístico de determinada
mercadoria que é produzida em uma terra que, devido às suas propriedades, gera um produto
que é socialmente valorizado e pouco reprodutível. Enquanto as rendas diferencial e absoluta
se referem, pois, a fatores de produção, a renda de monopólio está diretamente relacionada com
esse preço de monopólio, que se refere a “[...] um preço determinado apenas pela ânsia de
comprar e pela solvência dos compradores, independentemente do preço determinado pelo
preço geral de produção, bem como pelo valor dos produtos”. (Marx, 2017, p. 935). O preço e
a renda de monopólio, como veremos, são de maior interesse quando tratamos do processo de
produção da mercadoria-moradia, dada a complexidade e heterogeneidade desse valor de uso
que apontamos na introdução deste artigo.
Nesse sentido, e em especial na renda diferencial e de monopólio, a terra surge como
um valor de uso que, embora não-reprodutível, pode ser monopolizado e gerar uma mais-valia
extraordinária para o capitalista, que então determinará, ou ao menos será objeto de embate,
entre sua transformação em lucro para o capital e renda para o proprietário fundiário. No
entanto, no primeiro caso tratam-se de “condições excepcionais de produtividade” (Ribeiro,
1997, p. 60), enquanto no segundo tratam-se de propriedades que geram mercadorias com
característica singulares e socialmente valorizadas, embora ambas as condições sejam pouco
reprodutíveis. Podemos inferir, então, que o capital dispõe não apenas de valores de uso
reprodutíveis, como matérias-primas, instrumentos e objetos de trabalho, mas também de
valores de uso que, embora não-reprodutíveis, são monopolizáveis, como as “forças naturais”,
bem como o preço da terra é, como destacamos anteriormente, uma renda capitalizada,
Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
VALFRÉ, Lorenzo Gonçalves. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A MERCADORIA-MORADIA E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO
URBANO. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, nº 21, pp. 73-97, maio-agosto de 2023.
Submissão em: 10/02/2023. Aceito em: 19/06/2023.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons
83
subentendendo a subordinação dessa propriedade, de seu conteúdo econômico, aos movimentos
de valorização do capital, uma forte alteração com relação às relações de produção e a
propriedade fundiária feudal (Marx, 2017).
Renda e lucro na produção do espaço urbano e da moradia
Transpondo algumas das noções presentes na teoria da renda da terra, Topalov (1979)
coloca como tese central a cidade como força produtiva. Ela é composta por uma série de
valores de uso simples objetos imobiliários mas que, através da articulação espacial entre
tais elementos, são gerados valores de uso complexos, ou efeitos úteis de aglomeração ou, na
formulação de Smolka (1987), sinergias urbanas. Isso significa que, também na produção do
espaço urbano, valores de uso não-reprodutíveis podem ser monopolizados para gerar uma
mais-valia extraordinária para o capital que utiliza determinada fração do solo urbano. Para
compreender isso, entretanto, é necessário constatar que, no processo de produção do espaço
urbano, estamos diante de dois grupos de capitais: os que utilizam a cidade como marco do
lucro e os que utilizam a cidade como objeto do lucro (Ribeiro, 1997).
No caso do primeiro grupo, a utilização dos efeitos úteis de aglomeração gera, de fato,
condições excepcionais de produtividade. É o caso, por exemplo, dos capitais industrial e
comercial. A existência de valores de uso, como capital fixo pré-existente, possibilita o
surgimento de condições excepcionais não apenas de produtividade, mas especialmente de
circulação das mercadorias produzidas. Muitos desses valores de uso, sobretudo os citados, por
vezes não são produzidos com vistas à valorização de um capital, principalmente a partir da
atuação do Estado. Essa questão é trazida de forma aprofundada por Topalov (1979), que expõe
que, embora o capital, em seus movimentos de valorização e reprodução, tenda a se entremear
nos mais variados segmentos da produção do ambiente construído, por vezes a produção de
alguns valores de uso não são rentáveis em um determinado momento. Nesses momentos, o
Estado, atuando com a introdução de um capital desvalorizado, produz esses valores de uso
vistos serem necessários à reprodução da força de trabalho, como equipamentos de consumo
coletivo embora posteriormente seu controle possa ser transferido ao capital, como no caso
da concessão de rodovias, na medida em que criam-se expectativas que tais valores de uso
Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
VALFRÉ, Lorenzo Gonçalves. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A MERCADORIA-MORADIA E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO
URBANO. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, nº 21, pp. 73-97, maio-agosto de 2023.
Submissão em: 10/02/2023. Aceito em: 19/06/2023.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons
84
possam ser rentáveis, especialmente em momentos de coalizão entre variados capitais que se
reproduzem no processo de acumulação urbana.
