Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
NASCIMENTO, Gabriel da Cruz. O espaço coisificado: (d)escrevendo a Colônia tropical. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 12, 25,
e122521, 2025.
Submissão em: 13/01/2025. Aceito em: 16/07/2025.
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons
1
SEÇÃO ARTIGOS
O espaço coisificado:
(d)escrevendo a Colônia tropical
1
The thingly space:
writing the tropical Colony
El espacio cosificado:
(d)escribiendo la Colonia tropical.
DOI: https://doi.org/10.22409/eg.v12i25.66168
Gabriel da Cruz Nascimento
2
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Minas Gerais, Brasil
e-mail: gdacruz.n@outlook.com
Resumo
Nesse ensaio, busco tensionar a proposta lefebvriana de produção do espaço a partir da métrica epistemológica da
colonização, apresentando a noção derivada de produção colonial do espaço. Para tanto, faço uso da ideia de escrita
(e seu duplo, a descrição) como um movimento de produção semântica de uma determinada ordem de dominação
material e simbólica. Trato, especialmente, da colônia brasileira, evocada por seus principais processos produtivos:
a plantation, a escravização e desumanização de pessoas e da organização logística que posiciona corpos, lugares
e seres inanimados no léxico logístico do capital. Esse movimento tem o objetivo de resgatar as origens
epistemológicas modernas da noção de espaço para, então, articular uma possibilidade de fissura, a saber, a fuga.
Palavras-chave
Colonização; Produção do espaço; Desigualdade socio-espacial; Fuga; Quilombismo.
1
Uma versão resumida desse texto foi apresentada na coletânea Utopias Globais, a ser publicada no ano de 2025
pela Universidade de Lisboa.
2
Arquiteto e urbanista formado pela Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
mestre em urbanismo pelo NPGAU/UFMG. Faz parte do grupo de pesquisa CRITICAR e MANGUEZAL/LAB.
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Abstract
In this text, I aim to challenge Lefebvre's proposal of the production of space by examining it through the
epistemological framework of colonization, presenting the derived notion of the colonial production of space. To
this end, I draw on the concept of writing (and its counterpart, description) as a movement of semantic production
tied to a specific order of material and symbolic domination. I focus particularly on the Brazilian colony, analyzed
through its primary productive processes: the plantation, the enslavement and dehumanization of people, and the
logistical organization that positions bodies, places, and inanimate entities within the logistical lexicon of capital.
This movement aims to recover the modern epistemological origins of the concept of space to, thus, present a
possibility of resolution, namely, the escape.
Keywords
Colonization; Production of space; Sociospatial inequality; Scape; Quilombismo.
Resumen
En este texto, me propongo cuestionar la propuesta de Lefebvre sobre la producción del espacio, examinándola a
través del marco epistemológico de la colonización y presentando la noción derivada de la producción colonial del
espacio. Para ello, recurro al concepto de escritura (y su contraparte, la descripción) como un movimiento de
producción semántica ligado a un orden específico de dominación material y simbólica. Me centro particularmente
en la colonia brasileña, analizada a través de sus principales procesos productivos: la plantación, la esclavización
y deshumanización de personas, y la organización logística que posiciona cuerpos, lugares y entidades inanimadas
dentro del léxico logístico del capital. Este movimiento busca recuperar los orígenes epistemológicos modernos
del concepto de espacio para, así, presentar una posibilidad de resolución, a saber, la fuga.
Palabras clave
Colonización; Producción del espacio; Desigualdad socioespacial; Fuga; Quilombismo.
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Inventando o espaço
Figura 1 Floresta Virgem do Brasil
Fonte: Clarac (1822). Presente no acervo Itaú Cultural.
A luz e a sombra permitem a diferenciação dos elementos na gravura: o maciço de
vegetação toma sua forma pela distinção entre a textura e tamanho das folhas, espessura e altura
dos troncos e as formas dos cipós. A correnteza do rio satura-se nos tons, recebe diretamente
os raios de luz que perfuram as copas e que são refletidos com menor intensidade no restante
da paisagem. Nela, três figuras hominídeas e um animal são representados próximos ao centro.
Seus corpos confundem-se em pureza com a mata. Todas as partes tomam forma pelo mesmo
gesto: o toque da luz e o jogo bipolar de branco e preto, derivado da técnica da gravura. O título
da obra faz com que nos situemos no momento exato de seu nascimento: uma visada primeira,
sobre um lugar ainda virgem. As três figuras presentes indígenas parecem não interferir
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na sacralidade do cenário, afinal, mais uma vez, a “Floresta virgem do Brasil”
3
confere uma
qualidade casta a tudo que a compõe.
