Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
DAVIM, David Emanuel Madeira; PAULA, Luiz Tiago de. A TERRA QUE HÁ EM NÓS: sambas sobre “ensaios” de uma procura.
Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, nº 21, pp. 14-X, maio-agosto de 2023.
Submissão em: 18/04/2023. Aceito em: 20/07/2023.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons 14
SEÇÃO ARTIGOS
A TERRA QUE HÁ EM NÓS:
sambas sobre “ensaios” de uma procura
THE EARTH THAT IS IN US:
sambas about “essays” of a search
LA TIERRA QUE ESTÁ EN NOSOTROS:
sambas sobre “ensayos” de una búsqueda
David Emanuel Madeira Davim1
Centro de Ciências e Tecnologia da Universidade
Estadual do Ceará (CCT UECE),
Ceará, Brasil
e-mail: david.davim@uece.br
Luiz Tiago de Paula2
Faculdade Sesi de Educação (Fasesp),
São Paulo, Brasil
e-mail: luiz.tiago@faculdadesesi.edu.br
Resumo
O que este escrito propõe são alguns passos, rumo a um querer-saber. Um saber que enlaça, em um único vôo,
artes, ciências e filosofias para, assim, tecer entendimentos sobre um tema em questão: a crise ambiental
contemporânea. Neste esforço interdisciplinar, a arte, em especial, o samba, nos alimenta de belíssimas imagens,
para então refletir sobre o desencontro e ruptura humano-natureza. Imagens estas gestadas na reunião poética de
artistas do samba. Ao nosso ver, de tal rompimento se releva o fundamento da crise em discussão. Aqui, algumas
interpretações das artes são apropriadas pelo pensamento ambiental, sendo o último amparado por reflexões
geográficas sobre a relação meio e sociedade. O ser humano perdeu a dimensão da terra que em si mesmo, a
partir do momento que se afastou e continua a se afastar da efetividade imanente. Paralelo a esse desterro, o
pensamento convencional confortou-se em bases transcendentais, forjadas pelo peso e autoridade do racionalismo.
Do otimismo racional fez-se o otimismo da técnica, edificada para submeter a natureza aos seus interesses. É sobre
esse caminho que trilhamos, no esforço de compreender e pensar a crise que precisa ser enfrentada em nosso
tempo.
Palavras-chave
Relação sociedade e natureza; Samba; Terra; Crise ambiental.
1
Doutor em Geografia pelo IG-Unicamp, professor adjunto do curso de Geografia da CCT-UECE Campos de
Itaperi, Fortaleza-CE.
2
Geógrafo e Mestre em Ciências Humanas e Sociais Aplicada pela FCA-Unicamp. Professor do Curso de
Ciências Humanas da Fasesp.
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DAVIM, David Emanuel Madeira; PAULA, Luiz Tiago de. A TERRA QUE HÁ EM NÓS: sambas sobre “ensaios” de uma procura.
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Abstract
What this writing proposes are some steps towards a specific knowledge. A knowledge that links, in a single flight,
arts, sciences and philosophies, in order to weave understandings on a topic in question, namely, the contemporary
environmental crisis. In this interdisciplinary effort, art, especially samba, feeds us with beautiful images, so that
we can reflect on the human-nature mismatch and rupture. These images were created in the poetic meeting of
samba artists. In our view, such a rupture reveals the foundation of the crisis under discussion. Here some
interpretations of the arts are appropriated by environmental thinking, the latter being supported by geographical
reflections on the relationship between environment and society. The human being has lost the dimension of the
earth that exists within himself, from the moment he moved away and continues to move away from immanent
effectiveness. Parallel to this banishment, conventional thinking took comfort in transcendental bases, forged by
the weight and authority of rationalism. From rational optimism became the optimism of technique, built to subject
nature to its interests. It is on this path that we have followed in the effort to understand and think about the crisis
that needs to be faced in our time.
Keywords
Society and nature relationship; Samba; Earth; Environmental crisis.
Resumen
Lo que propone este escrito son algunos pasos hacia un querer-saber. Un saber que vincula, en un solo vuelo, artes,
ciencias y filosofías, con el fin de tejer entendimientos sobre un tema en cuestión, a saber, la crisis ambiental
contemporánea. En este esfuerzo interdisciplinario, el arte, en especial la samba, nos alimenta con bellas imágenes,
para que reflexionemos sobre el desajuste y la ruptura humano-naturaleza. Estas imágenes fueron creadas en el
encuentro poético de artistas de samba. A nuestro juicio, tal ruptura revela el fundamento de la crisis en discusión.
Aquí algunas interpretaciones de las artes son apropiadas por el pensamiento ambiental, siendo este último
apoyado por reflexiones geográficas sobre la relación entre medio ambiente y sociedad. El ser humano ha perdido
la dimensión de la tierra que existe en mismo, desde el momento en que se alejó y se sigue alejando de la eficacia
inmanente. Paralelamente a este destierro, el pensamiento convencional se acomodó en bases trascendentales,
forjadas por el peso y la autoridad del racionalismo. Del optimismo racional se pasó al optimismo de la técnica,
construida para someter la naturaleza a sus intereses. Es en este camino que hemos seguido en el esfuerzo por
comprender y pensar la crisis que es necesario enfrentar en nuestro tiempo.
Palabras clave
Relación sociedad y naturaleza; Samba; Tierra; Crisis ambiental.
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“Quero assistir ao sol nascer
Ver as águas do rio correr
Ouvir os pássaros cantar
Eu quero nascer
Quero viver ...
Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir para não chorar
Se alguém por mim perguntar
Diga que eu só vou voltar
Quando eu me encontrar” ...
Antônio Candeia Filho (1976).
Apresentação
3
História curiosa a do samba
4
. Música inventada por negros e mestiços pobres de
cortiços, subúrbios e favelas, ex-escravizados que se urbanizaram no período pós-abolição.
Símbolo de resistência dos batuques africanos em terras de senhores de descendência lusa. De
arte perseguida converte-se, misteriosamente, na expressão maior da cultura de um país
dissimuladamente racista e profundamente desigual (Sodré, 1998; Vianna, 2002). Ritmo,
melodia e poesia de samba conquistaram quase todos, naturais (brancos ou pretos) ou visitantes
de nossas terras brasileiras. Para Sodré (1998), o samba virou mercadoria de alto valor
3
Escrevemos este texto como uma singela homenagem ao professor João Baptista Ferreira de Mello que, apesar
da pouca convivência que tivemos, em eventos sobre Geografia Humanista no Grupo de Pesquisa Geografia
Humanista e Cultural (GHUM), nos influenciou duplamente a pensar esse escrito. Primeiro, quanto ao estético-
filosófico, pois abriu possibilidade à reflexão do lugar através da arte-samba; e, segundo, de modo interdisciplinar
e analítico, pois colocou o “lugar” como categoria espacial e, ao mesmo tempo, ontológica, com seus trabalhos
pioneiros, onde afirmou incessantemente ao parafrasear Pocock: “os lugares devem ser considerados como pessoas
e pessoas como lugares.” (Pocock apud Mello, 1991, p. 32)
4
Nascido não se sabe onde, se na Bahia ou no Rio de Janeiro. O mais certo é que surgiu na passagem do século
XIX para o XX, em forma de ranchos de ensaio (em casa de batuqueiros pretos e “tias baianas”) e cordões de festa
de rua, expressando um estilo desdobrado pela síntese de diversos ritmos, como modinha, lundu, maxixe e choro
(Sodré, 1998; Vianna, 2002).
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agregado, mais uma a ser explorada pelos homens de negócios, tomando mais uma vez o
homem e a mulher negra como capital
5
produtivo e criativo.
Muitos querem ver e ouvir o samba acontecer, preencher os carnavais e ter os seus
corpos e sentidos invadidos pelo feitiço de sua síncopa (Mello, 1991; 2008; Sodré, 1998). O
estilo não se fez somente atraente e sedutor, como também conciliador e agregador
6
de cores,
culturas e classes. Como nos apontou Dozena (2007; 2008), o samba é expressividade de vida
em comunhão, que produz lugares de encontro, partilha, memória, de culto às ancestralidades
e afirmação de identidades. O samba se faz também território animado por dinâmicas
socioespaciais que demarcam resistência, redes de solidariedade, relações de parentesco,
apropriação e uso dos espaços de direito para as comunidades envolvidas (Dozena, 2009).