De todo modo, ainda que cada elemento do espaço urbano tenha um valor de uso
simples, a articulação espacial entre esses gera, pois, efeitos úteis de aglomeração para esses
capitais. Ribeiro (1997) oferece exemplos elucidadores, como a existência de um comércio
próximo a estações de transporte, possibilitando um maior fluxo de pessoas, e potenciais
fregueses e consumidores no entorno desse comércio. Ou então, de modo mais simples, a
existência de um sistema infraestrutural de transporte de mercadorias para uma indústria que
possibilite o escoamento de sua produção de forma mais ágil. Podemos, nesses casos, considerar
que essas condições excepcionais de produção e circulação de mercadorias geram uma mais-
valia extraordinária que Topalov (1979) originalmente define como sobrelucro de
localização para o capital que se utiliza dessa porção do solo urbano, e que o preço da terra,
portanto, se refere à essa mais-valia extraordinária, que não seria possível de se obter (em sua
totalidade) sem a existência dessa articulação espacial que gera efeitos úteis de aglomeração,
configurando o preço da terra como essa renda diferencial.
No segundo grupo, a própria produção do espaço urbano é seu objeto de valorização,
ou seja, o capital se reproduz na medida em que são produzidos os objetos imobiliários das
cidades. Encontramos, aqui, efetivamente, o capital construtor, em seus variados segmentos,
assim como o capital de incorporação, posteriormente. Se é a própria produção do espaço seu
objeto de valorização, é notável que a moradia, uso predominante do solo nas cidades, possui
uma atenção especial. Mas, como sabemos, a produção de qualquer objeto imobiliário é algo
demasiadamente custoso, nos levando a inferir que, em especial no início do processo de
produção do espaço urbano, o Estado tenha uma atuação central, na medida em que os capitais
não se encontram suficientemente concentrados e não existem formas desenvolvidas de
financiamento. O “problema do financiamento” é algo altamente presente na literatura sobre a
produção imobiliária, uma vez que, na grande maioria dos casos, os objetos imobiliários
requerem uma grande quantidade de capital e de trabalho e um longo período de tempo para se
produzirem. A citação a seguir de Marx, ainda no segundo volume d’O Capital, destaca bem
essa questão:
Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
VALFRÉ, Lorenzo Gonçalves. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A MERCADORIA-MORADIA E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO
URBANO. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, nº 21, pp. 73-97, maio-agosto de 2023.
Submissão em: 10/02/2023. Aceito em: 19/06/2023.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons
85
A execução de obras que consomem um período significativamente longo de trabalho
e se realizam em grande escala só passa a integrar plenamente a produção capitalista
quando a concentração do capital é bastante considerável e, ao mesmo tempo, o
desenvolvimento do sistema de crédito oferece ao capitalista o cômodo expediente de
adiantar e, desse modo, também arriscar capital alheio, em vez de capital próprio
(Marx, 2014, p. 360).
Nesse sentido, é notável que esse seja um dos entraves centrais da produção capitalista
dos objetos imobiliários. No caso da moradia, isso se apresenta não apenas na esfera da
produção, mas, em especial, da comercialização. Isto porque para o capital se reproduzir no
segmento residencial, as moradias produzidas devem ser vendidas, de modo que este receba seu
investimento inicial realizado, acrescido de lucros e possíveis sobrelucros, para que possa
aplicar em um novo processo produtivo, se reproduzindo de forma ampliada. Mas, como
sabemos, a moradia é um bem caro de se acessar, tornando necessário o desenvolvimento de
crédito imobiliário e financiamento de longo prazo para que uma parcela maior da população
possa acessar esse bem e, ao mesmo tempo, desenvolver o capital nesse setor. No caso do Brasil,
essa preocupação se deu de forma mais clara especialmente a partir do Banco Nacional de
Habitação (BNH), na década de 1960.
Na produção habitacional, especificamente, o outro entrave central que aparece é o solo
urbano, como Ribeiro (1997) aponta. Não significa apenas a necessidade de disponibilização
de terra para a produção de moradias, mas sim, a disponibilização de solos urbanos que possuam
efeitos úteis de aglomeração, de modo que os promotores imobiliários possam se beneficiar de
tais efeitos nas suas estratégias de realização ao internalizar tais efeitos em seus
empreendimentos. Ou, de modo mais simples, que gerem um maior interesse por parte das
pessoas em comprar uma moradia desse empreendimento, considerando que seu valor de uso,
como já mencionado, comporta também o fato de permitir o acesso aos diversos valores de uso
das cidades. Aqui, como é possível inferir, surge uma das características centrais da produção
habitacional.
Ao contrário dos outros capitais, que utilizam a cidade enquanto marco do lucro, a
utilização dos efeitos úteis de aglomeração não gera benefícios diretos na produção da
mercadoria-moradia. Em outras palavras, em termos de produção, é indiferente se um
determinado edifício é construído em um terreno ou outro: a quantidade de trabalho e valores
Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
VALFRÉ, Lorenzo Gonçalves. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A MERCADORIA-MORADIA E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO
URBANO. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, nº 21, pp. 73-97, maio-agosto de 2023.
Submissão em: 10/02/2023. Aceito em: 19/06/2023.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons
86
de uso reprodutíveis necessárias se a mesma, a depender, é claro, das condições de
construtibilidade do terreno (Smolka, 1987; Ribeiro, 1997).
