Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
MENDONÇA, Márcio José. Guerra Urbana em Gaza: 100 dias de combate entre Israel e Palestina. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 11, nº
24, e112415, 2024.
Submissão em: 04/02/2024. Aceito em: 27/06/2024.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons
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SEÇÃO ARTIGOS
Guerra Urbana em Gaza:
100 dias de combate entre Israel e Palestina
Urban Warfare in Gaza:
100 days of fighting between Israel and Palestine
Guerra Urbana en Gaza:
100 días de combate entre Israel y Palestina
DOI: https://doi.org/10.22409/eg.v11i24.61784
Márcio José Mendonça
1
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
Espírito Santo, Brasil
e-mail: marcioriei@hotmail.com
Resumo
Este artigo analisa o emprego de táticas, tecnologias e abordagens de guerra urbana entre Israel e a resistência
palestina, cuja principal facção é o Hamas, sitiada na Faixa de Gaza, ao longo de cem dias de combate, entre
outubro de 2023 e janeiro de 2024. Para efeito de estudo, o artigo realiza uma abordagem dialética das trajetórias
dos grupos armados em conflito no espaço urbano da Faixa de Gaza com o propósito de compreender as dinâmicas
espaciais implicadas no espaço de batalha. Dessa maneira, busca, por meio da análise comparativa de interpretação
socioespacial/territorial do conflito, evidenciar as concepções de combate aplicadas no terreno a partir das táticas
e formas de organização do território, bem como os respectivos meios militares empregados. As dinâmicas
espaciais dos grupos armados em disputa no território configuram o espaço de batalha ordenado por múltiplas
camadas espaciais. Com enfoque nas táticas dos grupos em combate no espaço urbano da Faixa de Gaza, observa-
se que Israel opera por meio do urbicídio, pratica que consiste na destruição deliberada do espaço urbano enquanto
política de guerra. Por sua vez, os grupos palestinos, em sua luta insurgente, usam do ambiente urbano para
organizar suas ações de resistência em situação de combate urbano.
Palavras-chave: Guerra urbana; Faixa de Gaza; Israel; Hamas; Espaço de batalha.
1
Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal do Espírito Santo UFES.
Professor de Geografia da Rede Estadual do Espírito Santo SEDU-ES.
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MENDONÇA, Márcio José. Guerra Urbana em Gaza: 100 dias de combate entre Israel e Palestina. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 11, nº
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Abstract
This article examines the tactics, technologies, and approaches employed by Israel and the Palestinian resistance,
with Hamas as the primary faction, in urban warfare over the course of a hundred days of combat between October
2023 and January 2024. In order to gain a deeper understanding of the spatial dynamics involved in the battle
space, this study employs a dialectical approach to the trajectories of the armed groups in conflict in the urban
space of the Gaza Strip. In this manner, through a comparative analysis of the socio-spatial/territorial interpretation
of the conflict, the objective is to highlight the conceptions of combat applied on the ground based on the tactics
and forms of organization of the territory, as well as the respective military means employed. The spatial dynamics
of the armed groups in dispute in the territory configure the battle space ordered by multiple spatial layers. By
focusing on the tactics employed by the groups engaged in combat in the urban space of the Gaza Strip, it becomes
evident that Israel employs the practice of urbicide, which can be defined as the deliberate destruction of urban
space as a war policy. In contrast, the Palestinian groups engaged in insurgent struggle utilize the urban
environment to organize their resistance actions in urban combat situations.
Keywords: Urban warfare; Gaza Strip; Israel; Hamas; Battlespace.
Resumen
Este artículo analiza el uso de tácticas, tecnologías y enfoques de la guerra urbana entre Israel y la resistencia
palestina, cuya facción principal es Hamás, asediada en la Franja de Gaza, en el transcurso de cien días de combate
entre octubre de 2023 y enero de 2024. A los efectos de este estudio, el artículo adopta un enfoque dialéctico de
las trayectorias de los grupos armados en conflicto en el espacio urbano de la Franja de Gaza con el fin de
comprender la dinámica espacial implicada en el espacio de batalla. De este modo, pretende, mediante un análisis
comparativo de la interpretación socioespacial/territorial del conflicto, poner de relieve las concepciones del
combate aplicadas sobre el terreno a partir de las tácticas y formas de organización del territorio, así como de los
respectivos medios militares empleados. La dinámica espacial de los grupos armados en disputa en el territorio
configura el espacio de batalla organizado por múltiples capas espaciales. Centrándonos en las tácticas de los
grupos que luchan en el espacio urbano de la Franja de Gaza, se observa que Israel opera mediante el urbicidio,
una práctica que consiste en la destrucción deliberada del espacio urbano como política de guerra. A su vez, los
grupos palestinos, en su lucha insurgente, utilizan el entorno urbano para organizar sus acciones de resistencia en
situaciones de combate urbano.
Palabras clave: Guerrilla urbana; Franja de Gaza; Israel; Hamás; Espacio de batalla.
Introdução ao conflito (urbano) Israel vs Palestina
Israelenses e palestinos estão em conflito várias décadas e, nos últimos anos, a
experiência de guerra entre eles tem sido caracterizada por uma significativa evolução em
táticas e estratégias voltadas para a aplicação em terreno urbano, incluindo a Cisjordânia, a
Faixa de Gaza e o território libanês. Durante a invasão do Líbano, em 1982, após pesadas baixas
que as Forças de Defesa de Israel (FDI) sofreram em ambiente urbano, combatendo em cidades
e aldeias palestinas, os combates entre Israel e a resistência árabe-palestina, que antes se
desenvolviam em campo aberto, a exemplo dos conflitos de 1948, 1967 e 1973, ocorriam agora,
especialmente, em cidades. Essa mudança do campo de batalha para as cidades foi então
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compreendida como parte de um processo de urbanização da guerra em que forças de libertação
nacional, com menor capacidade militar, frente a exércitos convencionais bem equipados,
entrincheiram-se nas cidades, passando a usar o espaço urbano como abrigo e campo de batalha.
Com enfoque na guerra em ambiente urbano, este artigo aborda os meios militares
empregados na guerra urbana moderna entre Israel e a resistência palestina, deflagrada quando,
em 7 de outubro de 2023
2
, o Hamas, principal grupo palestino organizado em Gaza, iniciou
operações militares de invasão nos Territórios Ocupados por Israel, decorrendo daí uma guerra
urbana travada no território da Faixa de Gaza. Nessa perspectiva, ao levar em consideração
todas as manifestações do conflito e compará-las, o artigo objetiva caracterizar as diferentes
variáveis táticas de combate empregadas por Israel e os grupos palestinos com o propósito de
compreender as dinâmicas socioespaciais implicadas no conflito e como diferentes táticas e
concepções de combate urbano empregadas no terreno configuram o cenário do espaço de
batalha na Faixa de Gaza.
Espaço de batalha (urbano) e o conflito na Faixa de Gaza
A compreensão do conflito em ambiente urbano entre israelenses e palestinos na Faixa
de Gaza demanda uma abordagem conceitual capaz de ir além da concepção de campo de
batalha, em vista da complexidade do ambiente de sua deflagração e dos diferentes meios
empregados em combate urbano naquele território. Logo, é preciso esclarecer que o conceito
de espaço de batalha difere em muito da noção de campo de batalha, espaço em geral amplo e
aberto, em sentido mais convencional. Para o geógrafo britânico Stephen Graham (2011),
especialista no tema, o espaço de batalha não possui um front ou retaguarda, tampouco deve
ser tido como uma horizontalidade, uma simples superfície, mas sim um espaço profundo de
várias camadas, onde o combate ocorre sempre de maneira simultânea à vida e a qualquer outra
atividade. “O conceito de espaço de batalha permeia tudo, indo das escalas moleculares da
engenharia genética e da nanotecnologia, passando pelos espaços cotidianos e experiências da
vida da cidade, até esferas planetárias do espaço e o ciberespaço da internet que atravessa o
2
Sobre os acontecimentos do dia 7 de outubro, ver o documentário da rede de notícias “Al Jazeera”, 7 de Outubro,
disponível no seu canal no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=lwJwlPOHjec&rco=1.