Ainda que imaculada, há um resíduo negativo na sacralidade da mata. No momento de
sua representação, sua virgindade foi roubada e o enquadramento da figura nos aloca
justamente nessa posição degeneradora. A gravura carrega em si uma inversão é quem olha
para a mata que produz, num mesmo movimento, o sagrado da floresta e sua profanação. Esse
cosmos, ainda virgem, representa o evento em que a “floresta selvagem”
4
é tocada pelo gesto
colonizador, momento esse em que a própria mata passará a ser assombrada pela colônia.
O que me interessa na gravura é sua capacidade de ilustrar o espaço enquanto uma
categoria moderna, cuja operabilidade é indissociável do evento colonial. Ao destacarmos quem
e não mais o que é visto, nossa análise nos coloca junto ao olhar colonizador. Percebemos,
então, o movimento de objetivação e objetificação da matéria que, até então, integrava-se a uma
cosmogonia outra. Esse olhar, gesto colonial primevo, é uma forma radical e ampliada de se
pensar aquilo que Fanon (2020) desenha como “coisificação”. Para o autor, a alegoria hegeliana
do senhor e do escravo articula uma posição essencialista-negativa, ou seja, uma posição
estática, onde determinada consciência infere à outra sua determinação ontológica. A crítica
fanoniana busca, a partir disso, restituir a dialética na relação de dominação traçada por Hegel,
dissolvendo a cena negativa quando o escravo afirma e positiva sua ontologia.
Aqui, busco também refratar sua crítica, direcionando-a não ao corpo negro,
coisificado, e, por isso, deslocado da produção da historicidade pelo Geist, mas também ao
gesto olhar colonial. Munidos dos olhos do colonizador de Clarac (1822), acompanhamos
a produção ampliada da coisificação, derramada sobre toda a matéria tropical seus seres
animados e inanimados, seus corpos, minerais, rios e rochas. Este texto começa no momento
em que a (re)produção do sentido ocidental toca a floresta, situando-a na margem das coisas
afetáveis, heterodeterminadas. Esse olhar, que coisifica tudo aquilo que vê, se envereda no ritual
moderno frenético e neurótico de batismo e nomeação.
3
Presente no acervo Itaú Cultural. Disponível em: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obras/110773-floresta-
virgem-do-brasil.
4
Termo usado por Locke (1947 [1690], p. 139) para (d)escrever a América como terra que, até a chegada inglesa,
permanecera no estado de “natureza”.
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Escrevendo o espaço
Podemos sombrear aqui as noções de “nome” e “categoria” recorrendo à etimologia do
segundo termo. Heidegger aponta que a da palavra “categoria” vem de katégoristhai, que quer
dizer “acusar publicamente” (Heidegger, 1968, p. 199-200). A palavra publicamente tem
grande importância: a categoria é uma acusação pública que, então, corre o risco de ser
reconhecida ou rejeitada é o ato social de nomeação. Pierre Bourdieu (2020) em seu curso
introdutório de sociologia no Collége de France, desenvolverá a noção de “categoria” como
uma espécie de nome, um batismo consagrado nas práticas sociais, cujo sentido vai de encontro
à sua etimologia. O ritmo da marcha colonial é ditado pelo movimento de batismo. Não
indígena, território, negro ou floresta virgem até que a ordem simbólica que dita essas categorias
tome algum referente material como tal. No olhar do colonizador, munido das categorias, nomes
e artifícios políticos que o estruturam, está o embrião da barbárie colonial. Basta lembramos de
Barthes (1979, p. 148), para quem a postura epistemológica ocidental busca “transformar a
qualquer preço o fato em ideia, em descrição, em interpretação, em suma, achar-lhe um outro
nome além do seu”.
O ritual de batismo toponímico colonial tem seus artifícios: a organização abstrata do
espaço, o desenvolvimento da cartografia e a representação do território de acordo com suas
potencialidades econômicas. Com vistas a definir regiões de exploração, ocupação e os limites
políticos-administrativos, a escrita colonial não permitiu a dominação virtual de todo o
espaço da colônia, como também o inseriu em uma cadeia de conexão entre corpos, territórios
e formas de consciência articulados globalmente. O espaço tropical-colonial seria, então,
mutilado em sua totalidade, reduzido a um léxico simbólico operável pela normatividade
jurídica e condenado à subordinação político-econômica. A imputação das condições materiais
de produtividade e inserção das regiões coloniais nos circuitos econômicos globais que nasciam
junto ao mercantilismo reescreveria a ordem de existência desses territórios e dos grupos que
os ocupavam até então.