Gilberto Freyre apostava em uma inspiração autêntica de sua ideia de brasilidade
(Vianna, 2002). O samba unia-se ao Carnaval e parecia cumprir sina semelhante à festa,
momento de livre inversão de papéis, em que as disparidades e conflitos de nossa sociedade
concedem uma breve trégua
7
, da sexta até a Quarta-Feira de Cinzas (Damatta, 1997).
A magia dessa fusão carnavalesca foi tamanha que convenceu até brancos ricos e de
classe média a se tornarem bambas de ternos de linho e pianos de cauda (“sambistas de calçada”,
salões e teatros). Enfeitiçados pelos batuques, poetas e compositores de calçadas (cidade,
asfalto e até de embaixada) subiram o morro para ouvir a vida dura e pobre cantar seus lamentos
e alegrias (Diniz, 2012; Mello, 1991).
Para muitos destes brancos poetas, faltava a grande lição inspiradora, a saber: de que
o samba floresce com mais vigor e sentido quando sua semente germina da vida como esta de
fato é. Como sugere Dozena (2007; 2008; 2009), o samba traduz a vida coletiva do bairro
periférico, pois trata-se de uma crônica cantada sobre o cotidiano. Para fazer um samba é
5
No capitalismo o samba deixa de ser criação coletiva para tornar-se inspiração de um gênio individual. Mera
ilusão se pensarmos que a reunião é a natureza do próprio samba, sendo o sambista um mero intérprete de uma
vida comungada (Sodré, 1998).
6
No Rio de Janeiro dos anos 20 já eram comuns as “noites de violão” no bairro da Lapa, reunindo na mesma mesa
sambistas de morro, maestros eruditos, políticos, burgueses e intelectuais do Brasil e do mundo (Vianna, 2002).
7
Condição essa bem representada pelas imagens contidas na música “A Felicidade” (1958), escrita por Vinicius
de Moraes e musicada por Antônio Carlos Jobim como trilha sonora de Orfeu Negro (filme dirigido por Marcel
Camus: “[...] A felicidade do pobre parece; a grande ilusão do carnaval; A gente trabalha o ano inteiro; por um
momento de sonho: pra fazer a fantasia; de rei ou de pirata ou jardineira; e tudo se acabar na quarta-feira [...]”.
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preciso tornar mais belas não as alegrias, como também aos dramas e tristezas de uma
realidade compartilhada e vivida em primeira pessoa. Para tornar-se sambista era preciso provar
da vida de bamba, de boêmio dos cabarés da cidade, de malandro a trapacear com a polícia, de
trabalhador pobre, de explorado e de morador de barraco. O que seria de Noel Rosa, Jobim,
Vinícius de Moraes, Benito de Paula, João Nogueira e Chico Buarque (por exemplo), sem as
lições da vida de morro protagonizadas por Donga, Sinhô, Carlos Cachaça, Cartola,
Pixinguinha, Nelson Cavaquinho e Candeia (entre tantos outros)?
Cabe destacar o último nome citado na lista acima: Antônio Candeia Filho
8
(1935-
1978), um dos maiores sambistas da Portela. O samba-canção que abre esse escrito, “Preciso
me encontrar”
9
, expressa bem uma virada artística de Candeia (Diniz, 2012). Para os que tentam
decifrar o sentido de seus versos e refrão, um consenso parece dominar as interpretações: trata-
se de uma música que sinaliza o esforço de quem precisa reencontrar o sentido de si mesmo,
que busca uma identidade perdida ou uma nova identidade.
Mas o que pouco se destaca nas decifrações, até o momento, é a presença de alguns
elementos naturais: o nascer do sol, o correr das águas dos rios e o cantar dos pássaros. Qual o
papel de tais elementos naturais nesta música de Candeia? O que o sambista queria expressar
ao destacar tais elementos? Como a figura da natureza conversa com esse interesse humano de
buscar outros sentidos para si mesmo ou de um novo modo de ser?
Nunca saberemos ao certo, considerando o perspectivismo de exegeses que a arte
sugere, não ao próprio artista que a cria, como para as distintas testemunhas que a
contemplam. Se nos cabe uma liberdade interpretativa, Candeia parece insinuar nessa música
um profundo momento de desencantamento com a dimensão do mundo cotidiano, urbano,
marcado pelos compromissos, problemas, conflitos, desapontamentos, negócios, eventos e
8
Nascido no bairro de Osvaldo Cruz, zona norte do Rio de Janeiro. Era poeta, ativista negro, tocava cavaquinho e
violão, adepto do candomblé e exímio capoeirista. Apesar da sensibilidade para a música, tinha um temperamento
difícil, agressivo e que se fez consumado plenamente (em sua violência) ao entrar para a polícia civil do Rio de
Janeiro. Teve a vida transformada após ser baleado em uma discussão de trânsito. O mestre do partido-alto ficou
paraplégico e destinado a viver sobre uma cadeira de rodas. Após o drama, sua vida e samba encarnaram um
espírito sentimental e reflexivo sobre a própria existência (Diniz, 2012).
9
A canção, imortalizada por Cartola em seu segundo disco (lançado em 1976), foi feita por demanda de um
escritor, jornalista e produtor musical (cearense) chamado Juarez Barroso (1934-1976) que, no contexto, sofria de
uma crise existencial de tom aproximado a do poeta da Portela.
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obrigatoriedades sociais. Um tipo de desejo de fuga ou ausência que não toleraria sequer o
respiro de uma festividade ou boemia. Um querer-ser-ausente muito distinto da altiva “Diz que
fui por aí
10
” (1973) de seu colega de profissão, Zé Kéti (1921-1999).
Fica claro que, na fuga para encontrar a si mesmo, Candeia se afasta das multidões,
escolhendo a companhia da natureza em sua imagem mais corriqueira e bucólica: o nascer do
sol, o rio que flui e o pássaro que canta. Talvez o contexto dos anos 1970 fosse cedo demais
para que Candeia tivesse em mente alguma preocupação ambiental, apesar de as discussões
sobre o risco de catástrofe nuclear e de a reunião de Estocolmo (1972) terem ganhado
repercussão no mundo todo.
Outra hipótese para desvendar sua escolha seria a narrativa de uma trajetória
existencial e geográfica vinculada ao drama vivido por um “negro carioca, aleijado e de
periferia”. Cabe lembrar que o Rio de Janeiro é uma cidade que reorganizou seu núcleo urbano
durante a década de 20 do século XX, mediante as reformas de Pereira Passos. Tal
modernização acabou expulsando sua gente pobre e negra dos cortiços (no centro) para os
morros adjacentes e subúrbios da zona norte (Azevedo, 2003). Essa seria uma possível
transumância de Candeia, a saber, um vai e vem, marcado entre uma exaustiva e conflituosa
vida urbana, no adensado centro e zona sul carioca, para uma libertação e aconchego em um
subúrbio periurbano de Osvaldo Cruz
11
dos anos 40, 50 e 60.
Talvez, o reencontro de Candeia consigo fosse um retorno a antiga Osvaldo Cruz de
sua juventude, que expressava ares semi-rurais, onde ainda era possível ver o rio correr, o nascer
do sol e ouvir o canto dos pássaros. Possivelmente o reencontro fosse a necessidade de
permanência no lugar de identidade, onde o samba acontece como pratica social e para o qual
os versos fazem alusão (Dozena, 2009). Quem saberia?
Tentando trilhar no caminho do simples, desviando das conjecturas mais elaboradas,
Candeia em seu “Preciso me encontrar” apenas nos sugere a imagem de um homem que, em
10
Se alguém perguntar por mim. Diz que fui por aí. Levando um violão debaixo do braço. Em qualquer esquina,
eu paro. Em qualquer botequim, eu entro. E se houver motivo é mais um samba que eu faço. Se quiseres saber se
eu volto, diga que sim. Mas só depois que a saudade se afastar de mim...” (Zé Kéti, 1973).
11
Bairro afastado, que se gasta quase uma hora de trem (partindo da Central do Brasil). Uma antiga fazenda de
escravos (Freguesia de Irajá), lugar marcado pela escassez de equipamentos públicos. Região precária em sua
infraestrutura urbana que, no tempo de Candeia, era tomada por “favela de planície” (ABREU, 2006).
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situação extraordinária, se despede de alguém para ficar sozinho e contemplar a natureza, com
a esperança de se reencontrar. depois desse reencontro, o poeta da Portela estaria seguro o
suficiente para retornar à sua normalidade.