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globo” (Graham, 2011, p. 31, tradução nossa)
3
. Na perspectiva em evidência, o espaço de
batalha, por excelência, é o próprio espaço urbano, tomado como campo de batalha, terreno
complexo e com diferentes níveis ou camadas espaciais, repleto de estruturas. É um ambiente
em que os combates ocorrem em “espaços comuns” ou “ordinários”, em meio às salas de estar,
às escolas, aos hospitais e aos supermercados, isto é, em qualquer lugar, o que inclui vias de
acesso como avenidas, ruas e becos, além do interior dos edifícios e estruturas subterrâneas,
tais como galerias e redes de comunicação ou túneis, lugares que são inerentes à própria vida
cotidiana em muitas cidades, como em Gaza e outros lugares.
O cenário da guerra urbana mais comum na atualidade não é algo recente, seja nas
cidades ou em fortes e castelos, e tem sido uma característica da guerra desde a antiguidade.
Muitos dos princípios reconhecidos que caracterizam a guerra urbana hoje eram amplamente
aplicáveis ao período pré-moderno e, para sua melhor apreciação, aos tempos modernos, John
Spencer (2021) oferece uma lista útil de oito critérios para descrever os princípios fundamentais
da guerra urbana moderna que, de acordo com Morag (2023), em síntese, são:
1. Os defensores quase sempre têm uma vantagem tática, especialmente em cidades,
embora isso não signifique que estas necessariamente terão sucesso no nível operacional ou
estratégico de um conflito;
2. O terreno urbano inibe a capacidade da força atacante de usar inteligência, vigilância,
reconhecimento, implantação de meios aéreos e enfrentar os defensores à distância;
3. As forças atacantes têm dificuldade em alcançar o elemento surpresa, pois eles são
monitorados pelas tropas de defesa, que podem permanecer escondidos dos atacantes;
4. Os edifícios, especialmente os feitos de vigas de concreto reforçado ou de pedra,
servem como bunkers fortificados a partir dos quais as forças de defesa podem disparar sobre
as forças atacantes;
5. Os invasores costumam usar munições, às vezes poderosas, para acessar edifícios e
negá-los às forças de defesa;
3
No original: “The concept of battlespace thus permeates everything, from the molecular scales of genetic
engineering and nanotechnology through the everyday sites, spaces and experiences of city life, to the planetary
spheres of space and the Internet’s globe-straddling cyberspace”.
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6. Os defensores têm a vantagem de uma circulação relativamente livre dentro da cidade
e conhecimento íntimo das ruas, dos becos e dos labirintos quando não estão sob vigilância
ou ataque por veículos aéreos não tripulados ou por outros meios;
7. Os defensores podem construir túneis, depósitos de armas e uma série de outras
instalações subterrâneas e usá-las para acessar vários locais ao redor da cidade. Os invasores
geralmente têm pouco ou nenhum conhecimento sobre esses lugares;
8. Nem as forças de ataque nem as de defesa podem dispor dos seus recursos numa
localização de forma concentrada. A concentração de forças é um dos fatores decisivos na
guerra convencional no campo de batalha, pois, historicamente, o objetivo das operações de
campo era concentrar suas forças para dizimar o exército inimigo. A incapacidade de usar forças
em massa tem desvantagens para ambos os lados, mas, no caso da força de defesa em tela, que
é uma força irregular, e a força de ataque, que é uma força militar moderna o que aconteceu
em muitos casos da guerra urbana moderna s-Segunda Guerra Mundial os recursos
tecnológicos, numéricos, as vantagens de treinamento e equipamento de um exército moderno
não podem, em muitos casos, ser aplicados tão eficazmente quanto seria possível em condições
abertas de guerra. Assim, a força militar moderna é muitas vezes forçada a lutar junto de
combatentes irregulares, com ambos os lados estando amplamente equiparados, uma vez que
carregam tipos de equipamentos semelhantes, e a vantagem de treinamento que um soldado
moderno tem pode ser relativamente negada pelo fato de o conhecimento do terreno
proporcionar uma defesa irregular ao combatente. Além disso, os defensores irregulares
geralmente têm tempo suficiente para preparar a sua cidade para o conflito, incluindo a tomada
de medidas como a escavação de túneis, a construção de depósitos de munições, o
estabelecimento de posições de atiradores, a implantação de armadilhas e o planejamento de
emboscadas.
Dessa forma, o conflito urbano, muitas vezes uma guerra irregular, travada em áreas
edificadas, difere do combate convencional, ao ar livre, tanto no nível operacional quanto no
nível tático. Fatores que incluem a presença de civis e a complexidade do terreno urbano são
complicadores e devem ser levados em consideração no combate pelo controle da cidade, pela
posse e pelo uso do espaço urbanizado, que incluem rotas e recursos e muitas outras variáveis.
Isto posto, este artigo, ao analisar o mais recente conflito entre Israel e as facções palestinas
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sitiadas em Gaza, além de consultar pesquisas especializadas no assunto, examina um extenso
material constituído de gravações de vídeos feitos por combatentes, anônimos e jornalistas,
referindo-se diretamente do campo de batalha. Por meio dessas fontes, repercutidas na internet
em inúmeras redes sociais, fez-se uma avaliação criteriosa das operações militares em terreno
urbano na Faixa de Gaza considerando as regras e os princípios fundamentais que, segundo
Spencer, regem uma guerra dessa natureza.
Urbicídio e desmodernização forçada como método de guerra urbana por Israel em Gaza
O conflito israelo-palestino é certamente revelador de uma política de guerra em que se
visa, como alvo, a urbanidade, ou seja, a própria cidade ou o espaço urbano, considerada a
estrutura urbana como um todo. Ademais, a guerra entre palestinos e israelenses ocorre em
termos de uma política de violência urbicida, em que ambos os lados estão atacando os espaços
da vida urbana cotidiana com armas para interromper ou destruir a urbanidade sobre a qual se
apoia a vida do inimigo. Israel, contudo, possui considerável superioridade bélica, sendo capaz
de provocar o que Stephen Graham (2004a) chamou de “desmodernização forçada” da
sociedade urbana palestina, isto é, uma forma de regressão econômica e social baseada na
destruição da estrutura urbana. Os palestinos, por seu turno, como forma de resistência aos
ataques israelenses, utilizam, além do lançamento de foguetes direcionados ao território
israelense, táticas de guerrilha e insurgência em ambiente urbano, ou, como muito se usou no
início dos anos 2000, atentados em ônibus e em locais públicos.
Diante do novo cenário de combate em ambiente urbano, após pesadas baixas na década
de 1980 no conflito urbano no Líbano, quando suas tropas foram alvo de atiradores e
emboscadas, Israel reorientou a sua política de guerra colocando na mira a infraestrutura social
da qual depende a sociedade palestina e a qual os combatentes utilizam como abrigo. Por conta
da experiência desastrosa no Líbano, Ariel Sharon adotou uma estratégia direta sustentada por
uma política de demolição de bairros inteiros pela FDI na primavera de 2002 com o objetivo
de compelir os palestinos a um quadro de miséria e pobreza, destruindo milhares de casas. Em
sentido estratégico, compreende-se que essa destruição é parte de uma política tridimensional,
que consiste em configurar o território para abrir espaço para operações das tropas israelenses
e permitir a expansão territorial de Israel, deslocando palestinos forçadamente, enquanto
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modela o território para controla-lo de maneira mais eficaz (Graham 2004a; Weizman 2002,
2004, 2012). Este método está sendo colocado em prática mais uma vez em Gaza por Benjamin
Netanyahu, com uso de bombardeios e incursões de tanques e blindados para nivelar o terreno
e impedir o uso da estrutura urbana não como meio de experiência de vida coletiva, mas
também como abrigo da resistência palestina (ver Figura 1).
Figura 1 Compilação de imagens aéreas da Faixa de Gaza
As imagens reas do antes e o depois dos bombardeios israelenses revelam destruição e nivelamento, por
completo, de extensas áreas urbanas na Faixa de Gaza.
Fonte: RT no Instagram, 26/10/2023.
Tais ataques e demolições ocorrem em lugares estratégicos a fim de inviabilizar a
contiguidade do espaço geográfico ocupado pelos palestinos, de forma que as edificações
visadas são cuidadosamente selecionadas para aumentar o controle territorial israelense. Da
mesma forma, plantações, parques e áreas sociais também são destruídas para abrir caminho
para blindados ou simplesmente tornar a área inabitável (Weizman 2002, 2004, 2012).
