Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
MENDES, Raquel Almeida. Geo-Grafias Ressoantes de um Homem Negro, Meu Pai. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 11, nº 24,
e112413, 2024.
Submissão em: 10/01/2024. Aceito em: 01/06/2024.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons 1
SEÇÃO LEITURAS
Geo-Grafias Ressoantes de um Homem Negro, Meu Pai
Resounding Geo-Graphies of a Black Man, My Father
Geo-Grafías Resonantes de un Hombre Negro, Mi Padre
Raquel Almeida Mendes
1
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),
São Paulo, Brasil
E-mail: almeidamendesraquel@gmail.com
Justificativa
A presente poesia é resultado de reflexões e rememorações das minhas trajetórias
familiares, em especial das histórias de vida que envolvem a figura do jovem negro,
maranhense, garimpeiro, Edvaldo Pereira da Silva Mendes, meu pai (in memoriam), e os
desdobramentos dessas vivências nas minhas experiências juvenis, no que tenho me tornado
frente ao devir de sua precoce partida. Na condição de pesquisadora, o convite a pessoalidade
é sempre permeado de estranheza, pois ainda muito dos parâmetros de um método científico
baseado no distanciamento dos fenômenos pesquisados, de aspectos avaliativos que repudiam
até mesmo a tentativa da linguagem poética aqui adotada, visando critérios formalistas de
pureza analítica e mera descrição de processos histórico-geográficos.
muito tenho tentado me desvencilhar destas práticas distanciadas de pesquisa e sinto
que este movimento advém dos tensionamentos e “afetações” da hibridez docente-pesquisadora
em Geografia. Os processos educativos me co-movem ao campo do vivido, me direcionam a
essa Geografia aproximada, íntima, da cidade, do bairro e também da escala dos corpos dos
estudantes, e é nessa composição que tenho me dedicado nos últimos anos, pensando em
práticas pedagógicas que dizem respeito à concretude de um dos marcadores mais presentes na
1
Licenciada em Geografia (UFT), Especialista (Lato Sensu) em Docência para a Educação Profissional e
Tecnológica (IFES) e Mestra em Geografia (IESA/UFG). Atualmente desenvolve pesquisa de doutorado em
Geografia no Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (IG - Unicamp).
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Geografia do nosso país, do corpo às estruturas políticas, econômica e sociais: as questões
raciais e étnicas.
De muito pensar sobre tais questões em escalas maiores, alheias a minha realidade, me
vi impelida e projetada nas palavras que eu escrevia e lia, notando que esse Brasil permeado de
hierarquizações sociorraciais, antes de mais nada, estava no cotidiano da minha casa, na
genealogia da minha família. Assim, a poesia em questão faz parte desse movimento (ainda em
curso) de alinhamento das minhas trajetórias familiares aos elementos que desafiam minhas
práticas profissionais e acadêmicas. No ideário das cantorias de Chico César, tenho buscado
viver (e por que não?) em estado de poesia.
O processo de escrita poética de parte dos trajetos do meu pai e suas confluências nos
percursos que tenho galgado, pessoalmente e academicamente, são guiados por inúmeros
orientadores teóricos que delineiam meu pensamento. Sigo à luz dos debates sobre trajetórias
socioespaciais de Souza (2007) e Cirqueira (2010), relacionados aos percursos vividos pelos
indivíduos e a gama de significados gerados a partir dos repertórios de lugares frente aos
marcadores étnico-raciais experienciados, bem como as considerações de Guimarães (2020)
sobre as grafias ou marcas raciais deixadas espaço-temporalmente nas sociedades e nas
vivências de corpos racializados, compondo aquilo que a autora denomina de geo-grafias
negras.
Geo-grafias ressoantes de um homem negro, meu pai
I
Ainda jovem você precisou sair de casa
"Tinha que ganhar o mundo", você costumeiramente falava.
Saiu querendo pertencer a algum lugar
Traçou batalhas contra todas as instâncias negadas
E frente ao tudo, recebeu quase nada
De sol em sol você seguiu
Ativando a melanina da tua pele.
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Explorou o ouro e as riquezas de outrem
Pra ti, para nós, pouco sobrou
Nem uma pepita sequer
Levaram tudo, mas você ficou
Por pouco tempo inclusive
Nem mesmo te deram direito à longevidade
Em ti inexistiam os livros acadêmicos, a escrita e a fala rebuscada
Ainda bem, pois de sua boca ressoavam outros saberes
Aqueles dos quais eu cotidianamente aprendia
Histórias-poesia guiadas pela luz do teu sorriso
Mesmo em meio à precariedade de cada dia
II
Ainda jovem precisei sair
Por terra estranha e de gente desconhecida, percorri.
Tão inexperiente e desacreditada, te levei no coração e na mente
Pouco entendia dessa estrada
E confiei na jornada que se apresentava à minha frente
Me questionava se o caminho poderia me levar pra casa
Mas acho que nunca estive tão equivocada
Pai, eu também estou tentando ganhar nesse "mundo"
No entanto, há poucas chances pra nós nessa batalha
Então mergulhei em meio a livros, escritas e normas
Me cansei de querer demais ou de menos
Adentrei as geo-grafias da nossa família
Dos trajetos e traços desde África
Dos movimentos complexos de resolução desse corpo em deslocamento
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Tudo isso pra te dizer que eu posso até não ter ganhado ainda
Mas eu te garanto, pai
Não estamos mais perdendo.
Referências
CIRQUEIRA, D. M. Entre o corpo e a teoria: a questão étnico-racial na obra e trajetória de
Milton Santos. Dissertação de Mestrado Programa de Pós-Graduação do Instituto de
Estudos Sócio-Ambientais. Goiânia: UFG. 2010.
GUIMARÃES, G. F. Geo-grafias negras & Geografias negras. Revista da Associação
Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), [s. l.], v. 12, n. Ed. Especial, p. 292311,
2020. Disponível em: https://abpnrevista.org.br/site/article/view/866. Acesso em: 2 jan. 2024.
SOUZA, L. F. Corpos negros femininos em movimento: trajetórias socioespaciais de
professoras negras em escolas públicas. Dissertação de Mestrado. Instituto de Estudos Sócio-
Ambientais. Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Geografia, 2007.