CAPA
Rua Monte Líbano, Teresópolis, Brasil, agosto de 2022.
Luke Martins
Eu encaro a rua como um organismo vivo. Vias são como artérias, pedestres
apressados, carros altos e barulhentos, crianças brincando, o tio que vende
picolé… tudo e todos são partes essenciais desse ecossistema urbano e
humano que construímos sem planejar e ajudamos a manter cada vez que
saímos do universo particular de casa para a realidade do cotidiano. É louco
pensar que para alguns rua e casa são a mesma coisa, não é? Calçadas são
convertidas em palanques com a mesma facilidade que viram quarto para
quem não tem escolha…
Rua é lugar de coexistência entre opostos, o rico e o pobre, o apressado e o
ocioso, o orelhão e o smartphone… A foto mostra as ruínas de um elemento
que já serviu de ponte entre familiares, colegas, amantes… Já foi portador de
más notícias e já matou saudades… hoje serve de abrigo do Sole da chuva. As
coisas mudam, o temo passa, o orelhão vira artigo de bolso… A gente esquece,
mas a rua não.
A rua se lembra.
Canon T7i, lente 50mm
Luke Martins
Fotógrafo
Contato: stumblerspeaker@hotmail.com
A Revista Ensaios de Geografia é um periódico científico
quadrimestral do Programa de Pós-Graduação em Geografia da
Universidade Federal Fluminense (PosGeo/UFF). O acesso ao seu
conteúdo é livre e sua publicação se exclusivamente no meio
digital. A revista tem como principal objetivo divulgar pesquisas
dos estudantes de graduação e pós-graduação vinculadas à
geografia e áreas afins, bem como ser um espaço de formação
acadêmica e profissional, ao contar com a participação de
estudantes nos processos editoriais.
Nesse sentido, busca-se divulgar a produção de artigos que
contenham resultados empíricos relevantes e revisões teórico-
conceituais que contribuam para o processo de ensino-
aprendizagem, fundamental ao desenvolvimento do pensamento
geográfico. Além disso, propõe-se publicitar produções artísticas
como fotografias, poesias, desenhos e similares, desde que
estabeleçam um diálogo com a referida área de conhecimento.
São aceitas contribuições nos seguintes idiomas: português, inglês
e espanhol.
O conteúdo dos trabalhos é de inteira responsabilidade dos
autores.
A revista não cobra nenhum tipo de encargo dos autores ou
leitores.
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Telma Regina Stroparo
Thaís Fernandes dos Santos
Thiago Adriano Machado
Thiago Alves de Oliveira
Thiago Bueno Saab
Thiago Canettieri
Thiago Maranhães Cabral
Tiago Dionísio da Silva
Tyrone Mello
Valeria Ysunza Pérez Gil
Victor Tinoco de Souza
Vinícius Henrique Mallman
Yago Evangelista de Souza
Yata Anderson Gonzaga
v. 8, n. 16, janeiro-abril, 2022
A presente edição inaugura mais um ano de atividades da Revista Ensaios de
Geografia. Desde a nossa retomada, trabalhamos em busca da consolidação deste
periódico enquanto um espaço de formação e construção do pensamento geográfico
crítico e atento às questões que atravessam nossas realidades e cotidianos,
enfrentando os desafios impostos a um comitê editorial majoritariamente estudantil.
Em meio a este percurso, já podemos sentir o quanto a Ensaios de Geografia tem
crescido e se expandido. Prova disso é a nossa recente indexação à Rede
Latinoamericana de Revistas em Ciências Sociais (LatinREV), ao Bielefeld Academic
Search Engine (BASE) e à Rede Ibero-Americana de Inovação e Conhecimento
Científico (REDIB). Além disso, os trabalhos do mero atual trazem um novo
template, que foi produzido por nossa equipe visando a projeção internacional e a
adaptação a requisitos mínimos para indexação em outros portais.
Dentre as novidades que trazemos, também incluímos os novos vínculos de nossa
equipe de Editores Executivos a outras Instituições de Ensino Superior, o que ocorre
através da progressão de dois de nossos editores, egressos da graduação em
Geografia da UFF, para os programas de pós-graduação da UERJ e da UFMG. Além
disso, passamos a contar também com uma grande quantidade de pareceristas
oriundos de diversas universidades nacionais e internacionais.
A capa do mero atual é ilustrada por um registro do fotógrafo Luke Martins, cuja
sensibilidade e capacidade de compreensão da cidade se conjugam em um retrato da
rua como espaço das diferenças, de permanências e novidades e, sobretudo, do
movimento. O Urbano se desvela nos detalhes: o pedestre segue seu caminho,
dividindo espaço com os telefones públicos, mesmo em plena era dos celulares; a
formalidade da vestimenta contrasta com as impactantes e subversivas marcas
deixadas por pichadores. A fotografia foi captada na cidade de Teresópolis, na Região
Serrana do estado do Rio de Janeiro.
Os artigos, as leituras e as visualidades que compõem este número versam sobre
diferentes temáticas. Em nossas apreciações, destacamos a luz que foi lançada sobre
saberes não-hegemônicos através das metodologias trazidas em alguns dos artigos,
tais como as histórias de vida e a cartografia participativa. Ressaltamos, também, a
leitura crítica acerca do lugar da Geografia na Educação Básica após as recentes
reformas curriculares nacionais. Ademais, são estabelecidos diálogos da Geografia
com a filosofia fenomenológica de Maurice Merleau-Ponty. As leituras presentes
nesta edição trazem consigo vozes e corpos que se expressam e se fazem ouvir
enquanto produzem saberes e espaços. Na seção visualidades, as paisagens
recifenses e cariocas desvelam o presente e o passado das cidades, a partir da análise
histórica e do cotidiano.
Convidamos nossos leitores a embarcar nas reflexões promovidas por esta edição.
ARTIGOS
A EDUCAÇÃO BRASILEIRA E O PENSAR GEOGRÁFICO:
reflexões sobre o ensino de Geografia e o Novo Ensino Médio
Bruna Gabriele de Oliveira Araújo e Antônio Kinsley Bezerra Viana............... . p. 14 - 31
GEOGRAFIA E ANTIRRACISMO NA EDUCAÇÃO:
possibilidades no Ensino Fundamental a partir da BNCC
Bruna Machado da Rocha......................................................................................... p. 32 44
CARTOGRAFIA PARTICIPATIVA COMO DIÁLOGO ENTRE SABERES:
ontologia, epistemologia, metodologia e aplicações na construção social do
conhecimento
Daniel Sombra, Gilberto Pereira Rodrigues e Danilo do Rosário
Pinho…………………………………………………………………….................................. p. 45 74
EXPLORANDO MEMÓRIAS DE LUGAR E LUGARES DE MEMÓRIA ATRAVÉS DE
HISTÓRIAS DE VIDA DE IDOSOS RESIDENTES NA SERRA DE PIABAS, SITUADA
NO PARQUE ESTADUAL DA PEDRA BRANCA, CIDADE DO RIO DE JANEIRO-RJ
Jean Lucas da Silva Brum……………….……………………….................................. p. 75 97
MERLEAU-PONTY E O PRIMADO DO CORPO COMO EXPERIÊNCIA NASCENTE
DA PAISAGEM
Lucas Kaliel Tavares de Sousa e Souza e Romeu Bacelar de Souza Neto…………...
p. 98 123
LEITURAS
POR QUE EU NÃO POSSO SER DOREEN MASSEY?
João Carlos Nunes………………............................................................................. p. 124 125
MEU CONTEXTO
Thiago Borges……………………............................................................................. p. 126 131
VISUALIDADES
A CAPTURA DO CAPTURADO CAPTURANTE NAS MARGENS DA ILHA DE DEUS,
RECIFE/PE
Luiz Carlos da Silva Filho….……………………………………………………...… p. 132 134
AS TRANSFORMAÇÕES NA PAISAGEM PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO
Rafael Alves de Freitas…………………………………………………………. p. 135 p. 147
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
OLIVEIRA, Bruna Gabrielle Araújo; VIANA, Antônio Kinsley Bezerra. A educação brasileira e o pensar geográfico: reflexões sobre o ensino
de Geografia e o Novo Ensino Médio. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº 16, pp. 14-31, janeiro-abril de 2022.
Submissão em: 29/08/2021. Aceito em: 01/04/2022
ISSN: 2316-8544
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons 14
SEÇÃO ARTIGOS
A EDUCAÇÃO BRASILEIRA E O PENSAR GEOGRÁFICO:
reflexões sobre o ensino de Geografia e o Novo Ensino Médio
BRAZILIAN EDUCATION AND GEOGRAPHIC THINKING:
reflections on Geography teaching and new high school
LA EDUCACIÓN BRASILEÑA Y EL PENSAMIENTO GEOGRÁFICO:
reflexiones sobre la enseñanza de Geografía y la nueva enseñanza media
Bruna Gabriele de Oliveira Araújo1
Universidade Estadual do Ceará (UECE),
Ceará, Brasil
E-mail: bgoa.geo@gmail.com
Antônio Kinsley Bezerra Viana2
Universidade Estadual do Ceará (UECE),
Ceará, Brasil
E-mail: antonio.viana1@prof.ce.gov.br
Resumo
A educação brasileira passou por algumas mudanças nas últimas décadas, superando abordagens e práticas
pedagógicas meramente conteudistas e descritivas para atuar como um importante instrumento de transformação
social e formação cidadã. Em vista disso, o Estado passa a ver a educação como ferramenta imprescindível para a
superação dos problemas sociais brasileiros. Nesse contexto, a Geografia atuou de modo a colaborar na instrução
dos alunos, auxiliando no desenvolvimento de uma melhor compreensão de mundo e na concepção de novos
valores e de um senso crítico, contribuindo ativamente para o desenvolvimento da educação brasileira. Atualmente,
sob os novos parâmetros propostos pela BNCC e instituídos através do Novo Ensino Médio, a Geografia é relegada
a um outro patamar, sendo vista como apenas um componente das ciências humanas. Este artigo busca refletir
sobre os caminhos que seguiram a educação brasileira e a geografia escolar, tratando das adversidades a serem
superadas pela Geografia e seus professores.
Palavras-chave
Ensino de Geografia; BNCC; Novo Ensino Médio
Mestre em Geografia pela Universidade Estadual do Ceará UECE. Professora da Rede de educação privada.
Fortaleza Ceará.
Doutor em Geografia pela Universidade Estadual do Ceará UECE. Professor da Rede de Ensino Básico do
Ceará. Fortaleza Ceará
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
OLIVEIRA, Bruna Gabrielle Araújo; VIANA, Antônio Kinsley Bezerra. A educação brasileira e o pensar geográfico: reflexões sobre o ensino
de Geografia e o Novo Ensino Médio. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº 16, pp. 14-31, janeiro-abril de 2022.
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ISSN: 2316-8544
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Abstract
Brazilian education has undergone some changes in recent decades, overcoming pedagogical approaches and
practices that were merely content and descriptive to act as an important instrument of social transformation and
civic education. In view of this, the State began to perceive education as an indispensable tool for overcoming
Brazil’s social problems. In this context, Geography worked in collaborating with the instruction of students,
assisting in the development of a better understanding of the world and in the conception of new values and critical
sense, contributing actively to the development of Brazilian education. Currently, under the new parameters
proposed by BNCC and instituted through the New High School, Geography is relegated to another level, being
seen only as a component of the human sciences. This article seeks to reflect on the paths that followed Brazilian
education and school geography, dealing with the adversities to be overcome by Geography and its teachers.
Keywords
Geography Education; BNCC; New High School
Resumen
La educación brasileña ha sufrido algunos cambios en las últimas décadas, superando enfoques y prácticas
pedagógicas meramente conteudistas y descriptivas para actuar como un importante instrumento de transformación
social y formación ciudadana. En vista de ello, el Estado pasa a ver la educación como herramienta imprescindible
para la superación de los problemas sociales brasileños. En ese contexto, la Geografía actuó de modo a colaborar
en la instrucción de los alumnos, auxiliando en el desarrollo de una mejor comprensión del mundo y en la
concepción de nuevos valores y de un sentido crítico, contribuyendo activamente al desarrollo de la educación
brasileña. Actualmente, bajo los nuevos parámetros propuestos por la BNCC e instituidos a través de la Nueva
Enseñanza Media, la Geografía es relegada a otro nivel, siendo vista como solo un componente de las ciencias
humanas. Este artículo busca reflexionar sobre los caminos que siguieron la educación brasileña y la geografía
escolar, tratando de las adversidades a ser superadas por la Geografía y sus profesores.
Palabras-clave
Enseñanza de Geografía; BNCC; Nueva Enseñanza Secundaria
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OLIVEIRA, Bruna Gabrielle Araújo; VIANA, Antônio Kinsley Bezerra. A educação brasileira e o pensar geográfico: reflexões sobre
o ensino de Geografia e o Novo Ensino Médio. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº 16, pp. 14-31, janeiro-abril de 2022.
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Introdução
A educação brasileira no decorrer da sua história sempre foi marcada por
inúmeros obstáculos e graves disparidades regionais. Tais problemas dificultaram por
muito tempo o avanço educacional e a consolidação de uma rede nacional de ensino que
permitisse o acesso à educação de forma ampla e irrestrita à nossa população. Um
exemplo mais evidenciado nas escolas relaciona-se com a falta de infraestrutura e poucos
investimentos na capacitação dos docentes.
Apesar das primeiras práticas educativas terem sido de responsabilidade da
igreja católica, sendo encarregada por implantar um modelo confessional católico
estruturado a partir do Ratio Studiorum
jesuítico, somente com a reforma pombalina e a
tentativa de modernizar a gestão pública do Estado português ocorreu a implantação de
um novo modelo de “aulas régias” em Portugal e suas colônias, introduzindo as
concepções iluministas de ensino, idealizando uma educação universal, laica e moderna.
Infelizmente, tal modelo acabou se mostrando inviável no Brasil por falta de
investimentos e profissionais habilitados, dificultando o letramento e a educação formal
para a maioria da população. Apesar desses contratempos, tal reforma e seus ideais
influenciaram a consolidação do modelo liberal para o ensino que se perpetuou desde
então.
A educação tradicional influenciada pelos ideais iluministas tratou de
universalizar o ensino ao mesmo tempo que buscava proporcionar uma sólida e extensa
base teórica. O professor assume o pilar central do processo de aprendizagem porque é
ele quem planeja as atividades e organiza o vasto conteúdo, relegando ao aluno uma ação
secundária, sendo visto como um receptáculo do conhecimento, refletindo uma educação
enciclopédica e acrítica, características primordiais desse tipo de ensino. Menezes e
Kaercher (2015) complementam que as tendências de práticas tradicionais perduram e as
mudanças no ensino ocorrem lentamente, como visto no trecho a seguir:
[...]predominam práticas pedagógicas tradicionais, conteudistas e
reprodutivistas nas instituições educativas. Este ensino conservador, ainda
Ratio studiorum - conjunto de normas que regulamentava o ensino nos colégios jesuíticos. Sua finalidade
era estruturar os métodos, atividades e funções em todas as esferas do processo educativo (Saviani, 2011).
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OLIVEIRA, Bruna Gabrielle Araújo; VIANA, Antônio Kinsley Bezerra. A educação brasileira e o pensar geográfico: reflexões sobre
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hegemônico nas salas de aula, é oriundo da própria história do ensino escolar.
Ou seja, o ensino escolar moderno passou por uma evolução lenta, assim como
o processo de profissionalização da docência[...]. (MENEZES, KAERCHER,
2015, p. 40)
Apesar de todos esses entraves, no início do século XX se consolidaram novos
ideários pedagógicos, provocando intensas reformas no sistema educacional brasileiro,
influenciando suas ações durante muitas décadas. O movimento Escola Nova,
sistematizado no Brasil a partir do Manifesto dos Pioneiros da Educação e estruturado em
meados de 1932, tinha por objetivo garantir uma educação capaz de ajudar no
desenvolvimento epistêmico e analítico dos alunos, na medida que os preparava para
serem membros de uma sociedade moderna, fomentando os meios intelectuais e morais
para que os jovens fossem capazes de cumprir os seus deveres cívicos e profissionais para
com a nação. Para Santos et al. (2006), a Escola Nova contribuiu consideravelmente com
a educação brasileira, deixando alguns legados importantes, entre eles: dar voz aos
estudantes, possibilitando que estes participem ativamente no processo educativo; e trazer
para as instituições escolares a perspectiva de um pensamento científico e autônomo.
Com a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1971 e as reformas subsequentes, o
ensino foi tratado como um agente de desenvolvimento e transformação social. As
práticas educativas foram orientadas a permitir a “autorrealização do educando”, a
“qualificação para o trabalho” e o “exercício consciente da cidadania” (BRASIL, 1971).
Na prática, as escolas foram obrigadas a oferecer um ensino tecnicista de modo a atender
as demandas nacionais. Tal proposta pedagógica muitas vezes era implantada nas escolas
de forma autoritária e desvinculadas do contexto social (MENEZES, 2001). Nesse
contexto, o sistema educacional não conseguiu atingir os resultados esperados e a
educação continuava pautada numa concepção conteudista e no uso excessivo dos livros
didáticos e dos manuais, limitando o potencial criativo e educacional de professores e
alunos.
A Constituição Federal de 1988 e a posterior promulgação da LDB para a
Educação, em 1996, veio para modernizar essa compreensão pedagógica, propondo novas
tendências pedagógicas para o ensino básico, buscando não apenas a formação do aluno,
mas também artifícios para superar os graves problemas estruturais e sociais que
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
OLIVEIRA, Bruna Gabrielle Araújo; VIANA, Antônio Kinsley Bezerra. A educação brasileira e o pensar geográfico: reflexões sobre
o ensino de Geografia e o Novo Ensino Médio. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº 16, pp. 14-31, janeiro-abril de 2022.
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permeiam o sistema educacional brasileiro. Apesar do Estado brasileiro compreender a
educação como um dos agentes que fomentariam as mudanças necessárias para o
desenvolvimento da nossa sociedade (SAVIANI, 1999), ainda se encontram obstáculos
na educação, que vão desde o processo de ensino até a formação dos professores. De
acordo com Algebaile (2013) os déficits são muitos, e vão desde:
A falta de escolas ou de salas nas escolas existentes, a insuficiência de
professores para o atendimento das turmas constituídas, a alocação de turmas
em instalações inadequadas e provisórias, a falta de transporte escolar, a
irregularidade na realização das jornadas escolares e dos anos letivos, a
descontinuidade na oferta dos diferentes anos, etapas e níveis de ensino, são
alguns dos aspectos desse déficit [...]. (ALGEBAILE, 2013, p. 204).
A formação curricular do aluno na educação básica seria concebida de modo a
colaborar na construção de uma consciência cidadã, permitindo que esses
desenvolvessem uma capacidade analítica e crítica da realidade, bem como do conteúdo
escolar, fomentando, dessa forma, o surgimento de habilidades e competências capazes
de prepará-los para um mundo do trabalho dinâmico e globalizado, no qual os vários
setores da sociedade exigem profissionais competentes, proativos e versáteis em
diferentes áreas do conhecimento (BRASIL, 1997, p. 34).