Por meio de ataques aéreos usados para nivelar o terreno e destruir a estrutura urbana,
empregando pesados bombardeios sob alegação de presença de militantes palestinos no interior
dos edifícios ou em seu subsolo, Israel visa uma rede de túneis subterrâneos abaixo dos edifícios
uma vez que, no subsolo, os militantes palestinos estão protegidos dos ataques israelenses,
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incapazes de os atingir nas profundezas da estrutura dos túneis. Através dessa extensa rede de
túneis, conhecida como Gaza Inferior” ou “Metrô de Gaza”, a militância palestina ainda dispõe
de centros de armazenamento de munição e uma série de abrigos onde os militantes das facções
de Gaza permanecem escondidos e fora do alcance das armas convencionais de Israel. Na
tentativa de destruir a rede de túneis que abriga a resistência palestina, Israel tem empregado
um tipo de bomba de penetração guiada própria para perfurar e destruir instalações ou
complexos militares fortificados, conhecidas como Bunker Buster, especialmente fabricadas
para arrasar bunkers subterrâneos. Essas bombas possuem grande capacidade de detonação e
provocam muita destruição em seu entorno ao atingir edifícios e áreas densamente povoadas,
comuns em Gaza. Apesar disso, Israel reiteradamente justifica o seu uso em áreas civis com o
objetivo declarado de desalojar a resistência palestina entrincheirada nos túneis, alegando, para
tanto, que suas armas agem de forma cirúrgica, causando danos mínimos à população e à
estrutura urbana, quando a verdade é que a vida coletiva em Gaza é alvejada sistematicamente.
Vale salientar, ainda, que, aparentemente, os bombardeios israelenses não têm sido
suficientemente eficientes na missão de desativar a rede de túneis no interior da Faixa de Gaza
e, por isso, Israel tem usado de pequenas incursões de soldados e emprego de cães policiais,
além de ter colocado em ação pequenos drones e robôs com o propósito de mapear a extensa
rede de túneis embaixo de Gaza na tentativa de caçar os militantes palestinos escondidos no
interior de suas estruturas. Para isso, outra tática utilizada recentemente por Israel consiste em
bombear água do oceano para dentro dos túneis, na tentativa de inundá-los. Entretanto, o
método mais comum é obstruir as saídas dos túneis com escavadeiras ou com o uso de
explosivos, quando identificados. Para colocar fins aos túneis, Israel estuda a possibilidade de
empregar “bombas de esponja”, conhecidas pelo nome de Yahalom, que, ao serem detonadas
no interior dos túneis, causariam uma vedação automática de suas estruturas ao espalhar com a
explosão um tipo de esponja, selando suas entradas. Logo, as descritas movimentações e táticas
empregadas por Israel no campo de batalha, além de serem, em parte, anunciadas pelos canais
de comunicação israelenses, agora, diferente da maioria dos conflitos anteriores, são tornadas
de conhecimento público por meio do uso de celulares na cobertura da guerra feita por não-
combatentes e pela imprensa independente, ou, de forma recorrente, por grupos armados
palestinos que estão combatendo a FDI na Faixa de Gaza.
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De outro modo, além de ataques aéreos e táticas de incursão nos túneis, Israel tem
utilizado enquanto método de guerra urbana, aquilo que Graham chamou de “desmodernização
forçada”, isto é, uma tática de combate urbano que consiste na condução de escavadeiras
blindadas das FDI, conhecidas como Caterpillar D9
4
, concebidas para destruir áreas palestinas
construídas, removendo estradas e calçamentos de ruas, redes de energia elétrica e água, além
de habitações, entre outros alvos visados. Como enalteceu um condutor da escavadeira ao
derrubar uma casa palestina, sua ação estaria enterrando 40 ou 50 pessoas por gerações
(Graham, 2004b). Em vista disso, ao destruir casas palestinas, a ação de Israel não configuraria
uma ação para atender um objetivo militar legítimo, mas, em espectro amplo, no tempo e no
espaço, uma estratégia demográfica calculada para expulsar e impedir o retorno de palestinos
ao território ao causar precariedade urbana e desestruturação do ambiente de forma a tornar
inviável a manutenção da vida moderna no território pelo processo de desmodernização
aplicado (Weizman 2002, 2004, 2012; Graham 2004b; Abujidi 2014).
De fato, destruir qualquer possibilidade de um futuro Estado Palestino, aniquilando a
sua infraestrutura urbana e os seus símbolos culturais da paisagem, consiste em uma estratégia
antiga da geopolítica de Israel para impedir a rápida urbanização palestina e seu crescimento
demográfico dentro de Israel e nos Territórios Ocupados, o que poderia alterar o equilíbrio
demográfico na região a favor dos palestinos (Graham, 2004b). Esse foi, inclusive, o “alerta
vermelho” de Arnon Soffer, conceituado demógrafo israelense, em 2001. Segundo ele, o futuro
do Estado de Israel estaria ameaçado a longo prazo pelo crescimento das cidades e aldeias
palestinas. Para Soffer, o crescimento urbano proporcionado pelos palestinos configuraria uma
importante mudança urbano-demográfica em desfavor dos israelenses. Graham cita os
argumentos de Soffer, que faz menção à fabricação de uma ficção, de uma suposta “ameaça
existencial”, talvez se referindo à ideia de um segundo Holocausto, se o crescimento
populacional e processo de urbanização palestino continuasse:
O processo de urbanização em torno das fronteiras de Israel vai resultar em uma
grande população árabe, que sofre com a pobreza e a fome, em torno do Estado judeu.
4
Um vídeo do canal “Sala de guerra”, intitulado Como funciona a temida escavadeira blindada israelense, no
Youtube, oferece uma análise interessante das escavadeiras blindadas de Israel e a evolução de seu emprego em
operações militares em ambiente urbano ao longo do tempo. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=Fz0gBcDE_So&list=WL&index=192.
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Essas áreas tendem a se tornar um terreno fértil para a evolução de movimentos
radicais Islâmicos... Na zona árabe o processo leva a uma urbanização de natureza
selvagem, decorrente da ausência de uma política de planejamento e, em particular, a
falta de fiscalização e aplicação da lei de construção. Todo mundo constrói como
entende, e o resultado é centenas de vilarejos ilegais espalhados em todas as direções
(Soffer, 2001 apud Graham, 2004b, p. 203, tradução nossa)
5
.
Apropriando-se dessa gica, Efraim Eitam, general aposentado das FDI, concebeu os
Territórios Ocupados como uma “bomba relógio demográfica e social” que a qualquer
momento poderia explodir sobre Israel. Valendo-se disso, Eitam enfatizou que a construção
espontânea de moradias palestinas seria um tumor cancerígeno destruindo o Estado de Israel, e
que áreas urbanas e edifícios devem ser tratados, enfaticamente, como armas. Afirmações tais
como as de Soffer e Eitam têm por intuito retratar áreas urbanas palestinas como territórios
incognoscíveis, que abrigam “ninhos de terroristas”. Assim, justificam políticas que podemos
chamar de urbicidas, ou, simplesmente, de urbicídio, que se utilizam de ataques que visam a
estrutura urbana sensível com o propósito de destruir e expulsar a população das áreas urbanas
densamente povoadas, como tem sido colocado em prática por Israel (Graham, 2004b).
Desse modo, por urbicídio, entende-se toda e qualquer ação com fins políticos e por
meios militares cujo objetivo seja causar significativa destruição do ambiente urbano de forma
deliberada com o propósito de prejudicar uma determinada população em termos de uso do
espaço, o que pode culminar em seu deslocamento forçado ou extermínio físico. Para tanto,
vale ressaltar que o ataque urbicida visa a estrutura urbana que apoia ou promove sustentação
à vida coletiva do inimigo, e que os alvos da guerra urbicida não são apenas combatentes, mas
a população civil como um todo. Por isso, Martin Coward (2004, 2009), seguindo esse
raciocínio, argumenta que o urbicídio compreende uma forma de guerra que não pode ser
separada de outras estratégias de aniquilação, como o genocídio, o etnocídio e o politicídio.