No entanto, o solo onde se implanta a moradia e as articulações entre valores de uso
simples que se estabelecem ao seu redor servirão como objeto de diferenciação dessa com
relação às demais, visto que contará também com valores de uso não-reprodutíveis. Se a terra,
por si só, é um elemento escasso, a moradia em conjunto com o solo urbano é ainda mais,
mesmo que consideremos, contraditoriamente, que é possível produzir moradias “em altura”.
Em resumo, a moradia possui um alto grau de diferenciação em função de sua
localização. Com efeito, cada terreno é singular com relação à sua posição no espaço urbano,
pois possui uma relação específica com a articulação não-reprodutível formada pelos valores
de uso simples da cidade. Não apenas isso: a moradia, por si só, também é altamente
diferenciada em suas propriedades construtivas ou físicas, como se infere a partir da síntese de
Bourdieu (2006) no início deste artigo.
Essa combinação, nesse sentido, gera moradias altamente singulares e pouco
reprodutíveis, que tem seu preço estabelecido não por suas condições de produção, no geral,
mas sim de circulação, embora isso depender dos diversos submercados e micromercados
que se estabelecem nesse segmento da produção imobiliária (Ribeiro, 1997) e também do
fato de que poucas são as empresas que atuam na produção capitalista da mercadoria-moradia
em cada um dos diversos segmentos, resultando em um mercado que Ribeiro (1997) caracteriza
como um “oligopólio em concorrência monopolista”.
A segmentação do mercado tornará possível a formação de preços de mercado
diferenciados, não determinados pela concorrência entre todos os produtores, que
cada um estará ofertando no mercado utilidades diferenciadas: aqui a “privacidade”,
o “verde”, acolá a “praia”, mais adianta um menor tempo de transporte, ou, por
outro lado, um endividamento menos pesado, mais compensador do ponto de vista
econômico ou mais adequado às perspectivas de rendimento futuro do comprador
(Ribeiro, 1997, p. 118).
Nesse sentido, a escassez que se estabelece na produção de moradias é também, em
grande medida, uma escassez social; criada largamente pelas estratégias de um agente
específico que surge para superar esses dois entraves mencionados, do financiamento e do bem
Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
VALFRÉ, Lorenzo Gonçalves. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A MERCADORIA-MORADIA E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO
URBANO. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, nº 21, pp. 73-97, maio-agosto de 2023.
Submissão em: 10/02/2023. Aceito em: 19/06/2023.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons
87
articulado solo urbano, e para fazer circular a mercadoria-moradia, transformando-a em capital
efetivamente: o incorporador imobiliário, que será tratado na próxima seção.
O capital incorporador e a mercadoria-moradia
A moradia é, necessariamente, produto de trabalho e um valor de uso. No entanto, isso
não significa que ela seja uma mercadoria. Para ser uma mercadoria, é necessário que o valor
de uso produzido seja destinado para o consumo de outrem (Marx, 2011) excluindo dessa
categoria as moradias que são produzidas para consumo próprio, seja através da autoconstrução,
seja através da produção por encomenda, por exemplo. Nesse último caso, ainda que exista uma
firma especializada contratada para a produção do empreendimento, essa está subordinada ao
agente promotor do empreendimento que, nesse caso, é quem vai consumir esse valor de uso.
Mas a moradia pode ser produzida para consumo próprio, como nesses últimos casos
mencionados, e, posteriormente, ser vendida a outra pessoa. A moradia, nesses casos, chega ao
mercado como “mercadoria”, mas seu agente promotor não a produziu com o objetivo de
valorizar um capital inicialmente. É apenas, então, com o desenvolvimento das formas de
crédito imobiliário e financiamento, com o desenvolvimento da produção do espaço urbano
tornando o solo cada vez mais escasso e a divisão social e simbólica do espaço (Ribeiro, 1997)
cada vez mais presente e dinâmica e com as alterações institucionais que permitem o
surgimento e atuação do incorporador imobiliário, que a moradia passa a, efetivamente, ser
produzida enquanto mercadoria-moradia e a circular como capital.
Smolka (1987) define o capital incorporador como: “aquele que desenvolve o espaço
geográfico organizando os investimentos privados no ambiente construído, em especial aqueles
destinados à produção de habitações” (Smolka, 1987, p. 47). Como sabemos, a realização de
um empreendimento habitacional requer uma série de serviços e elementos antes, durante e
após a produção: liberação de terreno, empréstimos financeiros, realização de projeto
arquitetônico e de engenharia, realização de estratégias de publicidade de venda, etc. O
incorporador, não sendo nenhum desses agentes em específico, seja proprietário fundiário,
capital produtivo ou financeiro embora, em muitos casos, exista a correlação —, é “[…]
aquela fração do capital que se valoriza pela articulação desses diversos serviços contratados.”
Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
VALFRÉ, Lorenzo Gonçalves. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A MERCADORIA-MORADIA E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO
URBANO. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, nº 21, pp. 73-97, maio-agosto de 2023.
