Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
MUNIZ, Gabriela Cardoso. Olhos Abertos. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 11, nº 24, e112406, 2024.
Submissão em: 11/12/2023. Aceito em: 08/02/2024.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons 1
SEÇÃO LEITURAS
Olhos Abertos
Eyes Open
Ojos Abiertos
Gabriela Cardoso Muniz1
Universidade Federal Fluminense (UFF),
Rio de Janeiro, Brasil
e-mail: gabs.muniz@gmail.com
Quando era criança, meus pais me levavam à igreja toda sexta-feira. O lugar ficava no
Horto, numa casinha pequena, perto de várias árvores, com cheiro de chuva, mofo e óleo
ungido. Íamos até lá, as pessoas brincavam comigo, cantávamos, celebrávamos. Havia um
senso de comunidade, um lugar seguro que me trazia alegrias.
Então, presenciei a primeira possessão.
Era uma senhora, devia ter seus 60 e poucos anos. Havia conversado com ela pouco
antes do início do culto. Fiquei surpresa, em parte sem entender o que acontecia. Eles
perguntavam qual era seu nome. Aparentemente, não gostaram da resposta, pois continuaram a
perguntar até que ela se acalmasse e desse a resposta certa. Outra vez, aconteceu com uma
amiga da minha mãe. Era sua primeira vez no culto, ela viera conosco. Quando se aproximou
da pastora, sua voz mudou. Enquanto a seguravam, ela fazia ameaças, gritava e discutia em
uma voz quase gutural. A pastora perguntava a ela seu nome e a mulher não respondia.
Novamente, nada de um nome, apenas xingamentos. E de novo, e de novo. Até que, por fim, as
vozes cessaram. Como em um passe de mágica (pelo poder de Deus, quero dizer), ela se
acalmou. Chorou, sorriu e agradeceu. Sentei no colo do meu pai, assustada, enquanto ele me
confortava. Estava com muito medo para poder chorar. E com medo permaneci, pois todas as
vezes que fechava meus olhos antes de dormir, logo depois de fazer minhas preces, achava que
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Graduada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestranda de Estudos de Literatura na UFF, em
Literaturas de Língua Inglesa. Atua na área de ensino de língua inglesa.
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a próxima poderia ser eu. A viagem de volta foi mais agradável para ela do que para mim.
A partir de então, comecei a ter medo da noite, a suplicar que passasse rápido, assim
ficaria livre daquele terror. Sonhava que o Diabo corria atrás de mim, ameaçando me pegar
também porque eu era pecadora. “Deus tudo vê”, eles diziam. Todas as mentiras que já contei,
todas as vezes que fiquei chateada com alguém, toda malcriação que fiz em casa. Não importa
onde estivesse, Ele estava me vigiando. Todo passo em falso que eu fizesse me deixava mais
longe do caminho Dele. Não estava, nem nunca estaria, segura.
Toda sexta-feira eu ficava apreensiva, com medo de enxergarem meus pecados ocultos
e dizerem que eu seria a próxima. Uma vez, passei mal a semana inteira e pensei “É o Diabo.
Deus sabe que fiz algo de errado”. A pastora pôs a mão na minha cabeça, disse que ficaria tudo
bem e que eu iria melhorar. Recebi muitas bênçãos, todos ao redor rezaram por mim. Nunca
senti tanto alívio na minha vida. No dia seguinte, estava melhor. Minha mãe disse que era
um milagre, meu pai falou que Deus iria ficar ao meu lado. Era uma benção e uma maldição.
Ele sempre estaria lá, tanto para cuidar de mim, quanto para me julgar. “Os olhos do Senhor
estão em toda parte, observando atentamente os maus e os bons”, costumavam dizer. Então,
enquanto eu fosse boa, estaria salva. Não vista estas roupas, não fale de tal forma, não se
comporte assim, não pense nisso. Seja boa.
