Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
ABREU, Edson de Jesus. Notas sobre a escrita científica e a literatura. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, 21, pp. 43-57, maio-
agosto de 2023.
Submissão em: 08/03/2023. Aceito em: 13/06/2023.
ISSN: 2316-8544
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SEÇÃO ARTIGOS
NOTAS SOBRE A ESCRITA CIENTÍFICA E A LITERATURA.
NOTES ON SCIENTIFIC WRITING AND LITERATURE.
APUNTES SOBRE ESCRITURA CIENTIFICA Y LITERATURA.
Edson de Jesus Abreu1
Universidade Federal da Bahia (UFBA),
Bahia, Brasil
e-mail: edsonabreu11@gmail.com
Resumo
Este artigo tem por objetivo discutir as possíveis relações entre técnicas de escrita literária e a escrita científica,
considerando os possíveis benefícios que um estilo mais “literário” poderia ter nos trabalhos científicos. Para isso,
em um primeiro momento, realizou-se uma discussão sobre a relação entre forma e conteúdo e sobre como os
diferentes modos de ver esta relação resultam em diferentes maneiras de escrever. Em um segundo momento,
foram discutidas diferentes técnicas e abordagens utilizadas por escritores para tornar seus textos mais adequados
àquilo que querem dizer, explorando elementos como o estilo e os efeitos, a narração e a brevidade. Busca-se
demonstrar, durante o percurso, a necessidade de um enfoque maior no processo do escrever científico por parte
dos cientistas.
Palavras-chave
Escrita; Literatura; Ciência.
1
Licenciado em Geografia (UFBA); Bacharelando em Geografia (UFBA).
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agosto de 2023.
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Abstract
This article aims to discuss the possible relations between literary writing techniques and scientific writing,
considering the possible gains that a more “literary” style may bring to scientific works. In order to do so, at first
a discussion was made on the relation between form and content and about how the different ways one sees this
relation affects this someone writing style. Later, the different techniques and approaches that writers use to make
their texts more accurate to what they want to say were discussed, exploring elements such as style and effect,
narration and brevity. It aims to demonstrate along the way, the necessity of a bigger focus by the scientists in the
process of scientific writing.
Keywords
Writing; Literature; Science.
Resumen
Este artículo tiene como objetivo discutir las posibles relaciones entre las técnicas de escritura literaria y la escritura
científica, considerando los posibles beneficios que un estilo más “literariopodría tener sobre las obras científicas.
Para ello, en un primer momento, se llevó a cabo una discusión sobre la relación entre forma y contenido y sobre
cómo las diferentes formas de ver esta relación dan como resultado diferentes formas de escribir. En un segundo
momento, se discutieron diferentes técnicas y enfoques que utilizan los escritores para adecuar sus textos a lo que
quieren decir, explorando elementos como el estilo y los efectos, la narración y la brevedad. Buscando demostrar,
en el camino, la necesidad de un mayor enfoque en el proceso de escritura científica por parte de los científicos.
Palabras clave
Escritura; Literatura; Ciencia.
Introdução
“A língua é, de modo inteiramente literal, o material do artista literário” (Wellek,
2003, p. 226). É com a língua que o escritor trabalha; o trabalho dele é investigá-la, passar
o dia a procurar em cada canto e a todo tempo a palavra mais adequada, a melhor frase e
o melhor parágrafo. Escrever bem é seu ofício, como fazê-lo compõe suas técnicas, e a
ciência pode ter muito a ganhar com a adoção de algumas delas. Explorar algumas dessas
possibilidades de intersecção entre escrita literária e científica é o objetivo deste artigo.
A escrita científica não perderia seu rigor, como alguns poderiam supor, ao se tornar mais
literária; para Eric Dardel (2015), perder-se-ia clareza, sim, mas se ganharia em
intensidade expressiva.
Os cientistas também trabalham com a língua, mas o fazem de modo diferente;
essa diferença vem das concepções acerca da natureza da linguagem criadas pelas práticas
dos dois grupos. Para os cientistas, a língua é, muitas vezes, apenas um meio de comunicar
os resultados de uma investigação sobre um objeto qualquer; para os escritores, ela é o
próprio objeto investigado.
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Sobre as ciências exatas
2
e o senso comum, diz Merleau-Ponty (1974), reina a
convicção de que “Exprimir, não passa então de substituir uma percepção ou uma ideia
por um sinal convencionado que anuncia, evoca ou abriga.” (Merleau-Ponty, 1974, p. 19).