Ousamos trazer para um primeiro esforço de reflexão ambiental
12
aquilo que
sinalizamos como a “alegoria da busca por si mesmo”, que se faz enunciada pelo exemplo do
samba-canção de Candeia. Trata-se de uma mobilização de abertura que, apesar de poética,
lírica e sucinta em palavras, traz consigo um pensamento fundamental, de múltiplas
possibilidades, que movimenta e sustentação a nossa proposta interpretativa. apontamos
que a humanidade, em seu projeto civilizatório, vem perpetuando (há décadas) uma crise
ambiental sem precedentes. Uma crise múltipla e complexa que traz não um colapso direto
na relação humano-natureza, como também do próprio conhecimento, da economia e das
relações sociais e políticas (Stengers, 2015).
As perspectivas basais de tal projeto civilizatório, antes esperançosas, otimistas de seus
atributos inventivos e técnicos, na contemporaneidade, dão sinais muito nítidos de esgotamento,
desencantamento, desencontro e desolação. Um desencontro intimamente estruturado sobre
bases transcendentes do saber racionalista, que afasta de si os infortúnios da vida como esta de
fato é: imanente, concreta, sensível, conflituosa, múltipla, terrível muitas vezes e penosa para a
maioria. Muito desta natureza visceral da vida-junto-à-terra
13
se faz presente na dimensão
poética, representada aqui pelo espírito criador do sambista.
No gênio do artista, a comunhão das diferenças que compõe o real se anuncia e se
revela ao modo da quadratura heideggeriana
14
. Para Heidegger (2002), o poeta seria um dos
mais privilegiados a testemunhar e cuidar dos acenos fundamentais da legitima existência, que
12
Não há nenhuma evidência de uma preocupação ambiental na obra do sambista, todavia a margem de manobra
de sua arte serve e pode ser adaptada a nossa intenção.
13
Utilizaremos o termo “terra” com letra inicial minúscula, por caráter conceitual: a terra envolve os sentidos
telúricos que fundam a relação homem-natureza (Dardel, 2011). Ela representa tanto a “Terra”, enquanto elemento
de um sistema planetário, quanto a “terra”, substrato corpóreo que conecta em uma existência, ser e espaço
(Heidegger, 1954).
14
“Unindo-se por si mesmo uns com os outros, céu e terra, mortais e imortais pertencem, em conjunto, à
simplicidade da quadratura de reunião. A seu modo, cada um dos quatro reflete e espelha de volta a vigência
essencial dos outros. [...] Este refletir e espelhar não é e nem consiste em expor o reflexo de uma reprodução.
Iluminando cada um dos quatro, o refletir e espelhar lhes apropria a própria vigência, na apropriação de uma
unidade recíproca” (Heidegger, 2010, p. 156-157).
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se anuncia como contextualidade múltipla e relacional. Tal reunião, neste caso, funde
diferenças em unidade, a exemplo do que se concebe como humano e natureza, tempo e espaço,
imanência e transcendência, pensamento e palavra. Falta ao conhecimento tamanha virtude e
sensibilidade que supera a relação sujeito-objeto tão recorrente na ciência positiva.
A crise ambiental é, segundo Heidegger (2002), sobretudo, ontológica. Sua filosofia é
conciliadora ao pensar a terra como algo “pacificado na liberdade de um pertencimento”
(Heidegger, 2002, p. 3). A terra seria, portanto, a fonte de todo gesto humano de sustentação:
A terra é o sustento de todo gesto de dedicação. A terra dá frutos ao florescer. A terra
concentra-se vasta nas pedras e nas águas, irrompe concentrada na flora e na fauna.
Dizendo terra, pensamos os outros três. Mas isso ainda não significa que se tenha
pensado a simplicidade dos quatro. O céu é o percurso em abóbadas do sol, o curso
em transformações da lua, o brilho peregrino das estrelas, as estações dos anos e suas
viradas, luz e crepúsculo do dia, escuridão e claridade da noite, a suavidade e o rigor
dos climas, rasgo de nuvens e profundidade azul do éter. Dizendo céu, pensamos
os outros três. Mas isso ainda não significa que se tenha pensado a simplicidade dos
quatro (Heidegger, 2004, p. 3).
A simplicidade dos “quatro”, ao que Heidegger se refere, é a quadratura que envolve
a terra, o céu, os deuses e os mortais. Poeticamente, essa quadratura pode ser representada como
uma moldura em que se expressa a máxima indissociabilidade (e por que não utopia?) entre
homem e espaço, ou homem e a terra. Ele reforça:
Quando se fala do homem e do espaço, entende-se que o homem está de um lado e o
espaço de outro. O espaço, porém, não é algo que se opõe ao homem. O espaço nem
é um objeto exterior e nem uma vivência interior. Não existem homens e, além deles,
espaço. Ao se dizer "um homem" e ao se pensar nessa palavra aquele que é no modo
humano, ou seja, que habita, já se pensa imediatamente no nome "homem" a demora,
na quadratura, junto às coisas (HEIDEGGER, 2002, p. 7).
A fenomenologia heideggeriana do “espaço” é essencialmente utópica e dialética. A
própria etimologia da palavra “utopiatraz consigo topos (do grego, lugar), uma vez que o
filósofo busca fundar o sentido telúrico do habitar a terra como a casa do homem e, ao
mesmo tempo a terra como um ente ameaçado pela inautenticidade da técnica e da racionalidade
positivista. Esta racionalidade tem, na modernidade, mediado a relação homem-natureza e
rompido com a quadratura que Heidegger propõe, causando uma profunda crise dos sentidos.
“Meu mundo caiu”: crise da razão e desprezo à terra
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“...Preste atenção,
O mundo é um moinho...
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a pó...”
Angenor Francisco dos Santos “Cartola”, 1976.
No modo de ser das sociedades contemporâneas (globalizadas), o arrojo técnico-
científico e informacional, já sinalizado por Santos
15
(2012), afastou e suprimiu cada vez mais
da nossa experiência aquilo que reconhecemos por primeira natureza. Há, inclusive, a hipótese
de que tal natureza sequer exista mais, considerando a plena complexidade do papel humano (e
sua técnica) na intervenção e alteração da ordem natural. O que haveria, na verdade, é uma
segunda natureza, essencialmente uma natureza humanizada marcada pela modificação e
significados que os humanos aferem a ela (Mello, 1993). Além do mais, a racionalidade
dominante na produção do conhecimento formal (filosófico e científico), convenceu esta
mesma sociedade (do otimismo técnico-racional), de que a efetividade percebida nos diz pouco
ou quase nada coerente sobre a ordem e o sentido do mundo das coisas. Dentre um dos
principais postulados dessa desconfiança sobre a sensibilidade, estão as críticas iniciais de
Immanuel Kant, que até o presente ainda são referências.
Para Kant (2013), a vertente da racionalidade (positiva), o conhecimento e o
esclarecimento são virtudes que ocorrem mediante um amparo decisivo de um pensamento
racional e abstrato. Nesta lógica, a dimensão empírica da experiência não diz muito por si
mesma, ou melhor, é embusteira por natureza, inconstante e imperfeita. Segundo as lições do
jovem Kant, cabe ao esforço da observação o amparo de um juízo e o lastro de um modelo
pensado de interpretação.
Apesar da primeira crítica kantiana não ter determinado toda a trajetória do
pensamento, as lições desta fase seminal orientaram toda uma tradição de pesquisa científica.
Para Kant (2013), o conhecimento, sobretudo o científico, deve se ater apenas ao brilho
empírico e buscar aproximações com a verdade, cabendo à metafísica pensar a dimensão do
15
Para Milton Santos (1988; 2012), no contexto do meio técnico-científico e informacional, edificado pelo poder
do capital, a natureza passa de amiga a elemento hostil. Esta foi “redescoberta” como um objeto entre demais que
compõe o espaço geográfico;seria outra natureza, sufocada por extensões técnicas, próteses e artificialidades que
a modelaram e ocultaram sua verdadeira face, convertendo-a em uma forma produtiva de valor, perversamente
explorada por um patrão (o homem).
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que não brilha, a coisa-em-si ou o ser. Porém, o juízo analítico a priori, que cabe no esforço
empírico, nunca foi o bastante (por si só) para sequer observar, estando a distância da plena
valorização das virtudes imanentes do ente interessado. A experiência, neste caso, exige um
lastro de razão formal, anterior aos juízos sintéticos.