A evolução da educação brasileira é percebida no desenvolvimento da geografia
escolar e na compreensão da sua importância para os educandos. Apesar da disciplina, no
início do século XX, ser vista como meramente descritiva, expondo as características
socioespaciais do território brasileiro, era notório as mudanças que a Geografia deveria
realizar no âmbito escolar e a importância do professor e da sua formação acadêmica para
explorar o potencial da disciplina na formação do educando, a fim de superar um ensino
mecanizado, por exemplo. Tal fato fica demonstrado com a afirmativa de Pierre
Monbeing (1957):
A maior parte do público culto tem uma ideia mais ou menos exata do que são
a biologia, a geologia, a economia ou a sociologia, o mesmo público não
acompanha o progresso das ciências geográficas, quando não ignora a sua
existência. Para uns a geografia é confundida com narrativas dos viajantes; um
geografo é um explorador, a rigor um cartógrafo; traz das suas viagens
narrativas agradáveis de ouvir-se, sobretudo se tem a habilidade de ilustrá-las
com belas imagens. Para outros, talvez numerosos, a geografia é uma
lembrança extremamente penosa de sua infância. [...] Se são corretos esses dois
modos de ver, é claro que a geografia é inútil, quando não perigosa; é um
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OLIVEIRA, Bruna Gabrielle Araújo; VIANA, Antônio Kinsley Bezerra. A educação brasileira e o pensar geográfico: reflexões sobre
o ensino de Geografia e o Novo Ensino Médio. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº 16, pp. 14-31, janeiro-abril de 2022.
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absurdo ensiná-la, mais ainda praticá-la, e torna-se urgente fechar também os
departamentos de geografia das faculdades de Filosofia e instituições como o
Conselho nacional de Geografia! A menos que consigamos mostrar que a
geografia contribui para o enriquecimento das mentes jovens e a sua formação.
A menos que possamos mostrar a sua utilidade num mundo onde toda e
qualquer ciência é também uma técnica, onde toda pesquisa leva a dar um
instrumento útil à coletividade. É mister, portanto, estabelecer o valor da
geografia no ensino e determinar sua utilidade como moderno instrumento de
trabalho (MONBEING, 1957, p. 5).
Com os constantes questionamentos sobre as atribuições da Geografia enquanto
ciência e disciplina escolar, ocorreram ao longo do século XX algumas ressignificações
das bases conceituais e analíticas, surgindo formas diferentes de compreensão do mundo,
levando os professores a repensarem o propósito da disciplina e o modo como os
conteúdos deveriam ser abordados para melhor atender à formação dos estudantes. Essas
mudanças permitiram a compreensão das espacialidades e suas diversas relações e
escalas, tornando-se uma importante ferramenta metodológica para o ensino de geografia,
possibilitando que os alunos desenvolvessem um pensamento espacial e um raciocínio
geográfico (LIMA, 2010).
Um exemplo está no que chamamos de geografia crítica, na qual a abordagem
analítica passou a questionar as contradições existentes no espaço globalizado,
evidenciando as transformações espaciais e as desigualdades socioeconômicas. Tal
corrente de pensamento, que surgiu no final de 1970, passou a influenciar tanto a
geografia acadêmica quanto a forma que a disciplina era trabalhada nas escolas.
A geografia escolar deixa de ter um foco meramente descritivo e quantitativo
das paisagens e dos processos ali existentes para propor uma interpretação crítica e
analítica das realidades que são cotidianamente evidenciadas aos alunos brasileiros. A
disciplina assumia o papel de esclarecer às crianças e jovens os processos existentes nos
territórios e como essas lógicas imprimiam determinadas características espaciais e
porventura agravavam as contradições econômicas e sociais (VLACH, 2008).
O ensino de geografia passa a apreciar tal abordagem nas aulas, colaborando
para a formação de cidadãos questionadores. O espaço geográfico passa a ser visto como
uma construção social, refletindo as características das sociedades que o estruturam.
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
OLIVEIRA, Bruna Gabrielle Araújo; VIANA, Antônio Kinsley Bezerra. A educação brasileira e o pensar geográfico: reflexões sobre
o ensino de Geografia e o Novo Ensino Médio. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº 16, pp. 14-31, janeiro-abril de 2022.
Submissão em: 29/08/2021. Aceito em: 01/04/2022
ISSN: 2316-8544
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A valorização do pensamento geográfico na educação brasileira
O ensino de geografia, assim, como a própria ciência geográfica, avançou com
o propósito de colaborar no desenvolvimento de uma consciência cidadã plena, capaz de
analisar criticamente os diversos problemas sociais e econômicos inerentes ao espaço
geográfico, observando suas causas, e principalmente, as consequências decorrentes
desses processos. Para Cavalcanti (1999):
Admitindo-se que o objetivo mais geral do ensino de Geografia é o de
desenvolver o pensamento autônomo dos alunos do ponto de vista do
raciocínio geográfico, tem-se considerado importante organizar os conteúdos
de ensino com base em conceitos básicos e relevantes, necessários à apreensão
do espaço geográfico. A ideia é a de que se deve encaminhar o trabalho com
os conteúdos geográficos e com a construção de conhecimentos para que os
cidadãos tenham uma consciência da espacialidade das coisas, nas coisas, nos
fenômenos que eles vivenciam mais diretamente ou que eles vivenciam
enquanto humanidade (CAVALCANTI, 1999, p. 132).
Em vista disso, o conhecimento geográfico foi considerado com um importante
valor para a instrução dos alunos ao longo da sua vida acadêmica. A geografia enquanto
disciplina escolar passa a tomar proporções extraclasses, pois o professor de geografia ao
compreender a realidade dos seus alunos conseguia inseri-los em um contexto geográfico,
aproximando-os das suas realidades socioespaciais. Conforme Santos (2010, p. 25), essa
nova perspectiva não se ampara em uma geografia meramente descritiva, para ele “os
novos tempos dão lugar a uma realidade vivida pelo educando e a sua situação nesse
contexto.”
Tal processo permitiu a estruturação de novas competências, associadas aos
preceitos das outras disciplinas, permitindo uma maior autonomia dos alunos e
diversificação da sua base intelectual e cultural, princípios essenciais para pautar suas
ações e análises diante de um mundo globalizado. Esses elementos estabelecem o
importante papel da geografia para a formação dos alunos, e, por conta disso, os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) do Ensino Médio afirmam que:
O aluno do século XXI terá na ciência geográfica importante fonte para sua
formação como cidadão que trabalha com novas ideias e interpretações em
escalas onde o local e o global definem-se numa verdadeira rede que comunica
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pessoas, funções, palavras, ideias. Assim compreendida, a Geografia pode
transformar possibilidades em potencialidades (re)construindo o cidadão
brasileiro (BRASIL, 1998, p. 31).
Nesse sentido, a geografia atua como um elemento que fomenta o surgimento e
a compreensão de novas ideias e informações sobre o espaço geográfico, além das
dinâmicas que nele se instalam, integrando diversas metodologias e saberes de outras
áreas da ciência.
Sabendo das potencialidades que a geografia permite, os PCN’s propiciaram a
integração dos conhecimentos e das disciplinas afins. Consequentemente, os conteúdos
da geografia foram estruturados através de eixos temáticos, além de temas transversais
que devem perpassar por todas as áreas. Essa ação permite uma maior
interdisciplinaridade e contextualização entre as disciplinas e seus conteúdos, permitindo,
assim, o surgimento de novas técnicas voltadas para o ensino e a aprendizagem (COSTA
E LOPES, 2009).
Os PCN’s recomendam que o ensino de geografia seja focado na valorização dos
conceitos-chave como instrumentos capazes de auxiliar os estudantes nas análises do
espaço geográfico. Para tanto, os PCN’s devem ser trabalhados de forma que permitam
uma análise mais complexa das ações humanas na superfície terrestre. Sendo assim, ao
se trabalhar conceitos como paisagem, território, lugar, entre outras categorias de análise
utilizadas na geografia, é possível interagir com outras áreas do conhecimento,
construindo uma visão integrada do espaço geográfico e dos diferentes modos de
interação sociedade-natureza, colaborando no desenvolvimento de novos valores,
normas, atitudes e condutas dos educandos, e na compreensão das informações e suas
realidades (ARESI, 2018).
Pensando na complexa e diversificada rede educacional brasileira, na qual é
possível perceber características distintas nas escolas e nas suas abordagens, em que cada
vivência determina a organização de um conjunto distinto de práticas educacionais para
se adequar ao cotidiano escolar das comunidades e, ainda, buscando respeitar as
singularidades de cada unidade educacional, foi elaborado um conjunto de diretrizes para
estabelecer uma base curricular comum para o sistema educacional do país, orientando as
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ações e as propostas pedagógicas, de modo a atender a multiplicidade das demandas
nacionais.
Os PCN’s tiveram o intuito de minimizar as dificuldades em se trabalhar os
conteúdos e as práticas educativas, orientando as temáticas e consequentemente a
bagagem teórica, ao passo que se estruturava um conjunto de saberes para colaborar na
formação dos estudantes, respeitando suas realidades e os projetos político-pedagógicos
das escolas. Dessa forma, possibilitando uma maior autonomia aos professores e alunos
no processo de ensino-aprendizado, bem como as instituições para o desenvolvimento de
valores que envolvessem a comunidade, criando objetivos comuns a serem alcançados,
gerando consequentemente vínculos que extrapolavam o ambiente escolar.
Contando com base ampla de informações e envolvendo conteúdos gerais e
específicos, foram estruturados a partir de 1997 as Diretrizes Curriculares Nacionais
(DCN’s). Esse documento foi organizado em componentes e dividido por áreas do
conhecimento e temas transversais, buscando integrar e complementar a formação
escolar. No caso das ciências humanas, as temáticas relacionadas à geografia e à história
foram direcionadas para se trabalhar assuntos que explorassem as características físicas e
naturais do espaço, além das características culturais, políticas e econômicas da sociedade
contemporânea, dando ênfase à realidade brasileira (ARESI, 2018).
Apesar das diretrizes que permitiram um direcionamento nas condutas
pedagógicas e dos conteúdos, houve a necessidade da implantação da Base Nacional
Comum Curricular para dar continuidade às políticas educacionais articuladas nos
documentos anteriores. Para isso, foi preciso vincular e sistematizar interesses e propostas
educacionais, além de estabelecer novas diretrizes para a educação básica. Sua função é
estabelecer parâmetros para uma base curricular comum para todo o sistema educacional,
respeitando as especificidades regionais, inerentes a cada realidade.
No entanto, a BNCC não é apenas um currículo comum regulamentado a toda a
rede educacional brasileira. É a estrutura que norteará os princípios nos quais as redes
municipais, estaduais e particulares irão organizar seus currículos de acordo com suas
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especificidades, permitindo que os alunos desenvolvam o conjunto de habilidades e
competências para consolidar sua formação acadêmica e cidadã.
Nesse contexto, a BNCC traça um conjunto de objetivos a serem alcançados no
processo de aprendizagem e no consequente desenvolvimento dos estudantes,
estabelecendo metas a serem cumpridas a cada ano do ensino básico. Para atingi-las, deve
haver a interação direta entre: os planos de aulas, currículos, Projetos Políticos
Pedagógicos (PPP’s) e a BNCC, garantindo, assim, a estruturação das habilidades e
competências que venham a colaborar no desenvolvimento da cidadania e para o mundo
do trabalho.
No caso da geografia, a BNCC busca implementar um conjunto de valores que
permita aos educandos estruturar um pensamento espacial e um raciocínio geográfico em
todas as etapas do ensino, como por exemplo nos anos iniciais do ensino fundamental,
nos quais uma das preocupações principais refere-se a valorizar e problematizar as
vivências e experiências individuais e familiares trazidas pelos alunos, de forma lúdica;
por meio de trocas, da escuta e de falas sensíveis dentro dos mais diversos ambientes
educativos.
Além de cooperar no processo de construção da identidade, auxiliando na
compreensão e no fortalecimento das relações socioespaciais, a geografia, portanto, deve
entre outras coisas, atuar como uma ferramenta capaz de vincular o sujeito ao espaço que
o circunda, criando conexões que garantam aos jovens o aprofundamento dos
conhecimentos sobre si, sua comunidade e o mundo que os cerca.
Na BNCC, a geografia é demonstrada como a ciência que consegue auxiliar os
estudantes na compreensão do mundo em que habitam, como um ser atuante e que deverá
entender as diferentes realidades vivenciadas no planeta. Hoje, este documento destaca-
se, pois aborda a geografia de diferentes formas e olhares. Além disso, a Geografia
contribui estimulando o “raciocínio espaço-temporal”, revelando o homem como agente
produtor do espaço e como suas ações historicamente afetaram a sociedade e o local onde
ele atua (LIMA, 2020).
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Embora a BNCC reconheça a importância da geografia para a base curricular, a
estruturação dos conteúdos em grandes áreas do conhecimento, buscando garantir a
interdisciplinaridade das temáticas, apenas colabora para a perda das identidades das
disciplinas escolares, estreitando o currículo e a colaboração das múltiplas abordagens
científicas que cada área específica do saber pode mostrar. Com base nisso, Lima (2020)
ressalta:
Preocupa a retirada da identidade das disciplinas com o discurso da
interdisciplinaridade porque pode permitir que todo professor formado “em
qualquer componente curricular que acompanha as Ciências Humanas poderá
ministrar aulas, independentemente de sua formação inicial aqui estaria uma
grande tragédia!”. As Ciências Humanas imprimiram uma leitura social à
BNCC de Geografia, que fazia parte da abordagem utilizada no ensino de
Geografia. (LIMA, 2020, p. 18).
A unificação das disciplinas em grandes áreas do conhecimento parece uma ação
contraditória, ao passo que os diversos documentos do Ministério da Educação (MEC)
preconizam a importância do conhecimento geográfico e dos seus conteúdos para a
formulação de componentes necessários para o desenvolvimento de uma educação
moderna e cidadã, limita-se o potencial colaborativo das ciências geográficas para a
formação dos alunos, pois uma parte significativa dos conteúdos que não se enquadram
na área humana foram ignorados ou propostos de forma parcial.
O Novo Ensino Médio e os possíveis efeitos sobre a Geografia Escolar
Atualmente, a educação brasileira passa por mais uma reformulação,
organizando-se de acordo com as mudanças propostas pela BNCC e articulando-se para
ser implantada gradualmente a partir de 2022, cujo processo foi definido como “Novo
Ensino Médio”. Essa nova fase da educação brasileira carrega consigo um misto de
anseios: auxiliar o aluno a ter uma autonomia em escolher as disciplinas que são de maior
interesse, permitindo um maior protagonismo na sua formação acadêmica.
Para melhor espacialização temporal, ressalta-se que a BNCC da educação
infantil e do ensino fundamental foi aprovada em dezembro de 2017. a BNCC
destinada para o ensino médio foi interrompida drasticamente por meio da Medida
Provisória 746, na qual se propôs o Novo Ensino Médio. Por sua vez, esta Medida
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Provisória foi aprovada impositivamente em 8 de novembro de 2018 no Conselho
Nacional de Educação, sem a apreciação dos especialistas acadêmicos e a devida
participação da sociedade civil, causando revoltas e mobilizações em vários setores da
educação (CORRÊA e GARCIA, 2018).
Nesse âmbito, a atual reforma consentiu que as disciplinas fossem agrupadas em
áreas, visando a construção de habilidades e competências específicas a cada bloco. Esses
conhecimentos ainda seriam aprimorados pelos Itinerários Formativos correspondentes,
apesar da proposta indicar a construção de conteúdos, possibilitando o direcionamento do
currículo, adaptando-o às demandas da comunidade escolar, e a possibilidade de
introduzir também uma formação técnica que colaborasse para a instrução profissional,
através da ampliação da carga horária em tempo integral. Conforme nos mostram Costa
e Silva (2019):
As principais alterações promovidas na LDB (Lei 9.394/96) pela reforma
do ensino médio são: a ampliação da carga horária anual, de 800 para 1.400
horas; a inclusão obrigatória pela BNCC referente ao ensino médio de estudos
e práticas de educação física, arte, sociologia e filosofia; e a obrigatoriedade
do ensino da língua portuguesa e da matemática nos três anos do ensino médio.
Os currículos do ensino médio deverão levar em conta a formação integral do
aluno, de maneira a adotar um trabalho voltado para a construção de seu projeto
de vida e para sua formação nos aspectos físicos, cognitivos e socioemocionais.
O currículo do ensino médio será composto da BNCC e de itinerários
formativos, que deverão ser organizados por meio da oferta de diferentes
arranjos curriculares, conforme a relevância para o contexto local e a
possibilidade dos sistemas de ensino, também consideradas áreas do
conhecimento, [...] A substituição da histórica organização curricular
disciplinar por itinerários formativos específicos, com ênfase em cinco áreas
do conhecimento e sem a obrigatoriedade da área de ciências sociais, atende a
funções utilitaristas, como a formação para um possível mercado de trabalho,
subsumindo sobretudo a função de formação para a cidadania, prevista em
legislações anteriores (COSTA; SILVA, 2019, p. 8).
Essa reestruturação provocou alguns problemas ao supervalorizar um caráter
funcionalista da educação, buscando atender demandas políticas e socioeconômicas, em
detrimento aos ideais de desenvolvimento social. De modo a possibilitar a ocorrência da
supressão de conteúdos e valores que permitiriam um maior entendimento da realidade e
da construção da cidadania.
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Na prática, ao subdividir os conteúdos por áreas gerais do conhecimento, não há
distinção de qual disciplina/professor trabalhará determinadas competências e
habilidades, tornando esse fato prejudicial para o aluno. Afinal, cada disciplina, mesmo
sendo de áreas comuns da ciência, tem formas diferenciadas de compreender as temáticas
e a própria realidade socioespacial.
Como um professor que não seja das ciências geográficas, mesmo tendo uma
formação na "área das humanidades", trabalhará corretamente os conceitos-chave da
geografia? Tal fato ocorre constantemente com os professores com formação em
pedagogia que atuam como polivalentes, abrindo precedentes para lacunas que por vezes
são mantidas ao longo da formação do estudante.
Atualmente algumas escolas estão aderindo gradativamente ao Novo Ensino
Médio em sua grade curricular. Com isso, surgem alguns questionamentos: a geografia
será desvalorizada? A disciplina de Geografia, não obrigatória, continuará exercendo um
papel de destaque no processo de construção de cidadãos críticos e conscientes da sua
realidade socioespacial? Muitos são os receios com a implantação desse novo modelo.
Parte deles provém do fato que durante o ensino médio serão obrigatórias apenas as
disciplinas de língua portuguesa, inglês e matemática. Em vista disso, Chagas et al.
afirmam:
Esta nova base se constitui em um conjunto de mudanças estruturais no
currículo do Ensino Médio, cujo espaço concedido à Geografia demonstra
tamanha desvalorização pela disciplina e seu conjunto de saberes, posto que a
mesma se dilui em meio a História, Sociologia e Filosofia. Isto é, a disciplina
perde seu caráter obrigatório como componente curricular, e corresponde à
área das Ciências Humanas e Sociais aplicadas (CHAGAS et al., 2019, p. 132).
Da mesma maneira, o desenvolvimento de habilidades e competências,
fundamentado na organização de áreas do conhecimento, na qual a geografia encontra-se
dentro das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, provoca uma fragmentação analítica
no processo de aprendizagem.