Nesta concepção, o sinal a palavra seria um veículo, uma forma vazia e
subordinada, a serviço do significado o sentido. A linguagem seria apenas um modo
de comunicar algo presente no pensamento. Como que separados, caberia à língua
aguardar que o pensamento lhe anime quando quer ser externado.
A língua, contudo, não é um simples somatório de palavras aguardando o
momento em que possam ser úteis, mas um sistema de expressão e de pensamento. O
gênero das palavras ou sua ausência, a existência de um ou mais modos de negação e a
existência ou não do infinitivo em uma ngua não são apenas modos diferentes de
expressar uma mesma ideia, são modos diferentes de pensá-la. Não existe uma mesma
ideia universal de negação, por exemplo, que apenas tomaria uma forma diferente a
depender da língua de quem exprime, pensa-se uma negação de modo diferente a
depender de cada língua; os pensamentos não existem independentes de sua forma e
ocorrem, eles mesmos, sempre misturados de linguagem. A linguagem não está a serviço
da significação, ela é, também, significação (Merleau-Ponty, 1974).
As palavras e o sentido, o sinal e o significado, a forma e o conteúdo, formam um
par indissociável, um não pode ser destacado do outro sem ser totalmente esvaziado, e
esta ideia de indissociabilidade é o que se entende aqui como a concepção de linguagem
dos escritores
3
.
Escrever como escreve a maioria dos cientistas, ignorando a relação forma-
conteúdo ou privilegiando o conteúdo sobre a forma, não fará com que um texto se torne
2
Pode-se facilmente expandir essa noção para as outras ciências.
3
A ideia de uma única concepção dos escritores é meramente didática para os fins desse texto. O que
Merleau-Ponty (1974, p. 100) chama de literatura do assunto conteúdo sobrepondo-se sobre forma ,
por exemplo, é, basicamente, o que se chamou aqui de concepção dos cientistas. Há também o formalismo
forma sobrepondo-se sobre o conteúdo que é outro modo de ver a relação forma-conteúdo, famoso
na literatura.
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incompreensível ou prejudicará o processo de pesquisa
4
, mas prejudicará o próprio
conteúdo que se deseja comunicar com a escrita, porque indissociável dessa forma que
fora negligenciada e mal feita, fora afetada por ela. Tornar a escrita mais literária não
seria, como pode-se pensar ao ouvir este tipo de proposta, simplesmente passar a
descrever as paisagens com mais adjetivos ou impressões subjetivas, ou as questões
sociais com arroubos de sentimentalismo
5
, mas adotar o modo de conceber e trabalhar
com a linguagem como parte de um par do qual não pode ser separada.
A própria ideia de trabalhar com a língua é, para muitos, estranha. No Brasil,
talvez, por culpa dos próprios artistas, para Carrero (2017), no que diz respeito à criação
literária, uma das falhas da escola brasileira é a crença excessiva no talento e na
inspiração. O trabalho literário exige disciplina e método, cada palavra e cada momento
devem ser trabalhados. Parece racional demais; e é, mas a racionalidade estaria no
trabalho, no ofício e na técnica, e não na capacidade inventiva e criadora do escritor. O
que seria este trabalho? Justamente a adequação da forma ao conteúdo, o que “não
significa uma apologia da forma, do estilo, em detrimento do conteúdo... O ‘bem feito’ e
‘bem escrito’ referem-se a um acordo consubstancial entre o que o romancista diz e o
modo empregado para dizer, desfeito o acordo em favor de um dos lados, a obra
desequilibra-se e falha” (Moisés, 2006, p. 240).
Em entrevista, o poeta português Gonçalo M. Tavares diz que a ideia clássica de
que a linguagem do cientista é exata e a do poeta é ambígua tem de ser combatida
(Tavares; Hissa, 2011, p. 129). Mesmo para alcançar a impressão de ser vago e impreciso,
lembra Calvino, o artista tem de ser extremamente preciso e meticuloso na composição
de cada imagem, na escolha de cada objeto, na atmosfera, na iluminação, etc. (Calvino,
1990).
4
Fala-se em “processo de pesquisa” no sentido de aplicação de método entrevistas, questionários,
pesquisa em campo, pesquisa em laboratório. Dificilmente essas etapas serão modificadas pela escrita. A
pesquisa como um todo, contudo, especialmente o desenvolvimento teórico e as conclusões, pode, sim,
sofrer mudanças drásticas, como se exemplificará na parte dedicada à narração.