A colônia é, por essência, um experimento de nomeação e escrita moderno. O projeto
epistemológico moderno alocou a razão como a arena da história, e converteu o mundo no
produto da trajetória do Geist, entidade cujo movimento dialético interno (autodeterminação)
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resolveria as contradições que assombravam a filosofia ocidental desde o iluminismo: forma e
conteúdo, essência e existência, causa e feito. O sujeito de conhecimento consolidado pela
modernidade é aquele que reconhece sua diferença intrínseca em relação ao mundo
(externalidade) e, para tanto, precisa se deslocar para fora de si mesmo se deparar com sua
própria negação. Nesse movimento, o único artefato preservado é a razão em sua capacidade
de mapear, identificar e organizar os fenômenos e as coisas que excedem o sujeito de
conhecimento. É ao recuperar seu negativo e dentro de sua interioridade que o projeto de
autodeterminação e liberdade política consolida-se. O absoluto hegeliano toma o universal
enquanto uma pretensão estática: um movimento do espírito (Geist) sobre si mesmo e sobre
aquilo que lhe é externo, uma espécie de epopeia em uma direção só, à uma conciliação final e
determinada o absoluto.
O regime de historicidade deflagrado pelo avançar do Geist, entidade representativa da
coletividade ocidental, permitiu o surgimento de um tipo específico de consciência histórica e
exigiu a construção de categorias para que os territórios coloniais fossem inscritos na sua
trajetória. Constructos políticos-científicos como a nação, a cultura e a etnia tratariam de
coisificar, separar e posicionar o que quer que fosse encontrado na colônia em uma escrita
temporal de uma certa coletividade. Em outras palavras, com sua forma e conteúdo vivos,
vontade e capacidade de ação, o espírito hegeliano diferenciou-se do projeto epistemológico
kantiano uma espécie de formalismo puro ou morto, se nos for permitido um resumo direto.
A razão não mais seria uma guia que conduz o sujeito de conhecimento à liberdade, mas sim a
própria liberdade, reescrita pelo Geist como autodeterminação. O sujeito livre é aquele que
pode debruçar-se sobre o real e engolfá-lo em um esquema de sentido que possui, como efeito,
tanto a capacidade de determinar direção da história quanto de reconhecer e descrever tudo
aquilo que não é capaz de autodeterminação.
A colônia, portanto, trata-se de uma categoria política, necessária para a escrita daqueles
territórios, que até então situavam-se fora do regime da historicidade, na própria história.
Afinal, como nos lembra o poeta simbolista brasileiro Cruz e Souza (1982, p. 86), “os utensílios
da escrita são extraordinários, o jogo da frase é poderoso”. O que me interessa nesse começo
de exposição é arranjar os termos para um debate sobre a produção do espaço: antes de se falar
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sobre a produção econômica e política do espaço, donde partem-se muitas das deduções atuais
no campo dos estudos urbanos, é preciso termos atenção sobre as condições de existência
política do espaço. O
que permite o espaço ser a matriz de reprodução da desigualdade social
que observamos nos países que experimentaram a forma política colonial? Ainda que a
nomeação permita a escrita política, simbólica e a incorporação das novas terras ao sistema-
mundo, restaria ao projeto colonial ainda terminar o processo de metamorfose dessas regiões
para seu avanço. Se os objetivos deste texto não me permitem um desenvolvimento minucioso
dessa questão, pode-se apresentar brevemente um feixe por meio do qual interpretá-la.
Um dos efeitos do mapeamento e da escrita colonial foi a de que os territórios coloniais
passaram a compor, virtual ou concretamente, uma rede integrada de abastecimento global. No
caso brasileiro, o povoamento foi melhor sucedido onde tiveram êxito as atividades produtivas
voltadas à exportação. Consideremos a distribuição de pessoas escravizadas pelos portos de
Recife, Salvador e do Rio de Janeiro pontos de descarga de tumbeiros vindos de África, com
intuito de fazer avançar a dominação colonial do território da colônia. Ainda, as companhias
portuguesas de seguros do tráfico negreiro e as disputas históricas pela distribuição e
comercialização do açúcar
5
. Tudo isso são conexões em uma cadeia de valor global criada por
banqueiros, donatários de terras, políticos e traficantes de pessoas escravizadas. Com a empresa
colonial, a América passaria a integrar a economia reprodutiva europeia. Técnicas e capitais
seriam permanentemente invertidos em seu território de modo a criar um fluxo de bens
destinado ao mercado europeu
6
. Formar-se-ia um pequeno mercado de consumo agrícola local
e os criadores de gado teriam certo protagonismo no mapeamento das baixadas interiores à
faixa litorânea, dadas as exigências da atividade pecuária (Furtado, 2007). As missões jesuítas
e as rotas bandeirantes tratariam de fixar os principais trajetos para escoamento das mercadorias
mais afastadas até os portos de distribuição.
Na confecção do mapeamento colonial, as teorias de administração buscaram
desenvolver os instrumentos, noções, conceitos e categorias que dariam forma à uma estrutura
logística otimizada à divisão internacional do trabalho e do lucro colônia-metrópole. Na
5
Cabe assinalar que o texto, nesse aspecto, enfatiza a colonização da América portuguesa.