Isso acontece porque a capacidade de explicar o espaço humanizado e natural de
forma integrada é cerceado com a separação por área, visto que tanto à base física da
geografia deveria dialogar com componentes das áreas de Ciências da Natureza e suas
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Tecnologias quanto a geografia humana poderia se apropriar de vários tópicos das
Linguagens e Códigos, o que não ocorre no processo atual de organização curricular.
Dificultando, assim, a capacidade do professor de geografia em explicar o espaço
geográfico de forma integrada e dos alunos em compreendê-lo na perspectiva das ciências
geográficas.
Em 2021, como essa sistemática ainda se encontra em um período de “teste”, em
alguns casos a geografia é mantida com o seu caráter obrigatório, contudo, com sua carga
horária um pouco maior. Geralmente, a grade curricular da geografia é de duas horas/aula
por semana. Com a implementação do Novo Ensino Médio, há a sugestão de se aumentar
a carga horária para três horas/aula por semana, ou compor disciplinas temáticas para
auxiliar nos itinerários formativos, e, assim, atender a nova demanda.
Em meio a um período pandêmico, as escolas viram uma boa oportunidade para
testar como se comportaria a grade curricular com as mudanças. É importante destacar
que, além da opção da escolha pelas disciplinas a serem cursadas pelos alunos, haverá
uma complementação com os itinerários formativos, nos quais serão abordados assuntos
interdisciplinares. Foi identificado que algumas editoras nomeiam esses itinerários
formativos; no caso, o atrelado à geografia, por exemplo, chama-se: Observatório
Geográfico.
O que teremos que vivenciar e descobrir ao mesmo tempo é que nível de
maturidade os alunos possuem para escolher as disciplinas a serem cursadas. Levando em
conta esses e outros questionamentos, Chagas et al. (2019) reitera as seguintes
afirmativas:
Quem terá condições de escolher exatamente qual itinerante deseja seguir?
Pensando na questão financeira administrativa das escolas públicas estaduais,
quais e quais I.F. elas conseguiram oferecer? As diferenças entre a rede pública
e a rede privada estão sendo levadas em consideração? O campo de escolha
profissional do jovem pobre não ficará limitado em virtude da sua geografia?
(CHAGAS et al, 2019, p. 13).
Com todas as adversidades vivenciadas, e tendo em vista as disparidades entre
as instituições públicas e privadas de ensino, até que ponto esta reforma do ensino médio
será eficaz? Será que existirá uma aproximação dos conteúdos com a realidade dos
alunos? Para Corrêa e Garcia (2018):
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[...] essas alterações seriam uma resposta às novas demandas profissionais do
mercado de trabalho, pois segundo o próprio governo, o novo modelo de EM
permitiria que cada jovem seguisse o seu caminho profissional, através de suas
escolhas e de sonhos, independente se fosse para continuar seus estudos no
nível superior, ou se fosse para obter uma formação e inserir-se no mundo do
trabalho. (CORRÊA; GARCIA, 2018, p. 609).
Ao observar o que é proposto com tais mudanças, é notório que surjam resquícios
da antiga educação tecnicista, na qual se procura produzir apenas “técnicos” e pouco se
preocupa em formar cidadãos. Como utilizado para divulgação da reforma do ensino
médio, o slogan: “Quem conhece, aprova”, será mesmo aprovado e efetivo na vida dos
discentes, enquanto pessoas críticas e futuros profissionais?
Conclusão
O Ensino de Geografia e suas práticas antecederam à própria Geografia
Acadêmica no Brasil, pois na história da educação brasileira está registrado a introdução
da Disciplina de Geografia na grade curricular do Colégio Pedro II em meados de 1837,
enquanto o primeiro curso surgiu somente em 1934, na USP (CHAGAS et al. 2019).
Nesse meio termo, tanto a geografia escolar e suas práticas educativas quanto a geografia
acadêmica passaram por relevantes mudanças, deixando de ser um conhecimento
meramente descritivo das paisagens e das características regionais brasileiras para se
tornar uma ciência/disciplina capaz de analisar o espaço geográfico enquanto construção
social, revelando o homem como agente produtor e transformador da paisagem e como
suas ações historicamente afetaram a sociedade e o local onde ele atua (SANTOS, 2014).
Por conta dessas competências, o MEC reconhece a importância da geografia e
do pensar geográfico para o processo de formação dos alunos, ratificando a sua relevância
em vários documentos citados anteriormente. Os desafios da geografia escolar vão além
de prover meios pedagógicos que permitam aos alunos a evolução de um pensamento
geográfico, capaz de analisar criticamente um mundo globalizado em permanente
transformação. A geografia assume, nesse contexto, uma natureza ainda mais
significativa, pois auxilia na formação de cidadãos questionadores e conscientes da
realidade brasileira, contribuindo para superar um conjunto de problemas estruturais,
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conjunturais e ideológicos que afetam não o ensino de geografia, mas a educação
brasileira em sua totalidade.
E, se considerarmos as desigualdades sociais brasileiras e as condições da grande
maioria da população, a educação é, por vezes, a única oportunidade que milhares de
jovens têm para agregar conhecimento, culturas e habilidades, e por fim, superar as
dificuldades e as condições degradantes da vida.
É possível observar em pleno século XXI a existência de problemas históricos a
serem superados pela educação brasileira, e ainda hoje não foram devidamente
solucionados. Dentre eles podemos mencionar: a falta de investimentos, sejam estruturais
ou salariais, ou na contínua oferta de uma base técnica-pedagógica sólida aos
profissionais da educação.
Devemos mencionar ainda a indispensabilidade do acesso a uma formação de
qualidade e que possa ser continuamente aperfeiçoada para aprimorar os conhecimentos
e as práticas pedagógicas. Conforme Dias, Machado e Nunes (2009), a formação dos
professores deve ser tratada como uma garantia para superar antigos modelos e práticas
educacionais.
Contudo, com a implementação do Novo Ensino Médio, é colocado em
questionamento o quão eficaz será essa reforma, tendo em vista que são evidenciados
alguns resquícios de um sistema educacional antigo, arrisca-se dizer, oriundo de uma
vertente tecnicista e funcionalista, preocupada apenas em gerar trabalhadores com baixa
formação e sem consciência crítica e de classe que possam ser cooptados pelo liberalismo
econômico.
A educação, enquanto agente de formação cidadã e desenvolvimento social, está
sendo contida em detrimento dos direitos e garantias educacionais duramente
conquistados ao longo dos anos. Tudo isso, em nome de uma pseudo-interdisciplinaridade
do conhecimento que despreza conteúdos e divisões disciplinares tradicionais para
impositivamente tentar construir habilidades e competências que venham moldar os
alunos à nova realidade que se apresenta. Contudo, o preço para a educação brasileira e
professores pode ser demasiadamente alto.
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Com isso, existem muitas dúvidas em relação a como será esta nova realidade
em escolas públicas e privadas, tendo em vista que os alunos formados dentro dessas
instituições, geralmente, possuem e saem com objetivos de vida diferentes. Engendra-se
a necessidade da defesa de uma educação universal, que respeite as diversidades e as
pluralidades regionais e locais, e contrarie interesses obtusos desvinculados da realidade
e do compromisso social e transformador da educação, tão defendido pela Constituição
Federal de 1988 e a LDB nº 9.394/96.
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OLIVEIRA, Bruna Gabrielle Araújo; VIANA, Antônio Kinsley Bezerra. A educação brasileira e o pensar geográfico: reflexões sobre
o ensino de Geografia e o Novo Ensino Médio. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº 16, pp. 14-31, janeiro-abril de 2022.
Submissão em: 29/08/2021. Aceito em: 01/04/2022
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SEÇÃO ARTIGOS
GEOGRAFIA E ANTIRRACISMO NA EDUCAÇÃO:
Possibilidades no Ensino Fundamental a partir da BNCC
GEOGRAPHY AND ANTI-RACISM IN EDUCATION:
Possibilities in Elementary Education from the BNCC
GEOGRAFÍA Y ANTIRRACISMO EN LA EDUCACIÓN:
Posibilidades en la Enseñanza Básica de la BNCC
Bruna Machado da Rocha
Universidade Federal Fluminense (UFF)
Rio de Janeiro, Brasil
E-mail: brunamr@id.uff.br
Resumo
Este artigo propõe analisar autores que abordam em suas obras como a Geografia estuda e concebe a racialidade.
Nesse sentido, faz-se necessário compartilhar e enaltecer autores que já contribuem para caminhos antirracistas na
Geografia. Analisando as Competências específicas de Geografia para o Ensino Fundamental da Base Nacional
Comum Curricular (BNCC), sugerem-se também direcionamentos para a instrumentalização de diretrizes que
pautem práticas pedagógicas intencionadas ao antirracismo.
Palavras-chave
BNCC; Ensino de Geografia; Antirracismo.
Graduada em Licenciatura em Geografia (UFF - Universidade Federal Fluminense).
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Abstract
This article aims to analyze authors who approach how Geography studies and conceives raciality in their works.
In this sense, it is necessary to share and praise authors who already contribute to anti-racist paths in Geography.
From the analysis of the specific competences of Geography for Basic Education of the Base Nacional Comum
Curricular (Common National Curriculum Base), we suggest directions for the instrumentalization of guidelines
that may guide pedagogical practices aimed at anti-racism.
Keywords
BNCC; Teaching of Geography; Anti-racism.
Resumen
Este artículo se propone analizar autores que abordan en sus obras cómo la Geografía estudia y concibe la
racialidad. En este sentido, es necesario compartir y elogiar a los autores que ya aportan a los caminos antirracistas
en Geografía. Analizando las competencias específicas de Geografía para la Educación Básica de la Base Nacional
Comum Curricular (BNCC), también se sugieren orientaciones para la instrumentación de directrices que orienten
prácticas pedagógicas destinadas al antirracismo.
Palabras clave
BNCC; Enseñanza de la Geografía; Antirracismo.
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Introdução
Com as políticas de ações afirmativas e de cotas nas universidades blicas, um
número inédito de jovens e adultos negros, periféricos e/ou em situação de vulnerabilidade
econômica passam a se apropriar do espaço público, acadêmico e político, mesmo que de forma
precária e incompleta. Esse fato proporcionou aos estudos acadêmicos uma ampliação cultural,
intelectual e epistemológica, que os espaços foram historicamente negados a essas
populações. Com isso, estudantes negros, periféricos e/ou de baixa renda passam a escrever a
própria história e propor novas visões de mundo e formas de conceber e construir o espaço, as
relações e a educação, escolar e acadêmica e a política.
Em sua obra “Por uma Geografia Nova”, Milton Santos (2004) reconhece a utilização
da Geografia (Clássica) como instrumento de conquista colonial, não sendo uma orientação
isolada, particular a um país, afirmando que em todos os países colonizadores, houve geógrafos
empenhados nessa tarefa, readaptada segundo as condições e renovada sob novos artifícios cada
vez que a marcha da História conhecia uma inflexão. (SANTOS, p. 31, 2004). Na mesma obra,
quando aborda sobre “A Exclusão do Movimento Social” (SANTOS, p.104-105, 2004), o autor
afirma:
o espaço tem rugosidades e não é indiferente às desigualdades de poder efetivamente
existentes entre instituições, firmas e homens. Todavia, o próprio fato de que as teorias
espaciais e seus derivados - Economia Regional, Economia Urbana, Geografia
Regional, Geografia Urbana, Análise Regional Planificação Regional, Planificação
Urbana etc. - em geral ignoram as estruturas sociais leva a que não se preocupem com
os processos sociais. Acabam, simplesmente, por ignorar o homem. Por isso tais
proposições não chegam a ser teorias, não passam de ideologias impostas ao homem
com o objetivo de abrir caminho à difusão do capital. (SANTOS, p. 105, 2004)
Milton Santos (2004) estava, nessas passagens, fazendo uma crítica aos primórdios do
uso da Geografia, fundada num contexto de ascensão da burguesia, de lutas imperialistas e de
tensões políticas à vista dos europeus. Como o título de sua obra propõe, Santos (2004)
reconhecia a necessidade de uma nova Geografia. Essa nova Geografia, pode, entre tantas
outras tranversalidades, ser de fato, antirracista? Certa do potencial de nossa ciência, especifico
mais: como a Geografia do século XXI atua no combate aos racismos? O autor salienta que,
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"quando a ciência não é capaz de criar senão o que ela conhece, está renunciando à sua grande
missão" (SANTOS, p. 194, 2004), deste modo, proponho-me a entender e compartilhar o que
pode ser uma das novas Geografias.
A Geografia está escrita e documentada massivamente como um saber de uso
hegemônico, das grandes potências, dos privilegiados. Porém, como nós já sabemos, esse saber
geográfico nunca foi um saber de uma mão só, nem de um tipo de linguagem. Temos diversos
pesquisadores que percebem e deram o devido foco a narrativas ofuscadas pela produção
objetiva e universalista da ciência, com Rogério Haesbaert, - em suas obras sobre território e
derivações do conceito - Geny Ferreira Guimarães, - nos estudos de uma Geografia escolar,
urbana e negra - Valter do Carmo Cruz, - em seus trabalhos na temática dos movimentos sociais
- Mário Pires Simão, - dedicado às temáticas juventude, favela, território, cultura e educação e
direitos à cidade - Denilson Araujo de Oliveira, - com experiência em espaço urbano e questão
étnico-racial, movimentos sociais urbanos e novas metodologias para o ensino de África -
Manoel Martins de Santana Filho, - com produções acerca do ensino de geografia, educação
geográfica, metodologia de ensino e pesquisa, Geografia e prática docente - sem contar com
uma geração ainda mais nova que enriquece os debates acerca da Geografia e seu uso na
sociedade, trazendo a questão racial como um fator indispensável.
Para Santos (1996/1997) a compreensão da questão étnico-racial no Brasil, passa pela
compreensão do modelo cívico, modelo cultural e do modelo político brasileiro - “civilidade”
brasileira. “É impossível imaginar uma cidadania concreta que prescinda do componente
territorial” (SANTOS, p. 144, 2012) e, por isso, é nossa função social - especificamente como
professores - formar cidadãos críticos e democráticos na medida em que trabalhamos aspectos
do contexto socioespacial e cultural de diversas áreas do mundo. O discurso da democracia
racial, por muito tempo, impediu uma discussão mais densa sobre as relações étnico-raciais na
sociedade brasileira. A ausência deste debate acabou por naturalizar as desigualdades raciais,
resultando numa tênue fronteira entre raça e classe, - como apontam Passos e Nogueira (2019)
- visto que, “acreditar que o aspecto econômico é o principal fator de desigualdade, ignora os
efeitos perversos do racismo existente na sociedade brasileira” (PASSOS e NOGUEIRA, p. 8,
2019). A Geografia não se deve omitir ou desviar desse debate, que o mito da democracia
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racial, é um fator determinantes em diversas das nossas áreas, como estudos de população,
formação socioespacial brasileira, por exemplo, sendo aplicada tanto no meio urbano quanto
agrário, e com isso em diferentes paisagens e contextos. Deste modo, enxergo os profissionais
da ciência geográfica como um braço, uma potencial extensão na ação e no trabalho de base do
Movimento Negro no Brasil.
Como um sujeito-objeto desse estudo - sujeito implicado - as tensões postas fazem parte
da minha construção pessoal e acadêmica. Estar nessa posição como pesquisadora, não torna
meu trabalho menos legítimo, mas passível de recortes específicos e de uma bagagem de
conhecimentos e informações cotidianas e empíricas não científicas, o necessariamente
objetivas, mas evidentemente ricas em detalhes e práxis e com isso a “superação das pretensões
de neutralidade e objetividade tão promulgadas pelo paradigma positivista nas ciências”
(PAULON, p. 18, 2005) é explorada.
Geografias negras - um caminho já aberto
Milton Santos não é a maior representação da Geografia brasileira, como também é
uma representatividade à população negra. Seus saberes e trajetória acadêmica encaminham
este trabalho, como também uso de seus saberes mais amplos e complexos sobre a Geografia,
suas concepções do espaço, das relações sociais, do urbano e da cidadania. Aliado às obras do
mestre Santos, uma fonte riquíssima é Renato Emerson Nascimento dos Santos por sua
dedicação aos estudos sobre o espaço urbano protagonizando a favela e a educação antirracista,
a partir de sua consistência em obras sobre ensino de Geografia, destrinchando a Lei 10.639 de
2003 (altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da
temática História e Cultura Afro-Brasileira) e a Lei 11.645 de 2008 (regulamenta a
obrigatoriedade do Ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Indígena em todos os níveis
de ensino).
Como Renato Emerson (2010) aponta, a Lei 10.639/03 nos coloca o desafio de construir
uma educação para a igualdade racial, uma formação humana que promova valores não racistas.
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(SANTOS, 2010). Em sua obra “Ensino de Geografia e Currículo: Questões a partir da Lei
10.639 de 2003”, o geógrafo indica que:
A Geografia está, portanto, de uma forma muito subliminar, na base da construção da
idéia, das relações e dos comportamentos baseados no princípio de classificação
racial. Assim, raça deixa de ser um princípio de classificação biológica para ser um
princípio baseado em “identidades geoculturais”, identidades baseadas em
referenciais espaciais. (...) A “raça” é então um constructo que, ancorado em leituras
do espaço, estrutura também relações de poder com o espaço e no espaço. (SANTOS,
p. 145, 2010)
O autor acima aponta a necessidade da questão racial na interpretação e produção do
espaço. Não devemos nos limitar, portanto, a debater a racialidade na esfera acadêmica apenas,
mas também incorporar à prática pedagógica em Geografia essa interseccionalidade.
Outro importante referencial é Rafael Sanzio Araújo dos Anjos, geógrafo que contribui
ao debate educacional a partir de uma perspectiva atravessada pelos saberes cartográficos -
importantes para estudos que desdobram em mapeamento e representação espacial racializada
- e urbanos, conectado a produção e reprodução das cidades às questões étnico-raciais. Em seu
artigo As geografias oficial e invisível do Brasil: algumas referências”, Dos Anjos (2015)
problematiza em seu título uma dualidade - oficial e invisível, ou com outras palavras, oficial e
não oficial - na geografia e por meio das linguagens cartográfica e fotográfica, discute aspectos
fundamentais de diferentes geografias praticadas no Brasil, sob perspectiva histórica.
Observando as regiões de produção colonial-imperial e a atual distribuição
demográfica no Brasil (Censo IBGE de 2010), a constatação mais evidente é que nossa
população ocupa ainda os espaços coloniais, ou seja, os outros territórios continuam
sob controle - real ou potencial dos segmentos dominantes, e a instância decisória
(o Estado) não logra alterar essa geografia colonial. (ANJOS, p. 380, 2015)
Dos Anjos (2015) aponta a historicidade e a relevância da problemática à geografia,
utilizando a cartografia e a análise de paisagem para compreensão dos processos territoriais no
Brasil, da geografia política, das geopolíticas e dos movimentos populacionais, demográficos e
sociais.