5
Não sentimento, sentimentalismo: “É preciso lembrar que, quando falamos de sentimentalistas como
Richardson, Rousseau e Dostoiévski, queremos nos referir ao exagero não artístico de emoções familiares
a fim de provocar automaticamente a compaixão tradicional do leitor” (Nabokov 2021a, p. 145).
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O trabalho literário poderia ser resumido na seguinte frase: pensar, sobremaneira,
no que e em como se vai dizer. Parece simples transpor isso para a ciência; poderia se
encerrar aqui, mas por que desperdiçar o conhecimento acumulado daqueles que vêm
fazendo isso séculos? Guimarães Rosa escreveu 40 versões de Grande Sertão: Veredas
a quadragésima lhe foi tomada pelo editor (Tavares; Hissa, 2011) e Flaubert levou
cinco dias para redigir apenas uma das páginas de Madame Bovary (Nabokov, 2021b).
Os grandes artistas pensaram minuciosamente sobre cada detalhe de suas obras e no
processo deixaram suas reflexões sobre como as fizeram; nenhum professor de geografia
chega à primeira aula do primeiro semestre, diz: “pense sobre o espaço”, e sai para nunca
mais voltar. Não há motivos para se fazer o mesmo quando o assunto é a escrita.
Estilo e efeito
Geralmente se associa estilo a um bom e/ou famoso escritor. O estilo seria assim
o jeito particular daquele escritor de transmitir seu conteúdo.
Sim.
E não.
Estilo é forma. O bom estilo, o êxito do escritor, é a “felicidade da expressão
verbal, que em alguns casos pode realizar-se por meio de uma fulguração repentina, mas
que em regra geral implica numa paciente procura do mot juste da frase, em que todos os
elementos são insubstituíveis, do encontro de sons e conceitos que sejam os mais eficazes
e densos de significados” (Calvino, 1990, p. 63). Esses elementos são insubstituíveis
porque são, para aquele autor, a melhor forma a expressar o conteúdo que pretendem,
tornando-os tão indissociáveis que, paradoxalmente, parecem não ter autor e se criado
eles mesmos.
“Escritor não tem estilo. Quem tem estilo é personagem” (Carrero, 2017, p. 29).
Carrero não está sendo literal, obviamente o escritor tem estilo, sua voz narrativa
particular, mas o personagem também o tem, porque, sendo diferente do autor, vê e narra
o mundo de modo diferente dele. O autor é o criador, ele escolheu cada elemento do texto,
é seu modo de expressão, mas essa mesma criação demanda que ele se esconda. Em
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Madame Bovary, as metáforas são escritas de maneira diferente a depender do
personagem (Nabokov, 2021b). Metáforas são um dos modos que o narrador tem e
uma prerrogativa sua de comparar uma coisa, como um sentimento de um personagem,
com outra, mais próxima de si mesmo e do leitor; esse cuidado de Flaubert, para que as
metáforas fossem escritas como que pelos personagens, ainda que transformadas por seu
talento artístico, mostra, talvez, a maior diferença entre um bom estilo ficcional e o
“escrever bem” padrão.
O bom texto tradicional, “Aquele que vem, na maioria das vezes, dos franceses: a
palavra exata, corte de adjetivos, exatidão no ritmo, visibilidade, informação precisa,
enxuta. Corte radical de repetições, eliminação de assonâncias, caça aos hiatos.” (Carrero,
2017, p. 33) é o que se considera “escrever bem” na maioria das ciências. Muitos dos
textos escritos nesse padrão são bons; muito bons até, mas falta-lhes a precisão dos
escritores. A escrita se torna quase mecânica: “se o parágrafo está muito longo: quebre-
o”, “a palavra se repete: substitua-a por um sinônimo”, etc., as orientações do escrever
bem tradicional se tornam quase irrefletidas. o muitas regras, tantas ou mais que no
escrever ficcional, mas não se refletem verdadeiramente no texto. A uniformidade que
essas regras criam difere, e muito, do pensar cuidadoso do bom estilista sobre cada frase,
cada palavra, cada sinal de pontuação e seus efeitos.