6
Ver Furtado, Celso. A formação Econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
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América Caribenha, o advento do gang system marcaria a consolidação de uma tecnologia
social de gerenciamento da população escrava
7
. Esse modelo de organização, produção e
controle na plantation centro-americana alimentava também os modelos de representação da
terra cultivada, sua abstração e divisão lógica. Jacques-François Dutrône (1801), autor que se
ocupou da produção açucareira caribenha, chegaria a confeccionar uma tabela para otimizar o
controle da produtividade e manejar o adoecimento da população escravizada, ao passo em que
seriam também observados índices pluviométricos do arado, a quantidade plantada de partidos
de cana, seus cortes e as substâncias empregadas no trato da terra. No que compreendemos hoje
como o Brasil, as primeiras teorias da administração desenvolveram-se a partir da doutrina
cristã-jesuítica de conversão das populações indígenas locais ou africanas, sistema que evoluiu
na segunda metade do século XVIII para o que veio a ser a Carta de Lisboa inventário das
condições econômicas e físico-naturais do atual estado da Bahia.
Interessa-me, nesse exercício, a concatenação entre o jogo de nomeação a construção
do sentido necessariamente alavancada pelo evento colonial e o projeto político estruturado
por seus pilares, a saber, a liberdade e a autodeterminação.
A terra e as populações indígenas
(locais ou em diáspora) foram, num exercício de logística e gerenciamento, individualizados,
fragmentados e desmaterializados, submetidos permanentemente aos paradigmas das teorias da
administração e ao léxico estatístico. Nesse movimento, o espaço deveria, cada vez mais, ser
apreendido nas formas abstratas da representação moderna e da violenta arquitetura jurídica e
econômica que elas sustentam, num movimento em que se confundem a abstração e a coisa-
mesma, ou, para usar os termos da pensadora brasileira Denise Ferreira da Silva (2019), na
aproximação entre a abstração e a matéria bruta
8
. A escrita colonial, ao produzir-se, deveria
dissimular sua própria história, fazer com que se fundissem mundo e logos. É essa escrita que
permite que o espaço seja realizado enquanto categoria moderna e mutilado (determinado) em
suas formatações jurídicas (propriedade privada) e econômicas (forma-mercadoria).
7
Collins. Practical rules for the management and medical treatment of Negro slaves in the sugar colonies.
Vernor and Hood; London, England, 1803.
8
O termo “bruto” foi apresentado em Silva, Denise Ferreira da. Em estado bruto. ARS (São Paulo), [S. l.], v. 17,
n. 36, p. 45-56, 2019. Já na apresentação do texto, a autora explica que o termo se trata de um direcionamento ao
exercício de des-pensar o mundo, isto é, libertar a matéria do sentido embutido nela pelos pilares
ontoepistemológicos modernos e sua reprodução.
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A partir desses aspectos, a escrita colonial submete corpo-mercadoria e terra-mercadoria
a uma forma dupla de sujeição: a mediação contratual e a mediação pelo título de propriedade.
Se na dominação trabalho-capital o cálculo da mais valia subentende a reprodução orgânica da
força de trabalho, ou seja, subentende as funções biológicas do corpo trabalhador, a dominação
mercadoria-capital ocorre sob a extração absoluta do valor. Nesse processo, o cálculo do mais-
valor na plantation não considera a reprodução orgânica (força de trabalho) a partir da métrica
do contrato-salário, mas sim a partir do gerenciamento de seu papel na linha produtiva
açucareira caldeiras, motores hidráulicos, animais de tração, escravizados, ferramentas em
geral, etc. tudo isso ocupa uma posição, possui um papel, no fluxo produtivo agrícola.
Ainda que uma reinterpretação da ocupação colonial brasileira fuja dos objetivos do
texto, o esforço de se pensar a entidade “espaço” e sua interação com a forma colonial exigiu
esse breve exercício, para que seja possível perguntar: há sentido em se pensar um mundo, um
espaço, um território pós-colonial? A logística ocupou-se da construção da colônia, dos
artefatos, dispositivos, em suma, das próteses pelas quais se traduziram as instituições, o
pensamento e a palavra na nascente sociabilidade dos trópicos. A manipulação de massas no
fluxo capitalista a extração de recursos vegetais, minerais, o transporte de pessoas e animais,
a exportação e importação de matéria prima, de maquinário , dinâmica através da qual o
capital se globalizaria, exigiu e exige um permanente rearranjo dos fatores produtivos, das
estruturas de acondicionamento e de suas rotas de escoamento. Não podemos assumir que a
posição privilegiada do projeto colonial se por sua capacidade de abarcar toda a realidade
tropical. De outra forma, é sua própria essência, com sua pretensão universal e escrita abstrata,
que o torna totalizante. Visitando o trabalho de Coelho (2024): a prática colonial é o que leva
a expansão da modernidade, prática essa dependente da homogeneização, abstrata, do espaço.