Submissão em: 10/02/2023. Aceito em: 19/06/2023.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons
88
(Smolka, 1987, p. 47), ou então, “[...] poder-se-ia conceber tal capital como o que adquire o
terreno com a finalidade de valorizá-lo na alteração de seu uso, ou seja, capital que investe nas
bases em que rendas fundiárias são formadas” (Smolka, 1987, p. 47). Em suma, nas palavras
de Ribeiro (1997), o incorporador é “chefe da orquestra”, que adquire o terreno, o capital
produtivo e adota uma série de estratégias para efetivamente realizar o processo de circulação
da mercadoria-moradia, capturando lucros extraordinários.
O surgimento do incorporador, nesse sentido, representa o momento em que não apenas
a produção habitacional está largamente dissociada do consumo, mas também em que todas as
outras condições, em especial de solo e de financiamento, estão desenvolvidas ao ponto em que
se torna possível uma produção capitalista da moradia, cuja expressão é esse agente. Mas a
atuação desse agente é mais complexa: deve não apenas contar com essas condições
mencionadas, como também adotar uma série de estratégias e artifícios, como suas relações de
influência com o Estado e outros capitais, estratégias de marketing e publicidade, entre outros,
de modo que consiga efetivar esse processo e, sobretudo, criar sempre um produto singular e
pouco reprodutível. Uma escassez que, embora não necessariamente material, é social (Smolka,
1987; Ribeiro, 1997).
Uma determinada localização, já consolidada e socialmente valorizada, pode operar um
papel central nessas estratégias, mas entra apenas como um dos componentes. O incorporador
pode, em conjunto com outros capitais e com o apoio do Estado, avançar para áreas pouco
urbanizadas em um movimento de valorização conjunto, como foi o caso da produção em
direção à Barra da Tijuca a partir do final do século XX, no Rio de Janeiro, e assim criar novas
localizações valorizadas; pode retomar a produção de edificações nos centros das grandes
metrópoles a partir de relações com o Estado na busca de benefícios construtivos pela
reocupação dos centros históricos abandonados; pode ir para áreas distantes dos centros urbanos
(e desvalorizadas) e adotar uma retórica do medo e de vida de subúrbio norte-americano, longe
da violência e protegido por muros, etc.
São diversas, portanto, as formas de atuação e estratégias que esse agente pode tomar,
mas o objetivo permanece sempre o mesmo: criar as condições que tornem seus
empreendimentos socialmente valorizados e escassos, justificando o estabelecimento de um
Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
VALFRÉ, Lorenzo Gonçalves. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A MERCADORIA-MORADIA E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO
URBANO. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, nº 21, pp. 73-97, maio-agosto de 2023.
Submissão em: 10/02/2023. Aceito em: 19/06/2023.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons
89
preço de monopólio, no sentido de que, através da alteração do uso do solo, consiga não apenas
um lucro produtivo, mas especialmente um sobrelucro de localização, em função de existir
parcela da população disposta a comprar seus empreendimentos pelos preços que são
oferecidos. Não é mais apenas uma fração de terra mais ou menos valorizada, mas sim parte de
um produto singular que o edifício e suas estratégias ajudaram a criar.
Não é, então, apenas a “localização geográfica” o fator central do estabelecimento do
preço de monopólio dos empreendimentos em que a maior parte dos incorporadores realizam.
Na verdade, em muitos casos pode-se argumentar que não existe um preço de monopólio, e o
preço se configura puramente a partir das condições de produção, como no caso do chamado
“submercado normal” (Ribeiro, 1997), no qual geralmente atuam grandes incorporadoras no
Brasil, seguindo as diretrizes da política habitacional e, nesses casos, busca-se uma mais-
valia extraordinária especialmente a partir de melhoramentos no próprio processo produtivo,
que geralmente se em grande escala e tendo o incorporador e o capital produtivo como
mesmo agente.
Mas é sim, o conjunto do solo e do edifício realizado visto que a particularidade da
produção da mercadoria-moradia é que ela é produzida e consumida em um mesmo local
(RIBEIRO, 1997), ao contrário dos exemplos de Marx utilizados para explicar o preço e a renda
de monopólio, nos quais as mercadorias são produzidas em determinada terra com propriedades
muito particulares, e tais mercadorias são depois consumidas de forma dissociada da terra ,
nos levando a crer que o que o lucro extra que o incorporador obtém com a realização dos seus
empreendimentos pode ser tanto uma renda diferencial quanto uma renda de monopólio.
Queremos dizer com isso que o próprio potencial de diferenciação da moradia já é, por
si só, uma das questões centrais nessa precificação, e que sua localização, embora naturalmente
não reprodutível, não opera necessariamente um papel central nessa precificação, em alguns
casos. Isso fica evidente quando observamos edifícios vizinhos, nos centros urbanos, onde em
função apenas das estratégias do incorporador, como através adoção de novas tipologias em
seus materiais de publicidade, possam obter preços superiores em relação ao outro. Em outras
palavras, embora o capital incorporador possa realizar empreendimentos habitacionais em
localizações socialmente valorizadas e, apenas em função da escassez e valorização social
Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
VALFRÉ, Lorenzo Gonçalves. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A MERCADORIA-MORADIA E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO
URBANO. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, nº 21, pp. 73-97, maio-agosto de 2023.