Shaw (2004), por sua vez, afirma que as cidades não sofrem sozinhas, pois sua miséria está
vinculada à miséria mais ampla de sociedades inteiras; por isso, o urbicídio precisa ser
5
No original: “The process of urbanization around Israel’s borders will result in a large Arab population, suffering
from poverty and hunger, surrounding the Jewish state. These areas are likely to become fertile ground for the
evolvement of radical Islamic movements In the Arab zone the urbanization process takes on a wild nature,
stemming from the absence of planning policy and, in particular, a lack of supervision and enforcement of
construction law. Everyone builds as he [sic] sees fit, and the result is hundreds of illegal villages spreading in all
directions”.
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11
compreendido como um elemento amplo da guerra genocida travada na cidade. Segundo
Coward, a destruição de formas específicas de urbanidade é perfeitamente compreensível como
um exemplo de genocídio, como enfatiza Shaw. No entanto, o termo urbicídio implica uma
distinção entre a violência exercida sobre o ambiente construído e a limpeza étnica, conduzida
por genocídio. Logo, genocídio compreende práticas de extermínio de nações e grupos étnicos,
enquanto urbicídio, embora se baseie numa semelhança lexical-conceitual com genocídio,
salienta, em sua própria razão, a destruição sistemática do ambiente construído.
Ademais, para um debate conceitual mais amplo sobre o urbicídio e suas abordagens,
sugerimos a leitura do trabalho de Martin Coward (2004, 2009) no estudo da Guerra da Bósnia,
e, sobre o Conflito na Palestina, os trabalhos de Stephen Graham (2004a, 2004b, 2011), Nurhan
Abujidi (2014), Francesco Chiodelli (2021) e Eyal Weizman (2002, 2004, 2012), embora este
último nem sempre empregue o termo urbicídio em suas análises. Não menos importante,
indicamos também a pesquisa de Deen Sharp (2016) para o caso da Síria e o trabalho de Sara
Fregonese (2009) para o urbicídio no Líbano. Além disso, em uma ampliação do escopo de
análise, recomenda-se a consulta a Márcio Mendonça (2022) para o caso do Rio de Janeiro.
Para uma leitura em que se esboça uma análise para fins práticos entre urbicídio e genocídio,
recomenda-se o texto de Martin Shaw (2004).
Assim, em vista dos demais exemplos de urbicídio, o praticado por Israel em Gaza
consiste num dos métodos mais apurados de destruição do espaço urbano como parte de um
programa de privação infligido aos palestinos. Essa estratégia se baseia na negação do exercício
à vida urbana e no impedimento de acesso ou uso dos recursos da cidade e da infraestrutura
urbana em sua posse e direito, em sentido direto. Por esse modo, o urbicídio como forma de
aniquilação urbana de toda infraestrutura de Gaza compreende não a destruição do espaço
sico urbanizado que possibilita a vida enquanto instância urbana, mas a cultura e a memória
da população da cidade atacada, por meio da destruição do substrato no qual se apoia a
experiência da vida coletiva, em sua multiplicidade, no espaço urbano.
No atual cenário de guerra em Gaza, e por causa da destruição do ambiente urbano,
incluindo a destruição de diferentes tipos de estrutura como escolas, hospitais, mesquitas e
sistemas de rede elétrica e de água, é o uso do espaço urbano que está em jogo no processo de
destruição da Faixa de Gaza e de todo o seu território urbanizado. Portanto, é preciso
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
MENDONÇA, Márcio José. Guerra Urbana em Gaza: 100 dias de combate entre Israel e Palestina. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 11, nº
24, e112415, 2024.
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compreender o momento paradigmático vivenciado em Gaza com a destruição da estrutura
urbana como método de guerra e técnica de genocídio na/da cidade, não eliminando
diretamente indivíduos com ataques a civis, mas empreendendo a destruição ampliada, a longo
prazo, de toda a estrutura urbana que sustenta a vida, tornando esse território inabitável.
Com ataques aéreos e os efeitos colaterais das bombas, o número de vítimas em Gaza
certamente é subestimado, podendo, em apenas três meses de guerra, alcançar algumas dezenas
de milhares de casos, consideradas as estimativas mais conservadoras. Contudo, com a
destruição de toda a estrutura urbana e os subsequentes efeitos causados à população no
território a longo prazo, essas estatísticas tendem a se agravar. Com a destruição da maior parte
das habitações de Gaza, de postos médicos, da rede de água e de esgoto, e com a provável
proliferação de doenças, o número de vítimas pode aumentar consideravelmente, revelando o
terror do método do urbicídio empregado por Israel em sua guerra contra a população de Gaza.
Todavia, o método do urbicídio, embora caracterizado pela destruição, não implica
somente em destruir, que também pode ser construtivo e produzir novos arranjos espaciais.
Tanto destruir para desterritorializar grupos-alvo e acabar com uma dada ordem espacial quanto
construir para territorializar uma nova dinâmica fazem parte do método brido do urbicídio.
Esse método incorpora uma nova lógica de construção no processo de destruição, articulando
ambas as ações dentro de uma dinâmica particular de exclusão e inclusão
6
.
Um exemplo anterior à situação em Gaza é a revolta de Hama em 1982, durante o
governo de Hafez al-Assad, pai do atual presidente sírio Bashar al-Assad, ocasião em que a
cidade foi dizimada para sufocar a revolta liderada pela Irmandade Muçulmana. Assim, “o
urbicídio de Hama implicou a destruição deliberada de todo o tecido urbano da cidade e,
significativamente, o processo continuou com uma reconstrução projetada para impor um novo
arranjo” (Sharp, 2016, p. 128, tradução nossa)
7
. Dessa forma, o urbicídio pode, paradoxalmente,
gerar novos espaços e configurações territoriais pois, enquanto alguns são expulsos, outros são
6
Para uma leitura mais completa dos processos de des-re-territorialização, que implicam dinâmicas próprias de
construção e desconstrução de territórios na perspectiva dos aglomerados humanos de exclusão descritos por
Haesbaert territórios marcados por relações de precariedade física e simbólica, como os campos de refugiados
comuns em Gaza e na Cisjordânia , recomenda-se a leitura de seus trabalhos de 2007, 2009 e 2014.
7
No original: “The urbicide of Hama entailed the deliberate destruction of the city’s entire urban fabric and,
significantly, the process continued with a reconstruction designed to enforce a new urban arrangement”.
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territorializados. O processo de expansão dos assentamentos coloniais sionistas, que começou
com a fundação do Estado de Israel em 1948 e continua até os dias atuais, também é marcado
pela expulsão de palestinos de suas cidades, aldeias e demais terras de modo geral por meio de
violência política e ações militares. Um típico processo de colonização, baseado na instalação
de assentamentos israelenses que caracterizam a urbanização de natureza urbicida, geradora de
novos arranjos espaciais fortificados e altamente seletivos.
Tais ações, além de causarem destruição e pilhagem características do urbicídio, têm
desenvolvido formas de expropriação de populações palestinas, extremamente precarizadas por
anos de bloqueio econômico e privação de recursos básicos. Isso ocorre não somente pela
destruição de seus equipamentos urbanos, mas também pela apropriação ilegal da infraestrutura
urbana e dos usos e recursos disponíveis na cidade, que são usurpados dessa população. Israel
controla grande parte do fornecimento de energia elétrica e água potável na região e, como
estratégia de cerco para punir a população, bloqueia o fornecimento desses itens aos palestinos
de Gaza conforme seus critérios. Além disso, bombardeia centrais autônomas de energia e
poços de água escavados em Gaza para privar os palestinos de qualquer fonte de água e energia.
Outra ação recorrente de Israel no conflito são seus frequentes ataques a hospitais e
prontos-socorros, visados agora em bombardeio em uma escala sem precedentes. A bem da
verdade, toda a estrutura urbana e social da Faixa de Gaza tem sido visada por Israel em seus
ataques, como atesta o alto índice de médicos e funcionários da saúde mortos em atentados não
contra edifícios e equipamentos hospitalares, mas também ambulâncias, em ocorrências para
atender urgências médicas, além da eliminação de jornalistas realizando a cobertura da guerra
e até mesmo professores, com alta taxa de letalidade no conflito
8
.