Nesse exercício, resgato o engenho como dispositivo estruturante da sociabilidade
brasileira, mas não pelo sentido consagrado por Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala, a
saber, a gestação de uma cultura híbrida, da qual se deriva a democracia racial, responsável por
consolidar o que seria a identidade brasileira, cujo fruto é o sujeito político que incorporou as
formas culturais dos povos dizimados. Busco aqui resgatá-lo enquanto instituição: enquanto
ente político responsável por consolidar o modelo produtivo-econômico e as formas de política
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e governança coloniais. É pelo engenho que as categorias de separação social que deflagraram
a escrita das terras coloniais nos séculos seguintes são gestadas. Essa dobra histórica me permite
antever a lógica social operada na produção colonial do espaço na América Portuguesa um
espaço fronteiriço.
Por uma crítica ao engenho
Para Freyre (2006), a construção da civilização moderna nos trópicos brasileiros é
explicada a partir da capacidade do sujeito brasileiro
9
de assimilar as culturas e raças ditas
inferiores. Freyre posiciona o nativo (indígena) como sempre- “desaparecendo” em seu
contato com o colonizador. Isso indica uma obliteração desse Outro cultural e fenotipicamente
díspar diante do olhar colonial. Mais que isso, Freyre reescreve o sujeito cultural indígena como
um sujeito sem carne e corpo, mas cuja presença cultural começaria a influenciar a divisão
sexual do trabalho na história da nação brasileira. É a capacidade da casa grande de fagocitar
aspectos do trabalho reprodutivo dos nativos que permite a incorporação de suas características
no que viria a ser a sociedade patriarcal brasileira.
A arquitetura do espaço doméstico é por onde Freyre opera a mestiçagem cultural que
produziria a singularidade brasileira. A cozinha dissolve o indígena e o materializa nos
utensílios e processos, na disposição do ambiente e em sua relação imediata com o pomar e o
quintal. Do africano, a cozinha apoiara-se na mão-de-obra feminina para a organização do
ambiente. Aqui, sua tese afasta-se da metáfora espacial para, enfim, assumir que a tecnologia
política da mestiçagem operou, sobretudo, a partir de estupros e abusos sexuais sobre a mulher
negra. Nas páginas de seu conhecido livro, o corpo da escrava negra é tratado como a principal
herança africana na escrita do sujeito brasileiro. Outros cômodos da casa grande assumiriam
um papel importante, afinal, as práticas de estupro estariam distribuídas entre os quartos das
amas de leite e demais ambientes privativos da residência.
Essa tese é sagaz na medida em que o autor contrabalanceia o genocídio colonial na
caldeira cultural do engenho. O sujeito nacional incorporaria dimensões culturais dos Outros
9
A locução substantiva sujeito nacional é trabalhada por Denise Ferreira da Silva de forma transversal em seus
trabalhos, mas especialmente desenvolvida em Homo Modernus (2022): trata-se da reescrita do sujeito moderno
autodeterminado na instituição política do Estado-nação.
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da Europa, permitindo assim uma reescrita singular e política do sujeito, aquele com capacidade
de autodeterminação histórica. Na casa grande criara-se, assim, as características brasileiras da
adaptabilidade, da miscibilidade e da falta de preconceito racial. Em contraponto, no engenho,
o senhor da casa é o regente soberano sobre o latifúndio, sobre sua mulher, empregados,
escravizados e filhos.
Quais efeitos a estrutura epistêmica e ontológica moderna desencadeava na
sociabilidade nascente da colônia? Por quais razões a escrita do sujeito brasileiro obliterou e
violentou os corpos das populações subjugadas no projeto colonial, mas os incorporou
fastamagoricamente em sua ontologia? Debruçar sobre essas questões significa também se
debruçar sobre as bases epistemológicas da escrita do espaço. Em outras palavras, trata-se de
mapear o ponto de contato entre episteme e materialidade.
Em seu livro Lógica Formal, Lógica Dialética, Henri Lefebvre critica a abordagem
filosófica moderna sobre a epistemologia: o autor desloca o foco do debate do conhecimento
como problema para o conhecimento como fato. Essa inversão permite entender uma postura
clássica da epistemologia moderna e da tradição filosófica que se seguiu: uma separação
permanente entre sujeito e objeto. Esse problema basilar exigia, como desdobramento, um
esforço de reconexão entre essas as duas partes, desenvolvido sempre a partir de argumentações
insolúveis. As correntes de pensamento que se valeram desse gesto na investigação do mundo
são lidas pelo autor francês como metafísicas (Lefebvre, 1979). O gesto metafísico, na crítica
epistemológica de Lefebvre, é o gesto analítico que separa a parte do todo.