Submissão em: 10/02/2023. Aceito em: 19/06/2023.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons
90
inerente de tais localizações, estabelecer um preço de monopólio, em outros casos tais
localizações devem ser produzidas em sua totalidade.
Tais localizações podem, em alguns casos, ser tão geograficamente limitadas quanto
uma pequena fração de um bairro, ou, em casos extremos, de um único edifício ou conjunto de
residências como no caso dos condomínios fechados horizontalizados na periferia da Grande
Vitória ou os empreendimentos “autossuficientes” de studios e colivings nos centros das
metrópoles de São Paulo e Rio de Janeiro. Nesses casos, é notável que a própria
heterogeneidade da mercadoria-moradia, suas extensas e diversas possibilidades de produção
em termos construtivos, em conjunto com as outras formas de atuação do capital incorporador
em especial suas estratégias de marketing, articulações e coalizões com o Estado e outras
frações do capital opera um papel central na criação de localizações socialmente escassas e,
consequentemente, na sua precificação monopolista, possibilitando ao capital incorporador
adquirir não apenas um lucro produtivo, mas sobretudo uma renda de monopólio, ou um
sobrelucro de localização (Topalov, 1979; Smolka, 1987; Ribeiro, 1997).
Isso nos leva a uma outra consideração sobre o capital incorporador e a mercadoria-
moradia que, embora já tenha sido pontualmente destacada ao longo do texto e seja passível de
ser subentendida, necessariamente deve ser enfatizada: o papel e a atuação do Estado no
processo de produção do espaço urbano e, mais especificamente, da moradia e da localização.
Acreditamos que os pontos de maior interesse para a presente discussão podem ser trabalhados
a partir dos mesmos dois entraves mencionados anteriormente, que aparecem na produção
imobiliária e são, em parte, superados pelo capital incorporador, ou seja, o entrave de
solvabilidade” e o “entrave fundiário” (Ribeiro, 1997).
No primeiro caso, como afirmamos na seção anterior, temos que a moradia é um bem
financeiramente caro tanto de se produzir quanto de se acessar, na medida em que se trata de
uma mercadoria que necessita de uma alta quantidade de trabalho e tempo para sua produção.
Souza (1994) sintetiza, nesse sentido, que “A natureza e longevidade do processo produtivo da
habitação sempre fez com que essa atividade seja, no Brasil, subsidiada pelo Estado” (Souza,
1994, p. 193). De fato, na medida em que “O capital se estende, durante muito tempo, sob a
forma de produto semiacabado” (Souza, 1994, p. 194), é notável que, como destaca Souza, o
Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
VALFRÉ, Lorenzo Gonçalves. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A MERCADORIA-MORADIA E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO
URBANO. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, nº 21, pp. 73-97, maio-agosto de 2023.
Submissão em: 10/02/2023. Aceito em: 19/06/2023.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons
91
Estado é historicamente responsável por viabilizar o processo de produção e circulação da
moradia, seja através da disponibilização de crédito imobiliário para o incorporador, seja
através de financiamentos de longo prazo para os compradores em especial a partir do BNH
e da criação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) na década de 1960. É o que
nos ajuda a compreender porque é por volta desse período que se observa uma intensificação e
efetivo deslanche da produção habitacional e consequente verticalização em cidades como São
Paulo (Souza, 1994), Grande Vitória (Campos Júnior, 2012) ou Rio de Janeiro (Ribeiro, 1997).
No segundo caso, a criação e liberação de novos solos urbanos, ou novas localizações,
se dá em grande parte em função da atuação do Estado enquanto principal produtor de valores
de uso para a cidade, em especial valores de uso coletivos, como sistemas infraestruturais e
outros bens de uso coletivo. A criação desses valores de uso se apresenta como um fator
essencial, na medida em que promove a valorização social e fundiária dessas novas
localizações, em última instância viabilizando o processo de captura de sobrelucros de
localização nos empreendimentos do capital incorporador, que internalizam tais valores de uso.
O mencionado avanço em direção à Barra da Tijuca na cidade do Rio de Janeiro, como
apontamos anteriormente, e a criação dessa nova localização enquanto lugar socialmente
escasso e valorizado, se efetivou em função do fato de que a atuação do capital incorporador
se deu em conjunto com a atuação do Estado, além de outros agentes como proprietários
fundiários e outros capitais que se valorizam no processo de acumulação urbana. Utilizando o
exemplo de Souza (1994) para o processo de verticalização em São Paulo como uma síntese, o
Estado “[...] não só libera o solo para a verticalização (lei de zoneamento e uso do solo) como
promove a sua valorização através da implementação de políticas públicas (infra-estrutura,
saneamento, comunicação, transporte etc.)” (SOUZA, 1994, p. 196).