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Nilma Lino Gomes, pedagoga, mestra em Educação, doutora em Antropologia Social e
pós-doutora em Sociologia, não só carrega um currículo de peso, como tem muito a contribuir
para os estudos geográficos. Em “Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações
raciais no Brasil, uma breve discussão”, Gomes (2012) nos concede aportes conceituais e
teóricos dos termos: identidade; identidade negra; raça; etnia; racismo; etnocentrismo;
preconceito racial; discriminação racial e democracia racial, ou seja, fundamentos intrínsecos a
diversas problemáticas geográficas. Importante frisar a urgência dos geógrafos e professores de
Geografia se apropriarem destes conceitos e termos e outros mais em sua prática profissional,
tanto no espaço escolar como no espaço acadêmico. Raça não precisa ser apenas um recorte
para quantificação de dados, ou mesmo o racismo um fenômeno social quase que inato e
regular, por exemplo. Vale ressaltar também, no que diz respeito à graduação em Geografia no
Brasil, assim como em outras áreas do conhecimento, a produção científica estudada e que
embasa teorias e conceitos são de maioria produções europeias e de homens brancos. Além de
trazer o foco das tensões étnico-raciais para a Geografia, precisamos também nos embasar
cientificamente em autores e autoras negros (as) e indígenas.
Ao longo das últimas décadas, o debate racial vem transversalizando cientificamente
diversas obras de autores da Geografia, onde revisão de conceitos, teorias e novas
concepções e análise a partir de novos conceitos e teorias. Por isso, é de suma importância
entender essa nova Geografia e utilizá-la em nossas atuações, em sala de aula, na elaboração de
mapas, na interpretação e produção do espaço geográfico, nas análises ambientais.
Em um contexto de avanço de um neoliberalismo econômico - segundo a abordagem
estrutural marxista, estratégia política que visa reforçar uma hegemonia de classe e expandi-la
globalmente, marcando o novo estágio do capitalismo (ANDRADE, p.221, 2019) - e do
neoconservadorismo político - ao mesmo tempo em que neoconservadores incorporam
princípios dos velhos conservadores (centralidade da sociedade como um lugar de crenças e
laços sociais, baseados em uma série de valores morais comuns), passam a defender, também,
um foco no indivíduo e na sua capacidade de escolha (LIMA & HYPOLITO, p.7, 2019) -
explícitos nos cargos de comando no Brasil, em conjunto à pandemia do vírus Sars-CoV-2,
tratar sobre um tema como esse não é apenas necessário, como desafiador. O empresariado
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brasileiro nunca esteve tão preocupado com a qualidade da educação brasileira, qualidade essa
de tornar pessoas em mão de obra barata e não em cidadãos autônomos e críticos. Nas esferas
de decisão do Estado sobre a educação no país, aprovam-se reformas educacionais e trabalhistas
que regulam a prática docente, a gestão escolar, pisos salariais e direitos do trabalhador-
professor, para citar algumas interferências que diminuem a autonomia do professor e das
escolas. Com a pandemia que se presencia no país desde 2020, o ato de estudar passou por
diferentes metodologias, muitas limitadas às conexões via internet, forçando os trabalhadores
escolares - professores (as), coordenadores (as), merendeiras (os), auxiliares de limpeza,
secretárias (os) - e estudantes com suas mais diversas particularidades a novos modelos
educacionais que excluem muitos destes trabalhadores e alunos (as).
Por mais que parte do debate sobre a questão racial nas universidades tenha chegado à
sociedade, as heranças históricas e culturais são cruciais para a manutenção do racismo e, por
consequência, atingem nas dificuldades e violências toda uma população afrodescendente,
diaspórica de África. A Geografia, muitas vezes, se deixou levar por um discurso que a põe na
posição de “ciência (de) síntese” (MORAES, p. 8, 1994) ou de que duas vertentes na
Geografia que corriqueiramente não se cruzam, como a Geografia física e Geografia humana.
É preciso que a Geografia encontre uma identidade sem dualidade ou eufemismo para conseguir
dialogar com todas as suas áreas, de forma a promover justiça social e pensamento crítico.
Propostas pedagógicas antirracista em Geografia
Sem deixar de reconhecer a pluralidade de caminhos para uma Geografia contra o
racismo, apoio-me na educação como um início, meio e fim para a concretude dessa geografia,
por ser fruto dela, viver dela e reproduzir com ela.
A seguir, indico algumas observações e propostas de ação a partir das competências
específicas de Geografia para o Ensino Fundamental previstas na BNCC (p.366, 2018) - Base
Nacional Comum Curricular - (Quadro 1) em que os professores de Geografia podem e devem
se instrumentalizar e incorporar em suas práticas pedagógicas para efetivar um ensino crítico,
plural e pautado no combate aos racismos. Cabe a nós, educadores, reinterpretar este documento
que massifica o ensino e não dialoga com os grupos sociais marginalizados.
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Quadro 1: Competências específicas de Geografia para o Ensino Fundamental pela BNCC
(Coluna à esquerda) e Propostas/ Observações de cada uma das competências para uma
prática pedagógica antirracista.
COMPETÊNCIAS ESPECÍFICAS DE
GEOGRAFIA PARA O
ENSINO FUNDAMENTAL - BNCC
PROPOSTAS / OBSERVAÇÕES
1. Utilizar os conhecimentos geográficos
para entender a interação sociedade/natureza
e exercitar o interesse e o espírito de
investigação e de resolução de problemas.
Faz-se importante nesta primeira
competência promover a identificação do
aluno (a) com o meio em que vive, em
diferentes escalas, demonstrando que
existem relações sociedade-natureza
equilibradas (Exemplos: comunidades
tradicionais, ribeirinhas, quilombolas,
Unidades de Conservação, etc.) e
desequilibradas (Exemplos: desmatamento,
poluição atmosférica, hídrica, dos solos, etc.)
responsabilizando e identificando agentes
atuantes nessa relação.
2. Estabelecer conexões entre diferentes
temas do conhecimento geográfico,
reconhecendo a importância dos objetos
técnicos para a compreensão das formas
como os seres humanos fazem uso dos
recursos da natureza ao longo da história.
É uma oportunidade do (a) professor (a)
relacionar os diferentes usos dos recursos
naturais, demonstrando que não somente
usos predatórios desses recursos. É
interessante conectar o tema com o bairro/da
cidade do aluno (a), fazendo-o(a) identificar
a complexidade do local onde vive
relacionado o conceito de lugar, dando
suporte para as emoções afetivas de sua
origem geográfica e identificar potenciais
espaços para o uso coletivo.
3. Desenvolver autonomia e senso crítico
para compreensão e aplicação do raciocínio
geográfico na análise da ocupação humana e
produção do espaço, envolvendo os
princípios de analogia, conexão,
diferenciação, distribuição, extensão,
localização e ordem.
Legitima ao professor (a) a abordagem de
diferentes versões e narrativas da/sobre a
produção do espaço, dando margem para
perceber, comparar e conectar povos de
diferentes continentes e paisagens que se
assemelham com a população brasileira.
(Exemplos: Países africanos também ex-
colônias de Portugal; América Latina)
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4. Desenvolver o pensamento espacial,
fazendo uso das linguagens cartográficas e
iconográficas, de diferentes gêneros textuais
e das geotecnologias para a resolução de
problemas que envolvam informações
geográficas.
Incentiva ao docente apresentar mapas
desenvolvidos em diferentes tempos por
diferentes povos, representando o espaço a
partir de diversos tipos de projeções
cartográficas e temáticas. Oportunidade de
dar visibilidade ao continente africano,
corriqueiramente negligenciado no ensino
em Geografia, tanto nas escolas como nas
universidades.
5. Desenvolver e utilizar processos, práticas
e procedimentos de investigação para
compreender o mundo natural, social,
econômico, político e o meio técnico-
científico e informacional, avaliar ações e
propor perguntas e soluções (inclusive
tecnológicas) para questões que requerem
conhecimentos científicos da Geografia.
Esta competência indiretamente propõe ao
professor usar além da sala de aula como
espaço de atuação. É uma abertura a projetos
mais ousados e desafiadores, desde
simulações da ONU, dos três poderes da
República do Brasil e de movimentos sociais
até a prática de agricultura na escola,
interligando o saber agrícola à
ancestralidade, aos conhecimentos de povos
originários, à biogeografia e a valores de
coletividade, pluralidade, sustentabilidade,
consumo consciente, etc.
6. Construir argumentos com base em
informações geográficas, debater e defender
ideias e pontos de vista que respeitem e
promovam a consciência socioambiental e o
respeito à biodiversidade e ao outro, sem
preconceitos de qualquer natureza.
Uma das mais direcionadas ao combate aos
racismos, essa competência reconhece a
necessidade de construir argumentos junto
aos (as) alunos (as) de rompimento com a
discriminação racial, e por conseguinte, com
rompimento também da discriminação
religiosa, cultural, da xenofobia. Esse
rompimento não deve acontecer
exclusivamente nas aulas que tangem a
temática, mas em toda prática pedagógica do
(da) docente de Geografia, conseguindo
conectar de forma interdisciplinar com a
disciplina História a origem desses
preconceitos, as consequências que afetam os
oprimidos, e principalmente, a resistência e
atualidade dessas pautas no mundo
contemporâneo.
7. Agir pessoal e coletivamente com respeito,
autonomia, responsabilidade, flexibilidade,
Reafirmando as observações e sugestões
desta tabela, esta última competência
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ROCHA, Bruna Machado da. Geografia e antirracismo na educação: possibilidades no Ensino Fundamental a partir da BNCC. Revista
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resiliência e determinação, propondo ações
sobre as questões socioambientais, com base
em princípios éticos, democráticos,
sustentáveis e solidários.
demonstra princípios e valores intrínsecos à
atuação do professor de Geografia,
entendendo-se que cada sala de aula tem
estudantes diferentes entre si, com questões
subjetivas e que estão se apropriando dos
seus lugares no mundo a partir de corpos e
origens diferentes. O (A) professor (a) então
deve auxiliar seus discentes a construir essa
caminhada sensível às questões transversais
aos estudantes, principalmente àqueles de
corpos historicamente marginalizados.
Brasil, p.366, 2018.
Espera-se com essas observações e interpretações das Competências da BNCC (p.366,
2018) à luz das Leis 10.639 de 2003 e 11.645 de 2008, consigamos adaptar nossa prática
pedagógica a um modelo educacional que nos ampare na legalidade e nos permita entre suas
aberturas, um espaço escolar que se constrói desconstruindo o racismo.
Considerações finais
Nosso olhar deve alcançar o espaço e o cotidiano escolar, nos atentando às experiências,
aos projetos, oficinas e planos de aula que os educadores promovem junto aos seus estudantes,
ao corpo escolar e ao espaço físico da escola. Portanto, nós, educadores (as) brasileiros (as),
necessitamos urgentemente contemplar no interior das escolas a discussão acerca das relações
raciais no Brasil, bem como de nossa diversidade racial (CAVALLEIRO, 2005). Em conjunto
a uma análise da Geografia escolar, é imprescindível um olhar crítico ao currículo acadêmico
da Geografia nas universidades, desde aos cursos/disciplinas oferecidos ao longo da graduação,
à bibliografia apresentada - majoritariamente branca e europeia. A formação em Licenciatura e
em Bacharelado em Geografia não pode invisibilizar um/alguns continentes ou hemisférios do
globo, nem acreditar que todas as teorias e conceitos da Geografia Clássica (SANTOS, 2004),
explicam e respondem à realidade brasileira ou de qualquer uma das suas cidades.
A Geografia e a Educação são alvos certeiros de um (des)governo atual que insiste em
mercantilizar a educação e deslegitimar as ciências sociais. Entretanto, diversos profissionais
que, não pesquisam sobre, mas encontram no cotidiano escolar maneiras de promover uma
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sociedade mais igualitária e principalmente mais crítica e antirracista nas escolas. Por isso, este
trabalho tem a pretensão de inspirar outros profissionais da Geografia a repensar e colocar em
ação atitudes não racistas e antirracistas, a favor de uma educação plural e libertária.
Por fim, mas não menos latente, o contexto de pandemia desde 2020 no nosso país
reconfigura e impõe a todos educadores novos desafios e instrumentalizações. Com nítidas
desigualdades aprofundadas, unida aos avanços legais da deslegitimação do ensino de
Geografia, a educação sofre por ataques em diferentes escalas. A realidade escolar não é mais
parecida com a de cinco, dez anos atrás. Quem são os alunos da segunda década do século XXI?
Quais regimes de trabalho os (as) educadores (as) estão vivendo no país? São mais alguns
questionamentos - para serem abordados em uma outra oportunidade - que demonstram a
urgência dessa problemática, que não só atinge uma/nossa classe trabalhadora, como o destino
da educação no nosso país e da relevância da Geografia como componente curricular e
conhecimento científico. Ressalta-se ainda que, sem garantias de direitos conquistados,
segurança, investimentos e reconhecimento do trabalho dos educadores (as) brasileiros (as),
romper com o racismo torna-se uma missão quase impossível, apesar de nunca abandonada.
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SOMBRA, Daniel; RODRIGUES, Gilberto Pereira; PINHO, Danilo do Rosário. Cartografia participativa como diálogo entre saberes:
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SEÇÃO ARTIGOS
CARTOGRAFIA PARTICIPATIVA COMO DIÁLOGO ENTRE SABERES:
ontologia, epistemologia, metodologia e aplicações na construção social do conhecimento
PARTICIPATORY CARTOGRAPHY AS A DIALOGUE BETWEEN
INTELLIGENCES:
ontology, epistemology, methodology and applications in the social construction of
knowledge
LA CARTOGRAFÍA PARTICIPATIVA COMO DIÁLOGO ENTRE SABERES:
ontología, epistemología, metodología y aplicaciones en la construcción social del
conocimiento
Daniel Sombra1
Universidade Federal do Pará
(UFPA), Pará, Brasil
E-mail: dsombra@ufpa.br
Gilberto Pereira Rodrigues2
Secretaria Municipal de Educação
de São João da Ponta, Pará, Brasil
E-mail: gprgiba@gmail.com
Danilo do Rosário Pinho3
Secretaria Municipal de Educação
de São João da Ponta, Pará, Brasil
E-mail: pinhodanilo@yahoo.com
Resumo
Este artigo se caracteriza como um ensaio, e objetiva ilustrar a especificidade da cartografia participativa no âmbito
da cartografia em geral, marcando-a como uma proposição de objeto intermediário para o uso da ciência com fins
contra-hegemônicos. Para isso, é realizada uma diferenciação entre cartografia participativa (definida como uma
linguagem espacial construída a partir do diálogo entre saberes, ciência e saberes locais) e cartografia social (auto-
cartografia dos povos a partir dos saberes locais), definindo a ontologia, a epistemologia, a metodologia e as
principais aplicações da cartografia participativa. A fim de demonstrar a possibilidade da proposta, parte-se de
uma digressão do uso da ciência e da técnica na educação e na construção de projetos contra-hegemônicos, projetos
de empoderamento social. Para materializar a proposta, foi escolhida a aplicação do campo do ensino, a partir de
uma oficina de cartografia participativa em três etapas realizadas no município de São João da Ponta (estado do
Pará, Brasil).
Palavras-chave
Cartografia Participativa; diálogo de saberes; ontologia; epistemologia; contra-hegemonia; empoderamento social.
Professor do Programa de Pós-Graduação em Gestão de Recursos Naturais e Desenvolvimento Local da
Amazônia (PPGEDAM / NUMA / UFPA). Doutor em Geografia pela UFPA. Mestre em Geografia pela UFPA.
Bacharel e Licenciado em Geografia pela UFPA.
Professor da Secretaria Municipal de Educação de São João da Ponta-PA. Especialista em Ensino de Geografia
na Amazônia pela UEPA. Bacharel e Licenciado em Geografia pela UFPA.
Professor da Secretaria Municipal de Educação de São João da Ponta-PA. Mestrando em Geografia pela UPFA.
Bacharel e Licenciado em Geografia pela UFPA.
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Abstract
This paper may be characterized as an essay, and aims to illustrate the specificity of participatory cartography
within cartography in general, marking it as an intermediary object proposition for the use of science with counter-
hegemonic purposes. To this end, we differentiate between participatory cartography (defined as a spatial language
built from the dialogue between intelligences, science and local intelligences) and social cartography (auto-
cartography of peoples from local intelligences), defining ontology, epistemology, methodology and the main
applications of participatory cartography. In order to demonstrate the possibility of the proposal, we point out the
use of science and technique in education and construction of counter-hegemonic projects, projects of social
empowerment. To materialize the proposal, we chose to apply it to the field of education, from a participatory
cartography workshop in three stages held in the municipality of São João da Ponta (state of Pará, Brazil).
Keywords
Participatory Cartography; dialogue of knowledges; ontology; epistemology; counter-hegemony; social
empowerment.
Resumen
Este artículo se caracteriza como un ensayo, y tiene como objetivo ilustrar la especificidad de la cartografía
participativa en el campo de la cartografía en general, marcándola como una proposición de objeto intermediario
para el uso de la ciencia con fines contra-hegemónicos. Para ello, diferenciamos entre la cartografía participativa
(definida como un lenguaje espacial construido a partir del diálogo entre el conocimiento, la ciencia y el
conocimiento local) y la cartografía social (auto-cartografía de pueblos basada en el conocimiento local),
definiendo la ontología, la epistemología, la metodología y las principales aplicaciones de la cartografía
participativa. Para demostrar la posibilidad de la propuesta, realizamos un recorrido por el uso de la ciencia y la
técnica en la educación y en la construcción de proyectos contra-hegemónicos, proyectos de empoderamiento
social. Para materializar la propuesta, optamos por la aplicación del campo de la educación, a partir de un taller de
cartografía participativa en tres etapas realizado en el municipio de São João da Ponta (estado de Pará, Brasil).
Palabras-clave
Cartografía participativa; diálogo de saberes; ontología; epistemología; contra-hegemonía; empoderamiento
social.
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Introdução
A cartografia historicamente está ligada aos modos diversos de representar os
ambientes nos quais as sociedades vivem. De acordo com as particularidades dos ambientes,
bem como das formas diversas de adaptação, e, principalmente, de construção de artifícios e
mecanismos para responder às necessidades sociais em cada lugar específico, em cada
momento dado, as sociedades desenvolveram cartografias diversas (SILVA, 2020).
Em muitos aspectos, as representações cartográficas particulares de cada sociedade
eram uma forma de expressão artística. Cada sociedade desenvolveu uma cartografia própria
às suas necessidades sociais, e, sobretudo nas comunidades primitivas, cabe destacar que as
representações cartográficas integram um pensamento (ou conhecimento) comum sobre o
mundo e as pessoas do mundo, não sendo exatamente possível distinguir em que ponto essa
forma de conhecimento e representação do conhecimento se separa do que nos termos
contemporâneos se concebe como a linguagem escrita, a linguagem matemática etc. (SOARES
et al., 2018).
Em todo caso, se for feita uma separação estrita, utilizando para isso os critérios atuais
das ciências parcelares, cabe notar que muitas sociedades não desenvolveram a escrita
propriamente dita, mas quase todas as sociedades estudadas desenvolveram algum tipo de
representação espacial (SILVA, 2013). Com a constituição de uma geografia do espaço mundial
unificada e a emergência dos modos de produção totalizantes ou seja, o modo de produção
capitalista e as alternativas que se contrapõem, no intuito de superá-lo, como a proposta
socialista a cartografia, ora tida como caudatária própria à geografia (JOLY, 2008), ora como
um campo transdisciplinar de conhecimentos (RAIZ, 1959), foi convertida em uma linguagem
unificada com códigos padronizados, passíveis de serem lidos independente dos idiomas
escritos e falados (MARTINELLI, 2013).