O empírico (ou sensível) para Kant não tem autonomia e vida própria, que carece
antes de um juízo reflexionante (Vitte, 2007), que possibilita ao sujeito do conhecimento
destacar padrões sobre os fenômenos, apontar unidades em meio à multiplicidade caótica e, por
fim, estabelecer conceitos representativos e leis gerais sobre coisas e acontecimentos.
Por outro lado, Nietzsche (2009a), em sua crítica à tradição e ao cientificismo ao modo
de Kant, tratou o conhecimento convencional e positivista da contemporaneidade como uma
espécie de egipcismo que estabeleceu as bases da confusão oriunda da razão formal. Para
Nietzsche, o conhecimento colocou no princípio do ato investigativo aquilo que deveria vir no
fim (como resultado). Posto de outra forma, a razão positiva e objetiva colocou categorias e
conceitos estabelecidos (por empreendimentos investigativos anteriores) como princípio para
a pesquisa, determinando assim, grande parte dos resultados investigativos. Deste modo, toda
e qualquer inconsistência lógica, apanhada pela experiência direta sobre os fenômenos,
estaria censurada e excluída por esse hábito convencional da racionalidade triunfante. Por esse
ponto de vista, quaisquer relatos de experiência, seja em pesquisa formal ou mesmo em arte e
poesia, não passam de aparências desprovidas de qualquer valor de verdade.
Como contestar o olhar do poeta sobre o verdadeiro, sendo este testemunha direta de
sua concretude e existência? Para Mello (1991), todos são, de alguma forma, geógrafos
informais dos lugares onde vivem. Deste modo, para assegurar esta afirmação, poderíamos,
como exercício, colocar em paralelo a análise de Nelson Sargento, que na metrópole carioca e
ao longo dos domínios de mares de morros, (en)cantou “Encanto da Paisagem”.
“Morro és o encanto da paisagem
Suntuoso personagem
De rudimentar beleza
Morro, progresso lento e primário
És imponente no cenário
Inspiração da natureza
Na topografia da cidade
Com toda simplicidade
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
DAVIM, David Emanuel Madeira; PAULA, Luiz Tiago de. A TERRA QUE HÁ EM NÓS: sambas sobre “ensaios” de uma procura.
Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, nº 21, pp. 14-X, maio-agosto de 2023.
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ISSN: 2316-8544
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És chamado de elevação
Vielas, becos e buracos
Choupanas, tendinhas, barracos
Sem discriminação
Morro, pés descalços na ladeira
Lata d’água na cabeça
Vida rude alvissareira
Crianças sem futuro e sem escola
Se não der sorte na bola
Vai sofrer a vida inteira
Morro, o teu samba foi minado
Ficou tão sofisticado, já não é tradicional
Morro, és lindo quando o sol desponta
E as mazelas vão por conta do desajuste social.”
Nelson Mattos (1986).
Em seus trabalhos, Alessandro Dozena (2009) apresentou muito bem como o samba,
enquanto acontecimento socioespacial, assim como um lugar de encontros e reuniões, expressa
em suas atividades (sociais, culturais e políticas) a territorialidade e a vida cotidiana dos bairros
que abrigam uma espécie de irmandade de entorno comprometida com a manifestação artística
(a música). O que o geógrafo, porém não explorou tanto foi o conteúdo geográfico do discurso
contido no samba enquanto poesia. Ao nosso ver, a canção de Sargento é a anunciação de uma
geograficidade (Dardel, 2011) partilhada (intersubjetiva) sobre o lugar que abriga o samba,
neste caso especifico, o morro, a periferia, a realidade geográfica do bairro.
Husserl (2012), ao apontar a crise de fundamento nas ciências, professou leitura
próxima à de Nietzsche, ao afirmar que a trajetória do conhecimento científico moderno
deturpou os conceitos clássicos, fundados pela vivência e pensamentos gregos. Na perspectiva
do fenomenólogo, é preciso suspender tais conceitos e refundar os sentidos das coisas a partir
de um ato científico originário, atento ao mundo da vida.
Essa condenação sobre a coisa-em-si e a experiência imanente recai sobre o sentido de
natureza e, consequentemente, sobre a nossa ação devastadora sobre ela. Neste modo de pensar,
a máxima cartesiana (cogito ergo sum
16
) impera de modo decisivo sobre a interpretação da
natureza, sendo esta impossível de ser por ela mesma. A natureza termina por ser algo somente
a partir da consciência e intenção de outro ente, dotado de pensamento. Dito de outro modo, na
concepção das razões triunfantes, a natureza é, não por si mesma, mas a partir do humano e
16
Penso, logo sou.
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para os objetivos e projetos do mesmo. Um modo de ser dependente, indireto, hierarquicamente
submisso e que a reforça como mero objeto, à mercê de um sujeito superior. Não superada essa
relação de poder (ativo) e submissão (passiva) entre sujeito-objeto, estabelecida entre humano
e natureza, as crises ambientais perdurarão sem qualquer presságio de mudança.
Assim, propostas como a da fenomenologia (trazido para o campo do método, não só
filosófico, como também científico) tem muito a contribuir para uma virada na relação entre
humano e natureza. Em sua sentença mais famosa, “para as coisas e elas mesmas”, Husserl
(1990) nos a entender que a efetividade enquanto coisa-em-si cabe ser pensada com
consciência. Para Heidegger (2009b), em sua instigante ideia de dasein (ser-aí), essa concepção
aparece em nuance peculiar. O dasein não se refere somente ao esforço de um ente (humano)
privilegiado na tarefa de desencobrir a verdade do ser. O ser ou as essências das coisas e
fenômenos se doam ao ente interpretante.
Para Heidegger (2009a), a natureza é por ela mesma, autônoma em seu modo de ser.
Seu efetivar-se é diferente do humano, já que o último existe enquanto ente privilegiado para o
desvelamento da verdade. Na perspectiva do filósofo de “Ser e Tempo”, a natureza é o ente
subexistente, que não é capaz de desvelar a si mesmo, mas se doa ao desvelamento do intérprete,
assim como também se oculta, que é por si mesma, independente da ação e intenção humana.
Uma posição que nos revela caminhos um pouco além da abertura fenomenológica
(para o ser-em-si da natureza) é a filosofia de Nietzsche. Este praticamente transvalorou o modo
de pensar moderno ao afirmar que o humano não seria a coroa da criação, ou seja, um animal
superior diante de todas as outras coisas. Nietzsche (2011b) também diluiria a importância da
consciência, apontando esta como mais um instinto entre os tantos que habitam o humano. O
humano, ainda, seria o animal mais frágil da natureza, justamente por ter dedicado a sua
trajetória a fortalecer o instinto consciente da racionalidade (Nietzsche, 2011a).
O otimismo da razão afastou o humano daquilo que Nietzsche (2011b) considera a
virtude mais potente da natureza, a saber, a corporeidade e seus instintos mais viscerais. O corpo
é a “razão maior” de qualquer vivente, pois este é capaz de conhecer e pensar a partir dos
sintomas que lhe ocorrem, mediante sua imersão sensível em meio à multiplicidade caótica do
mundo efetivo, o cosmo e a terra. A super valorização da consciência (assim como da razão)
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enfraqueceram o humano, o apartaram do próprio corpo e da natureza, estabelecendo com esta
uma relação distanciada, lógica e burocrática.
A relação, portanto, entre corpo e natureza desembocou em um modo de conhecimento
sistemático e seletivo, que escolhe e destaca aquilo que é igual, permanente, que expressa
identidade e que se apresenta por padrões lógicos. Tudo que se manifesta pela inconsistência,
pela diferença e pela mudança, acaba sendo descartado, já que põe a perder a construção e a
longevidade de modelos, leis e categorias (Feyerabend, 2011).
Diante disso, para Nietzsche (2014), o corpo é o que nos faz constituinte da natureza.
O humano não é um ente privilegiado ou diferente por possuir a virtude do pensamento. Para o
filósofo, não é o “Eu” consciente do humano que pensa, exclusivamente. O pensamento é algo
que nos advêm. Trata-se de um afeto que nos invade, um estímulo que a natureza nos lança e
que o corpo (este sendo parte da natureza) apreende por meio de sintomas passíveis de
interpretação. Nesta leitura, o humano, não é considerado o animal racional por excelência e
sim o animal avaliador, que doa sentidos e valores às potências manifestadas pela afetividade
concreta, às vontades da terra. Essa imagem desenhada por Nietzsche, nos leva a conceber
humano e natureza como constituintes de um mesmo, uma unidade caracterizada pela
multiplicidade de entes em relação. Trata-se de um elo que a humanidade fez questão de perder.