De todo modo, a dinâmica da produção do espaço urbano pressupõe que a atuação do
incorporador seja eminentemente complexa e mutável, especialmente em função das
conjunturas econômicas em um determinado contexto, alterando as condições, em específico,
do acesso ao crédito e financiamento habitacional, ou então a própria renda da população, de
modo mais geral. Isso significa que, em alguns momentos, a atuação do incorporador possa ser
mais potencializada, e sua facilidade de reprodução ampliada seja maior, enquanto em outros
Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
VALFRÉ, Lorenzo Gonçalves. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A MERCADORIA-MORADIA E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO
URBANO. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, nº 21, pp. 73-97, maio-agosto de 2023.
Submissão em: 10/02/2023. Aceito em: 19/06/2023.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons
92
ele deva buscar estratégia mais robustas e complexas para efetivar esse processo, por vezes
adotando outras formas de acessar a moradia ou alterando seu público alvo como de
“moradores” para “investidores”, apenas para citar exemplo do que parece ocorrer em
metrópoles brasileiras, especialmente São Paulo e Rio de Janeiro, nos últimos anos.
Nesse sentido, é importante destacar por fim uma questão: mesmo com o
desenvolvimento de formas de financiamento, ainda existe uma considerável parcela da
população que não consegue acessar a moradia através da compra. Na verdade, anterior ao
desenvolvimento do crédito imobiliário, e especialmente no início do crescimento das
metrópoles brasileiras, grande parte do mercado habitacional era constituído pela chamada
“produção rentista”, o que se observa fortemente em São Paulo (Bonduki, 2011), Rio de Janeiro
(Ribeiro, 1997) ou Grande Vitória (Campos Junior, 2001), por exemplo, no final do século XIX
e início do século XX. A mercadoria-moradia, pois, tem a particularidade de ter seu valor de
uso também passível de ser consumido através do aluguel. Compreender a valorização da
mercadoria-moradia enquanto objeto de venda e aluguel é, portanto, essencial. Para
elaborarmos isso, retomemos a obra de Engels (2015) sobre a questão da moradia, em que o
autor define os componentes que fazem parte do cálculo da renda imobiliária.
O primeiro item que entra no cálculo é o custo de construção e manutenção da casa
ou da respectiva parte da casa; em segundo lugar, leva-se em conta o valor do terreno,
condicionado pela localização mais ou menos favorável da casa; o valor final é
determinado pela situação momentânea da relação entre oferta e procura (Engels,
2015, p. 42).
Indo mais além em sua argumentação, e contrapondo um seguidor de Proudhon, Engels
afirma que:
Em primeiro lugar, ele esquece que o aluguel da casa não tem de incluir os juros
referentes aos custos da construção da casa, mas também cobrir os consertos e o
montante médio de dívidas ruins, aluguéis não pagos, bem como os ocasionais
períodos em que a casa fica vazia {D4 acrescenta: “e, por fim, amortizar em parcelas
anuais o capital investido numa casa perecível, que com o passar do tempo torna-se
inabitável e sem valor”}. Em segundo lugar, ele esquece que o aluguel da moradia
tem de incluir também os juros referentes ao aumento de valor do terreno em que se
encontra a casa e, portanto, que uma parte dele consiste em renda fundiária (Engels,
2015, p. 43).
Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
VALFRÉ, Lorenzo Gonçalves. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A MERCADORIA-MORADIA E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO
URBANO. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, nº 21, pp. 73-97, maio-agosto de 2023.
Submissão em: 10/02/2023. Aceito em: 19/06/2023.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons
93
Temos, portanto, dois casos distintos da valorização do capital na produção de
moradias: no primeiro caso, da produção destinada à venda, o promotor do empreendimento
reúne e coordena os diversos fatores, recursos e agentes e produz mercadorias-moradias que
são vendidas à população, geralmente através de financiamentos de longo prazo. Nesse caso,
todo o processo produtivo foi realizado, ou seja, a transformação inicial de capital-dinheiro em
capital-mercadoria, e posteriormente a transformação do capital-mercadoria em capital-
dinheiro novamente, acrescidos de mais-valia. No entanto, como o incorporador teve o papel e
ação de transformar o uso do solo, também se realiza a renda fundiária, ou um lucro
extraordinário, principal objetivo do incorporador (Smolka, 1989). Com esse novo capital-
dinheiro, o incorporador prossegue em seu movimento de reprodução ampliada, e a mercadoria-
moradia circula efetivamente enquanto um capital-moradia.