É nesse sentido que o conceito de urbicídio assume papel de instrumento de análise para
identificar formas de negação de acesso à cidade a partir da violência política instrumentalizada
no espaço urbano, cujo uso militar é uma característica essencial da destruição da organização
política e social de Gaza, bem como de qualquer possibilidade de experiência urbana e vida
8
Para mais detalhes, conferir as entrevistas de Ualid Rabah, presidente da Federação Árabe-Palestina no Brasil
(FEPAL), no Youtube: Gaza amanhã: como será a vida do povo mais resistente do mundo, de 16 de dez. de
2023, disponível no canal da Rede TVT em https://www.youtube.com/watch?v=F5FCSCHN-sc e Forças do Brasil
Anatomia do genocídio, com Ualid Rabah, de 20 de jan. de 2024, pelo canal TV 247, disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=DTBJkD07QX4&list=WL&index=249.
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coletiva no território. Para tanto, basta verificar que, além da destruição provocada por
bombardeios e pela incursão de blindados em Gaza, após avançar no terreno, Israel tem
implodido conjuntos habitacionais inteiros, não necessariamente atingidos ou danificados de
forma comprometedora, sob alegação de que no subterrâneo, abaixo dos edifícios, haveria
túneis ligados às facções palestinas, impedindo assim que as populações deslocadas retornem
às suas casas após o término do conflito (ver Figura 2).
Figura 2 Quarteirão na Faixa de Gaza é explodido por Israel sob alegação de esconder
túneis subterrâneos, usados pela resistência palestina
Fonte: Geopolítica hoje no Instagram, 24/12/2023.
Outrossim, o alto número de mulheres e crianças vítimas dos ataques de Israel, revela
também o intuito de atingir, ou talvez, até mesmo, de comprometer a demografia palestina em
Gaza, prejudicando o crescimento demográfico da população, sobretudo diante do fato de que
a estrutura hospitalar nesse território se encontra totalmente comprometida, impedindo que
gestantes possam acessar os hospitais para dar à luz. Pode-se afirmar que esse é um claro
exemplo de limpeza étnica, típica do genocídio, como método de guerra urbicida, em que se
visa as estruturas sensíveis para atingir os sujeitos mais vulneráveis do lugar
9
.
9
Sobre o uso do urbicídio como método de guerra para atingir estruturas urbanas sensíveis como pontes, escolas,
hospitais, redes de distribuição de energia elétrica e água, entre outros equipamentos urbanos, para causar danos à
população e, assim, provocar o seu deslocamento forçado ou eliminação física, consultar Coward (2004, 2009),
Graham (2004b), Weizman (2002, 2004, 2012) e Abujidi (2014).
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Ainda assim, o urbicídio praticado por Israel assume um comportamento híbrido,
associando destruição e produção do espaço urbano com novos projetos de urbanização de
Gaza, patrocinados ou apoiados pelo Estado, os quais operam por meio da
espoliação/despossessão, configurando uma nova economia-política do espaço urbano. Esse
mecanismo é denominado “urbanização do urbicídio”
10
, uma forma de operacionalização da
atividade urbicida, de cunho espoliativo, que participa da produção do espaço urbano gerando
economias políticas predatórias que organizam um nicho de mercadorias e serviços urbanos
engendrados por políticas de segregação, de perfil discriminatório e excludente (ver Figura 3).
10
Para uma leitura da conceptualização de urbanização do urbicídio na perspectiva destacada acima, conferir
Márcio Mendonça, Espaço de batalha e urbicídio na cidade do Rio de Janeiro (2022).
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Figura 3 Publicação de construtora imobiliária israelense anunciando casas luxuosas à
beira-mar sobrepostas a uma foto real de Gaza bombardeada
Um exemplo da forma pela qual o urbicídio opera, muitas vezes, pela ressignificação de outra lógica. Neste caso,
desterritorializando os palestinos para territorializar israelenses em seu lugar
11
.
Fonte: RT no Instagram, 22/12/2023.
Em outras palavras, o urbicídio funciona simultaneamente como um mecanismo de
destruição-desterritorialização e de construção-(re)territorialização. Esse método permite, no
mesmo lugar, efetuar um programa de construção de um novo arranjo espacial, gerador de
outras dinâmicas. Em termos simples, trata-se de expulsar os palestinos para abrir espaço para
outras economias geradoras e projetos de “revitalização” urbana, permitindo a expansão dos
assentamentos israelenses dentro de Gaza por meio de novos empreendimentos imobiliários.
11
Mais detalhes sobre colonos israelenses que planejam construir na orla de Gaza, em “BBC News Brasil”:
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72dn1471p2o.
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Esse é o método do urbicídio como técnica de destruição da sociedade palestina e instrumento
de colonização israelense.
Urbanização e guerra profunda como tática de insurgência da resistência palestina em
Gaza
Experiências militares nas últimas décadas evidenciam o deslocamento dos campos de
batalha para as cidades, com aplicação de táticas e estratégias de combate no ambiente urbano.
Isso ocorre em virtude do avanço da tecnologia militar e superioridade dos Exércitos
convencionais na luta contra grupos rebeldes na medida em que combatentes, equipamentos e
ativos militares, no campo aberto, não são capazes de sobreviver em desertos ou planícies, como
vimos em muitas das principais batalhas da história. Como resultado da evolução da tecnologia
militar, os inimigos de Exércitos convencionais e, sobretudo, de grandes potências militares,
têm sido forçados a se abrigar em cidades na tentativa de fugir para ambientes que ofereçam
maior engajamento e emprego do espaço urbano em seu proveito, portanto, uma resistência
baseada na cidade
12
.
O mesmo ocorreu no Iraque com as forças de Saddam Hussein que, enfraquecido à
altura da invasão norte-americana em 2003, tentou explorar Bagdá como um espaço defensivo.
Suas forças, de fato, esconderam-se nas cidades, a lembrar do exemplo de Fallujah, em que
grupos ligados ao antigo governo ofereceram uma feroz resistência aos invasores, apoiando-se
na cidade como forma de combate urbano. Mesmo antes da invasão de Bagdá pelos norte-
americanos, Tariq Aziz, ex-ministro das Relações Exteriores de Saddam, argumentou que,
embora os iraquianos não fossem os vietnamitas e não contassem com selvas para se esconder,
os iraquianos possuíam cidades, devendo usá-las em seu proveito no campo de batalha como
se estas fossem pântanos e os edifícios florestas. De todo modo, em muitos casos, os iraquianos
tentaram lutar em terreno urbano e estabeleceram suas bases perto de hospitais e escolas em
suas cidades (Graham, 2004c).
12
Um amplo debate sobre a militarização da questão urbana e deslocamento dos campos de batalha para as cidades
a partir da concentração de insurgentes que usam a infraestrutura urbana como recurso ou ativo militar está
disponível em Graham (2004a, 2011).
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No cenário atual, dado que grande parte da guerra moderna é assimétrica, forças
irregulares, como guerrilheiros e insurgentes, não podem esperar vencer seus adversários na
guerra em terreno aberto. Em função disso, devem contar com as vantagens de extensa
cobertura da estrutura civil oferecida pelas cidades no combate urbano. Evidentemente,
[...] a guerra urbana não é nova. Contudo, mesmo no período moderno, durante a
Segunda Guerra Mundial, a guerra urbana foi em grande parte irrestrita e não levou
em consideração de forma significativa a questão dos danos colaterais, tanto em
termos de danos flagrantes a propriedade e especialmente em termos de perda de vidas
entre não-combatentes. Daí, por exemplo, nas grandes batalhas urbanas da Segunda
Guerra Mundial, como aquelas de Stalingrado, Varsóvia e Berlim, a cidade em sua
totalidade serviu como alvo militar e, portanto, qualquer pessoa ou coisa nela estava
em perigo tornando-se dano colateral. O mesmo aconteceu com o bombardeio
estratégico de cidades como Hamburgo, Dresden e Tóquio durante a guerra. O
objetivo era capturar a cidade em operações terrestres ou bombardear massivamente
do ar para degradar a sua capacidade de contribuir para o esforço de guerra e
enfraquecer o moral dos seus habitantes. Além disso, com a notável exceção da
Batalha de Stalingrado que envolveu a captura e destruição de tropas alemãs dentro
e ao redor da cidade, as batalhas mais impactantes do mundo na Segunda Guerra
(Midway, Kursk, Overlord, Guadalcanal, El Alamein e outras) não ocorreram em
ambientes urbanos (Morag, 2023, p. 80, tradução nossa)
13
.