Assim como nos sugere o samba de Candeia, a sociedade contemporânea parece ter
perdido de vista a condição autônoma da primeira natureza, a proximidade e o pertencimento
junto a ela; o seu nascer do Sol, o correr dos rios, o canto dos pássaros e os sintomas que tudo
isso oferece. Como visto, sua existência se faz mediada, quase que em absoluto, pela esfera
técnica, isto é, uma segunda natureza, produzida artificialmente e que é determinante sobre a
materialidade que a circunda. A técnica e seu desdobramento em tecnologia que pouco se
configurava enquanto apenas uma obra humana, ou como diria Heidegger (2009a), um ser-a-
mão, dependente do humano e a serviço deste passa a ditar o destino do próprio humano,
fazendo o criador dependente de sua própria criatura. Se a técnica penetra na natureza e
corrompe sua ordem original, a ponto de torná-la outra, alheia a si mesma, estamos diante de
uma efetividade híbrida técnico-natural que depende não das dinâmicas naturais, como do
gênio humano para concretizar-se. O cogito cartesiano, portanto, materializado na cnica,
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possibilita a existência da totalidade não só por um esforço de consciência, como também pela
práxis concreta que se dá pelo trabalho de homens e máquinas.
Esse otimismo racionalista e técnico, primeiro, convenceu o humano de que é uma
exceção diante da ordem natural, um ente privilegiado capaz de conhecer os segredos da
natureza, tendo plena consciência de tal conhecimento. O humano se superior aos demais
seres dominados por instinto, seguro de que pode mudar a natureza de acordo com suas
necessidades e entende essa possibilidade como direito natural irrevogável. Porém, mesmo
convencida de seu poder e superioridade, a humanidade se incapaz de resolver sérios
dilemas, que põem em risco suas promessas e expectativas de prosperidade civilizatória.
O sistema capitalista e o modelo liberal triunfante, desde os anos de 1970, não
manifestou êxito consistente no desafio de alavancar um ininterrupto crescimento e
acumulação. A permanência desse modelo nunca alcançou, em seu sistema de trocas, um
patamar que proporcionasse uma distribuição igualitária da produção. A cada década que se
fecha, o modelo em vigor reproduz mais desigualdade e escassez, o que, consequentemente,
reverbera em convulsões sociais e conflitos armados diversos (Angel-Maya, 1996). Para
agravar tal panorama de degenerescência, a humanidade, a cada novo salto técnico-produtivo,
percebe que eventos ambientais catastróficos se multiplicam no número de incidências em curto
espaço de tempo, assim como na gravidade de efeito (STENGERS, 2015).
Durante o século XX e início do XXI, convivemos com a perda acelerada da
biodiversidade, escassez de água potável, áreas agricultáveis e bens naturais diversos, seja por
esgotamento ou contaminação. As mudanças climáticas avançam em tempo recorde e em
múltiplas escalas, modificando paisagens e ecossistemas em uma velocidade incompatível com
o tempo de adaptação de animais, plantas e culturas. As epidemias surgem e sofrem mutação
com maior intensidade e menor tempo, proporcionando episódios epidêmicos
17
em escala
global, como este que vivemos nos anos de 2020 e 2021.
Trazendo a trama de Cartola
18
para os acontecimentos centrais do espírito da
contemporaneidade, o nosso mundo de sonhos, edificado nas promessas do racionalismo, do
17
Referência a pandemia de gripe (Covid-19) proporcionada pelo Sars CoV-2 (Coronavírus).
18
Na composição “O mundo é um moinho” (1976) que abre esse fragmento de artigo.
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otimismo técnico e no espontaneísmo do capitalismo liberal, não passou de pueril ilusão. No
fundo, quase tudo vem sendo reduzido a por um terrível moinho chamado terra. E o que
fazer diante de tal fatalidade? Difícil propor um receituário infalível. Todavia, Candeia nos
deixou um pálido sinal de que cabe uma reflexão. Precisamos definitivamente empreender uma
procura dentre as mais importantes: a de nos encontrarmos enquanto natureza que somos, antes
que qualquer busca seja completamente inútil.
Salvar a terra? Mas que terra?
“...Vai resplandecer
Uma chuva de prata do céu vai descer,
O esplendor da mata vai renascer
E o ar de novo vai ser natural...
Vai florir
Cada grande cidade o mato vai cobrir, ÔÔÔ
Das ruínas um novo povo vai surgir
E vai cantar afinal...
As pragas e as ervas daninhas
As armas e os homens de mal
Vão desaparecer nas cinzas de um carnaval.”
Paulo Cesar Pinheiro e João Nogueira (1977).
Mello (1993), em um texto de título “A humanização da natureza uma odisseia para
a (re)conquista do Paraíso”, afirma que os princípios e a espera pela chegada de um mundo
fabuloso não são específicos das filosofias religiosas monoteístas. Toda sorte de povos cultuam
as forças da terra; o samba acima, de origem matriz africana, reforça tal dado. “O esplendor da
mata vai renascer” revela clara preocupação ambiental, não no sentido restrito do ambiente
puramente físico, mas da “natureza” que existe em nós, semioticamente, como signo e
significado.
“As forças da natureza
19
”, lançado por Clara Nunes (1942-1983) em 1977, traz, de
fato, a tônica discursiva mais direta e hodierna sobre a questão ambiental. Visivelmente, trata-
se de um samba, uma expressão da cultura popular, dedicado ao tema. A música versada em
19
Composto pela parceria entre o poeta Paulo Cesar Pinheiro e o famoso sambista João Nogueira. A cantora Clara
Nunes, que era esposa de Pinheiro, gravou e lançou primeiro a canção, em um álbum com o mesmo nome “As
Forças da Natureza”. João Nogueira gravou a música no ano seguinte (1978), em disco próprio de título: “Vida de
Boêmio”.
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seu catastrofismo (apocalíptico) indubitável, traz a dura hipótese de que haverá um tempo em
que a natureza manifestará suas forças, com tamanha intensidade e violência, que o projeto
humano será praticamente varrido da face da terra, colocando a poderosa ciência em condição
de impotente. O mais interessante é que na música não lamento por tal destino, muito pelo
contrário, a catástrofe que se aproxima é vista na verdade como um “bom sinal”, como uma
espécie de redenção.
Tal ideia de fim dos tempos, a entender que uma realidade doentia e maléfica
sucumbirá para inauguração de um novo tempo: um recomeço marcado por forte esperança,
momento em que a natureza retomará o seu devido “lugar”. No samba, o projeto civilizatório
da cultura ocidental é posto como uma farsa a ser desmoronada em toda a sua materialidade.
Das ruínas de cidades e palácios um novo povo surgirá, ao deixar para traz, nas cinzas, um
mundo de degradações, barulhos, poeira, pragas e armas, para então viver um perpétuo
carnaval.
Na concepção da filósofa da Ciência, Isabelle Stengers (2015), o tempo das catástrofes
apontado pelo samba de Paulo Cesar Pinheiro e João Nogueira (1941-2000) chegou um
bom tempo. Na hipótese da pensadora, a era da devastação existia no contexto dos anos de
1990. A situação que vivemos não se trata apenas de uma crise ambiental e sim de um conjunto
de múltiplas crises (econômica, ética, científica e social) intimamente associadas. Segundo
Stengers, o grande responsável para tal contexto é o mercado, definido na era da globalização
pelos princípios do capitalismo neoliberal. Tal orientação econômica é, por essência,
indiferente, reativa e oportunista, ou seja, responde rápido às crises, ao estabelecer novas e
eficazes estratégias para restabelecer uma nova crescente de lucros. Essa velocidade reativa é o
que fez e ainda faz do sistema vigente um modelo extremamente competitivo e “vitorioso”.
Outras instâncias da sociedade moderna e contemporânea, a exemplo do Estado e do
conhecimento, estão à disposição dos interesses de mercado. A política, portanto, não se
estabelece por demandas e pautas próprias, nascidas das próprias circunstâncias e interesses
políticos, e sim por intenções econômicas. O mesmo acontece com as Ciências.