Lefebvre admite a possibilidade de consequências sociais para o pensamento metafísico
(pela persuasão ou pela propaganda, ainda que não se possa, nesse caso, afirmar a natureza
social do pensamento). Em minha argumentação, sugiro que o gesto analítico de separação,
identificado e criticado filosoficamente por Lefebvre, possui, necessariamente, implicações
sociais e históricas. Afinal, como argumenta Silva (2022) ao intuir a noção de separabilidade,
trata-se de um dos pilares ontopistemológicos da modernidade: fundamento tanto da
antropologia biológica e seu projeto de construção dos tipos raciais humanos, quanto dos
discursos éticos e políticos que se desenvolveram na constituição do estado-nação. A
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Submissão em: 13/01/2025. Aceito em: 16/07/2025.
ISSN: 2316-8544
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separabilidade, dessa perspectiva, é uma noção que denuncia a violência da ordem discursiva
moderna e que nos permite entender as formas mais elementares do que vem a ser uma fronteira.
Estou sugerindo que uma análise metafísica se trata de um gesto com reverberações
concretas quando fundamenta modelos de sociabilização. Noutras palavras, o gesto metafísico,
criticado por Lefebvre, separa o que é indissociável, enquanto a sociabilização informa essa
separação, num primeiro momento abstrata, de conteúdo (dotando de sentido uma categoria,
um grupo, etc.). A separabilidade, portanto, é um fenômeno da práxis. Ao ler as fronteiras, o
que podemos ler são sistemas de separação sicos e simbólicos que se efetivam nas ações de
sociabilização de um contexto espacial. Esses sistemas constituem-se, portanto, de
constrangimentos construídos desde a historicidade e situados (posicionados) espacialmente. A
fronteira, nesse sentido, é produto formatado pelos limites estabelecidos pela história.
Considerar isso é admitir que os gestos de separabilidade, marginalização e periferização jamais
desvinculam-se das estruturas sociais e históricas de onde nascem. As fronteiras são resultado,
portanto, da introjeção e da externalização dessas estruturas por agentes submetidos às mesmas
condições de sociabilidade.
Uma fronteira não pode esgotar-se em uma ação expressa do cálculo racional de um
agente ou de um grupo socioespacial, mas resulta de princípios inculcados de estruturas sociais
duráveis que são absorvidos e reproduzidos num processo de subjugação. Fazendo uma
pequena inversão no conceito de habitus em Bourdieu, pode-se dizer que em uma fronteira não
a ação de separabilidade é externalizada, mas também os seus efeitos de naturalização são
internalizados nos agentes e grupos envolvidos. Esse processo de separação, em suma, consiste
nas relações dialéticas entre essas estruturas e as disposições estruturadas nas quais elas se
atualizam e que tendem a reproduzí-las, isto é, o duplo processo de interiorização da
exterioridade e de exteriorização da interioridade (Bourdieu, 2003).
Busco aproximar a ideia de escrita espacial colonial (inserção de uma determinada
materialidade na estrutura semântica de significação colonial) ao conceito lefebvriano de
produção do espaço. Aponta-se que a significação colonial é o apoio basilar sobre o qual
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desenvolve-se o projeto colonial, é a ação epistemicida
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de redução de todo o fluxo que escapa
da lógica de produção capitalista ao seu modus operandi. Se pudermos pensar através do olhar
colonizador com o qual abrimos o texto, a produção (escrita) do espaço é exatamente o que
costura a matéria à realidade social, ou nas palavras de Schimid, ao comentar a teoria social de
Lefebvre (2012, p. 92), “o espaço não existe em si mesmo”. Este é o sentido do engenho-
instituição: o que está em voga é um modelo produtivo semi industrializado
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que foi
responsável pela ocupação colonial da faixa litorânea brasileira, a primeira porção do território
da américa portuguesa cuja colônia se fixaria. O engenho seria a unidade política responsável
por dar continuidade e consistência ao projeto econômico colonial. Seria, em suma, o reduto
pelo qual se administraria as terras tropicais. Trata-se, de forma geral, do mecanismo pelo qual
se traduziu a abstração da propriedade, dos mapas e do fluxo produtivista coloniais numa ordem
de sociabilidade e numa unidade material (território).