No segundo caso, da produção destinada ao aluguel, temos, como Engels nos mostra,
um processo produtivo que, de certa forma, se interrompe no momento em que a moradia é
produzida. Seu agente promotor, no lugar de vender as moradias, as coloca para aluguel, e a
partir daí seu rendimento passa a ser uma renda imobiliária que corresponde aos juros sobre o
montante investido tanto para produzir quanto para realizar manutenções e outras ações
custosas referentes às moradias, quanto também o possível aumento do valor do terreno que,
como podemos inferir a partir do que foi escrito, somente se daria a partir da demanda
crescente do capital sobre a área onde tal moradia se localiza trata-se, pois, de uma espécie
de capital portador de juros com acréscimo de uma possível renda fundiária. Não se trata, então,
de uma criação efetiva de valor, mas sim a “[…] transferência de um valor existente,
previamente gerado, e a soma total dos valores possuídos em conjunto pelo locatário e pelo
locador permanece sempre a mesma” (Engels, 2015, p. 42). Nas considerações finais,
mencionaremos a importância dessa diferenciação, especialmente considerando o contexto
atual, além de apontar alguns desafios para futuras análises, especialmente concretas.
Desse modo, é notável que a produção da moradia envolve uma série de fatores e
agentes, e, mesmo quando a forma de produção capitalista, expressada pelo incorporador, se
torna presente e dominante, ela não exclui formas mais primitivas. Com efeito, e em especial
na periferia do capitalismo, a autoconstrução, por exemplo, ainda é uma marca altamente
Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
VALFRÉ, Lorenzo Gonçalves. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A MERCADORIA-MORADIA E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO
URBANO. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, nº 21, pp. 73-97, maio-agosto de 2023.
Submissão em: 10/02/2023. Aceito em: 19/06/2023.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons
94
presente em função da impossibilidade de grande parcela da população acessar a moradia
através do mercado formal ou através de políticas públicas habitacionais, ou então a produção
rentista informal, ou mesmo uma espécie de nova produção rentista que tem suas bases nos
crescentes processos de financeirização em escala global e de diminuição da renda da
população, também os impedindo de acessar a moradia através da compra. Concretamente, uma
série de agentes podem assumir a forma de um agente incorporador, ou simplesmente promotor
do empreendimento mesmo o próprio Estado, no caso de determinados segmentos das
políticas habitacionais no Brasil , e é quem vai assumir essa posição de compra do solo e
transformação do seu uso para realização da mercadoria-moradia, quem vai controlar o
processo de surgimento e captura (ou não) de lucros extraordinários nesse processo.
Considerações finais
Buscamos, neste artigo, expor algumas noções presentes na literatura acerca da
produção do espaço urbano e, mais especificamente, da produção habitacional, que acreditamos
ser de grande importância para a compreensão da estruturação das cidades. A revisão da
literatura nos permite afirmar que algumas premissas presentes em Marx, em especial aquelas
inseridas na teoria da renda da terra, permanecem altamente relevantes, sobretudo quando
consideramos os trabalhos que transpuseram tal teoria especificamente para o espaço urbano,
dentre as quais, no caso deste artigo, foi dado maior destaque para Topalov (1979) e Ribeiro
(1997).
Caracterizada enquanto objeto necessário à existência humana, indispensável à
reprodução da força de trabalho e essencial à valorização do capital imobiliário, a moradia é
um valor de uso eminentemente complexo em função de suas diversas dimensões, sejam
materiais ou simbólicas, e pelo fato de estar atrelada fisicamente ao espaço urbano. Por ser um
bem caro de se produzir e de se adquirir, foi necessário que se desenvolvessem formas
avançadas de crédito e financiamento habitacional para permitir o deslanche de sua produção
capitalista. Foi com o desenvolvimento desses e de outros fatores que surgiu o capital
incorporador, um dos agentes centrais, atualmente, da produção do espaço urbano e, em
especial, da produção habitacional.
Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
VALFRÉ, Lorenzo Gonçalves. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A MERCADORIA-MORADIA E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO
URBANO. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, nº 21, pp. 73-97, maio-agosto de 2023.
Submissão em: 10/02/2023. Aceito em: 19/06/2023.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons
95
Esse agente, não sendo necessariamente proprietário fundiário, capital produtivo ou
capital financeiro, altera a dinâmica da produção da moradia e do espaço urbano, que passa a
ser guiada largamente por seus artifícios e estratégias para, em última instância, capturar lucros
extraordinários nessa produção. A compreensão da atuação desse agente é cada vez mais
importante e necessita de estudos empíricos e teóricos atualizados, visto que essa não é
altamente mutável, em função dos diferentes contextos e conjunturas, como também interfere
diretamente em questões sensíveis à sociedade como o acesso à moradia e o direito à cidade,
bem como tem alto potencial de reproduzir problemas urbanos, embora não tenhamos nos
concentrado nesse aspecto na elaboração deste artigo. Em especial, deve-se levar em
consideração que a atuação do incorporador pressupõe, também, uma série de relações de poder
com o Estado, visto que esse opera um papel importante no processo de produção das cidades
e, consequentemente, de valorização do solo.