Todo e qualquer elemento cria um efeito diferente no texto:
As conjunções “e”, por exemplo e as adversativas “mas”, “porém”,
“contudo”, “todavia” criam sinuosidade nas frases, fazem curvas,
movimentam. Não nasceram apenas para ligar, mas também para suavizar. A
sequência de pontos deixa o parágrafo pesado e as conjunções possibilitam a
leveza.
Mas é esse efeito que o escritor quer alcançar? (Carrero, 2017, p. 51).
Qual o efeito que o cientista quer alcançar?
Efeito, no escrever bem científico, não é muito discutido; fica em segundo plano
dando lugar à convenção, mas está lá em todo texto, e exemplos não faltam.
Às vezes, para seguir as regras da boa escrita tradicional, se evitam as conjunções
onde seriam necessárias. O “erepetido, por exemplo, é um crime. Nada como o seguinte
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trecho de Mrs. Dalloway: “... virando a cabeça para e para entre as íris e as rosas e
os ramalhetes inclinados de lilases...” (Woolf, 2017, p. 33). O olhar da personagem segue
rapidamente as flores, de uma à outra sem pausa. O movimento é dito com o “virando a
cabeça para e para cá”, e sentido com o uso das conjunções acordo consubstancial
entre forma e conteúdo.
Outras vezes se evitam os pontos, que são perfeitos para dar ênfase; e quando se
aliam os pontos às quebras de parágrafos, é possível conseguir a atenção total do leitor
para aquele trecho em particular, mas parágrafos muito irregulares não são bem vistos na
tradição, textos pesados também não.
Ironia talvez não seja o efeito mais adequado para se discutir nas ciências, mas o
trecho seguinte de Graciliano Ramos é um perfeito exemplo do uso de pontos e parágrafos
para destacar algo e dar-lhe o efeito desejado:
“O doutor Eliseu Canton é um grande homem, é mesmo um homem muito grande,
pois acaba de fazer uma descoberta maravilhosa.
Muito original.” (Ramos, 1978, p. 23).
O primeiro parágrafo é permeado de ironia grande homem, homem muito
grande, descoberta maravilhosa uma escalada de falsos elogios que se tornam mais
exagerados à medida que avança o curto trecho. Mas se ainda restam dúvidas sobre as
verdadeiras intenções de Graciliano, elas são enterradas com o curto e simples “Muito
original.” que isolado da frase chama atenção para si ao mesmo tempo em que reforça o
conteúdo da frase anterior. Combinando os parágrafos, ficam os falsos elogios, mas a
ironia perde força: O doutor Eliseu Canton é um grande homem, é mesmo um homem
muito grande, pois acaba de fazer uma descoberta maravilhosa e muito original.
E o que ironizava Graciliano neste curto artigo de jornal de 1915? A invenção de
um remédio que retira as dores do parto. Graciliano parecia gostar muito do atualíssimo
Thomas Malthus e pouco da ideia de aumento populacional no país que seria, obviamente,
provocado caso os partos não doessem mais.
Maravilhoso.
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Narração
pessoa do singular, pessoa do singular, pessoa do plural. O debate entre
escrita científica e seus narradores geralmente se centra na questão de qual dessas pessoas
do discurso utilizar: eu, ele ou nós. O eu sendo o último a entrar na disputa depois da
sistematização das ciências. Quanto a isso, pouco a ser dito aqui que ainda não foi.
Estilo do autor, efeito, forma e conteúdo: cada texto pede algo diferente.
A etnóloga Jeanne Favret-Saada, analisando os trabalhos dos etnólogos sobre o
bocage francês, conhecido por suas práticas de feitiçaria, mostra como é tratada a palavra
nativa nesses trabalhos; ela é desqualificada, seus enunciados tratados como proposições
e a atividade simbólica é reduzida em emitir proposições falsas. Ela identifica um ponto
comum entre aquelas pesquisas: a desqualificação da palavra nativa e a promoção daquela
do etnógrafo (Favret-Saada, 2005). Em A Orgia Perpétua, Mario Vargas Llosa (2015),
analisando Madame Bovary, mostra que poucas vezes Flaubert se intromete em sua
narrativa e rouba a palavra de seus personagens, a maioria delas acidentais, como quando
ele assume as rédeas para fazer uma breve reclamação dos queijos produzidos naquela
região (Llosa, 2015). o dois modos diferentes de narração. Dois modos diferentes de
apresentar o outro.