A Geografia herdou de Kant a ideia de espaço enquanto um juízo sintético a priori, ou
seja, um constructo objetivo (externo) e universal, que organizaria o mundo sensível
independente da atuação de um sujeito. A categoria espaço, portanto, tratar-se-ia de um objeto
inteligível, com existência própria e cujo mapeamento e descrição ocorreria a partir das
impressões, técnicas e experiências do sujeito de conhecimento. ainda uma tradição nos
estudos urbanos e na historiografia das cidades que mistura a epistemologia formal kantiana e
a política hegeliana, concebendo o espaço a partir de manobras metodológicas de recorte, que
o delimitam como objeto a ser analisado espacial, temporal e fenomenicamente, isolando-o.
Para fissurar a tradição moderna que toma o espaço como externalidade, como um lugar
à espera de sua ocupação (ou simbolização), podemos, de início, assumir que a escrita do espaço
exige uma relação dupla entre corpo e materialidade, isto é, o corpo que é e produz (escreve) o
espaço, suas direções, seu conteúdo e sua estrutura semântica. Concatenar corpo e espaço numa
mesma entidade exige que pensemos o espaço juntamente com os corpos (materialidades,
sujeitos e epistemes) que o compõem. É possível, novamente, buscar apoio no projeto
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O conceito de epistemicídio, central na obra de Sueli Carneiro (2006), refere-se ao apagamento sistemático e
deliberado de formas de saber, narrativas e perspectivas de grupos marginalizados, especialmente povos negros e
indígenas. Como parte do projeto colonial e de dominação racial o epistemicídio não se restringe apenas à negação
de conhecimentos, mas à aniquilação de subjetividades e da legitimidade de outros modos de existência.
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A noção do engenho como indústria foi desenvolvida por Furtado (2007).
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lefebvriano para amarrar essa posição, afinal tanto o tempo como o espaço (ambos juízos
sintéticos apriorísticos em Kant) assumem, em sua crítica, um caráter social, como resultado e
pré-condição da sociedade. Isso é também afirmar que o duplo tempo-espaço não existe de
forma universal e que apenas podem ser compreendidos no contexto de uma sociedade
(historicidade) específica. A manutenção do espaço enquanto categoria moderna é o que vela o
maquinário de reprodução das desigualdades espaciais e dos processos de fronteirização das
relações sociais. Afinal, a condição de possibilidade da globalidade é justamente a abstração, a
racionalização e a virtualização de todo o espaço que ela mesmo produz. Em texto de sua
juventude, Lefebvre assimilaria o seguinte raciocínio sobre o pensamento:
Para cessar de estar nele (no mundo), ele se afirma como dominador, ordenador; quer
impor sínteses ou unidade às coisas; crê explicar, fixar lugares e papéis, completar o
mundo. Ele se torna, primeiramente, abstrato e, em seguida, por desespero,
desinteressado por este mundo, sobre o qual não possui nenhum controle real: faz dele
um espetáculo claro, ou bem dissolve o real, ao qual impõe incontáveis enigmas:
chegou-se a isto neste momento. Seus fracassos, essa divisão íntima (entre o
pensamento e o real), são suficientes para julgá-lo (Lefebvre, 1926, s/p).
O ordenamento territorial, a logística produtiva e a lógica de fronteirização da
sociabilidade colonial seriam, então, efeitos sociais e concretos dessa postura metafísica do
pensamento, mas, seriam condição do próprio pensamento? A produção do espaço colonial
seria, dessa forma, a expansão de uma episteme manca e violenta sobre a materialidade do
mundo? A escrita colonial do espaço seria, então, a produção de uma subjetividade assassina
que, como olhar colonizador que virtualiza o espaço da floresta, fixa categorias, papéis e
posições em uma cena de permanente produção e subjugação de existências externas? Se, por
razões de ordens técnicas ou políticas, contemporaneamente não espaço do qual o mundo
social não tenha ainda se apropriado/tocado, ou, podemos dizer, se o espaço é um espaço
globalizado, haveria condições de escapar do fluxo desenfreado da produção capitalista do
espaço? Como não reproduzir o olhar colonial sobre o mundo pós-colonizado?
Ao posicionarmos o problema da colonialidade dessa forma como um problema
espacial, somos convidados a rever os pressupostos sobre os quais constrói-se grande parte das
análises e das críticas sobre a desigualdade socioespacial e a evolução das cidades nos países
que experimentaram essa forma política. Se a histórica política assume a superação do período
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colonial por advento de outras formas devotas da noção de soberania, os efeitos da estratificação
social e do posicionamento econômico desses países na economia global nos permite enxergar
a resiliência das estruturas coloniais na consolidação soberana de seus Estados.