Destacamos, por fim, o fato de que a moradia é passível de ser acessada tanto através
da compra quanto do aluguel, representando movimentos distintos de valorização dos capitais
envolvidos em sua produção. A prioridade do acesso pela produção e utilização destinada à
compra e aluguel não é questão de mera intencionalidade do incorporador ou do usuário da
moradia, mas sim de transformações e conjunturas econômicas, políticas e sociais. Com efeito,
enquanto a produção rentista, como mencionado, marcou a produção habitacional no final do
século XIX e início do século XX nas metrópoles brasileiras, em função da baixa renda da
população, da pouca dinamicidade das cidades até então e da inexistência de mecanismos de
financiamento ou de acesso à casa própria nesse contexto, essa parece cada vez mais presente
nos dias de hoje, e a partir de um novo panorama: o da degradação da sociedade salarial (Castel,
1998), da crescente globalização, neoliberalização e financeirização nesse último caso, em
especial do setor imobiliário , além de outros fatores.
Podemos, talvez, afirmar a existência de uma espécie de “nova produção rentista” a
nível global e, mais especificamente, em metrópoles da América Latina que, ao que nos parece,
é possível em função da magnitude do capital financeiro internacional e seus movimentos
de valorização e expansão em escala global. É o que se observa de forma extensiva, por
exemplo, em metrópoles como Santiago do Chile, com os chamados Multifamilys (ROLNIK et
Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
VALFRÉ, Lorenzo Gonçalves. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A MERCADORIA-MORADIA E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO
URBANO. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, nº 21, pp. 73-97, maio-agosto de 2023.
Submissão em: 10/02/2023. Aceito em: 19/06/2023.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons
96
al., 2021) edifícios inteiramente destinados ao aluguel e incorporados em grande parte por
agentes do capital financeiro , ou então São Paulo e Rio de Janeiro, com as chamadas student
housings. Desse modo, acreditamos que é de fundamental importância que os trabalhos a
respeito da produção capitalista do espaço urbano e, em especial, da moradia, devam considerar
tanto essas duas dimensões do acesso à moradia, suas causas e raízes, quanto também os
diferentes agentes e condições que agem e influenciam na existência dessa produção.
Acreditamos que as considerações teóricas aqui expostas podem servir como subsídios nessa
direção.
Referências
BONDUKI, N. Origens da habitação social no Brasil. São Paulo: Estação Liberdade, 2017.
BOURDIEU, P. As estruturas sociais da economia. Porto: Campos das Letras, 2006.
CAMPOS JÚNIOR, C. T. A construção da cidade: formas de produção imobiliária em
Vitória. Vitória: Florecultura, 2012.
CASTEL, R. O fim do trabalho: um mito desmobilizador. Cepat Informa, Curitiba, n. 44, s/p,
1998.
CASTELLS, M. A questão urbana. São Paulo: Paz & Terra, 2020.
DE SOUZA, M. A. A. A identidade da metrópole. São Paulo: Hucitec, 1994
ENGELS, F. Sobre a questão da moradia. São Paulo: Boitempo, 2015.
ENGELS, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008.
MARX, K. O Capital: crítica da economia política (Livro I). São Paulo: Boitempo, 2011.
MARX, K. O Capital: crítica da economia política (Livro II). São Paulo: Boitempo, 2014.
MARX, K. O Capital: crítica da economia política (Livro III). São Paulo: Boitempo, 2017.
SMOLKA, M. O capital incorporador e seus movimentos de valorização. Cadernos PUR-
UFRJ, Rio de Janeiro, n.1, p.41-78, 1987. Disponível em: <
https://revistas.ufrj.br/index.php/ippur/issue/download/260/67>. Acesso em: 7 fev. 2023.
Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
VALFRÉ, Lorenzo Gonçalves. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A MERCADORIA-MORADIA E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO
URBANO. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, nº 21, pp. 73-97, maio-agosto de 2023.
Submissão em: 10/02/2023. Aceito em: 19/06/2023.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons
97
POLANYI, K. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus,
1980.
RIBEIRO, L. C. Q. Dos cortiços aos condomínios fechados: as formas de produção da
moradia na cidade do Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1997. Disponível
em <https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/wp-content/uploads/2020/07/Livro-Dos-
Corti%C3%A7os-aos-Condom%C3%ADnos-Fechados_2edicao.pdf>. Acesso em: 7 fev.
2023.
ROLNIK, R.; GUERREIRO, I. de A.; MARÍN-TORO, A. El arriendo -formal e informal- como
nueva frontera de la financiarización de la vivienda en América Latina. Revista INVI, [S. l.],
v. 36, n. 103, p. 1953, 2021. Disponível em:
<https://revistainvi.uchile.cl/index.php/INVI/article/view/63623>. Acesso em: 24 feb. 2023.
SINGER, P. O uso do solo urbano na economia capitalista. Boletim Paulista de Geografia,
São Paulo, n.57, p. 77-92, 2017. Disponível em <https://publicacoes.agb.org.br/boletim-
paulista/article/view/1044/932>. Acesso em: 7 fev. 2023.
TOPALOV, C. La urbanización capitalista. México: Editorial Edicol, 1979.
VETTER, D.; MASSENA, R. Quem se apropria dos benefícios líquidos dos investimentos do
Estado em infra-estrutura? Uma teoria de causação circular. In: MACHADO DA SILVA, L. A.
(Org.). Solo Urbano. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1981. p. 49-77.