O narrador científico é o que se chama de onisciente, o narrador tradicional da
literatura pré-flaubertiana: o narrador tudo sabe, tudo vê, e comanda a narrativa com mãos
de ferro. Ele é assim e deve -lo, porque o ponto de vista é sempre o do autor ou
impessoal, quando em 3ª pessoa. Não há como se ter o narrador oculto da ficção, onde “o
narrador simplesmente desaparece da cena narrada e passa a mostrar os eventos... Os
eventos deixam de ser narrados e passam a ser refletidos na consciência do personagem,
de modo que o leitor visualiza a realidade ficcional do ponto de vista de um personagem
do romance.” (Fonseca, apud Carrero, 2017, p. 30), porque não existem os diferentes
personagens para completar esse movimento. Sagredo, Salviati e Simplicio, dos diálogos
de Galileu, há muito não fazem uma aparição.
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Desde Flaubert, um movimento de dar maior voz aos personagens, mas o
narrador onisciente não desaparece com ele; alguns dos que vieram antes e depois de
Flaubert souberam dosar a mão, intrometer-se menos, mesmo com a liberdade irrestrita
dada por essa modalidade narrativa. Mas a falta de restrições pode gerar hábitos adversos,
especialmente quando o “outro” que apresentamos não é uma criação da mente de um
escritor.
A antropologia, ciência do outro por excelência, muito se dedica à questão de
como entrar em contato com alguém e garantir que o diálogo e as informações adquiridas
são verdadeiros. Do pioneiro “método etnográfico” de Malinowski, em 1922, à
observação participante, à empatia e ao se afetar de hoje, muito se pensou no durante,
pouco se fala sobre o depois; a escrita do outro é geralmente secundária ao contato nessas
propostas metodológicas.
A própria Favret-Saada negligencia a escrita em sua proposta de método: seu “se
afetar” é majoritariamente sobre o contato, nada impede que o cientista, por se sentir
afetado pelas mesmas forças que afetam os “nativos”, sinta-se autorizado a pôr suas
palavras sobre as deles. Quando se fala em escrita, como em Malinowski (1987) e
Oliveira (1996), o foco se na relação entre ela e a construção teórica, quando entram
no assunto “escrever o outro”, sempre frisam a importância que os dados da realidade
devem ter na construção do texto antropológico, mas não muito mais que isso.
Para Carrero, “Para chegar ao personagem, todavia, o autor iniciante precisa
conhecer a própria voz, a voz de narrador, a voz narrativa. Aos poucos e conscientemente,
vai cedendo lugar ao personagem e aos personagens.” (Carrero, 2017, p. 30-31). É isso o
que falta a muitos desses cientistas que não são capazes de apresentar o outro de forma
fiel. Sem saber o que é sua própria voz, confundem-na com a do outro, falam por eles
quando intencionavam falar com ou sobre eles.
Alguns bons literatos se esforçaram para transformar seus personagens inventados
em pessoas reais com seu próprio estilo e voz narrativa, alguns cientistas parecem se
esforçar em transformar pessoas reais em personagens, tomando suas vozes e
substituindo-as por suas próprias.
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É Pierre Bourdieu quem vai falar a primeira vez sobre autoridade científica:
definida, de maneira inseparável, como capacidade técnica e poder social; ou,
se quisermos, o monopólio da competência científica, compreendida enquanto
capacidade de falar e de agir legitimamente (isto é, de maneira autorizada e
com autoridade), que é socialmente outorgada a um agente determinado.
(Bordieu, 1983, p. 122-123).
A ciência tem poder de definir o científico do não científico, o verdadeiro do não
verdadeiro em suas determinadas áreas; a fala do cientista legitima e deslegitima
discursos, e seu poder de deslegitimação aumenta com frações populacionais de menor
poder social.
O problema principal aqui não é somente o erro científico, mas a força que este
erro tem ao se propagar e a dificuldade que suas vítimas têm de se defender. Voltando à
antropologia, a interpretação de outros povos como selvagens e incivilizados mudou
muito mais pela mudança do discurso antropológico em si do que pelas reações desses
povos a esse discurso; eles resistiram, sem dúvidas, mas passaram a ser ouvidos quando
os antropólogos se interessaram em ouvi-los, ou seja, quando seus discursos foram
autorizados por estes.
