Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
SANTOS, Vitor Colleto dos; Torres, Eloiza Cristiane. O Rio que Sobe. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 11, nº 24, e112420, 2024.
Submissão em: 17/07/2024. Aceito em: 23/09/2024.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons
1
SEÇÃO LEITURAS
O Rio que Sobe
The River that Rises
El Río que Nace
Vitor Colleto dos Santos
1
Universidade Estadual de Londrina (UEL),
Paraná, Brasil
e-mail: vitor.colleto.santos@uel.br
Eloiza Cristiane Torres
2
Universidade Estadual de Londrina (UEL),
Paraná, Brasil
e-mail: elotorres@uel.br
“O rio que sobe”
Quando eu era pequena, em minha cidade também pequena chamada Restiganópolis,
a professora me apresentou um mapa grande que me despertou uma dúvida maior ainda.
O mapa era gigante, ocupava metade da lousa da minha sala de aula pequena.
Em frente a meus olhos, vi o Brasil e as suas bacias hidrográficas: as 12 principais! A
Bacia Amazônica, do Parnaíba, do Paraná, do Paraguai, do São Francisco, do Uruguai, enfim,
era água que não acabava mais, do Caburaí ao Chuí e do Moa ao Seixas.
Fiquei encantada com as cores que as representavam e com os rios que pareciam serpentes
navegando pelas diversas formas de relevo que moldam seu leito.
A professora falou o nome dos rios principais e disse que cada pequena nascente ajudaria
a montar rios maiores e que desceriam para o mar.
Como toda professora, ao final da aula, perguntou se tínhamos alguma dúvida e foi aí que
meu drama de anos começou.
1
Licenciado em Geografia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Mestrando em Geografia na
Universidade Estadual de Londrina (UEL). Atua na área de Ensino de Geografia, com ênfase nos Multiletramentos
e na Memética.
2
Doutora em Geografia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Professora
associada da Universidade Estadual de Londrina (UEL), onde leciona na graduação, mestrado/doutorado e é
coordenadora da especialização em ensino de Geografia. Atua nas áreas de Educação Ambiental, Educação
Especial e Ensino de Geografia (Geografia da Infância).
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SANTOS, Vitor Colleto dos; Torres, Eloiza Cristiane. O Rio que Sobe. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 11, nº 24, e112420, 2024.
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Fiquei um pouco confusa e, mesmo com medo de virar chacota para os colegas, arrisquei:
- Professora, você disse que todas as águas descem para o mar, mas tem rio que sobe”.
Pronto, não apenas o meu drama, mas o meme de anos estava pronto para que todos
caçoassem de mim. A sala eclodiu em grande risada e grande algazarra, e a professora riu e
zombou de mim.
A vergonha foi tanta que passei uma semana sem querer ir para a escola. Bastava alguém
me encontrar pelas ruas pequenas de minha cidade pequena e gritavam: “Olha a menina
do rio que sobe”, “A água sobeeeee” e entre tantas vergonhas que passei por causa dessa grande
dúvida. Assim seguiam meus dias, nada tranquilos, até que caia em esquecimento, e a pergunta
adormecia em mim por um pequeno intervalo de tempo.
Porém, a cada novo professor de Geografia que chegava ou mesmo algum com quem me
sentia confortável para pedir, ia eu com a pergunta, e ao mesmo tempo os colegas vinham
torcendo em caretas já esperando a resposta e ferventes por mais um período de sarro.
Alguns professores tinham paciência e falavam da lei da gravidade e que nenhum rio
poderia subir. Isto pela mesma força que a maçã atingiu a cabeça de Isaac Newton, diziam eles.
Outros eram ainda mais técnicos e chegavam até a explicar que uma bacia hidrográfica é toda
a área drenada por um rio principal e afluentes como resultado do escoamento da água da chuva
na superfície. No entanto, ainda havia aqueles que eclodiam em raiva e, sem paciência,
falavam como eu era desprovida de inteligência ao fazer tamanha afirmação (sim, porque parou
de ser uma pergunta e passou a ser uma afirmação). Mas eu continuava sem entender o por
quê...