Em um mundo normatizado a partir dos imperialismos dos grandes Estados nacionais
(SOARES; LEITE; LOBATO, 2016) e dos monopólios das grandes corporações econômicas
(LACOSTE, 1993), e apresentando técnica, tempo e motor (a mais-valia global que alimenta a
economia) unificadas (SANTOS, 2009), a cartografia também se tornou um elemento
homogeneizado e imposto a todos os lugares do mundo em processo de globalização (SOARES
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et al., 2018). Isso não significou uma mudança do seu uso preferencialmente por classes, grupos
ou estruturas hegemônicas (GIRARDI, 2011).
Se nos períodos de supremacia dos diversos modos de produção tributários sejam os
imperfeitos, como o feudalismo europeu ou japonês, ou os clássicos, como os impérios
tributários na China, Índia, Egito, Pérsia, Palestina, Mali, Congo, Etiópia, México ou Peru
(AMIN, 1976) a cartografia se tornou uma arma secreta, sempre usada para táticas e
estratégias de dominação, de ataque e defesa dos impérios, estratégica para os domínios dos
reis e deuses (ou seja, de seus ditos representantes no mundo terreno); no período de hegemonia
capitalista a cartografia sistematizada (a exemplo do que ocorreu grosso modo com toda a
ciência derivada do projeto burguês renascentista/iluminista/positivista) serviu em primazia aos
interesses dos Estados maiores e das grandes corporações capitalistas (LACOSTE, 1993).
Este artigo se caracteriza como um ensaio, e objetiva ilustrar a especificidade da
cartografia participativa no âmbito da cartografia em geral, marcando-a como uma proposição
de objeto intermediário para o uso da ciência com fins contra-hegemônicos. Para isso, é
realizada uma diferenciação entre cartografia participativa (definida como uma linguagem
espacial construída a partir do diálogo entre saberes, ciência e saberes locais) e cartografia
social (auto-cartografia dos povos a partir dos saberes locais), definindo a ontologia, a
epistemologia, a metodologia e as principais aplicações da cartografia participativa.
Uma cartografia para o empoderamento social
Em contraposição a esses projetos, na ciência em geral, e também na geografia e na
cartografia, se manifestaram propostas de constructos contra-hegemônicos. É de particular
relevância o amplo espectro de práticas que ficou conhecido como “cartografia social” (LIMA,
2017). Os defensores desta assim chamada cartografia social não propõem evidentemente
imputar à cartografia técnica o adjetivo de “antissocial”, mas sim chamar atenção a qual das
instâncias sociais é predominante em cada tipo de representação cartográfica.
Se muitas vezes, como no caso das cartografias das bases geoespaciais sistemáticas na
escala de 1:100.000 ou de 1:250.000, a diversidade de sujeitos, comunidades, culturas e
identidades é suprimida em favor de critérios político-administrativos, ou, em outros casos, a
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totalidade orgânica e sistêmica dos ambientes é seccionada em recursos naturais (geologia e
recursos minerais, biodiversidade, hidrografia etc.) em nome de uma lógica mais mercantil, o
que se pretende ao chamar de social a cartografia social é enfatizar que nesse campo valem
mais os critérios próprios da instância cultural em detrimento das questões políticas e
econômicas.
O Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (International Fund for
Agricultural Development IFAD) utiliza a expressão “mapeamento participativo”. Para o
IFAD (2009), critérios para o reconhecimento de mapas participativos e comunitários.
Assim, o mapeamento participativo pode ser definido pelo: a) processo de produção, no qual
os mapas participativos são planejados com um objetivo comum e a participação da
comunidade em um processo aberto e inclusivo é uma estratégia facilitadora do processo, pois
com a participação de todos os membros da comunidade de estudo o resultado final torna-se
mais benéfico por representar a experiência coletiva do grupo; b) pelo produto que representa
a comunidade, sendo realizada uma seleção que mostra quais elementos serão relevantes para
as necessidades e utilização da comunidade a ser representada; e, por fim, c) pelo conteúdo dos
mapas que retrata locais de conhecimento e informação, sendo, que, nesse caso, os mapas
devem conter os nomes, símbolos, escalas e características baseadas no conhecimento local
(IFAD, 2009).
Para o IFAD (2009), o mapeamento participativo não pode ser definido pelo nível de
cumprimento das convenções cartográficas formais. Os mapas participativos não
necessariamente podem ser incorporados a sofisticados sistemas de informações geográficas.
Devem ser vistos como uma ferramenta eficaz de comunicação considerando que os mapas
regulares buscam uma conformidade e diversidade na apresentação dos conteúdos.
Percebe-se, assim, que na conceituação do IFAD (2009) estão inclusos tanto mapas e
produtos que se encaixam em representações cartográficas com o uso de parâmetros técnicos
seja no aspecto do caso brasileiro (IBGE, 2013; CONCAR, 2017), ou em casos internacionais
(EPA, 2020; ISO, 2020) , como também produtos cartográficos os quais, de acordo com
abordagens consolidadas de tipologias cartográficas, seja do ponto de vista da cartografia
geográfica ou das abordagens transdisciplinares em cartografia (RAISZ, 1959; JOLY, 2008;
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MARTINELLI, 2013) estariam classificados como croquis. Em termos de alfabetização
cartográfica, pode-se dizer que esses, em alguns casos, não atingem em primazia a dimensão
do olhar vertical, havendo casos de representações com o olhar obliquo, uma síntese entre olhar
vertical com dimensões do olhar horizontal (CASTRO; SOARES; QUARESMA, 2015).
No caso específico do Brasil, faz-se necessário destacar a grande contribuição ao
debate do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, sobre o qual Lima (2017) realiza uma
ampla análise acerca da relevância e o impacto nas diversas dias. Com representações
cartográficas que valorizam a dimensão simbólica, e, em alguns casos, artística, por vezes esses
produtos prescindem de referenciais espaciais, ou, ao menos, minimizam as questões das
projeções e escalas, e, embora sejam sempre cuidadosos com as legendas, também não estão
atinentes a uma simbologia de caráter monossêmico (CASTRO, 2019).
Na realidade, o mais comum é que cada carta social apresente uma notória diversidade
de iconografias muito próprias das singularidades de cada comunidade. Essa dimensão termina
por ser representativa da riqueza inerente aos conhecimentos locais espraiados pelos lugares.
Considerando a abrangência que tal abordagem tem tido tanto no caso brasileiro (ACSELRAD;
COLI, 2008), como no âmbito mundial (LÉVY, 2008), com particular relevância para o
contexto latino-americano (CÁCERES, 2012), parece-nos que cartografia social se torna uma
sinonímia, ou, melhor ainda, uma síntese de croquis, cartas e mapas que representam as
dimensões mais relevantes dos ambientes para as comunidades, sem necessariamente se ater às
dimensões daquilo que se convencionou chamar de espaço absoluto.
Em suma, as dimensões do espaço absoluto são aquelas da lógica mecânica
cartesiana/newtoniana, com as três dimensões (comprimento, largura e profundidade) e que,
portanto, implicam, na representação, as noções cartográficas básicas de escala e projeção
(transposição da realidade tridimensional para uma representação bidimensional). As
dimensões do chamado espaço relativo, de forma sintética, são aquelas pertinentes aos fluxos,
aos movimentos, aos acessos e bloqueios de qualquer natureza (às três dimensões se o
acréscimo de uma quarta dimensão: o tempo). E há, por fim, as dimensões do chamado espaço
relacional, as quais dizem respeito, sobretudo, às relações sociais mediadas pelo espaço, pelo
meio ambiente (HARVEY, 2015).
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Ou seja, se no espaço absoluto e relativo predominam as representações dos territórios,
no espaço relacional predominam as representações das territorialidades
. Se nos mapas para
fins hegemônicos políticos dos Estados maiores, ou econômicos dos grandes trustes e
monopólios internacionais (LACOSTE, 1993), faz-se uso predominante do espaço absoluto (e,
em menor medida, do espaço relativo), para os mapas sociais as dimensões do espaço relacional
são as que importam, e, por isso, são valorizadas.
Cartografia Social e Cartografia Participativa
Assim, no limite extremo, a cartografia social não se propõe a ser científica. Com isso
não se quer dizer que não se faça ciência (geografia, antropologia etc.) a partir dela, mas o que
está em tela na proposta original de Almeida (1993) é valorizar os conhecimentos locais. Mais
do que levar a ciência em sua forma clássica ocidental (parte de um projeto burguês) para as
comunidades, o que realmente interessa é fornecer o momento, o tempo, o espaço, enfim, os
meios para que as outras matrizes de saberes possam se expressar.
é consenso que uma diversidade de inteligências para além da inteligência lógica-
matemática, dimensão historicamente valorizada pela civilização ocidental sob a égide do modo
de produção capitalista (GARDNER, 2013). Igualmente, há uma diversidade de saberes muito
maior do que o se convencionou classificar em categorias estanques de conhecimento, em
quatro etapas ou conjuntos históricos: conhecimento empírico, conhecimento teológico,
conhecimento filosófico e conhecimento científico (JAPIASSU, 1991).
O saber e o conhecimento o são invenções europeias (SANTOS, 2018). Pelo
contrário, a diversidade de civilizações, sociedades e comunidades históricas ilustra muito bem
como há várias formas de saber que fogem ao enquadramento arbitrário de classificar todos os
conhecimentos históricos do mundo em quatro compartimentos evolutivos. O assim chamado
conhecimento empírico, às vezes referido (de forma, inclusive, pejorativa) de “senso comum”
acaba sendo tido como o patamar inferior e vulgar do conhecimento. Nessa pretensa
“classificação”, toda a tradição de conhecimentos de civilizações tais como as da China, Índia,
Sombra et al (2021) expõem de forma mais ampla as relações entre o que se concebe como espaço absoluto,
espaço relativo e espaço relacional, e a metodologia da cartografia temática e, em especial, a metodologia da
cartografia participativa.
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Pérsia, Mesopotâmia, Arábia, Palestina, Turquia, Egito, Líbia, Núbia, Etiópia, Mali, Congo,
Indonésia, Polinésia, Peru, México etc. ficam “classificadas” como intermediárias entre religião
(ou teologia) e filosofia, quase pré-filosóficas.
À ciência cabe “o lugar mais alto do pódio”. E por ciência, deixe-se claro, sempre se
refere ao conjunto normatizado de conhecimentos, técnicas e metodologias criados a partir do
projeto burguês de mundo, parido no Renascimento, amadurecido no Iluminismo e castrado no
Positivismo (KUHN, 1978; JAPIASSU, 1991; FOUREZ, 1995). Resta aos demais (incontáveis)
saberes a alcunha de “senso comum”. Que a ciência seja fruto de um projeto da classe burguesa,
de lugar europeu (e, portanto, de cor branca, e gênero masculino), parece fora de dúvida. Se o
seu uso se limita sempre à dominação pelo fato de ter sido assim parida, com o objetivo de ser
usada em prol da dominação, é outra questão, a qual será tratada adiante neste ensaio. Não
obstante, está fora de dúvida também que se trata de uma arrogância etnocêntrica o
enquadramento de todos os saberes não europeus como conhecimentos empíricos, como se não
fossem frutos de pensamento ou reflexão (como se o pensamento fosse habilidade
exclusivamente europeia).
Tratam-se, isso sim, de outras epistemologias. São saberes construídos social e
historicamente a partir de outras matrizes de explicação. Com outros códigos de validação.
Esses conhecimentos possuem também outros olhares acerca do mundo, e são, portanto, não
apenas outras epistemologias. São, também, outras ontologias, com outras interpretações do
ser, do mundo, do tempo e do nada. E aqui reside uma grande contribuição latino-americana,
com destaque para o Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (LIMA, 2017), ao debate
amplo do “mapeamento participativo” nos termos do IFAD (2009). É necessário asseverar que
a cartografia social desmonta o mito do “senso comum”. O enquadramento dos conhecimentos
não europeus como “senso comum” (ou religiosos, ou pré-religiosos/mitológicos, ou
filosóficos, ou pré-filosóficos) obedece à mesma lógica colonial impositiva e desumanizante
que classifica todos os povos não europeus como indígenas ou aborígenes. A cartografia social
expressa não somente as epistemologias, mas as ontologias dos conhecimentos locais diversos
e distintos. E o faz de uma forma espacial e territorial (do espaço absoluto ao espaço relacional).
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
SOMBRA, Daniel; RODRIGUES, Gilberto Pereira; PINHO, Danilo do Rosário. Cartografia participativa como diálogo entre saberes:
ontologia, epistemologia, metodologia e aplicações na construção social do conhecimento. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº
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Dito isto, aqui parece o ponto para expressar uma proposição. Não se trata de
enquadramento, mas de olhares acerca dos conjuntos de saberes e dos diálogos entre os saberes.
Cabe afirmar que uma distinção entre o que se consolidou chamar de cartografia social e
outras dimensões do mapeamento participativo, as quais constituem o que será nomeado
doravante de cartografia participativa. Por cartografia participativa não se deve entender
qualquer tipo de tentativa de validação pela ciência dos conhecimentos locais, mas se trata de
disponibilizar o instrumental da cartografia técnica e científica (geográfica ou interdisciplinar)
para que as comunidades se apropriem desta linguagem, do olhar vertical, das técnicas e
tecnologias, e que, a partir dessa apropriação da ciência, possam expressar suas territorialidades,
os seus usos, a importância material e simbólica dos ambientes, e também os conflitos, os
interditos, os ataques sofridos, e, enfim, os seus desafios sociais e comunitários para o futuro.
Não necessariamente a cartografia social prescinde das geotecnologias. Não é uma
questão do uso dos sistemas de posicionamento global, de técnicas de sensoriamento remoto ou
de geoprocessamento que vai distinguir a proposição da cartografia participativa da
consolidada cartografia social. Trata-se muito mais do objetivo. A cartografia social possui
como principal objetivo dar ensejo à auto-cartografia dos povos e comunidades tradicionais.
Trata-se de um instrumento para o fortalecimento dos movimentos sociais e das comunidades
locais (LIMA, 2017). As cartas sociais são, ao fim, manifestações de identidades coletivas,
referidas a situações sociais peculiares e territorializadas.
A cartografia participativa, por seu turno, objetiva muito mais disponibilizar as
técnicas de cartografia científica para o empoderamento dos movimentos sociais e das
comunidades locais. A aprendizagem da linguagem cartográfica técnica, a mesma
historicamente utilizada pelos agentes hegemônicos para subjugar as comunidades locais,
aparece aqui como um passo fundamental para empoderar as lutas sociais no âmbito da
expansão de territorialidades hegemônicas predatórias. A cartografia participativa está
preocupada em referenciar no espaço absoluto e no espaço relativo a existência concreta,
material e simbólica das territorialidades e seus usos. Para isso, o uso dos sistemas de
posicionamento global, dos sistemas de informação geográfica e das imagens de sensores
remotos são deveras úteis. Assim, enquanto a cartografia social expressa em sua totalidade o
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vigor dos saberes locais, a cartografia participativa resulta do diálogo dos saberes locais com a
ciência, mediada pelas técnicas e instrumental científicos.
Cartografia participativa: ciência e técnica para fins contra-hegemônicos
Ao conceber por cartografia participativa o uso da cartografia científica pelas
comunidades locais para expressar suas territorialidades, impõe-se, logo, uma questão de ordem
ou de princípio. Pode a ciência burguesa servir ao propósito contra-hegemônico? Na tradição
da crítica materialista histórica e dialética, esse debate foi expresso para a dimensão mais geral
da técnica (e da tecnologia). É conhecida a polêmica entre Lênin (1965) e Luxemburgo (1970)
acerca do que fazer com a técnica derivada do modo de produção capitalista (no âmbito dos
debates de superação desse modo de produção em prol de uma proposta socialista).
Para o primeiro, as técnicas e os objetos em geral são apenas meios e deveriam ser
apropriados para os fins de negação do capital, ou seja, na construção de uma outra lógica de
reprodução social que o a capitalista. Para a última, porém, as técnicas desenvolvidas a partir
da exploração da força de trabalho assalariada constituem em si o trabalho cristalizado, ou
melhor ainda, o mais-valor expropriado dos trabalhadores pelo sistema do capital, sendo, ao
fim e ao cabo, impossível o seu uso contra-hegemônico. Para Luxemburgo (1970), a despeito
de sua natureza de meio, a técnica e os objetos são meios que condicionam os fins e a
reprodução social.
Essa questão aparece diversas vezes na filosofia e nas ciências humanas, em geral, e
na geografia, em particular. De acordo com Moreira (2012), a geografia crítica, corrente de
pensamento com forte influência marxista, apresentou cinco grandes eixos de interpretação do
espaço geográfico: a) o espaço como formação e instância social (Milton Santos); b) o espaço
como condição de reprodução das relações de produção (Lefebvre); c) o espaço como mediação
das relações de dominação de classes e de poder (Lacoste); d) o espaço como estrutura de
valorização do capital (Harvey); e, e) a sociedade como natureza socializada e história
naturalizada (Quaini) (MOREIRA, 2012). As duas primeiras dialogam diretamente (e as demais
indiretamente) com a noção de prático-inerte de Sartre (1963).
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Aqui, o meio não é apenas um palco para os fenômenos sociais, pois, ao mesmo tempo,
o meio, ou seja, o espaço (os objetos espaciais, os ambientes, enfim, o espaço absoluto, relativo
e relacional) é produto e condição de reprodução da sociedade, interferindo diretamente na
forma e nas relações sociais. Não se trata de forma alguma de dar margem a qualquer tipo de
materialismo vulgar determinista, ao torque de Ratzel ou Montesquieu. Também não se trata
do olhar funcionalista do positivismo, que reconhece uma força inerte do meio”, mas como
condição dos fatos sociais mecânicos (DURKHEIM, 2004).
Embora se concorde com a ideia de que há uma “força inerte do meio” como disse
Durkheim (2004), essa força é dialética, resulta do trabalho cristalizado nas paisagens, trazendo
ao espaço geográfico certa “inércia dinâmica (SANTOS, 2008). Trata-se, afinal, de
reconhecer, isso sim, que “os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de
livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela
é feita, mas estas lhe foram transmitidas assim como se encontram” (MARX, 2011, p. 25).
Ademais, é preciso reconhecer que a técnica, ou melhor, o sistema técnico se converteu no
maior instrumento de controle social da sociedade capitalista (MOTA, 2016).
Cabe notar, porém, que se de todo fosse impossível o uso de técnicas e da própria
ciência burguesa, forjados a partir da exploração dos povos e trabalhadores, e objetivando a
reprodução da mesma, a própria construção de alternativas ao capitalismo a partir da
maximização e socialização radical das forças produtivas seria impossível. Como bem coloca
Engels (1971), o socialismo científico faz uso dos princípios científicos, e necessita da ciência
para a sua reprodução. Está implícito aí o uso da ciência para fins contra-hegemônicos. Para tal
o papel do intelectual está justamente em disponibilizar o conhecimento e os arcabouços
teóricos, metodológicos e técnicos da ciência para os oprimidos a utilizarem em suas lutas
contra-hegemônicas (GRAMSCI, 1982).