Apesar do foco dado à antropologia, a possibilidade de deslegitimação da voz do
pesquisado e sua substituição pela voz do pesquisador pode ocorrer em qualquer área
onde o contato com outra pessoa seja necessário
6
. Nas ciências sociais, por exemplo,
conceitos como ideologia, de Marx, racionalidade, de Weber, e intencionalidade, de
tantos outros, são conceitos úteis e válidos, mas perigosos porque, sob o risco de uma
simplificação exagerada, oferecem a possibilidade de revelar “o que está por trás” dos
discursos e atos de determinada entidade social; autorizam os cientistas a pôr os seus
discursos sobre os outros como se fossem os próprios discursos deles.
Pode-se até estar certo; contudo, muitas vezes ocorre apenas a criação de um
personagem; não consciência, não se lembra de que aquilo que se imputa ao outro é,
6
Não como saber o quão geral é esse problema, pode afetar a maioria ou apenas uma minoria dos
cientistas. Antropologia, história, sociologia, geografia, economia, são, diariamente, responsáveis por
pesquisas que envolvam o diálogo com o outro, mas são poucos que se propõem a uma investigação similar
à de Favret-Saada.
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na verdade, sua própria criação e fruto de sua análise. Sem essa consciência do real e do
fabricado, trabalha-se, à medida que avança a investigação, cada vez mais sobre as
próprias abstrações e conjecturas, sem perceber que é isto que está ocorrendo. Aumentam
as chances de erro, e as consequências que daí se seguem.
Brevidade
Ser breve, dizer muito com pouco, é o último dos temas deste artigo. Não que a
lentidão seja ruim, dizer muito com muito é inteiramente válido; pouco com muito é de
todo um crime para com o leitor; crime recorrente na ciência. Tavares, em uma crítica
que, se um tanto exagerada, não chega a ser infundada, diz que muitas vezes “publicam-
se, por exemplo, 40 páginas em que duas ou três delas que são interessantes. E não são
páginas concentradas ou contíguas: três ou quatro linhas numa página, depois mais
quatro linhas noutra, e assim por diante.” (Tavares; Hissa, 2011, p. 136), falta tempo para
refinar o texto, sintetizá-lo. A brevidade ou lentidão de um texto estão, muitas vezes,
relacionadas com a brevidade ou lentidão com a qual ele foi feito de modo inversamente
proporcional; quando se diz pouco com muito provavelmente se escreveu com pressa.
Muito do que se pode falar sobre brevidade foi dito sobre o estilo a procura do
insubstituível , mas difere pelo caráter estrutural da brevidade. Calvino, falando sobre
contos populares, afirma que neles “tudo que é nomeado tem função necessária no enredo.
A principal caraterística do conto popular é a economia de expressão: as peripécias mais
extraordinárias são relatadas levando em conta apenas o essencial” (Calvino, 1990, p. 52).
O “enredo”, a estrutura, o tom; o que vai permanecer, ser sintetizado ou eliminado
depende do todo. Uma frase pode estar escrita no mais perfeito estilo e condizer
exatamente à ideia que queria transmitir o autor, mas de nada serve se for uma divagação
mal conectada à ideia principal. Divagar, perder o fio de um relato e saltar entre assuntos
podem não ser males na literatura, mas o são nos artigos, ensaios e livros acadêmicos.
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Além do tempo de feitura, e dependentes dele, boas metáforas e boas símiles
podem ser fortes aliadas à causa da brevidade
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: seu poder de síntese é inigualável.
Metáforas e símiles são úteis, mas, deve-se reconhecer, são muito abstratas
se comparadas à definição habitual e precisa dos conceitos das ciências. Contudo, a
abstração não é sinônimo de má consciência científica, como sugere a acusação habitual,
ela desobstrui o espírito, o torna mais leve e mais dinâmico, afirma Bachelard (1996)
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;
essa leveza e dinamismo dão maior fluidez ao texto e permitem que mais elementos
operem no raciocínio ao mesmo tempo. Sem substituir as definições dos conceitos, viriam
depois, sintetizando-as e substituindo-as quando necessário.
Um exemplo é a símile utilizada por Milton Santos, da paisagem e espaço
como um palimpsesto, “isto é, o resultado de uma acumulação, na qual algumas
construções permanecem intactas ou modificadas, enquanto outras desaparecem para
ceder lugar a novas edificações” (Santos, 2013, p. 62) “onde mediante acumulações e
substituições, a ação de diferentes gerações se superpõe” (Santos, 2020, p. 104). Muito
foi dito na geografia acerca da relação entre o espaço e a ação do tempo, mas nada tão
simples e que sintetize tanto quanto o subutilizado pelo próprio Santos palimpsesto.