Até que um dia chegou uma professora bem novinha, recém-formada e com sorriso no
rosto. Ela era Estela Polvalina, na faculdade ela havia tido aulas com Lara Queija, que sabia
tudo sobre rios, mares, litorais e bacias hidrográficas. Além disso, Estela e Lara expõem todo o
ano no centro cultural de Restiganópolis os seus belíssimos mapas da cidade, como os da
hidrografia, e eu tão logo não hesitei em perguntar!
Na primeira aula, minha afirmação já estava na garganta e, quando ela perguntou o nome
de cada um e fui falar o meu, eu disse:
- Professora Estela Polvalina, bem-vinda à nossa pequena escola, sou Mariana das
Ostras. Vocês professores dizem que o rio não sobe, mas ele sobe sim”.
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SANTOS, Vitor Colleto dos; Torres, Eloiza Cristiane. O Rio que Sobe. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 11, nº 24, e112420, 2024.
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E, para o meu espanto, as caretas e risadas da turma foram magicamente ignoradas por
ela, que imediatamente perguntou: “Por que você diz isto? Poderia me explicar sua teoria?”.
Sem acreditar naquela chance, pedi que ela colocasse um mapa com os rios na lousa. Com
o mapa verticalmente posicionado na lousa, eu disse: “Olha, tem rio que sobe sim”.
Com a maior calma que vi entre as pessoas que conheci naquela pequena cidade, a
professora pediu que eu mostrasse com o dedo o movimento das nascentes à foz. Fui lá,
caminhei o transcurso dos rios com meu dedo indicador e, quando fui de sul a norte, gritei:
“Viu só, sobe”. E ela respondeu: “Deste ponto de vista sim, sobe. Mas vamos entender melhor”.
A professora entendeu! Ela entendeu e foi além. Explicou que ali nós tínhamos uma
representação cartográfica dos rios e que a melhor maneira de observar era colocando o mapa
na horizontal, ou seja, no chão.
Pediu que todos afastassem as carteiras e se sentassem em círculo. O grande mapa foi
colocado no centro da pequena sala e ela retirou de sua bolsa uma pequena bússola. Pediu que
eu e meus colegas observássemos para onde apontava o ponto cardeal norte, giramos o mapa
até que o “N” coincidisse.
Naquele momento ninguém piscava. Ela mostrou que se eu olhasse daquele jeito o rio iria
de leste para oeste ou de sul para norte, e não “para baixo” como o mapa colocado na vertical
na lousa indicava. Seria então uma questão de perspectiva, isto é, da forma como treinamos
a nossa visão e nos posicionamos para observar o objeto mapeado? Bingo!
Eu entendi, mas não entendi. Era tudo novo para mim. Então, na aula seguinte, ela levou
uma grande maquete com uma bacia hidrográfica. Colocamos na mesa, norteamos” com sua
bússola e, de sua grande bolsa, ela retirou um pequeno regador. Fiquei responsável por jogar
água em cada nascente, observar o caminho da água, da parte mais alta para a mais baixa, dos
divisores de água até o talvegue, e dizer o direcionamento que a água corria: - De cima para
baixo, de leste a oeste, de sul a norte....
CLIC! Agora tudo fazia sentido. Fazia sentido inclusive para muitos que faziam zoeira,
mas não tinham a coragem de se expor e perguntar, mesmo que fosse uma pergunta ou
afirmação tão bobinha.
Quando finalmente entendi, fiz questão de pronunciar:
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- Professora, todo rio desce sim pela gravidade. E cada rio vai a uma direção na realidade
e no mapa. Então, todos estavam corretos”.
Com um grande sorriso, talvez seu maior desde a primeira aula, ela disse: - Parabéns por
ter a coragem de me perguntar e por me ajudar a te explicar”.
E assim, muitos dias felizes e de muitos aprendizados se seguiram após este, na pequena
Restiganópolis da grande dúvida. Aliás, a grande dúvida do rio que não sobe mais, nem na
natureza nem nos mapas, restara apenas na memória e como lição para todos que um dia possam
se sentir inseguros em perguntar. Lembre-se sempre que a dúvida é a porta de entrada para o
incrível mundo do conhecimento.