Para Stengers (2015), as ciências sistemáticas do mundo contemporâneo trabalham por
encomenda: conhecem e investigam por demanda de terceiros, para compor, sobretudo,
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projetos de inovação industrial. O objetivo fundamental é reproduzir mercadorias compatíveis
com as necessidades de consumo e as possibilidades de acumulação. Crises econômicas, sociais
e ambientais não são tomadas como sinais para uma reavaliação de percurso e projeto, e sim,
como meros obstáculos a serem superados (o mais rápido possível), para que a ordem vigente
de acumulação e inovação continue progredindo.
Deste modo, mercado, Estado e Ciência são forças cooperativas para um mesmo
projeto de devastação sobre a natureza. Sua ânsia por inovação e acúmulo gera inúmeros
impactos que, ao longo do tempo, repercutem em graves crises, ameaçadoras ao próprio projeto
de desenvolvimento humano em curso. Tais ameaças são definidas por Stengers (2015), como
intrusões de Gaia. Intromissões que colocam em risco não os empreendimentos do
capitalismo (de crescimento econômico), mas o bem viver das comunidades humanas,
principalmente as mais vulneráveis. O otimismo técnico-científico, a serviço da economia, mais
uma vez entra em cena para vender promessas de soluções sustentáveis. As respostas são
rápidas (como de costume), desenvolvidas para atender a finalidade do crescimento. Seus
resultados estão repetidamente divulgados: tímidas reações (de curto prazo) das economias
centrais, seguidas, porém, como reflexo, pela reprodução de mais desigualdade socioeconômica
e impactos ambientais.
O filósofo e poeta colombiano Angel-Maya (1996) havia anunciado, nos anos de
1990, que o problema ambiental do mundo contemporâneo tem sua causalidade no suposto
discurso que inventaram com o objetivo de salvá-lo. A própria ideia de desenvolvimento
sustentável, incansavelmente divulgada deste à conferência de Brundtland
20
(1987), traz em si
a semente do modelo de devastação global. Para Angel-Maya, toda a ideia envolvendo o
conceito, tem o humano (e seu projeto de crescimento) como centralidade, o que obriga a
política a desenvolver uma forma de relação com a natureza que mantenha em equilíbrio o que
é impossível de se equilibrar. Afinal, como proteger os bens naturais e ao mesmo tempo manter
um modelo de desenvolvimento social e econômico que garanta a sobrevivência de gerações
atuais e futuras, considerando o modelo vigente de produção e consumo?
20
Desenvolvimento sustentável: Desenvolvimento econômico e social que atenda às necessidades da geração atual
sem comprometer a habilidade das gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades.
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Nos mais acalorados debates ocorridos nas reuniões internacionais sobre o meio
ambiente e o clima global, as nações ricas cobram das mais pobres que mantenham sob proteção
as reminiscentes reservas naturais do planeta. Estas ainda não desapareceram completamente,
devido a uma sorte de eventos e à precariedade do desenvolvimento capitalista de tais nações.
Por causa deste mesmo “atraso”, as nações mais pobres mantiveram suas economias em um
nível inferior de dinamismo e acumulação, o que, consequentemente, reproduz mais pobreza e
desigualdades sociais.
Por outro lado, estas mesmas nações subdesenvolvidas apelam para os grandes centros
da economia o acesso não aos acúmulos de capital, como também aos mais sofisticados
recursos tecnológicos e produtivos. Não querem para si o fardo do preservacionismo, que
este supostamente as mantém no submundo econômico. Já as nações desenvolvidas não abrem
mão do monopólio do conhecimento técnico-científico, afinal, como sustentariam sua posição
superior? Como teriam acesso (moeda de troca) aos bens naturais dos países mais pobres,
considerando que suas reservas praticamente se extinguiram? Qual cenário esse desequilíbrio
de forças expressa senão a reprodução de um mundo onde os ricos, despossuídos de bens
naturais, exploram, graças a sua superioridade técnico-científica, o resto das reservas naturais
dos países pobres em capital e tecnologia? (Angel-Maya, 1996).
Como encontrar equilíbrio em um mundo como este, sem abdicar de seu projeto de
desenvolvimento civilizatório e assim fundar outro mundo, uma nova sociedade e cultura
centrada em uma nova relação entre humano e natureza?
Na proposta de Stengers (2015), um novo mundo começaria a florescer se primeiro a
humanidade reconhecesse que o tempo de se evitar catástrofes ambientais se foi, não havendo
condição de revertê-las em um espaço de tempo estimável, em um futuro próximo. Não há nada
o que evitar ou salvar.
Tudo aconteceu. Cabe agora nos perguntarmos qual o melhor caminho para
sobreviver às catástrofes postas, se: competindo uns com os outros (estratégia do crescimento,
que o modelo neoliberal já exercitou por décadas seguidas) ou cooperando, em um novo modelo
de sociedade a ser fundado? Visivelmente Stengers chama atenção para o humano enquanto o
elemento mais frágil de tal realidade.
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Para a autora, a natureza, associada à imagem de Gaia (do grego, terra), está em
condição muito diferente ao discurso ambientalista convencional. Em seu modo de pensar, a
natureza não carece de ser salva, pois suas dimensões são literalmente titânicas,
desproporcionais às capacidades destrutivas da tecnociência humana. A natureza não é frágil,
boa, perfeita, benevolente, tão pouco é má, destrutiva ou vingativa. Qualquer associação de tais
adjetivos à natureza não passa de esoterismo ou catastrofismo inocente. Tal julgamento sugere
uma aproximação entre Stengers e Nietzsche (2011a), quando o mesmo coloca que, qualquer
projeção moral sobre a natureza não passa de antropomorfismo
21
estético, ou seja, uma projeção
egocêntrica das características humanas sobre os demais entes da totalidade.
Para Stengers (2015), Gaia (enquanto terra e natureza) é cega, inconsequente e
aleatória em seus atos, não havendo nela qualquer intencionalidade preconcebida. Suas
intrusões não são respostas às nossas falhas e sim o efetivar de seu próprio modo de ser.
Nietzsche (2012), em sua obra, traz elementos mais elucidativos para tal imagem de Gaia. Para
o autor de “A Gaia Ciência”, a efetividade do mundo, ou do cosmo, não é dotado de nenhuma
moral, ordem, razão, princípio ou finalidade. Tal visão cosmológica nos revela uma terra viva,
autônoma em sua forma de ser, constituída por uma multiplicidade caótica de forças em conflito
e cooperação (como um sistema orgânico) que buscam nada mais do que, simplesmente,
efetivar-se, ou seja, desdobra-se em vontade de potência, construindo-se e destruindo-se
eternamente.
Este mundo: uma monstruosidade de força, sem início, sem fim; uma firme, brônzea
grandeza de força, que não se torna maior, nem menor, que não se consome, mas
apenas se transmuda, inalteravelmente grande em seu todo; uma economia sem
despesas e perdas, mas também sem acréscimo, ou rendimentos, cercada de nada
como de seu limite, nada de evanescente, de desperdiçado; nada de infinitamente
extenso, mas como força determinada posta em um determinado espaço, e não em um
espaço que em alguma parte estivesse “vazio”, mas antes como força por toda parte;
como jogo de forças e ondas de força, ao mesmo tempo um e múltiplo, aqui
acumulando-se e ao mesmo tempo ali minguando; um mar de forças tempestuando e
ondulando em si próprias, eternamente mudando, eternamente recorrentes; com
descomunais anos de retorno, com uma vazante e enchente de suas configurações,
partindo das mais simples às mais ltiplas, do mais quieto, mais rígido, mais frio,
ao mais ardente, mais selvagem, mais contraditório consigo mesmo; e depois outra
21
[...] ele (o universo) não é perfeito, nem belo, nem nobre e não quer tornar-se nada disso, ele absolutamente não
procura imitar o homem! Ele não é absolutamente tocado por nenhum de nossos juízos estéticos e morais! Tão
pouco tem impulsos de autoconservação, ou qualquer impulso (Nietzsche, 2011a, p. 136).
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vez voltando da plenitude ao simples, [...] como um vir-a-ser que não conhece
nenhuma saciedade, nenhum fastio, nenhum cansaço: esse meu mundo dionisíaco do
eternamente-criar-a-si-próprio, do eternamente-destruir-a-si-próprio, esse mundo
secreto da dupla volúpia, esse meu “para além de bem e mal”, sem alvo, [...] Esse
mundo é a vontade de potência e nada além disso! (Nietzsche, 2012, p. 449-450).