O palimpsesto não substitui toda a conceituação necessária para se chegar até ele, e a
sensação de ser vago que este parágrafo pode causar vem justamente disso: não se
compreende totalmente o quão forte é a capacidade de síntese de uma metáfora se não se
sabe o que ela sintetiza. Uma boa metáfora na ciência nunca viria sozinha, é um tipo de
comparação, afinal. Necessitam de uma coisa primeira a conceituação para serem
comparadas a uma segunda, mas que ao ser feita, tornaria a reexplicação obsoleta.
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As metáforas e as símiles são tipos de imagens utilizadas para a comparação que se confundem e se
misturam, sua diferença está, em resumo, num “como”; na símile, um objeto é como outro e na metáfora,
a comparação é integrada.
“O modelo do símile:
Entre a terra e o mar, o nevoeiro era como um véu...
O modelo da metáfora:
O véu do nevoeiro entre a terra e o mar” (Nabokov, 2021ª, p. 251-252).
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Porém, o próprio Bachelard é contrário ao uso de analogias e metáforas na ciência (Bachelard, 1996, p.
48). Sua definição de abstração é diferente da apresentada nesse texto, mas a afirmação continua válida a
ambos.
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
ABREU, Edson de Jesus. Notas sobre a escrita científica e a literatura. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, nº 21, pp. 43-
57, maio-agosto de 2023.
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Ao invés de, como habitual, reexplicar os conceitos ainda que de forma breve,
arrastando o texto e atrasando o contato entre eles, os conceitos, acompanhados de suas
metáforas, estariam prontos para uso; sem as linhas dedicadas à repetição, os elementos
importantes do texto se aproximariam. Adensa-se o conteúdo. Flui o pensamento.
Conclusão
Escritores de um lado, cientistas de outro. Esta foi a dicotomia estabelecida desde
o início deste artigo, dicotomia didática apenas: maus escritores existem aos baldes, e
cientistas que escrevem bem não são tão raros assim. Mas alguns dos grandes cientistas
não escreviam bem e continuam fundamentais: esta é a maior diferença entre os dois
grupos e o porquê de tantos cientistas privilegiarem o conteúdo: no fim, é ele que
importaria à ciência. Cortes, quando necessários, seriam feitos nas coisas acessórias
como a forma preservando o essencial. A importância desses conteúdos, apesar de
suas formas mal feitas, ajuda na mentalidade de que a forma não importaria tanto assim,
o que ignora o caráter de exceção do trabalho desses grandes autores e todo o aparato
complementar necessário para compreendê-los, como comentadores e simplificadores; na
falta destes, uma quantidade muito maior de tempo é despendida, se comparados a
cientistas de pensamento igualmente complexo, mas com um bom estilo.
É compreensível que tantos se satisfaçam com o escrever bem padrão; equilibrar
os parágrafos, cortar os adjetivos, são formulas mais fáceis de seguir do que pensar no
que pede cada parágrafo e cada frase dentro dele, cada ponto e vírgula. São muitas datas:
a publicação de um artigo, a entrega de um TCC, da dissertação, da tese e, às vezes, não
há tempo suficiente para uma revisão ou reformulação do texto, mas ela não deixa de ser
necessária.
Uma escrita mais clara, precisa, breve e acessível facilita a comunicação não
apenas entre os cientistas de uma mesma área, mas com os de outras áreas, entre
estudantes iniciantes e com os interessados num tema fora da comunidade acadêmica.
Alguns temas são complexos o suficiente sem que se imponham sobre eles a
necessidade de se decifrar um estilo ruim e opaco, que, muitas vezes, se orgulha de ser
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assim justamente pelas barreiras de entrada que cria e pelo aumento de autoridade daí
decorrente.
Além das vantagens na comunicação, o exemplo da narração mostra que a própria
pesquisa pode se beneficiar desse foco maior na escrita, fazendo da própria linguagem
uma ferramenta de investigação (Tavares; Hissa, 2011). Forma e conteúdo são
indissociáveis; pensar em um é pensar no outro, negligenciar a forma por querer
privilegiar o conteúdo é, no fim das contas, prejudicar os dois.
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