Justificativa
A história acima é um conto de Cartografia Escolar. Isto não apenas pelo fato de sua
inspiração terem sido as discussões e provocações realizadas em uma aula da disciplina de
Cartografia Escolar 1GEO902, do Curso de Geografia da Universidade Estadual de Londrina,
mas também por querer despertar nos leitores e nas leitoras a reflexão a respeito da importância
da alfabetização e do letramento cartográfico para os processos de ensino-aprendizagem em
Geografia.
Acredita-se que, no mundo em que vivemos hoje, alfabetizar e letrar cartograficamente
deva ir além de sua reprodução ou da decodificação aleatória de seus elementos visuais.
Portanto, o que é deveras importante é a investigação profunda do que é representado, como é
representado e quais as intencionalidades da representação, de forma a angariar o
desenvolvimento do pensamento espacial e geográfico (Richter, 2018).
Desse modo, o conto “O rio que sobe” traz uma linguagem lúdica atrelada a conceitos
científicos de Geografia a fim de problematizar temas de interesse da Cartografia Escolar e de
sua inserção nos espaços de ensino e aprendizagem. Em vista disso, para além dos
conhecimentos da Geografia Física no que tange às bacias hidrográficas, a história mobiliza
também os seguintes conceitos cartográficos: mapa, tipos de visão, alfabeto cartográfico,
lateralidade e orientação. Eles são, direta ou indiretamente, observados no drama enfrentado
pela personagem Mariana das Ostras em relação a uma grande dúvida: o rio realmente “sobe”
ou é apenas uma questão de ponto de vista?
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Embora se passe em uma cidade fictícia, a pacata Restiganópolis, e cujos personagens
também são fictícios, o texto é baseado em uma história real. Intitulado entre aspas, “O rio que
sobe” tem como objetivo mais do que reforçar o saber acerca do fluxo unidirecional da água
nas bacias hidrográficas (Tundisi; Matsumura-Tundisi, 2020), que é sempre para baixo por ação
da gravidade e que acompanha as características do relevo como a declividade. O que se
intenciona, no entanto, é principalmente “[...] valorizar a linguagem cartográfica nas aulas de
Geografia(Richter, 2018, p. 261), contribuindo assim tanto para a formação do(a) estudante
leitor crítico e mapeador consciente dos mapas (Pissinati; Archella, 2010) quanto para a
evolução do conhecimento geográfico sobre diferentes aspectos da organização espacial física
e social, local e global.
Destarte, combinando a ludicidade, que é comum ao gênero conto, com conceitos
científicos das áreas de Cartografia e Geografia, o conto de Cartografia Escolar inscreve-se
como potencialidade para as aulas desta disciplina nos cursos de Geografia, em especial
voltando-se para a formação de professores. Isto, pois, angaria não apenas oferecer um
contributo para o ensino de Cartografia Escolar nos bancos universitários, mas também
sensibilizar os (futuros) docentes com relação às diferentes possibilidades de leitura do espaço
pelos estudantes em idade escolar e, por conseguinte, à importância dos conhecimentos
cartográficos e geográficos quando bem aprendidos para a representação espacial.
Referências
PISSINATI, M. C.; ARCHELA, R. S. Fundamentos da alfabetização cartográfica no ensino de
geografia. GEOGRAFIA (Londrina), v. 16, n. 1, p. 169195, 2010. Disponível em:
https://ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/geografia/article/view/6579. Acesso em: 16 jul. 2024.
RICHTER, D. O pensamento, o pensamento espacial e a linguagem cartográfica para a
geografia escolar nos anos iniciais do ensino fundamental. Boletim Paulista de Geografia, v.
99, p. 251267, 2018. Disponível em: https://publicacoes.agb.org.br/boletim-
paulista/article/view/1479. Acesso em: 16 jul. 2024.
TUNDISI, J. G.; MATSUMURA-TUNDISI, T. A Água. São Carlos: Editora Scienza, 2020.
Disponível em: https://sbhsf.com.br/wp-content/uploads/2020/08/novo_A_AGUA.pdf.
Acesso em: 16 jul. 2024.