Mesmo concordando com Stengers sobre as dimensões titânicas de Gaia (que não se
basta à escala do Planeta Terra, mas de toda a afetividade cósmica, como propôs Nietzsche),
acreditamos que a propagação da ideia de que “não há nada o que salvar” pode ser perigosa se
não pensada com todo o cuidado. A nosso ver, trata-se de um problema de escala, portanto uma
reflexão geográfica.
De fato, a terra e toda a natureza são muito superiores à capacidade empreendedora do
humano, não dúvidas dessa reflexão. A terra em escala macro (planeta e totalidade cósmica)
não carece de salvação, já que não há (ainda) possibilidades possíveis do humano intervir, por
exemplo, nas estruturas e dinâmicas endógenas do planeta, que dirá dos astros. Mas poderíamos
dizer o mesmo da biosfera. Teria a humanidade capacidade de diluir a diversidade de formas
orgânicas e corromper estruturas inorgânicas da estreita camada de síntese entre os
geossistemas? Estamos seguros que sim. A perda de consideráveis frações de tais
potencialidades e riqueza natural, da forma acelerada que vem acontecendo, não é algo de fato
irrelevante. Podemos sustentar algumas reflexões sobre o ritmo atual das mudanças climáticas.
Tais preocupações são irrelevantes para o destino da própria terra e sua macro escala? Claro
que sim. Então o que dizer dos conflitos e desigualdades sociais?
A importância disso para a terra, em sua escala macro, é nenhuma. Mas tais questões
têm relevância para a terra que somos, na escala das experiências, como nos propõe Heidegger
(2002).
A terra em uma perspectiva humana pode ser concebida a partir de inúmeras escalas
(Marandola Júnior, 2016). Se retomarmos os argumentos iniciais deste escrito, de que o humano
é constituinte da natureza, podemos também pensar que as escalas da experiência humana são
também dimensões de Gaia. Apontar que a terra (em sua condição titânica) não carece de ser
salva, pode até ser uma problematização transformadora, ao destronar o homem de sua
prepotência.
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
DAVIM, David Emanuel Madeira; PAULA, Luiz Tiago de. A TERRA QUE HÁ EM NÓS: sambas sobre “ensaios” de uma procura.
Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 10, nº 21, pp. 14-X, maio-agosto de 2023.
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Todavia, reforçar que a humanidade, e não a natureza, é a única a carecer de
preservação, seria reafirmar, de outro modo, a cisão entre humano e natureza. Tal movimento
também soaria como subestimação à capacidade devastadora do racionalismo e sua
tecnociência. Mesmo que este argumento seja uma legítima e necessária tentativa de alertar a
humanidade para o cuidar de si, de suas crises, dilemas, conflitos e desigualdades sociais, o
mesmo reforça um olhar egóico e antropocêntrico, marca fundamental da ordem vigente.
A ideia proposta de que a natureza não carece de ser salva nada muda em nossa
condição atual de vida em sociedade. O que tal afirmação nos evoca? E se invertermos a frase,
“o humano não carece de ser salvo e sim a natureza”, é essa ideia que se teme? Presumimos
que sim. E se de fato for esse o argumento, mais uma vez a nossa inteligência estabeleceu uma
oposição dicotômica e excludente.
É justificável o argumento complementar da primeira sentença, isto é, a humanidade
precisar salvar-se de si mesma. Não há como refutar ou sequer discutir o valor de tal reflexão,
todavia a primeira afirmação (de que a natureza não carece de ser salva) cumpriria apenas o
papel de potencializar o “salvar de si” humano, por meio de uma negação. A própria Stengers
indagaria por qual razão estas duas coisas devem se opor e seguir em separado. Ou melhor, por
que devemos escolher apenas um para salvar. Na esteira de um ambientalismo neomalthusiano,
o empenho em igualar os homens em capacidade de consumo e acumulação, levaria a natureza
ao pleno colapso.
Deste modo, a solidariedade não garantiria a sustentabilidade. É por isso que
precisamos urgentemente fundar um novo projeto de humanidade onde tais preocupações
caminhem indissociadamente. Para que isso aconteça, precisamos recriar nossas visões sobre a
relação entre humano e natureza.
Em nosso entendimento, o ser humano é a própria terra, faz parte dela e depende de
suas dinâmicas e condições materiais. Salvar a terra em suas meso e micros dimensões é salvar
também a humanidade. Não Nietzsche (2011b) nos propõe tal reflexão, ao apontar o corpo
como terra, como também Angel-Maya (1996), ao afirmar que o pensamento ocidental separou
o que nunca deveria ter sido separado na história da humanidade, a saber, a trama ou o elo entre
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cultura e natureza. É preciso, portanto, refazer tal trama da vida, suturar a pele que religará tais
dimensões do ser, para então criarmos um novo caminho (Noguera, 2012).
Corpo e terra, humano e natureza, vivente e meio, tempo e espaço são dimensões de
um mesmo. A comprovação de tal elo pode se dar por aquilo que o pensamento ocidental
fez esforço de condenar e afastar do conhecimento por milênios, isto é, a virtude imanente da
experiência concreta. Nos valendo do argumento de Nietzsche (2011b), precisamos retornar à
terra que somos e trazer a virtude imanente extraviada pela tradição ao cerne do
pensamento e do conhecimento. A terra presente no corpo que somos nos conduz a pensamentos
e interpretações honestas, diretas e originárias sobre a efetividade que nos cerca.
Nos afirmar enquanto terra e natureza não seria apenas um esforço de naturalizar o
humano, como também de humanizar a própria terra, tratá-la como outro, como sujeito, como
algo que é por si, um ente autônomo em seu modo de ser. Eis um primeiro caminho possível,
para consumar as previsões do samba de Paulo Cesar Pinheiro e João Nogueira, pela voz
magnífica de Clara Nunes. Um novo povo nascerá das ruínas de seu mundo descomunal, para
então fundar uma terra comum entre humano e natureza.
Conclusão: a terra como o outro
Problematizar o argumento de que a terra não carece de ser salva, não nos afasta, de
modo absoluto, das ideias de Stengers. A ideia que vivemos em um mundo marcado por
catástrofes e que nos cabe, urgentemente, um projeto cooperativo de humanidade, nos parece
algo indubitável, de grande valor e capacidade de mobilização. Outro argumento da autora, que
se faz indispensável para pensarmos em um novo modo de estabelecer relações com a natureza
que somos, é de que o conhecimento científico precisa de críticas e reformas fundamentais.
Para Stengers (2015), a Ciência, submetida às demandas do mercado, perdeu a capacidade de
perplexificar-se diante dos acontecimentos. Isso porque seu interesse não se sobre os
acontecimentos propriamente ditos e sim sobre as demandas de terceiros, isto é, os
compromissos com a indústria de inovação.
Tal argumento de Stengers dialoga muito com nossa preocupação para com o desprezo
que o modelo de Ciência triunfante ainda sustenta sobre a dimensão imanente do real. Estar
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perplexo diante dos acontecimentos, sobretudo diante das catástrofes que se apresentam, é se
comprometer a questionar e a pensar sobre o mundo como este de fato é. Para Stengers (2015),
assim como para Heidegger (2002), a Ciência desaprendeu a fazer boas perguntas, pois deixou
de pensar, no momento em que se comprometeu com o destino da técnica, sendo esta ferramenta
das intenções de mercado. Desta feita, a Ciência deve empreender sua ação mediante demandas
de puro interesse do conhecimento. Para isso, é preciso permitir-se estar perplexo, ou como
preferia Heidegger, deixar-se invadir pela angústia de estar no mundo e questioná-lo.
A natureza em sua efetividade é passível de ser interpretada e traduzida por aquilo que
é, em suas potencialidades e forças eficientes. Nós, seres humanos, somos capazes de conduzir
tal interpretação, pois somos terra, e, como diria o geógrafo Éric Dardel (2011), podemos ouvir
e entender seus apelos, traduzindo-os em vocabulário. Tal possibilidade torna-se mais
compreensível se tomamos a natureza pelo seu sentido arcaico de physis, forjada nos tempos
dos gregos pré-socráticos.