Apontamentos
A ordem colonial instaura uma semântica da violência no fluxo histórico das nações que
se forjaram a partir de seu modelo político. Glissant (2021) certa vez propôs uma análise dupla
sobre a plantation, costurando à estratificação piramidal desse regime produtivo sua condição
de fuga. Com suas provocações, podemos redecompor o engenho. Se se trata de um modelo
de gestão da carne e da terra cujos limites é proibido sair, cuja configuração territorial confinava
instituições e serviços em seu interior (capela, oficina, estoques e comércios de alimentação,
hospital, hospício), somos levados a pensar que justamente por marcar uma ordem tão rígida e
hierárquica, o engenho cozinhava também uma lenta mestiçagem positivada. Glissant chama
atenção para as manifestações orais e a permanente construção de novas línguas, numa sintaxe
e semântica que misturavam elementos dos mais diferentes dialetos africanos, dos linguajares
indígenas e colonizadores num ato de ressimbolização do mundo. Gorender (2016) nos lembra
que:
Se nos voltarmos, contudo, à história real, ao escravo real, a dialética apresenta-se a
nós como o oposto da hegeliana. Porque o escravo real conquistava a consciência
de si mesmo [...] ao repelir o trabalho, o que constituía sua manifestação mais
espontânea de repulsa ao senhor e ao estado de escravidão. A humanidade se criou
pelo trabalho e, por mediação dele, se concebeu humanamente nisto reside a
verdade da fenomenologia hegeliana (Gorender, 2016, p. 109).
A construção de um sistema semântico novo, para Glissant, permitiria a reconfiguração
do horizonte de resistência. Mobilizando Gorender (2016), as categorias ontológicas precárias,
nas quais foram confinadas as pessoas submetidas ao terror do engenho, somente seriam
superadas quando a posição de subjugação ao senhor fosse positivada a partir da morte da
estrutura lógica que sustenta a dominação do escravo pelo trabalho. Ao recuperarmos alguns
dos estudos sociológicos clássicos de Clovis Moura sobre a dominação escravista no Brasil,
vislumbramos cenas materiais desencadeadas pela resistência contra a instituição engenho e
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pelo repúdio à sujeição escravocrata. Assim Moura (2001, s/p.) introduz o papel dos quilombos:
uma rota “permanente de desarticulação dos valores ideológicos e existenciais”.
Afinal, retornando à gravura do começo, se o gesto do olhar permite ao colonizador
inserir toda materialidade que suas vistas tocam no léxico colonial, podemos re-inverter nossa
própria análise e assumir que aquele corpo que enxerga, que assume a floresta e seus habitantes
como pertencentes a uma instância da sacralidade está, na verdade, cercado por uma outra
ordem esse corpo existe na floresta, e não seu contrário: a floresta que existira em seu olhar.
A categoria “quilombo” em Moura (2001) não deve ser puramente interpretada como algo que
se coloca contra, como uma resistência, ao regime violento colonial. Mas sim como algo que
se manifesta em uma outra semântica de escrita do espaço e da socialidade. Na fuga, é gestada
e vivida a possibilidade do fim do engenho, a utopia assume uma dimensão carnal.
Se a colônia persiste como uma questão na vida política brasileira, não é devido a um
ressentimento não tratado com o passado ou uma obsessão pesada, mas porque suas estruturas
continuam a estabelecer posições políticas, a produzir e fragilizar ontologias e a organizar o
espaço por sua métrica moderna. Esta é a pós-colônia: acesso limitado à habitação, à saúde,
morte prematura, estado de guerra permanente entre Estado e facções, encarceramento,
pobreza. De certo, a fuga do engenho ocupou o horizonte da utopia. O colapso do sistema
escravista, o fim da estrutura patriarcal e do horror sexual da casa-grande foram de certo
gestados desde o engenho enquanto fuga da ordem social posta.
Ao realizarmos essa dobra histórica nos questionamos a relação entre crise e utopia. O
que move os pensamentos e análises sobre a fuga é a realidade histórica do mundo colonial
brasileiro e o holocausto racial que se deflagrou por e nesse espaço. A emancipação colonial
desde o engenho deveria ser historicamente impossível. Nesse ambiente de barbárie, a fuga é a
utopia viva. O que é problemático, nesse raciocínio, é que, por tradição, “a utopia é o lugar onde
todos gostaríamos de viver” (Harney, 2024, p. 18). A evolução da forma política colonial não
trouxe aos trópicos a efetivação do projeto ético de humanidade e pouco ampliou as
possibilidades de emancipação. Hoje, travam-se permanentes embates transescalares: desde a
luta pela demarcação de terras indígenas frente ao agronegócio e as permanentes denúncias por
desrespeito, por parte de mineradoras e demais multinacionais, a comunidades e territórios
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quilombolas no Congresso Nacional, até o reconhecimento por quilombos urbanos em Câmaras
e Planos Diretores municipais. De certa forma, a crise contemporânea pode ser lida como
utopia-presente. O que seria problemático nisso é que a utopia, por definição é o lugar do
impossível, onde todo mundo gostaria de viver.
Referências
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