Para isso, faz-necessário que o professor troque conhecimentos com os alunos, que o
professor não apenas ensine, mas aprenda com os alunos para construir um diálogo de saberes
contra a dominação (MARIÁTEGUI, 2010). Assim, constrói-se uma pedagogia em favor da
libertação e contra a opressão. Os intelectuais precisam descobrir seu papel e seu imperativo
ético para com o mundo, para com a libertação, solidarizando-se sempre com os oprimidos e
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auxiliando-os a perceber a opressão para lutar contra ela (FREIRE, 2015). O papel da vanguarda
é utilizar o máximo da ciência, da técnica e da tecnologia para a conscientização da exploração
e para a transformação de classe em si, alienada, para a classe para si, consciente de seu papel
e de seu protagonismo na reprodução do mundo (LÊNIN, 2015).
É claro que o esclarecimento é condição pétrea de qualquer ação social. Reconhecer
que esses conhecimentos, que a ciência em geral, e suas cnicas, foram construídos para a
reprodução da hegemonia é condição sine qua non para o uso contra-hegemônico (GRAMSCI,
1987). Novamente, o papel dos cientistas, dos intelectuais, dos professores é fundamental. Uma
vez que percebam o uso hegemônico da ciência e das técnicas em favor da dominação e
consigam, a partir dessa percepção e de seu acúmulo teórico-prático, saltar da condição de
classe em si para a condição de classe para si mesmo que muitas vezes, ao fazê-lo, tenham
que se reconhecer como parte do bloco opressor devem, de imediato, colocar todo o seu saber
acumulado em favor da libertação e do empoderamento social (LÊNIN, 2015; FREIRE, 2015).
O projeto societário maior da humanidade persiste sendo a libertação (FROMM,
1981), ainda que tal projeto seja vilipendiado toda vez que determinado grupo ou classe social
imponha um ordenamento hegemônico baseado na opressão dos demais, na opressão da
maioria. O ser humano está condicionado a lutar para ser mais (FREIRE, 2015). O ser humano
está condenado a lutar de forma irremediável por sua libertação (SARTRE, 1963). O ser
humano é, pois, essencialmente, um ser social coletivo (MARX; ENGELS, 2007). E, assim,
todos os materiais, todas as técnicas, todos os produtos, todos os meios foram construídos a
partir da relação entre as pessoas, a partir dos elementos dos ambientes, através do processo
social do trabalho, mediado pelas técnicas. Todos os conhecimentos são frutos da comunhão
entre as pessoas. Então, ironicamente, ao fim e ao cabo, todo conhecimento não deixa de ser
um senso comum, não no sentido pejorativo de conhecimento vulgar, mas no sentido de
conhecimento coletivo.
Não é à toa que a teleologia separe o pior tecelão da melhor abelha e o pior artesão da
melhor formiga (MARX, 2013). O ser humano enquanto ser social coletivo modifica o meio e
recondiciona o seu papel modelador. A teleologia é um constructo coletivo (MARX, 2008).
Que as relações sociais (ou socioespaciais, pois que sempre mediadas pelo meio, pela natureza,
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pelas próteses) fundamentais de primeira ordem (alimentação, habitação, remédios, cultura,
enfim, as necessidades humanas fundamentais) terminem nuançadas pelas relações de segunda
ordem (aquelas que fundamentam a produção do valor de troca e a extração do mais-valor) é
algo próprio ao contexto de hegemonia da burguesia (MÉSZÁROS, 2007).
Essa hegemonia se manifesta em práticas cotidianas que inviabilizam as necessidades
humanas fundamentais. Nesse contexto, os oprimidos se expressam, se contextualizam, se
situam e se explicam pelos termos da opressão, e se enxergam nos seres dos opressores. Sem
consciência de classe, o sonho do oprimido é se tornar o opressor (FREIRE, 2015). Mas a
aprendizagem é uma habilidade do ser social. Uma criança em fase de alfabetização abandonada
pelas pessoas em um ambiente não social pode, por ventura, conseguir sobreviver (embora o
mais provável seja a morte). casos diversos registrados de sobrevivência de pessoas nessa
situação (BALL, 1994; ROUX; SMITH, 1998; WHETTEN et al., 2009; NELSON, 2014;
RYGAARD, 2020). Porém, esses casos mostram como as pessoas conseguem sobreviver
enquanto um indivíduo da espécie Homo sapiens, mas sem reproduzir (ou produzir nesse caso)
cultura, fala, e no limite, sequer pensamento.
Isto porque a cultura é uma construção material. O conhecimento é construído em
estágios materiais, nos quais os passos em construção são sempre basilares e supostos dos
seguintes (PIAGET; INHELDER, 1989). O conhecimento não é apenas uma construção
material, mas também é uma construção social. A depender do meio social, cria-se uma zona
de desenvolvimento potencial para a aprendizagem (VIGOTSKY, 1987), isto é, para a
construção de conhecimentos, seja esse conhecimento estruturado em conteúdos cognitivos, ou
procedimentais, ou atitudinais (ZABALA, 1998). Essa zona de desenvolvimento potencial se
torna uma zona de desenvolvimento proximal quando há interação entre as pessoas
(VIGOTSKY, 1987). Essa é base da construção do conhecimento: a comunhão. Nas condições
ideais, quando se a zona de desenvolvimento proximal, os sujeitos em aprendizagem,
educandos, se convertem, se transformam nos sujeitos da construção social do conhecimento,
reconstruindo o saber ensinado ao lado do professor, do educador, do intelectual da ciência,
igualmente sujeito do processo (FREIRE, 1996). O conhecimento e a cultura são construções
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sociais, tal como todo aprendizado teórico e todo constructo material, incluindo o próprio
espaço geográfico (MOREIRA, 2012).
É por isso que a coetaneidade é a propriedade mais importante do espaço geográfico
(MASSEY, 2009). Apesar dos muros, sempre contornamentos territoriais (HAESBAERT,
2014). O espaço geográfico, isso é, o meio ambiente, os sistemas naturais, mais as próteses e
as atividades humanas um conjunto indissociável de sistemas de ações e sistemas de objetos
(SANTOS, 2009), uma síntese entre modus operandi e modus vivendi (MOTA, 2006) uma
síntese entre trabalho em ato e trabalho cristalizado (SOARES, 2016) que une a todos, ricos e
pobres, brancos e negros, homens e mulheres, jovens e maduros. As consequências das ações
humanas e os desastres são sempre seletivas por classe, gênero etc., mas sempre em um segundo
momento, pois no momento inicial todos são atingidos, como ilustrou de forma cabal a
pandemia da COVID-19, durante os anos de 2020 e 2021.
No limite, porém, por mais muros e espaços seletivos que se possa construir, o planeta
em que a vida é possível é apenas um (GONÇALVES, 2011). A origem da cultura, do
conhecimento é a comunhão com os outros. Não vida sem diversidade social. E é por isso
que uma educação voltada ao máximo do humano é uma educação voltada para a libertação,
para a construção do ser mais (FREIRE, 2015). A educação para a libertação necessita de temas
geradores, e esses temas geradores até podem ser gerados pela própria ciência, mas é importante
que na maior parte das vezes sejam gerados a partir da diversidade de conhecimentos locais, de
conhecimentos empíricos (FREIRE, 1996).
Cabe aos conhecimentos cotidianos, os ancestrais, e também os gerados pelos
trabalhadores oprimidos, pela população urbana periférica, por todas as dimensões humanas
que são exteriores ao sistema do capital (DUSSEL, 2012), e que se unem construindo
contraespaços hegemônicos (SOARES, 2021). E, assim, o que mais cabe à ciência é gerar os
“temas dobradiças” (FREIRE, 2015), ou seja, os conteúdos sejam cognitivos, procedimentais
ou atitudinais (ZABALA, 1998) que auxiliam no diálogo entre ciência e saberes locais, na
construção de conhecimento voltado à libertação e não à dominação. E para isso é fundamental
que o professor aprenda com o aluno (FREIRE, 2015). Que a ciência aprenda com o objeto e
entenda que, ao fim e ao cabo, este é sujeito de sua própria existência (LUKÁCS, 2013). Que,
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enfim, a universidade entenda que a extensão não é caridade, mas sobretudo, diálogo de saberes
e trocas de experiências, com aprendizagem mútua para todos os lados envolvidos
(MARIÁTEGUI, 2010). São essas as condições para o uso da ciência e da técnica para fins
contra-hegemônicos.
Cartografia participativa: um objeto intermediário para o diálogo de saberes
A cartografia participativa, como construção de diálogo de saberes, como proposição
de levar às comunidades o instrumental da cartografia e das geotecnologias (sensoriamento
remoto, geoprocessamento etc.) possibilita a construção de objetos intermediários (ROJAS-
BERMÚDEZ, 1967), instrumentos facilitadores de diálogos que possibilitam que os sujeitos
reconheçam a si e suas relações (conflituosas, afetivas etc.) com os outros.
O geoprocessamento e a disseminação da cartografia por uma diversidade de
aplicativos, inclusos os presentes nos aparelhos celulares, auxilia também uma cartografia
voltada à codificação de usos, conflitos, das relações de poder, de trabalho e culturais
produzidas a partir e no espaço geográfico. No Brasil, a cartografia participativa tem sido usada
desde os anos 1980 em projetos de desenvolvimento dos espaços rurais, dando preferência para
o incentivo do conhecimento local, desenvolvendo e facilitando a comunicação entre os
habitantes (ARAÚJO; ANJOS; ROCHA FILHO, 2020).
A partir dos anos 1990, com a maior difusão das geotecnologias, passou-se à utilização
de sistemas de informações geográficas (SIG), sistemas de posicionamento global (GPS) e uso
de imagens de satélites para auxiliar as técnicas de mapeamento. Para Araújo, Anjos e Rocha
Filho (2020), o mapeamento participativo constitui abordagem interativa baseada nos
conhecimentos das populações locais, permitindo aos participantes desse processo criar seus
mapas representando os elementos mais significativos para essa população.
Para Silva e Verbicaro (2016), a cartografia participativa apoiada na tecnologia
computacional constitui uma importante ferramenta para analisar as diversas territorialidades
do espaço geográfico baseadas no cotidiano dos sujeitos locais. Para os autores, a cartografia
participativa é uma metodologia de análise do território. Para Tomaz (2020), também é indicada
para a análise ambiental. A cartografia participativa utiliza as dimensões de diversidade,
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proporcionalidade e ordem (CASTRO; SOARES; QUARESMA, 2015), e se assenta na
produção do olhar vertical sobre os espaços em detrimento do olhar horizontal sobre as
paisagens (SOARES et al., 2018). Esses últimos são utilizados para, em um primeiro momento,
fornecer os “temas dobradiças” (FREIRE, 2015), que constituem a identificação do espaço
absoluto e relativo, para que, uma vez alfabetizados com esta codificação, e de forma cada vez
mais participativa e autônoma, os sujeitos locais se apropriem dessas ferramentas e as utilizem
como forma de representação de suas territorialidades, de seu espaço relacional.
O empoderamento social é útil à governança (não se trata de encaixar a sociedade
civil na burocracia estatal, mas de fazer a burocracia estatal se dobrar ao diálogo com os saberes
locais), à participação da sociedade civil e dos movimentos sociais também na gestão dos
territórios, como é o caso particular das unidades de conservação (CANTO et al., 2018). A
Cartografia Participativa, por ser uma metodologia de compreensão social, espacial e territorial
que necessariamente envolve a participação das comunidades, possibilita subsídios à gestão das
unidades de conservação de forma participativa, envolvendo comunidades, Conselho Gestor e
técnicos dos órgãos institucionais de cada unidade de conservação.
A cartografia participativa, portanto, pode ser uma ferramenta voltada tanto para o
ensino sobretudo, o ensino fora da educação sistemática, conforme indica Freire (2015) ,
como para a pesquisa, mas seu uso é eminentemente voltado para a materialização da extensão.
A materialização de produtos e serviços voltados à significação social, com o uso efetivo da
ciência. O produto, o mapa participativo, permite a identificação de usos, territorialidades,
conflitos e problemas socioambientais a serem dirimidos. Assim, tem-se uma contribuição
concreta à percepção dos comunitários acerca do seu território. Em cada um dos casos, o mapa
participativo foi feito a partir das iconografias construídas sobre um mapa de localização de
base pelos comunitários e usuários da unidade de conservação.
Esse mapa de localização de base é um mapa que possui apenas os referenciais de
espaço absoluto essenciais para a localização (sobretudo hidrografia e malha viária),
complementado pelo uso de uma imagem de satélite. No decorrer da elaboração de oficinas
para a construção desse produto, uma vez que os comunitários se reconhecem, com o domínio
do olhar vertical em diálogo com o olhar horizontal (CASTRO; SOARES; QUARESMA,
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2015), eles podem registrar informações sobre os aspectos estruturais, culturais e sociais de
cada população advindas de suas histórias narradas oralmente em grupo, saindo da dimensão
espacial e adentrando de fato na dimensão territorial.
Uma vez registradas as territorialidades e os usos feitos sobre e a partir do território, a
segunda etapa se constitui na transformação dessa informação cartografada em informação
vetorial, disponibilizada em um banco de dados digitais, para a elaboração do layout final. Silva
(2017) ilustrou o uso da cartografia participativa em comunidades quilombolas no Arquipélago
do Marajó no estado do Pará como um projeto de pesquisa-ação. A cartografia participativa e
sua efetivação na direção do empoderamento social é abordada em uma série de outros
trabalhos.
Ranieri (2018) relata o uso da cartografia participativa na localidade de Ajuruteua, no
município de Bragança, no limite da RESEX Marinha Caeté-Taperaçu. O objetivo do uso desse
produto foi o de identificar os usos e significados de cada territorialidade dentro desse espaço
geográfico, para, a partir de então, construir com os moradores uma agenda de ações para
enfrentar o problema da erosão costeira que assola a vila. Em seu trabalho, Ranieri (2018)
ilustra como a Cartografia Participativa é um instrumento que auxilia na participação como
fundamento da ação social como foco de resolução de um problema específico.
O trabalho de Ramos (2020) objetiva subsidiar a construção do plano de manejo da
RESEX Ipaú-Anilzinho, situada no município de Baião, na Região de Integração do Baixo
Tocantins. Para isso, Ramos (2020) elaborou oficinas de Cartografia Participativa em todas as
comunidades existentes, e ao final, com o apoio da equipe do LARC, sistematizou o mapa
participativo da RESEX Ipaú-Anilzinho. O objetivo de Ramos (2020) ao identificar junto aos
usuários da RESEX os usos dos territórios e os principais conflitos socioambientais e desafios
coletivos foi auxiliar na construção do Plano de Manejo, que no caso da Reserva Extrativista
Ipaú-Anilzinho ainda não foi elaborado. Outrossim, esta metodologia e seu produto auxiliam
também como uma ferramenta mediadora e conciliadora para outros entraves existentes na
RESEX, como a falta de delimitação dos espaços naturais de uso comum, a resolução sobre a
presença de fazendeiros ocupando boa parte da RESEX, as vendas ilegais de terras, etc.
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O mapa participativo é, portanto, um objeto intermediário para a gestão comunitária
sobre o território. Para Ramos (2020), o diferencial da proposição do Produto de Pesquisa com
a construção da Cartografia Participativa se constituiu também em identificar os pequenos
povoados da Ipaú-Anilzinho, incluindo os não reconhecidos nos estudos cnicos para a criação
da RESEX em 2005.
A elaboração do produto não se propôs a alterar as normas ou lei que criou a unidade de
conservação, mas sim indicar ao poder público e demais sujeitos da RESEX os espaços e
populações existentes na área como documento formal oriundo de pesquisa científica. Além de
registrar o modo de ocupação das comunidades, a distribuição das terras em tempos passados,
a criação da RESEX e o sentimento de pertencimento às áreas em que produzem suas
sobrevivências.
O trabalho de Lobato (2020) também fez uso da Cartografia Participativa como
metodologia de aquisição de dados, de análise, e de construção de instrumentos de gestão para
os comunitários de territórios quilombolas. Lobato (2020) fez seu trabalho no Território
Quilombola Estadual Ramal do Piratuba, no município de Abaetetuba, na Região de Integração
do Baixo Tocantins. Primeiramente, as informações fornecidas pelos comunitários nas oficinas
de Cartografia Participativa realizadas por Lobato (2020) foram úteis para construir um
zoneamento participativo dos usos da terra no referido território quilombola.
Sendo a aprendizagem cartográfica um processo de aprendizagem social e
aprendizagem territorial, também cabe seu uso no próprio campo do ensino. Esta proposição se
mostrou acertada em trabalho elaborado por Rodrigues (2019), abordado na próxima sessão.
Cartografia participativa e construção do conhecimento dialógico no campo do ensino:
uma oficina no município de São João da Ponta-PA
Para a aplicação de uma oficina de cartografia participativa no campo particular do
ensino, foi escolhida a comunidade de Deolândia, localizada no município de São João da
Ponta, no nordeste do estado do Pará. Mais precisamente na Escola Municipal de Ensino
Fundamental Prof. Raul Rodrigues Lagoia. Em três sessões, foram escolhidos como “temas
dobradiças” os conceitos de espaço, território, paisagem e lugar para, a partir de então, discutir
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SOMBRA, Daniel; RODRIGUES, Gilberto Pereira; PINHO, Danilo do Rosário. Cartografia participativa como diálogo entre saberes:
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os aspectos mais relevantes quanto ao uso dos territórios e das territorialidades, da construção
social do espaço geográfico e do uso comum dos recursos naturais.
A oficina foi realizada com o apoio do Laboratório de Análise Ambiental e
Representação Cartográfica (LARC), do Núcleo de Meio Ambiente (NUMA), da Universidade
Federal do Pará. Após a construção dos temas geradores, referentes aos principais usos do
território na comunidade por parte dos alunos, estes foram apoiados pelos “temas dobradiças”
propostos, ao que se passou à etapa de construção do olhar vertical a partir de uma planta base
contendo apenas alguns referenciais do espaço absoluto (estradas e rios). Também se fez uso
de uma carta-imagem da localidade. Os alunos, cerca de 20, foram divididos em quatro grupos
de cinco (Figura 1). Na figura, os rostos dos alunos estão cobertos por se tratarem de menores
de idade.
Figura 1: Grupos durante a oficina de cartografia participativa na E. M. E. F. Raul
Rodrigues Lagoia (Deolândia, São João da Ponta-PA).
Fonte: RODRIGUES, 2019.
Após uma metodologia para apoiar a percepção do olhar vertical, e já em domínio da
imagem dos seus territórios, os discentes começam a pontuar os temas geradores destacados na
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etapa anterior no mapa, identificando seus pontos de referência. A cada ponto escolhido, cada
lugar, cada significação, criava-se uma sinergia coletiva que ao mesmo tempo permitia diálogos
em cada grupo. As noções de escala e projeção foram abordadas, além de outros temas, como
características dos rios e igarapés, da vegetação etc.
Os temas gerados foram de utilidade não somente para o ensino da disciplina
geografia, mas também para a disciplina de estudos amazônicos. Ao final, as cartas separadas
foram estilizadas no LARC e sintetizadas em uma única carta. Em uma última etapa da oficina,
posterior, foi realizada a apresentação da carta participativa final para correção, mudanças,
acréscimos, sugestões de layout, legenda, etc. Após essa última etapa, confeccionou-se, também
no LARC, a carta participativa final (Figura 2).