Entretanto, com o entrincheiramento de insurgentes e guerrilheiros nas cidades, o
combate passou por processos de urbanização, com o emprego de táticas e equipamentos
militares adaptados ao combate dentro das cidades. Diferente de espaços amplos e abertos,
ambientes urbanos de combate são muito próximos; assim, dentro e ao redor das casas e dos
edifícios, é muito difícil garantir a segurança de não-combatentes.
Isto limita a liberdade de movimento das forças invasoras convencionais e os torna
mais vulneráveis a ataques, enquanto as mortes de civis e a danos em propriedades
podem beneficiar as forças de defesa irregulares, atraindo atenção e ira contra as
forças invasoras. A morte de inocentes numa cidade pode influenciar a opinião blica
por parte dos habitantes na direção de fornecer apoio crescente às forças irregulares e
alimentar maior ódio às forças invasoras. Assim, os defensores urbanos desfrutam de
13
No original: “[...] urban warfare is not new. However, even in the modern period, as during World War II, urban
warfare was largely not holds-barred and did not take into consideration in any meaningful way the issue of
collateral damage, both in terms of egregious damage to property and especially in terms of loss of life among
non-combatants. Hence, for example, in the great urban battles of World War II, such as those of Stalingrad,
Warsaw, and Berlin, the city in its totality served as a military target and, therefore, anyone or anything in it was
in danger of becoming collateral damage. The same was true of the strategic bombing of cities such as Hamburg,
Dresden, and Tokyo during the War. The goal was either to capture the city in ground operations or to massively
bomb from the air to degrade its ability to contribute to the war effort and weaken the morale of its inhabitants.
Moreover, with the noted exception of the Battle of Stalingrad which involved the trapping and destroying of
German troops in and around the city, the most impactful battles of World War II (Midway, Kursk, Overlord,
Guadalcanal, El Alamein, and others) did not occur in urban environments”.
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uma grande gama de vantagens, não apenas taticamente, mas também em termos de
impacto local, nacional, e opinião global, algo que pode influenciar a política do país
invasor, bem como suas relações com seus aliados e parceiros comerciais (Morag,
2023, p. 81, tradução nossa)
14
.
Nesse caso, um exército invasor que queira atacar e obter o controle de um ambiente
urbano procuraria degradar a capacidade do inimigo de operar na cidade sem se expor
excessivamente aos insurgentes, ao mesmo tempo em que minimizaria a perda de vidas de não-
combatentes e a destruição da infraestrutura sensível, para não virar a população contra si
(Morag, 2023). No entanto, Israel, em sua abordagem de guerra em Gaza, faz exatamente o
contrário, impondo grande destruição da estrutura urbana por meio do método do urbicídio.
Isso explica por que a resistência palestina em Gaza se entrincheira em sua rede de túneis
subterrâneos para sobreviver aos bombardeios e incursões de blindados. A guerra nos túneis
não é uma novidade, com uma história que inclui o sistema de túneis da Guerra do Vietnã, os
túneis da Al-Qaeda nas montanhas de Tora Bora, no Afeganistão, as operações do Estado
Islâmico na Síria e no Iraque e os túneis usados nas batalhas de Mariupol, Bakhmut e Soledar
na Guerra da Ucrânia, ainda em curso.
Em Gaza, a rede de túneis de grupos palestinos pode alcançar até 500 km de extensão,
com os túneis mais profundos podendo chegar a 70 metros de profundidade. Diferente dos
túneis que atravessam a fronteira de Gaza com a finalidade de invadir o território israelense, os
túneis no interior do território estão adequadamente equipados com eletricidade, iluminação e
trilhos para assegurar a presença de militantes em seu interior por longos períodos. Embora
Israel os enfrente bastante tempo, ainda não conseguiu inutilizá-los. O Hamas e outras
facções palestinas usam esses túneis para escapar da observação e dos ataques israelenses,
concentrando equipamentos e seu quartel-general no interior deles
15
.
14
No original: “This limits the freedom of movement of conventional invading forces and makes them more
vulnerable to attack, while civilian deaths and property damage can benefit the irregular defending forces by
drawing global attention and ire towards the invading forces. The death of innocents in a city can sway public
opinion on the part of the inhabitants in the direction of providing increasing support to the irregular forces and
stoke greater hatred towards the invading forces. Hence, urban defenders enjoy a large range of advantages, not
just tactically but also in terms of local, national, and global opinion, something that can influence the politics of
the invading country as well as its relationships with its allies and trading partners”.
15
Sobre a rede de túneis do Hamas na Faixa de Gaza, conferir as matérias da BBC News Brasil, O labirinto de
túneis em Gaza que o Hamas diz ser maior que o metrô de Londres, disponível em
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nv2y7erx5o, e da Uol, “‘Teia de aranha’: o emaranhado de túneis do
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Além de abrigar combatentes, armas e suprimentos, os túneis em Gaza possuem
infraestruturas de concreto reforçado, água canalizada e ambientes climatizados, além de
espaços de descanso para garantir a acomodação e menor exaustão dos combatentes. Essas
estruturas seriam fortes o suficiente para resistir à maioria dos ataques aéreos de Israel. Estes
túneis que, inicialmente, foram escavados entre a fronteira do Egito e Gaza, têm sido usados
para o contrabando de uma variedade de itens e constituído uma das principais linhas de
fornecimento de armas, explosivos e recrutas armados para a resistência palestina. Atualmente,
além de ligação com o mundo externo, por conta do bloqueio de Gaza, os túneis configuram
uma verdadeira rede de comunicação que permite aos membros do Hamas e demais grupos se
locomoverem por bairro de Gaza, permanecendo móveis e operantes no subsolo.
A maioria dos túneis possui diversos pontos de acesso e rotas partindo de casas,
edifícios, campos abertos e plantações. Suas principais rotas convergem para uma rota principal
e ramificam-se novamente em várias passagens separadas que levam a diferentes pontos dentro
e fora de Gaza, para o Egito ou mesmo Israel. Dessa forma, se uma entrada é descoberta e
desligada ou um túnel desmorona, outros podem continuar a ser utilizados e novos túneis de
acesso podem ser escavados e conectados com a rota principal (Weizman, 2012).
As FDI acusam frequentemente o Hamas de escavar muitos túneis em Gaza por baixo
de escolas, mesquitas ou hospitais. Assim, Israel alega que os grupos armados palestinos usam
instalações civis para fins militares. Embora, na maioria das vezes, Israel não apresente provas
contundentes dessa prática, uma vez que o espaço urbano esteja sendo utilizado como campo
de batalha e os conflitos ocorram em todos os lugares, seja pela resistência palestina a se
entrincheirar no espaço urbano ou pelo ataque indiscriminado de Israel às cidades palestinas,
instalações e edifícios civis acabam implicados no conflito urbano de uma forma ou de outra.
Com efeito, túneis interligados sob áreas urbanas permitem que os grupos palestinos se movam
rapidamente entre posições de ataque e defesa e, como amplamente divulgado na internet
16
,
podem ainda ser escavados rapidamente para abrir caminho para fugas ou ataques surpresa.
Hamas que põe Israel no escuro, disponível em https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-
noticias/2023/11/20/o-emaranhado-de-tuneis-do-hamas-que-poe-israel-no-escuro.htm.
16
Inúmeros vídeos de combates urbanos em Gaza filmados pela FDI e por facções palestinas circulam na internet
por meio das redes sociais, em canais do Youtube, grupos de Telegram e páginas do Instagram, Facebook ou X.
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Os túneis são um elemento vital na estratégia de guerra do Hamas, principal grupo a
empregá-los em suas operações. Essa organização usa os túneis para esconder e transportar
foguetes, cujas plataformas de lançamento podem ser ocultadas ou montadas e desmontadas
rapidamente, para evitar que suas posições sejam facilmente localizadas e atacadas por Israel.