Physis é a totalidade de tudo que é. Ela pode ser apreendida em tudo que acontece: na
aurora no crescimento das plantas, no nascimento dos animais e homens. E aqui
convém chamar a atenção para um desvio em que facilmente incorre o homem
contemporâneo. Posto que a nossa compreensão do conceito de natureza é muito
estreita e pobre do que a grega, o perigo consiste em julgar a physis como se os pré-
socráticos a compreendessem a partir daquilo que hoje nos entendemos por natureza
[...]. Para os pré-socráticos, já de saída, o conceito de physis é o mais amplo e radical
possível, compreendendo em si tudo o que existe. Não se compreende o psíquico, por
exemplo, a partir do modo de ser da natureza em seu sentido atual, assim como não
se compreende os deuses a partir do nosso conceito mais parco de natureza. À physis
pertencem o céu e a terra, a pedra, a planta, o animal e o homem, o acontecer humano
como obra do homem e dos deuses e, sobretudo, pertencem a physis os próprios deuses
[...] (Bornheim apud Gonçalves, 2006, p. 30).
Atendemos aos apelos da terra, enquanto physis, decifrando suas manifestações em
discurso. Mas, para isso, devemos nos atentar imanentemente a sua efetividade. O discurso da
natureza não se diretamente por palavras, mas por estímulos, decorrentes da efetividade
concreta de suas formas e forças (ou vontade de potência). Nosso corpo, por ser parte da própria
terra, é a dimensão da experiência mais capaz de apreender tais estímulos, um cordão umbilical,
um nervo privilegiado que sente a terra. A partir daí podemos converter, subitamente, formas e
forças em sintomas da sensibilidade. Essa subtaneidade de sentidos e sintomas provoca as
nossas inteligências a pensar, nos doando ideias. O pensamento é uma dádiva que nos advêm
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do próprio mundo. Por essa sequência de procedimentos sensíveis e interpretativos, Nietzsche
(2011a; 2011b) foi capaz de afirmar que o corpo pensa, imediatamente, ao sentir, pois os afetos,
decorrentes dos estímulos da exterioridade, nos preenchem com sentido e ideias. Cabe lembrar
que o humano é o ente ou o animal dotado da virtude de fundar valores para as coisas, ou como
preferia Heidegger (2009b), o pastor do Ser, o ente privilegiado em interpretar, desvelar o ser
em palavra (a casa do ser), em poética, em meio ao diálogo. O humano é o animal poético, uma
espécie de sambista a anunciar na música a beleza da vida, seja ela doce, alegre ou terrível.
Convergente a essas concepções sobre physis, corpo e terra, a filósofa colombiana Ana
Patrícia Noguera (2010; 2012) nos propõe uma lição das mais intrigantes: a de que a terra pensa.
A manifestação de Gaia, seus fenômenos, ciclos, dinâmicas, as intrusões que causa sobre
nossos projetos, sua suposta ira e apelos, são na verdade formas de pensamento expressos na
concretude dos acontecimentos. Faltam a estas ideias, pensadas pela própria terra, uma
linguagem da qual o humano possa partilhar. Eis o que deveria ser o papel do filósofo e do
cientista (assim como qualquer pessoa interessada) neste contexto de catástrofe: ser a voz da
terra, um poeta a traduzir suas vontades e pensamentos em linguagem, em diálogo. Tal virtude
serviria para que a humanidade pudesse estabelecer outros vínculos, relações mais íntimas com
a natureza, fazendo com que a trama da vida e o bem viver possam ser restabelecidos, formando
assim uma nova cultura. Cultura esta que se fez vivida em outros tempos, quando as
comunidades tradicionais, sobretudo as originárias (autóctones), tinham o exercício pleno de
seu modo de existir em comunhão profunda com a natureza. É essa trama da vida e do bem
viver, enquanto dimensão micro e meso da natureza (physis), que precisa ser salva do destino
monetário da técnica e do racionalismo.
Aquele que lidou diretamente com a terra, que se interessa pelos seus mistérios,
compreenderá bem a situação e o alarde aqui discorrido. Quem cultiva intimidade com a terra
e se atenta aos seus detalhes manifestos, sabe ouvi-la e interpretá-la. É preciso ter o corpo junto
a ela para que sensibilidade e inteligência decifrem seus sinais, dos mais sutis aos devastadores.
Aquele que, por exemplo, abra um pequeno roçado, em uma barranca de rio, quintal, ou
qualquer outro lugar, terá a oportunidade de constatar, com os próprios sentidos, as mensagens
daquele meio, porção experiencial de natureza. Os obstáculos e facilidades que o esse meio nos
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oferece, a dureza do solo, a umidade disponível, as espécies vegetais territorializadas, os
animais que ali transitam, dão os primeiros sinais do como Gaia é o que quer e sua
particularidade espacial. O tempo que cada semente precisa para germinar, as mudas que não
vingam, as distinções de tais fenômenos mediante o período (estação), o ambiente de tal
desenvolvimento, a reação do solo a cada insumo inserido no feito, o comportamento das
pessoas, a porção onde bate o sol ou a sombra, o inseto que se aproxima da planta, o outro
vegetal que a sufoca, tudo isso, e muito mais, informa ao vivente interessado o mistério do
efetivar da vida.
As mensagens estão lá, na forma de sinais e pensamentos. Cabe interesse,
sensibilidade, intimidade e paciência para traduzir o texto. Os limites da terra estão postos e
isso não significa permitir a ela o domínio pleno de tudo. O humano é parte da trama daquele
meio, sua intencionalidade de sobrevivência também deve ser concretizada em feito, trabalho
e subsistência. O humano, como qualquer ente que compõe a physis, deve lutar para efetivar-
se. Todavia, a luta deve ser franca, a ponto de os adversários compreenderem um ao outro,
aprendendo um com ou outro, abrindo possibilidades de entendimento, trégua, alternância de
forças e superação mútua. Caso a luta desemboque para a aniquilação, a trama está, mais uma
vez, desfeita e a catástrofe anunciada.
A convivência com a terra não é para ser fácil. Em nossas impressões (demasiado
humanas) a natureza é muito mais terrível do que generosa. Sua potência cega, estabelece um
verdadeiro campo de batalha pela efetividade. Ao decorrer da história, a humanidade superou
o temor diante da terra e fez da técnica instrumento de tortura e dominação sobre a natureza.
Um combate de aniquilação fora consumado. A tecnoesfera, racionalista e desenvolvimentista,
afastou o ser humano do corpo de Gaia; perdeu-se a intimidade, a imanência, não havendo mais
escuta, o que desfez a trama da vida. Os limites, obstáculos e permissões não são mais
apreensíveis pela sensibilidade. O que se impõe é a brutal intencionalidade humana, seus
projetos monopolistas e egocêntricos, determinados pela lógica do capital. Sua finalidade
principal é de natureza transcendente, virtual, especulativa, ou seja, a mais valia. Mas a busca
cega por ela é concreta, porém, indiferente à natureza (e seus limites) que se expressa em
forma de devastação, convertendo cada vez mais a terra em mercadorias, valores de troca.
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Clara Nunes, Candeia, Cartola, Sargento, Paulo Cesar Pinheiro e João Nogueira,
sambistas, de morro ou de calçada, pretos ou brancos, mulheres e homens, tinham consigo (em
nossa interpretação) um valioso palpite para reencontrar um bom caminho ao projeto
civilizatório. Palpite esse também pensado por Ana Patrícia Noguera, Isabelle Stengers, Angel-
Maya, Éric Dardel. Precisamos nos abster dos sonhos inautênticos e voltar à vida, a terra e a
natureza em suas nuances mais bruscas, singelas e sutis. Samba é uma reunião que se anuncia
em forma de crônica poética e musical sobre a facticidade cotidiana. Como diria Vinícius de
Moraes e Baden Powell “mas para fazer um samba com beleza, é preciso um bocado de
tristeza...” e se atentar a vida, vivê-la em seus desenganos, alegrias e anunciar sua imanência
em poética. Assim também pode ser o conhecimento, Ciência e Filosofia.
Precisamos fundar um conhecimento que empreenda investigações por demandas
próprias, emancipadas das intenções do crescimento e comprometidas com a dimensão concreta
da realidade. Um saber que nos faça encontrar novamente com nós mesmos, com Gaia, e que
nos faça contemplá-la em beleza, admiração, angústia e perplexidade. Um saber que nos faça
entender os limites da terra, expressos em desejos e apelos, para então refundar a cultura e um
novo modo de sociedade. Um conhecimento que beba da experiência fática, que associe
imanência, sensibilidade e consciência, agindo a partir da plena cooperação, partilhando saberes
para lidar com as crises que estão e, certamente, que virão. Precisamos de tal transformação,
antes que a trama entre humano-natureza seja de fato impossível de se reatar, devido à
aniquilação de nós mesmos. Eis o que acreditamos ser o desafio de nosso tempo de catástrofes.
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