Figura 2: Carta participativa de Deolândia (São João da Ponta-PA)
Fonte: RODRIGUES (2019).
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Rodrigues (2019) registrou que a atividade foi positiva para as disciplinas Geografia e
Estudos Amazônicos, e apresentou relatos dos docentes e discentes acerca do que cada um
achou da atividade. Para tal, fez uso de entrevistas com os quatro grupos de alunos em dois
momentos: imediatamente após a finalização da carta participativa e dois meses após a
realização da mesma. As entrevistas, semiestruturadas, apresentavam perguntas acerca das
dificuldades em conteúdos com a cartografia e acerca da compreensão dos conceitos de espaço
e territórios (os “temas dobradiças” escolhidos em parceria com os docentes das disciplinas.
O trabalho de Rodrigues (2019) acompanha o desempenho dos alunos e os relatos dos
docentes das disciplinas Geografia e Estudos Amazônicos sobre o aumento do interesse dos
discentes, além da repetição de oficinas similares, sem a participação da equipe de
pesquisadores que levou a oficina pela primeira vez à unidade escolar. Destaca-se o depoimento
de um dos alunos, que aponta o seguinte:
Eu não gostava de geografia, e nem de estudos amazônicos, pois achava
que eram matérias chatas. [...] Mas depois dessa coisa da oficina, ficou
mais fácil ver como o nosso lugar está conectado a outros espaços, e
como a gente usa o espaço [...]. (Aluno, em entrevista oral apud
Rodrigues, 2019).
É necessário ressaltar que as dificuldades em reconhecer os espaços vividos a partir do
olhar vertical foram rapidamente dirimidas no decorrer da metodologia. Notou-se em todos os
quatro grupos que uma vez reconhecidos os lugares referenciais da coetaneidade cotidiana, os
alunos rapidamente dominaram o olhar vertical e se sentiram à vontade no reconhecimento de
seus espaços.
Rodrigues (2019) também pontua em seu trabalho que o uso dos mapas auxiliares de
situação, posicionando a comunidade de Deolândia no contexto espacial da Reserva Extrativista
de São João da Ponta, auxiliou os alunos na compreensão de um olhar de totalidade acerca dessa
unidade de conversação. Trata-se de uma Unidade de Conservação de Uso Sustentável com um
histórico de militância e ativismo em torno da causa ambiental e dos conhecimentos
tradicionais, sendo um caso de êxito no diálogo entre o saber institucional jurídico e científico
e o respeito aos saberes locais que normatizam os usos dos recursos naturais (TELES;
PIMENTEL, 2018).
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A RESEX de São João da Ponta apresenta relevantes indicadores de sustentabilidade
(PINEDO; PIMENTEL, 2021), e possui entre seus maiores desafios, no que tange às questões
ambientais, o avanço dos vetores da agricultura e da urbanização, resultado na diminuição da
área dos principais ecossistemas locais, os manguezais (FERNANDES; PIMENTEL, 2019).
Assim, o diálogo com os docentes das disciplinas Geografia e Estudos Amazônicos
possibilitou a conclusão de que a oficina colaborou para o empoderamento dos alunos, mais
conscientes da totalidade da unidade RESEX, da situação de seus lugares vividos diante dessa
unidade espacial e do mundo. Como mostrou Rodrigues (2019), também houve melhora no
desempenho dos alunos nas duas disciplinas.
Destacamos este caso particular, pois (como citado anteriormente) uma plêiade
de trabalhos utilizando a cartografia participativa nos campos da pesquisa e da extensão. Com
o uso da cartografia participativa no ensino, ainda que no nível da educação formal e, portanto,
considerados todos os limites de enquadramentos de currículo, avaliação e forma que essa
possui (FREIRE, 2015) , pretende-se fazer no próprio espaço escolar, sede do conhecimento
formal, um local de troca de saberes entre conhecimento científico e conhecimentos locais.
Considerações Finais
Este artigo se caracteriza, como expresso na introdução, como um ensaio que pretende
discutir como a cartografia participativa pode ser utilizada como um objeto intermediário, a fim
de realizar o diálogo entre os saberes locais e a ciência formal. O objetivo não é outro que não
o empoderamento social; o uso da cartografia e de suas técnicas, historicamente utilizadas pelos
agentes hegemônicos para a opressão, dessa vez para a libertação. Para que as pessoas
conheçam as técnicas, e utilizem essa linguagem para expressar seus conhecimentos e suas
territorialidades.
Para tal, realizamos uma proposição inicial da especificidade da cartografia
participativa no âmbito da cartografia em geral, marcando-a como uma proposta de diálogo
entre saberes, e assim, delimitando-a ao lado da consolidada cartografia social, essa uma
proposição que está interessada também no empoderamento social, mas a partir, primariamente,
da auto-cartografia dos povos, e, portanto, da essência epistemológica e ontológica dos
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conhecimentos locais, e de suas próprias formas de validação, as quais, em nada precisam da
ciência.
A especificidade da cartografia participativa está em objetivar o uso da ciência,
técnica, geografia e cartografia hegemônicas pelas comunidades locais. É sabido que, diante do
processo de totalização do capital (KOSIK, 1963) um processo totalitário, e, por isso mesmo,
globalitário (SANTOS, 2003) haverá necessariamente momentos de enfrentamento. Se a
geografia e cartografia sempre serviram para fazer a guerra, já mostramos que para a guerra é
possível sim utilizar a ciência para fins contra-hegemônicos.
Agradecimentos
Os autores do artigo agradecem em especial aos professores das disciplinas Geografia
e Estudos Amazônicos e à direção da E. M. E. F. Raul Rodrigues Lagoia pela autorização e
colaboração para a realização da atividade de Cartografia Participativa de Rodrigues (2019),
utilizada como exemplo nesse artigo. Nesse ínterim, também os autores agradecem ao apoio
disponibilizado pela Coordenação e corpo técnico do Curso de Especialização em Ensino de
Geografia da Amazônia da Universidade do Estado do Pará (UEPA), casa que originou o
trabalho de Rodrigues (2019).
Também cabe-nos agradecer ao Laboratório de Análise Ambiental e Representação
Cartográfica (LARC), do Núcleo de Meio Ambiente (NUMA) da Universidade Federal do Pará
(UFPA), pelo apoio técnico no material cartográfico utilizado. Agradecemos, por fim, ao corpo
de revisores da Revista Ensaios e à edição geral, pelo profícuo diálogo estabelecido por meio
da revisão de pares, e às sugestões efetuadas para mudanças, as quais contribuíram para
melhorar a redação final do texto.
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
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ontologia, epistemologia, metodologia e aplicações na construção social do conhecimento. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº
16, pp. 45-74, janeiro-abril de 2022.
Submissão em: 28/12/2021. Aceito em: 10/04/2022
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
BRUM, Jean Lucas da Silva. Explorando memórias de lugar e lugares de memória através de histórias de vida de idosos residentes na Serra
de Piabas, situada no Parque Estadual da Pedra Branca, Cidade do Rio de Janeiro -RJ. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº 16,
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SEÇÃO ARTIGOS
EXPLORANDO MEMÓRIAS DE LUGAR E LUGARES DE MEMÓRIA ATRAVÉS
DE HISTÓRIAS DE VIDA DE IDOSOS RESIDENTES NA SERRA DE PIABAS,
SITUADA NO PARQUE ESTADUAL DA PEDRA BRANCA, CIDADE DO RIO DE
JANEIRO-RJ
EXPLORING MEMORIES OF PLACE AND PLACES OF MEMORY THROUGH
LIFE STORIES OF ELDERS RESIDENTS AT SERRA DE PIABAS, PEDRA
BRANCA STATE PARK, IN THE CITY OF RIO DE JANEIRO-RJ
EXPLORANDO MEMORIAS DE LUGAR Y LUGARES DE MEMORIA A TRAVÉS
DE HISTORIAS DE VIDA DE ANCIANOS RESIDENTES EN LA SERRA DE
PIABAS, UBICADA EN EL PARQUE ESTATAL DE PEDRA BRANCA, CIUDAD DE
RIO DE JANEIRO-RJ
Jean Lucas da Silva Brum
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
Rio de Janeiro, Brasil
E-mail: jeanbrum@id.uff.br
Resumo
Este breve ensaio tem como objetivo discutir os diferentes modos a partir dos quais memória e lugar podem se
articular em meio à experiência de mundo através da análise e interpretação de histórias de vida de idosos
residentes na Serra de Piabas, situada no Parque Estadual da Pedra Branca, na cidade do Rio de Janeiro RJ. Este
estudo examina como estes sujeitos narram as suas experiências/vivências, através da representação de seu passado
pela memória, bem como a articulação destas memórias na construção de sentidos de lugar e o papel do lugar na
evocação destas memórias. O fio condutor deste trabalho aponta na direção da construção de um profundo
sentimento de pertencimento e apego ao lugar, ancorado na experiência narrativa das memórias como estratégia
de permanência destes sujeitos no contexto de mediação e negociação de sua presença em uma Unidade de
Conservação de Proteção Integral.
Palavras-chave
Parque Estadual da Pedra Branca; Memória; Histórias de Vida; Lugar.
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, campus
Maracanã.
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BRUM, Jean Lucas da Silva. Explorando memórias de lugar e lugares de memória através de histórias de vida de idosos residentes na Serra
de Piabas, situada no Parque Estadual da Pedra Branca, Cidade do Rio de Janeiro -RJ. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº 16,
pp. 75-97, janeiro-abril de 2022.
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Abstract
This brief essay aims to discuss the different ways in which memory and place can be articulated through the
experiencing of the world through the analysis and interpretation of life stories of the elders living in Serra de
Piabas, at the State Park of Pedra Branca, Rio de Janeiro - RJ. This study examines how these subjects narrate
their living experiences through the representation of their past by memory, as well as the articulation of these
memories in the construction of senses of place and the role of place in the evocation of these memories. The
guiding thread of this work points to the construction of a deep sense of belonging and attachment to place,
anchored in the narrative of memories as a strategy of permanence for these subjects in the context of mediation
and negotiation of their presence in a full protection conservation unit.
Keywords
Pedra Branca State Park; Memory; Life Stories; Place.
Resumen
Este breve ensayo tiene como objetivo discutir las diferentes formas en que la memoria y el lugar pueden ser
articulados en medio de la experiencia del mundo a través del análisis e interpretación de historias de vida de
personas mayores que viven en la Serra de Piabas, ubicada en el Parque Estatal de Pedra Branca, en la ciudad de
Río de Janeiro RJ. Este estudio examina cómo estos sujetos narran sus experiencias, a través de la representación
de su pasado a través de la memoria, así como la articulación de estos recuerdos en la construcción de sentidos de
lugar y el papel del lugar en la evocación de estos recuerdos. El hilo conductor de este trabajo apunta hacia la
construcción de un profundo sentimiento de pertenencia y apego al lugar, anclado en la experiencia narrativa de
las memorias como estrategia de permanencia de estos sujetos en el contexto de mediación y negociación de su
presencia en una Unidad de Conservación de Protección Integral.
Palabras clave
Parque Estatal de Pedra Branca; Memoria; Historias de Vida; Lugar.
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Introdução
“O passado está em todo lugar” (LOWENTHAL, 1985b, p. XV). É com esta célebre
frase que o geógrafo David Lowenthal inicia sua obra The Past is a Foreign Country”, um
clássico nos estudos acerca das múltiplas expressões e manifestações do passado no âmbito da
Geografia. O passado nos circunda e confere sentido ao mundo ao nosso redor, de modo que a
sua constatação se torna essencial para nosso bem-estar, bem como na compreensão de nossa
existência. O passado nos cerca e nos preenche; cada cenário, cada declaração, cada ação
conserva um conteúdo residual de tempos pretéritos” (LOWENTHAL, 1998, p. 64).
Seja querido ou rejeitado, celebrado ou apagado, rememorado ou esquecido, o passado
está sempre conosco, atuando como base de nossas experiências e compreensões presentes.
“Toda consciência atual se funda em percepções do passado; reconhecemos uma pessoa, uma
árvore, um café da manhã, uma tarefa, porque os vimos ou experimentamos”
(LOWENTHAL, 1998, p.64). O passado é parte indissociável de nossa existência e da
compreensão de nossas identidades subjetivas e/ou coletivas. O passado está em todo o lugar,
como Lowenthal (1985b) sugere, pois se manifesta e expressa em e por meio de lugares
particulares, compondo a nossa geograficidade, em outros termos, o constante existir em um
envolvimento profundo e inextricável com a Terra como nosso lar e morada (DARDEL, 2011).
Ainda que se manifeste nos lugares e relações tecidas em nosso constante presente, o
passado se expressa como residual e fugidio; dele captamos acontecimentos fragmentados,
muitas vezes seletivos, efêmeros e/ou marcados por um caráter nostálgico, de modo que
dificilmente o compreenderemos tão bem quanto o nosso presente (CORRÊA, 2018).
Embora não consigamos apreender o passado em sua totalidade, como aquilo que de
fato foi, existem pontes ou elos que nos remetem a ele; resíduos criados em tempos pretéritos
(LOWENTHAL, 1985b). Se o passado é um país estrangeiro, como supõe o título da obra de
Lowenthal (1985b), existem maneiras de se conseguir um visto para nele adentrarmos, ou, ao
menos, tentarmos adentrar.
Dentre as muitas formas de acesso ao passado, a memória se inscreve como uma
evocação presente de lembranças e esquecimentos de vivências pretéritas, servindo como base
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nas investigações sobre esta dimensão de nossa existência. A memória, em linhas gerais, trata-
se do passado vivido, reelaborado e representado na instância de um sujeito ou grupo (LE
GOFF, 2003). Embora possa ser tratada como um fenômeno social bastante abstrato e subjetivo,
a memória pode se encontrar ancorada em lugares (SEEMANN, 2003). Assim, “lugares
concretos, onde se realizam eventos, acontecimentos históricos ou práticas cotidianas [...]
podem servir como possíveis referenciais espaciais para a memória” (SEEMANN, 2003, p. 44).
Tal qual a memória pode ser entendida como o passado vivido, o lugar também pode
ser compreendido como o espaço apreendido em e por meio de nossas experiências
intersubjetivas (MARANDOLA JR., 2012; TUAN, 2013). Lugar, na perspectiva da Geografia
Cultural-Humanista, não se refere apenas a uma mera localização, mas a uma parcela do espaço
dotada de valor para as pessoas que desenvolvem com e por este um elo de pertencimento
(RELPH, 1976; TUAN, 2011; 2013). Lugar e memória guardam uma estreita relação entre si,
e é exatamente esta relação que o presente artigo procura discutir.
O objetivo deste trabalho é investigar as relações entre lugar e memória a partir de um
viés cultural-humanista em Geografia, estabelecendo como campo de estudos o registro e
interpretação de histórias de vida de idosos residentes em uma Unidade de Conservação de
Proteção Integral situada na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, o Parque Estadual da
Pedra Branca (PEPB). Procuramos examinar neste trabalho como, através da narrativa das
histórias de vida dos idosos, construídas por meio da evocação de suas memórias, é possível
descortinar múltiplas experiências e sentidos de lugar que emergem como facetas do passado
re-vivido e re-elaborado. Pretendemos, de tal forma, apontar em direção ao caráter espacial das
memórias como inscrito a partir da construção e manifestação de sentidos de lugar dos idosos
residentes no PEPB.
Para tanto, no primeiro e segundo tópicos deste artigo buscamos discutir a
compreensão dos conceitos de memória e lugar no âmbito da Geografia Cultural-Humanista,
enquadrando-os como elementos indissociáveis de nossa experiência de mundo e
geograficidade. Reservamos um terceiro tópico para a exploração da reconstrução das histórias
de vida de idosos residentes no PEPB, e o papel destas em um estudo de caráter geográfico. No
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quarto tópico deste artigo, propomos um debate a respeito do modo como as relações entre
lugar e memória são tecidas no contexto das experiências dos idosos residentes do PEPB,
apontando para a mobilização de memórias de/do lugar como estratégia de permanência destes
sujeitos no contexto das mediações afetivas-políticas acerca de seus elos de pertencimento a
uma Unidade de Conservação de Proteção Integral.
Lugar e memória na perspectiva da experiência
Vivemos em um mundo marcado pela presença de lugares significativos (RELPH,
1976). A forma como edificamos nossas identidades, como nos relacionamos com as pessoas
ao nosso redor, bem como compreendemos a nossa própria existência permanece implicada
com o entendimento dos lugares que habitamos, percorremos, imaginamos, sonhamos ou
desejamos conhecer (TUAN, 2013). A palavra lugar, embora tratada a partir do senso comum
enquanto sinônimo de local ou localização, trata-se de um dos conceitos centrais da abordagem
geográfica, tendo sido objeto de debate por meio de diferentes perspectivas no âmbito deste
campo do saber (CRESSWELL, 2004).
Dentre as numerosas definições propostas para o termo, lugar pode ser compreendido
como um centro de significados construído em e por meio da experiência intersubjetiva de
mundo (RELPH, 1976; TUAN, 2011, 2013, 2018). Tal definição, atribuída pela perspectiva
cultural-humanista em Geografia, alça o lugar como mais que simplesmente sinônimo de local,
um ponto abstrato identificável em um mapa. Enquanto um centro de significados, o lugar é
“conhecido não apenas através dos olhos da mente, mas também através dos modos de
experiência mais passivos e diretos, os quais resistem a objetificação” (TUAN, 2018, p. 5-6).
Nesta visão, o lugar manifesta-se como uma parcela do espaço geográfico que tenha significado
para uma pessoa ou grupo. De acordo com Tuan (2011, 2013), é a partir da experiência que
vertemos o espaço indiferenciado em lugar significado. A experiência é a base da construção
de sentidos de lugar (OLIVEIRA, 2012; TUAN, 2013). De acordo com Tuan,
A experiência implica a capacidade de aprender a partir da própria vivência.
Experienciar é aprender; significa atuar sobre o dado e criar a partir dele. O dado não
pode ser conhecido em sua essência. O que pode ser conhecido é uma realidade que é
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um constructo da experiência, uma criação de sentimento e pensamento (TUAN,
2013, p. 18).
De acordo com o geógrafo Edward Relph (1976), por encarnarem os sentimentos, as
vivências, as aspirações e experiências humanas mais profundas, os lugares aos quais nos
sentimos pertencer se apresentam enquanto elementos indispensáveis em nossa apreensão de
mundo e na construção de nossa identidade. Nas palavras do autor, “ser humano é viver em um
mundo cercado de lugares significativos: ser humano é ter e conhecer seu lugar” (RELPH, 1976,
p. 1).
Nesta perspectiva, o lugar é entendido a partir de um envolvimento profundo com a
existência humana, posto que existir significa ter um lugar, uma base a partir da qual se funda
um sentido de “si-mesmo” e o próprio lugar passa a ser definido em relação aos sujeitos que se
sentem pertencer a ele (CASEY, 2001). Segundo Relph:
Os lugares são expressões fundamentais do envolvimento humano no mundo, e,
portanto, confere significado ao espaço [...] Lugares são, de fato, o alicerce da
existência humana, providenciando não apenas o contexto de todas as atividades
humanas, mas também segurança e identidade para o indivíduo ou grupo (RELPH,
1973, p. 62 apud ENTRIKIN, 1976, p. 626).