Embora sejam eficientes em desativar esses lançamentos por meio de sistemas de localização
rápida, as forças israelenses têm dificuldade em desbaratar lançamentos feitos a partir de
estruturas instaladas no interior do solo e de dentro de edifícios, o que dificulta sua identificação
e destruição. Israel possui supremacia no controle do espaço aéreo naquela região, entretanto,
seu sistema de defesa antiaéreo, conhecido como Iron Dome, tem enfrentado dificuldades com
lançamentos múltiplos de foguetes vindos de Gaza, particularmente aqueles fabricados pelo
Hamas que, em ação combinada com outros artefatos, têm sido capazes de saturar as defesas
antiaéreas e atingir áreas povoadas no interior do território israelense
17
.
Além do uso dos túneis para dificultar a localização das posições de lançamento de
foguetes, suas estruturas possuem muitas outras serventias de uso no combate, podendo ser
equipados com explosivos, funcionando, assim, como túneis-bomba. Por meio de câmeras
instaladas nos túneis, a entrada de tropas de Israel pode ser facilmente notada e as armadilhas
em suas seções internas podem ser acionadas contra os intrusos. De todas as características dos
túneis, talvez a mais importante seja que, em sua maioria, eles são muito estreitos, dificultando
a entrada de tropas israelenses bem equipadas em seu interior, o que, pelo ambiente restrito e
dificuldade de locomoção, facilita a tarefa dos grupos palestinos em posição de defesa.
As facções palestinas têm se beneficiado do emprego dos túneis no combate urbano em
Gaza e, por meio de câmeras instaladas no terreno, que saem dos túneis tal qual escotilhas, têm
sido capazes de observar o campo de batalha em tempo real mesmo quando a movimentação
dos soldados israelenses é restrita ao interior de casas e edifícios, dentro de estruturas urbanas;
de modo geral, nestes lugares, a insurgência palestina também consegue monitorá-los por meio
de sistemas de câmeras combinadas que mostram a posição exata dos soldados das FDI no
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O Iron Dome, ou Domo de Ferro, em português, é um sistema de defesa antiaérea desenvolvido por Israel com
o objetivo de interceptar mísseis de curto alcance e bombas de artilharia disparados de 4 a 70 quilômetros de
distância visando áreas povoadas de seu território. Recentemente, os foguetes Qassam, fabricados pelo Hamas e
popularizados em Gaza têm sido capazes de superar as defesas do Iron Dome, algo improvável até pouco tempo.
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MENDONÇA, Márcio José. Guerra Urbana em Gaza: 100 dias de combate entre Israel e Palestina. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 11, nº
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interior dessas edificações. Dessa maneira, o Hamas consegue coordenar suas ações, realizando
uma série de emboscadas e ataques surpresas, detonando explosivos no interior de edifícios ou
aparecendo na retaguarda do inimigo, suficientemente próximos de veículos israelenses para
atacar com armas antitanque e instalar explosivos magnéticos nos blindados, que, acoplados à
armadura, são detonados, em sequência, por dispositivos remotos (ver Figura 4).
Figura 4 Filmagem de operação do Hamas
Um militante da facção, ao sair da abertura de um túnel subterrâneo, instala um dispositivo explosivo magnético
na blindagem de um tanque israelense. Antes do explosivo ser detonado, o insurgente ainda realiza fuga para o
interior do túnel, sem ser notado pelos soldados israelenses no campo de batalha.
Fonte: canal do Telegram, 04/01/2024, data de recebimento do vídeo.
Os tanques Merkava, de fabricação israelense, famosos por sua blindagem e defesa
ativa, possuem um dispositivo de defesa que, ao contrário das defesas reativas, comuns em
blindados da era soviética e nos atuais tanques russos, funcionam como sistemas de
interceptação de projéteis. Em blindados russo-soviéticos, do modelo T-72, por exemplo, a
blindagem do tanque apresenta uma armadura repleta de gomos metálicos, em formato de
“tijolos”, instalados em seu casco, que se detonam quando atingidos por granadas antitanque,
minimizando, dessa forma, os danos de um ataque direto. as defesas ativas dos tanques
israelenses agem diferente, disparando um projétil na direção da granada com o propósito de
interceptar as ameaças ainda em voo, destruindo-as antes que consigam atingir o veículo.
Essa tecnologia empregada nos tanques israelenses surgiu da necessidade de proteção
contra disparos feitos à queima-roupa por armas antitanque usadas por grupos palestinos. O
método engenhoso, contudo, não tem sido eficiente contra os ataques em ambiente urbano,
cujos disparos são feitos à pequena distância, em meio aos escombros de edifícios e ruas
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estreitas. Por causa do ambiente muito irregular e em virtude, sobretudo, da presença de várias
estruturas urbanas em camadas, como paredes, muros, cercas e outras edificações, a
interceptação dos projéteis é dificultada quando estes são lançados a partir dessas posições.
Muitos vídeos disponíveis na internet demonstram como os grupos palestinos em Gaza
envolvidos em combates contra tanques e blindados têm operado nestas ações principalmente
por meio de dois modelos de lançadores de granadas portáteis, uma arma de apoio de fogo de
infantaria destinada ao lançamento de granadas, com a capacidade de autopropulsão.
O primeiro modelo usado por grupos palestinos é conhecido pelo nome de Granada de
Propulsão de Foguete Al-Yassin, 105 mm, sendo que suas granadas se valem de duas camadas,
cada uma com uma carga explosiva. Ao atingir um blindado, a primeira carga ativa um
precursor penetrante de armadura de metal quente, incandescente, que abre uma perfuração na
armadura e o caminho para uma segunda carga explosiva, que, ao ser detonada na sequência,
rompe a armadura do blindado, dando origem a um processo explosivo no interior do veículo.
O outro modelo também amplamente empregado por facções em Gaza é o RPG (em português:
granada lançada por foguete), um tipo de lançador de granadas portátil que possui dispositivo
de visão óptica ligado a um gatilho piezoelétrico. Vale dizer que uma característica desse
dispositivo é que o projétil lançado sofre deformação ainda no curso de sua trajetória em virtude
da tensão causada pela pressão, temperatura e aceleração do objeto, aumentando a capacidade
de detonação da carga explosiva em uma cavidade cheia de ar em forma de forro cônico capaz
de causar danos significativos em blindados.
Nas ações de combate urbano dentro de Gaza, com uso de armas antitanque, as equipes
de ataque palestinas operam em pequenos grupos, formados geralmente por quatro pessoas. As
equipes das Brigadas al-Qassam, ligadas ao Hamas, por exemplo, são formadas por um atirador,
responsável pelo disparo do lançador de granada, seu ajudante direto, que lhe suporte e ajuda
a carregar os equipamentos e a munição, um observador, que localiza os alvos e realiza uma
varredura do terreno, dando previamente garantias de execução da operação em situação de
maior segurança e, por fim, uma quarta pessoa portando um telefone móvel ou uma pequena
câmera de mão, responsável por filmar a ação, que, posteriormente, é difundida na rede social
como material de propaganda. Em muitos dos ataques registrados, as equipes atacantes o
vistas saindo de túneis subterrâneos que dão acesso a áreas mais amplas e abertas, onde muito
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das vezes se concentram os tanques, ou simplesmente atacam realizando disparados do interior
dos edifícios e de seus escombros, contando com a vantagem operacional de conhecimento do
ambiente caótico, típico de uma batalha urbana (ver Figuras 5 e 6). Ademais, em vídeos
propagados na internet, insurgentes palestinos são vistos se movimentando no interior dos
prédios, passando por janelas e buracos feitos nas paredes, uma tática usada anteriormente por
soldados das FDI, em operações urbanas, que se habituaram a romper paredes ou estruturas de
laje, evitando, assim, circular em áreas abertas para não serem atingidos por atiradores ou fogo
de infantaria.
Figura 5 Militante do Hamas portando um lançador de granadas
O militante dispara da bancada de uma cozinha, no interior de uma residência palestina em Gaza, por meio de
uma janela em posição elevada.
Fonte: canal do Telegram, 29/12/2023, data de acesso ao vídeo.
Figura 6 Militante do Hamas dispara um lançador de granadas, em meio aos escombros do
interior de um edifício, ao longo da orla, já totalmente destruída, no litoral da Faixa de Gaza
A produção do vídeo, editada por veículos de propaganda do Hamas, filma os preparativos da operação a partir
da posição dos insurgentes em relação ao alvo do projétil, que atinge o tanque na sequência do vídeo.
Fonte: canal do Telegram, 04/11/2023, data de acesso ao vídeo.