Pouco depois, foi a vez da minha mãe. Ela não gritou como a amiga da minha mãe, mas
se contorceu, tão grotesco quanto em um conto de terror. Quis sair correndo, mas tive medo de
que Deus visse e me punisse. Permaneci observando até minha mãe estar, por fim, livre até
quando? Ao final, uma senhora ao meu lado segurou na minha mão. Por uma fração de
segundos, me senti reconfortada. Ela olhou para mim, com um uma expressão decidida no rosto,
apontou para minha mãe, que estava sentada, conversando com outras pessoas do culto, e pediu
para que eu perguntasse seu nome. Caminhei até lá, ciente de cada movimento que fazia, Deus
enxergando cada um de meus passos. Minha mãe então sorriu para mim. Apenas a abracei. Não
tive coragem de perguntar aquilo, pois não queria descobrir a resposta. Foi que finalmente
chorei. Para me acalmar, meus pais me levaram para passear entre as árvores, que lembravam
a floresta em que eu brincava quando ia ao trabalho do meu pai. O ar úmido e limpo me acalmou
e, pela primeira vez em muito tempo, me senti reconfortada.
Deixei de frequentar aquela casinha aos dez anos, mas não perdi a sensação de que Deus
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estava sempre me observando o tempo todo, à espera de um deslize. Mudei de Igreja, tentando
minha sorte com o catolicismo. Fiz comunhão, estudei a Bíblia e suplicava todos os dias para
que Deus perdoasse os meus pecados. Continuei rezando durante muito tempo, suplicando,
suspirando, gemendo e chorando, até que um dia esqueci de rezar. Comecei a esquecer
gradativamente, até parar por completo. Não deixei de temer a Deus, contudo. Pelo contrário,
sentia ainda mais medo, tanto medo que mal conseguia entrar em uma igreja por pensar que
alguém iria até mim e enxergaria o meu eu interior, percebendo que eu sou uma pecadora. Vivia
em um estado de horror, sempre na expectativa de descobrir, de repente, que o demônio andava
lado a lado comigo. Então, apenas deixei de falar sobre isso, na esperança de que, se eu
guardasse para mim, um dia aquele medo desapareceria. Se Deus conseguia até ouvir meus
pensamentos, simplesmente pararia de pensar. Contudo, descobri tanto pela minha vivência
quanto pelos meus estudos que nunca podemos deixar o passado para trás.
Quando era adolescente, ouvi falar sobre a caça às bruxas que aconteceu séculos
atrás, mas fui realmente me interessar pelo ocorrido alguns anos mais tarde, na minha
maioridade. Após mais uma noite de insônia cercada pelo medo, pesquisei sobre o que havia,
de fato, ocorrido durante aquele período. Li sobre os episódios que se passaram nos Estados
Unidos enquanto colônia, no Condado de Essex, sobretudo em Salém. Mais de trinta vítimas, a
maioria mulheres. Eram vítimas de uma perseguição religiosa feita pelas classes dominantes
vinculadas à Igreja, motivada por questões políticas em uma sociedade em transição. Não
conseguia entender como aquilo poderia ter acontecido com tantas, como o corpo feminino,
responsável pela vida, era associado ao pecado e ao demônio.
Lembro-me de ver fotos de Salém, debruçando-me sobre aquela sociedade e sua cultura.
Descobri que, assim como eu, eles também sentiam o peso dos olhos de Deus a os vigiarem a
todo instante. Assim como eu, eles também sentiam uma culpa constante, um medo do pecado
enrustido em seus âmagos, a ponto de viver dia após dia como se viver fosse pecado. E era. O
pecado original. In Adam’s fall, we sinned all [Na queda de Adão, todos pecamos]. Nossa
vivência na Terra não passava de uma tentativa de obter redenção pelo simples fato de vir ao
mundo. Isso me fazia pensar que, às vezes, era melhor sequer ter vindo ao mundo. Por isso
fazia-se necessário controlar cada momento dos nossos dias, controlar os corpos, os desejos, os
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Goodmen, as Goodywives
2
. Controlar as mulheres.