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Nos combates em Gaza, insurgentes palestinos agem geralmente com vestimentas civis
e, logo após os ataques, evadem o lugar, rapidamente, por uma trajetória de fuga, que culmina
frequentemente em aberturas no terreno e portinholas no interior de edifícios que dão acesso às
entradas dos túneis. Neste ambiente urbano, onde são apoiados pela população militantes das
facções palestinas podem entrar em modo hibernação após realizar uma operação,
misturando-se aos civis, e dificultando a sua identificação em uma região densamente povoada.
Vale citar que não são poucas as armadilhas ou técnicas de combate que podem ser
empregadas em um ambiente urbano confinado, como o de Gaza. Além do emprego de
atiradores posicionados em locais estratégicos, que podem se esconder no interior das estruturas
urbanas e usar da posição elevada dos edifícios em sua vantagem, outra tática comum usada
por grupos palestinos consiste em usar granadas de mão que podem ser lançadas sobre soldados
israelenses em espaços estreitos, como becos e vielas, além do emprego de explosivos
instalados no interior de edifícios e de minas terrestres que podem ser detonadas quando o
inimigo adentrar ao recinto ou trafegar pelo terreno (ver Figuras 7 e 8). Essas táticas de
insurgência implicam preparo do terreno, e os defensores, apoiando-se no espaço urbano como
dispositivo de defesa, também as empregam como forma de ataque, realizando operações de
sabotagem e ataques surpresa a partir de vários níveis ou camadas, movendo-se da superfície
do espaço urbano às camadas subterrâneas mais profundas do interior de Gaza.
Figura 7 Granada de mão é lançada por integrante do Hamas
O lançamento é realizado a partir da posição elevada de um edifício, sobre soldados israelenses em uma rua
estreita. No vídeo vê-se, à esquerda, a evacuação de um soldado israelense ferido (ou morto), enquanto a granada
é lançada sobre a tropa.
Fonte: canal do Telegram, 29/12/2023, data de acesso ao vídeo.
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Figura 8 Ataque do Hamas com uma arma antitanque em rua estreita de Gaza
Ao fundo da rua, nota-se a presença de um tanque israelense e, a uma distância segura do insurgente palestino,
um fio de um dispositivo explosivo improvisado, estendido de um lado ao outro da rua, em baixa altura, para
impedir a passagem do blindado e, consecutivamente, garantir a fuga dos militantes palestinos.
Fonte: canal do Telegram, 04/11/2023, data de acesso ao vídeo.
Considerações Finais
No conflito em Gaza, combatentes de ambos os lados estão agindo com o propósito de
modelar o espaço urbano para abrir caminho para as operações militares. Neste sentido,
israelenses e palestinos estão transformando profundamente a realidade do campo de batalha
em diferentes níveis e por meio de diferentes estratégias e tecnologias empregadas nesse espaço.
Assim, a fim de realizar uma avaliação criteriosa do que se passa no campo de batalha em Gaza,
interpretamos e analisamos diferentes trajetórias e métodos de combate urbano dos grupos em
disputa e, a partir de suas táticas e formas de organização do território, verificamos como agem
em termos de modelagem e preparo do campo de batalha. Evidentemente, a depender da
situação de atacante ou defensor, a cidade ou o espaço urbano, se assim preferimos, pode ser
um obstáculo a se transpor ou um ativo, no campo de batalha.
É notável que Israel, enquanto força atacante em suas ações no campo de batalha, tenha
empregado massivamente a destruição do espaço urbano por meio de bombardeios e operações
no terreno com uso de blindados na tentativa de desalojar a resistência palestina e inutilizar o
seu espaço urbano, usado como ativo de guerra. Para atingir esse objetivo, diferente de outros
ataques em Gaza, os bombardeios aéreos foram muito mais intensos e prolongados, ocorrendo
em praticamente todos os dias do conflito, e as operações militares por terra, dentro de Gaza,
muito mais profundas. Todavia, as forças israelenses, até o momento, apesar de toda a
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destruição que suas ações provocaram, não conseguiram apresentar provas de destruição do
Hamas e de qualquer outra facção de Gaza. Por outro lado, os insurgentes palestinos, incapazes
de efetuar uma guerra prolongada contra Israel em terreno aberto, procuraram atrair as forças
israelenses para o interior de Gaza e assim impor uma derrota militar aos invasores por meio
de ações combinadas de guerrilha e guerra de atrito baseada na preparação do terreno, com a
elaboração de armadilhas e abrigos subterrâneos, os túneis, que tem sido muito empregados em
operações de ataque à retaguarda do inimigo, provocando muitas baixas às tropas israelenses.
Dessa forma, com base nas concepções e táticas empregadas no combate urbano,
observou-se que o conflito ocorre em termos não de controle direto do território, mas em
função de configuração do espaço em disputa pela modelagem do campo de batalha ou do
território em si. Como um holograma territorial de um espaço que poder ser remodelado a partir
das ações implicadas na reorganização do espaço, ambos os grupos procuram, além de controlar
o terreno, modificar o espaço urbano, acessando diferentes níveis ou camadas espaciais do
espaço de batalha. Nesse cenário, Israel possui supremacia no espaço aéreo e a disputa se
concentra no espaço urbano e nas profundezas subterrâneas do terreno, com os grupos
palestinos utilizando-se das edificações e infraestruturas urbanas combinadas a uma complexa
rede de túneis como um ativo de guerra a fim de contrapor uma série de desvantagens que
possuem em matéria de emprego de meios militares em relação aos israelenses.
Em cem dias de combate, Israel, por meio do emprego do método do urbicídio, foi capaz
de provocar a destruição da estrutura social e física no qual se apoia a vida da sociedade
palestina, forçando o deslocamento da população e uma verdadeira aniquilação de Gaza.
Entretanto, em situação de conflito direto, corpo a corpo, contra a resistência palestina, suas
tropas estão sendo severamente fustigadas em situação de conflito urbano. A cobertura do
conflito, apoiada em vídeos de diversas fontes que circulam pela internet, não deixa dúvida de
que Israel está sofrendo com os ataques de lançadores de granadas portáteis, uma arma capaz
de nocautear blindados e tanques Merkavas. Ademais, vídeos de soldados israelenses sendo
surpreendidos por atiradores e armadilhas no interior dos túneis e dentro dos edifícios, além de
explosivos improvisados ou minas no campo de batalha, são frequentemente evidenciados na
cobertura da guerra.
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Diferente de outras operações em Gaza ou na Cisjordânia, os soldados israelenses, pela
primeira vez, estão expostos aos ataques de insurgentes palestinos bem treinados e equipados,
que lutam em um ambiente que foi preparado e que conhecem muito bem. Dessa vez as tropas
israelenses não enfrentam palestinos desarmados como foram as Intifadas e tantos outros
episódios de escaramuças na região, e a sua presença prolongada no campo de batalha, torna-
os alvos vulneráveis à ação de guerrilheiros que conhecem o ambiente urbano de combate. Essa
avaliação com base nos meios e estratégias empregadas pelos grupos armados em conflito na
Faixa de Gaza permite concluir que o Hamas e os demais grupos palestinos, a considerar os
cem dias de conflito, realizam uma feroz resistência às tropas israelenses.
Entrincheirados no espaço urbano e numa complexa rede de túneis e fortificações
subterrâneas, permitiram, até o momento, que as facções palestinas se saíssem bem em matéria
de confronto direto contra as tropas israelenses, na medida que estão sendo mais efetivos no
combate urbano travado na superfície, enquanto conseguem manter sua rede de túneis e
estruturas subterrâneas preservadas. Em contrapartida, os danos em Gaza por conta dos ataques
aéreos e a incursão de blindados nas cidades palestinas dão conta da capacidade das forças
israelenses de intervir no espaço de batalha inimigo, modificando-o com o propósito de preparar
o terreno ao abrir amplas aéreas de operação para suas tropas com uso de blindados, nivelando
e modelando o espaço urbano na mesma medida em que destroem toda a infraestrutura social
de que depende a sociedade palestina. Embora o urbicídio não seja uma prática recente, a
intensidade da destruição praticada por Israel revela um emprego de severidade sem
precedentes, e que as consequências no território, a longo prazo, serão desastrosas para a
população palestina.
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