Mas então, eu descobri a floresta. A floresta em que as bruxas se encontravam para
adorar o demônio. A floresta era o ponto cego, geradora de medo e, ao mesmo tempo, de
admiração. Sublime. havia a imensidão e o desconhecido, o limite entre o que os povos
europeus consideravam civilização e selvagem. Aquele grupo de mulheres ia até a fronteira,
fugindo das regras da sociedade. A floresta era o lugar da mãe Natureza, com seu corpo
feminino, seu dom de dar vida. E, do outro lado, havia o desejo incessante dos colonos de
dominá-la. Enquanto em suas vilas mantinham-se as regras sociais e junto com essas a culpa e
a vigilância, dentro da floresta aquelas mulheres perdiam o medo do julgamento. Era que
aconteciam as transgressões de valores sociais e culturais, uma não conformidade com o modo
de vida que tinham de levar. Era em meio às florestas que o Diabo aparecia porque este era um
lugar livre dos olhos de Deus. Livre das regras pungentes da sociedade. Livre.
E foi que eu entendi como aconteceu aquela perseguição. Os motivos pelos quais
diziam que o Diabo poderia se apossar do seu corpo a qualquer momento, do corpo das
mulheres. A desconfiança das pessoas em seu entorno, até de quem era mais próximo a você.
O controle social, vinculado à impossível tarefa de ser bom a todo tempo. E, a partir da História,
surgiu o mito. E, com esse mito, veio a identificação. Talvez aquelas bruxas fossem como eu.
Talvez não conseguissem ser boas, pelo menos não segundo o conceito de bondade que a elas
era imposto. Talvez estivessem com tanto medo que procuraram um lugar para que pudessem,
enfim, sentir-se seguras e, em meio ao desconhecido, conhecerem a si mesmas. Pela primeira
vez na minha vida, senti que pertencia a algum lugar. A um lugar que não conhecia, um lugar
físico que vira apenas através de fotos, mas que possuía um sentido mítico para mim. Uma
aproximação com uma cultura que não era a minha, mas que estava mais próxima do que havia
imaginado.
Hoje em dia, não fico mais nervosa ao entrar em uma igreja. Transito pelos
corredores, admiro os vitrais, aprecio a grandiosidade. Sei que a Igreja também possui seus
pecados escondidos por trás daquela fachada admirável. Sei que o sangue jorrado não foi só o
de Jesus. O Diabo que carregava ao meu lado foi embora no momento em que deixei de temê-
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Ambos os títulos eram usados pelos puritanos como pronome de tratamento, assim como senhor e senhora.
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lo. Podem me vigiar, apontar o dedo e listar os meus pecados. Não tenho mais medo, pois sei
que há a floresta, a floresta onde estarei livre dos olhos de qualquer um. Conheço as mulheres
libertas da opressão, mesmo que apenas por um curto período, dançando na floresta, celebrando
sua feminilidade. As mulheres que morreram somente pela ganância de pessoas que dizem
temer o olhar de Deus.
Quando meus pais me levaram para passear por entre aquelas árvores, não sabiam o
quanto aquela cena se tornaria libertadora para mim mais tarde. Aquela era a minha floresta.
Partindo do que li sobre Salém, encontrei na natureza do Rio de Janeiro um abrigo. Finalmente,
conseguia me sentir segura na minha morada, no meu corpo, no meu âmago. Descobri que não
havia problema em possuir um íntimo de impossível acesso externo. Entendi que a vida não
deveria se resumir a uma constante tentativa de se desculpar por algo que não era sua culpa,
pois a vida não é culpa. Foi nessa fronteira que, após uma vida inteira, consegui fechar os meus
olhos de noite sem medo, tendo a certeza de que assim que os abrisse pela manhã, meu nome,
meu corpo e minha liberdade pertenceriam somente a mim.