De acordo com Relph (1979), conhecemos e habitamos o mundo, mesmo de um modo
pré-consciente, através dos lugares nos quais vivemos ou temos vivido, lugares que clamam
nossas afeições e obrigações” (RELPH, 1979, p. 16). Neste contexto, os “lugares o
existenciais e uma fonte de auto-conhecimento e de responsabilidade social(RELPH, 1979, p.
16).
Adotar tal perspectiva nos permite argumentar que o lugar se manifesta e se expressa
como dimensão existencial de nosso ser-estar no mundo, envolvendo, de tal forma, aquilo que
o geógrafo Eric Dardel (2011) propôs enquanto “geograficidade”, qual seja, uma relação
concreta que liga o homem à Terra como modo próprio de sua existência. Neste sentido, é no
lugar que o homem encontraria o ponto central de referência existencial a partir do qual
descortinaria o mundo ao redor. É no lugar e por meio deste que a “geograficidade” é vivida
em sua plenitude, incorporando um elo visceral entre o homem e a Terra. O lugar seria, na
compreensão de Dardel (2011), um suporte para o nosso ser, refúgio ou base onde se assenta
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nossa existência, de forma que a realidade geográfica seria para o ser humano os lugares que
participam de sua vida. Nas palavras de Dardel:
É desse “lugar”, base de nossa existência, que, despertando, tomamos consciência
do mundo e saímos ao seu encontro, audaciosos ou circunspectos, para trabalhá-lo
[...] Existir é para nós partir de lá, do que é mais profundo em nossa consciência, do
que é “fundamental”, para destacar no mundo circundante “objetos” aos quais se
reportarão nossos cuidados e nossos projetos. Elemento não abstrato ou conceitual,
mas concreto. Antes de toda escolha, existe esse “lugar” que não pudemos escolher,
onde ocorre a “fundação” de nossa existência terrestre e de nossa condição humana.
Podemos mudar de lugar, nos desalojarmos, mas ainda é a procura de um lugar; nos
é necessária uma base para assentar o Ser e realizar nossas possibilidades, um aqui
de onde se descobre o mundo, um lá para onde iremos (DARDEL, 2011, p. 40-41).
Como dimensão de nossa geograficidade, lugar implica tanto nossa existência situada
em sua espacialidade, quanto em sua temporalidade. Como defende Dardel (2011, p. 33), “toda
espacialização geográfica, porque é concreta e atualiza o próprio homem em sua existência e
porque nela o homem se supera e se evade, comporta também uma temporalização, uma
história, um acontecimento”. Em nossas experiências de lugar situamos nossa existência em
projetos futuros, mas também invocamos recordações e lembranças, ligando-nos ao nosso
passado como fonte de autoconhecimento e identificação. Lugar, portanto, incorpora o espaço
como vivido, e tempo como apreendido pela memória, de modo que a relação entre estas
dimensões se torna fundamental para compreensão de nossa existência em sua imbricação com
o mundo.
De acordo com Lowenthal (1985b), a noção de memória remete à faculdade de
conservar e lembrar acontecimentos e experiências adquiridas em tempos pretéritos. Por meio
da memória, recordamos experiências passadas, nos ligando a uma noção “si-mesmo” anterior,
de modo que recordar o passado se torna crucial para construção de um sentido de continuidade
(LOWENTHAL, 1985b). Todavia, embora possa ser considerada como uma faculdade mental
associada à capacidade de reter informações passadas, a memória também se trata de um
fenômeno por meio do qual o ser humano vivencia e re-apresenta experiências sobre aquilo que
compreende como sendo o seu passado (LE GOFF, 2003).
Em linhas gerais, portanto, podemos considerar que a memória implica uma presença
do passado (ROUSSO, 2006), de modo que se torne possível afirmar que “toda consciência do
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passado está fundada na memória” (LOWENTHAL, 1998, p. 75). As lembranças que compõem
a memória são fontes importantes para se conhecer e investigar o passado, atuando, também,
na forma como estruturamos um sentido presente de mundo.
De maneira contrária ao que o senso comum por vezes faz crer, a memória não é uma
imagem exata do passado. Por meio da memória não emulamos o passado como aquilo que ele
foi, mas sim, sua reconstrução a luz de experiências, vivências e interpretações presentes, bem
como, neste movimento, recordamos a nós mesmos nos atualizando através da vivência do
passado (BOSI, 1979; SOKOLOWSKI, 2012).
Tais argumentos não implicam, todavia, em defender que a memória se resume única
e exclusivamente a um fenômeno temporal ou como simples faculdade abstrata situada na
mente do sujeito recordante. Assim, como um sentido de existência é indissociável de nossa
compreensão do passado e, de forma mais ampla, da temporalidade de nosso ser, este também
se encontra intrinsicamente conectado à compreensão de nossa espacialidade (LOWENTHAL,
1985b).
Segundo Malpas (2018), as memórias, em especial aquelas que possuem um forte
componente pessoal e autobiográfico, se encontram atreladas a lugares específicos. Nas
palavras do autor, “o fato de muitas vezes nos lembrarmos de pessoas em relação a lugares e
seus arredores específicos, em poses ou estados de espírito característicos que implicam uma
determinada situação, exemplifica este fenômeno mais geral” (MALPAS, 2018, p. 180). Isto
posto, as memórias, sejam elas individuais ou coletivas, são frequentemente associadas a
lugares (MALPAS, 2018), de maneira que a sua manutenção e evocação dependem, muitas
vezes, de referenciais espaciais onde se realizaram acontecimentos históricos ou mesmo
eventos cotidianos, nas palavras de Pierre Nora (1993), lugares de memória que clamam nossa
atenção.
Como destaca Lowenthal (1975), a existência de lugares de densidade mnemônica é
um elemento importante para a manutenção de um sentimento de segurança e continuidade.
Dependemos das memórias para a construção de um sentido de existência, assim como
dependemos da presença de lugares envoltos de memória, em outros termos, dependemos de
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BRUM, Jean Lucas da Silva. Explorando memórias de lugar e lugares de memória através de histórias de vida de idosos residentes na Serra
de Piabas, situada no Parque Estadual da Pedra Branca, Cidade do Rio de Janeiro -RJ. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº 16,
pp. 75-97, janeiro-abril de 2022.
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lugares de memória, como pontos de referência para edificação e comunicação de memórias
coletivas e/ou individuais, tanto quanto os lugares também são edificados por meio de memórias
que os envolvem em significados.
O caráter geográfico das histórias de vida
Dentre as variadas maneiras pelas quais é possível investigar aspectos a respeito das
memórias de uma pessoa ou grupo social, a história de vida se destaca como um método e/ou
abordagem privilegiada nos estudos que elencam esta expressão do passado como objeto de
interesse.
De acordo com Blunt (2003, p. 71), “o termo ‘história de vida’ é deliberadamente
amplo e abrange o estudo das pessoas em suas próprias palavras”, utilizando-se, para isto, de
recursos textuais como diários, cartas, relatos de viagem, ou mesmo através do contato pessoal,
por meio de entrevistas individuais ou em grupo, pesquisas etnográficas, conversas informais,
entre outros. Neste contexto, a história de vida pode ser considerada como um método de
pesquisa centrado no registro da biografia de um indivíduo/grupo a partir da forma como este
a procura narrar (JACKSON; RUSSELL, 2010).
Contudo, mais que uma ferramenta para o registro de acontecimentos, a história de
vida tem sido utilizada como estratégia para compreender e interpretar experiências e memórias
como narradas pelas pessoas, sejam estas figuras públicas ou sujeitos cujas vidas poderiam
permanecer marginalizadas ou até mesmo invisíveis (BLUNT, 2003). Portanto, tal método
permite um levantamento de registros íntimos, que não constam em uma história ou narrativa
oficial, o que possibilita um mergulho naquilo que Blunt (2003) denominou “histórias
escondidas” (hidden histories), qual seja, registros apagados ou suprimidos, de forma
intencional ou não, servindo como ferramenta para conferir voz e vez a grupos subalternizados
narrarem suas próprias histórias. Tratam-se de narrativas de fatos cotidianos, como das relações
com a família e a vizinhança, das atividades laborais e de lazer, dos objetos e pessoas que
constituem um acervo de lembranças individuais em grande parte, embora articuladas com
eventos e contextos sociais e históricos mais amplos.
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No entanto, mais do que permitir um mergulho em uma “história escondida”, como
argumenta Blunt (2003), atendendo aos projetos típicos do campo de estudos da história oral, a
utilização das entrevistas em história de vida possibilita o acesso e aprofundamento a vivências
e experiências passadas, reconstruídas e reelaboradas através das narrativas de lembranças de
fatos que competiam ao cotidiano dos sujeitos recordantes. Tratam-se, mais do que narrativas
situadas em um tempo histórico, no resgate da memória introjetada nos lugares vividos,
revelando a geograficidade destes sujeitos e a construção de suas identidades edificadas e
comunicadas nesta relação indissociável com os lugares.
Desta forma, por enfocar as experiências e memórias das pessoas da forma como estas
a procuram comunicar através da reconstrução de suas trajetórias de vida, a história de vida
apresenta um enorme potencial de exploração a partir de pesquisas em Geografia Cultural-
Humanista, uma vez que esta se preocupa com os aspectos subjetivos, os significados, os afetos
que emergem da espacialidade humana (MELLO, 1990; HOLZER, 2012). Como defende
Lowenthal (1985a), as abordagens culturais e humanistas redirecionam o olhar da geografia
para os saberes dos próprios sujeitos observados, entendendo-os como geógrafos informais e,
portanto, os mais adequados para enunciarem seus sentimentos, valores, significados e
entendimento a respeito do(s) lugar(es).
Embora este método possibilite a exploração de uma miríade de temas, a partir de
diversas abordagens, neste trabalho, empenhamo-nos em utilizar a história de vida para
compreender as articulações entre lugar e memória na experiência de residentes na comunidade
da Serra de Piabas, uma localidade situada dentro dos limites do Parque Estadual da Pedra
Branca, na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, em especial os sujeitos idosos.
Como moradores mais antigos da localidade, os idosos são verdadeiros registros vivos
da história e ocupação do lugar, tendo presenciado e vivido suas transformações ao longo do
tempo. Tal qual narradores, estes, por meio da transmissão de suas lembranças acerca do lugar,
contribuem para a manifestação e reprodução de uma memória viva, em movimento.
Do ponto de vista societário, os idosos cumprem um papel fundamental, o de recordar.
Para a socióloga Ecléa Bosi (1979), ao lembrar o passado, o idoso “não está descansando, por
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um instante, das lides cotidianas, não está se entregando fugitivamente às delícias do sonho: ele
está se ocupando consciente e atentamente do próprio passado, da substância mesma da sua
vida” (BOSI, 1979, p. 60). A exploração da narrativa da trajetória de vida destes idosos nos
permite, portanto, não apenas tentar retraçar uma história local como apreendida por estes
sujeitos, mas entender as próprias articulações entre memória e lugar como modo próprio de
sua geograficidade.
Memórias de lugar e lugares de memória do PEPB
Situado na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, o Parque Estadual da Pedra Branca
compreende todas as áreas acima da cota altimétrica de 100 metros de altitude do Maciço da
Pedra Branca e seus contrafortes, estendendo-se sobre 17 bairros cariocas - Jacarepaguá,
Taquara, Camorim, Vargem Pequena, Vargem Grande, Recreio dos Bandeirantes, Grumari,
Jardim Sulacap, Realengo, Padre Miguel, Bangu, Senador Camará, Santíssimo, Campo Grande,
Senador Vasconcelos, Guaratiba e Barra de Guaratiba.
A localidade na qual este estudo se desenvolve compreende uma pequena comunidade,
denominada por seus moradores como “Serra de Piabas” ou “Morro de Piabas”, encravada na
vertente sul do PEPB, entre os bairros do Recreio dos Bandeirantes e do Grumari. De acordo
com a população local, o topônimo é atribuído em referência ao rio Piabas, que drena as
vertentes do maciço da Pedra Branca na localidade, sendo principal responsável pelo
abastecimento de água dos residentes, caracterizado, em tempos pretéritos, pela abundância do
peixe Piaba (leporinus obtusidens).
A Serra de Piabas abriga 18 famílias, a maioria já estabelecida na localidade antes de
sua inclusão dentro dos limites do PEPB, nos anos 1970, ou compostas por descentes de
residentes anteriores ao parque. A localidade pode ser acessada através da Estrada do Grumari,
logradouro que liga os bairros do Recreio dos Bandeirantes, iniciando-se na altura da Estrada
do Pontal, ao bairro de Guaratiba.
A partir de uma perspectiva centrada em sua composição paisagística, a Serra de
Piabas compreende um fragmento remanescente do bioma Mata Atlântica, apresentando áreas
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em bom estado de conservação entremeadas por áreas recobertas por cultivos agrícolas, em
especial, a banana, principal marca da ruralidade que caracteriza o habitar da população local.
A localidade conta ainda com alguns córregos e mirantes naturais, tornando-a destino de
práticas de lazer, como caminhadas e desfrute da paisagem por parte da população dos bairros
adjacentes, bem como lócus de disputas a respeito de sua apropriação e das representações
construídas e veiculadas por diversos atores sociais.
A comunidade apresenta fortes traços rurais, tanto da presença de atividades de caráter
agrícola para a subsistência e reprodução socioeconômica dos moradores, em especial a lavoura
de banana, quanto das relações sociais que se estabelecem na escala local. Seu processo de
ocupação remonta ao período em que a localidade integrava a zona rural da municipalidade do
Rio de Janeiro, marcada, consequentemente, pela presença de uma população de perfil rural
“com forte relação de dependência dos recursos naturais locais na garantia de seu sustento e
reprodução social” (FERNANDEZ, 2016, p. 132).
Uma parcela significativa das memórias reconstruídas através das narrativas em
histórias de vida dos idosos residentes no que hoje compreende o PEPB são direcionadas
justamente ao reconhecimento das práticas rurais como elemento de um caráter distintivo do
lugar frente aos bairros adjacentes, o que reflete, fortemente, esta condição rural na edificação
dos sentidos de lugar por estes sujeitos. Mais do que simplesmente fonte de subsistência, estas
práticas, como o cultivo da banana e o trabalho no roçado de milho, aipim e café, a criação de
animais, como galinhas, cabras e porcos, bem como o leque de atividades por estas envolvidas,
quais sejam, a produção de farinha artesanal e os processos de separação, secagem, torrefação
e pilagem do café, compõem o acervo de recordações dos idosos residentes na Serra das Piabas,
tornando-se, desde modo, elemento na construção da experiência de lugar. Tal compreensão se
exemplifica na fala de M. (mulher de 70 anos de idade), que, ao narrar as recordações de sua
infância vivida na Serra de Piabas, assevera o trabalho na lavoura como parte de seu cotidiano.
A gente trabalhava muito né. Meu pai tinha ceva de porco. Usava também muita carne
de porco. Criava muita galinha. Meu pai fazia farinha e distribuía para as pessoas.
Fazia farinha. Ele era lavrador. Meu pai fazia muita farinha. Aí, juntava os vizinhos
todos pra poder fazer a “meia” [divisão] né. Cada um, depois que acabasse, levava um
pouco pra casa. E era trabalho. Eu sei que s trabalhamos muito. Todo mundo.
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Era fogão de lenha. Tinha que pegar lenha. Era burro pra cuidar. Pegar capim. Era
muita coisa que a gente fazia. E eu acho que antigamente era muito mais proveitoso
do que hoje em dia. [....] Aqui era roça pura. Meu pai tinha de tudo. Era café. Era cana.
Tudo quanto é tipo de fruta que você puder imaginar. Mas não vendia nada. a
banana. vendia a banana. Muita banana. Banana prata, banana d’água, banana
maçã. vendia banana. Que o restante tudo era pra gente e pra dividir com os
vizinhos que ajudavam (M.; ENTREVISTA CONCEDIDA EM 03/10/2021).
A partir do fragmento exposto, convém destacar que, por se referir à existência
humana, o lugar não se constitui apenas do conjunto de objetos materiais localizados no espaço,
mas, também, das práticas sociais ativas que mantém com o lugar uma relação de co-produção
e dos significados que a ele são atribuídos (ENTRIKIN, 1976; RELPH, 1976; CRESSWELL,
2009). Nas palavras de Relph (1976, p. 141), os lugares englobam uma ordem natural e humana,
são “centros significativos de nossas experiências imediatas de mundo”. Desta forma, os
lugares não são meramente abstrações ou conceitos, mas “fenômenos experimentados
diretamente do mundo vivido e, portanto, estão repletos de significados, de objetos reais e de
atividades em andamento” (RELPH, 1976, p. 141).
Mais do que uma descrição pura e objetiva do lugar e de seu passado, as histórias de
vida dos idosos nos permitem desvelar a dimensão sensível na apreensão do parque enquanto
lar e morada, despertando sensações e sentimentos que estão na base da experiência de lugar
como manifestada pela memória. Como argumenta Dardel, “a cor, o modelado, os odores do
solo, o arranjo vegetal se misturam às lembranças, com todos os estados afetivos, com as ideias,
mesmo com aquelas que acreditamos serem as mais independentes” (DARDEL, 2011, p. 34).
As lembranças narradas nos revelam texturas, sons, odores e sabores como elementos
introjetados nas experiências de lugar dos sujeitos recordantes, de modo que as memórias do
lugar são para estes “o canto dos passarinhos, barulho de grilo a noite, bicho no mato, tudo isso
a gente ouve aqui no lugar”, como nas palavras de S. (homem de 93 anos de idade), “aquele
cheirinho de lenha queimando, no fogão de lenha.”, como narra J. (homem de 60 anos de idade),
ou “o leite de cabra, café e a farinha. Esse era meu café da manhã. Farinha feita aqui. Como era
gostosa aquela farinha”, como descrito por M.
De acordo com o filósofo Paul Ricouer (2007, p. 53), “não nos lembramos somente de
nós, vendo, experimentando, aprendendo, mas das situações do mundo, nas quais vimos,
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experimentamos, aprendemos”. Estas situações, discorre o autor, “implicam o próprio corpo e
o corpo dos outros, o espaço onde se viveu, enfim, o horizonte do mundo e dos mundos, sob o
qual alguma coisa aconteceu” (RICOUER, 2007, p. 53). Isto é, a memória envolve o lugar não
apenas em um sentido estreito de localização, de maneira que as memórias ocorram ou remetam
a um local específico, mas em uma dimensão mais profunda e sensível, do lugar como base na
qual se assenta nossa existência. Nas palavras do autor:
Lembro-me de ter gozado e sofrido em minha carne, neste ou naquele período de
minha vida passada; lembro-me de ter, por muito tempo, morado naquela casa daquela
cidade, de ter viajado para aquela parte do mundo, e é aqui que eu evoco todos esses
lás onde eu estava. Lembro-me da extensão daquela paisagem marinha que me dava
o sentimento de imensidão do mundo. E, quando da visita àquele sítio arqueológico,
eu evocava o mundo cultural desaparecido ao qual aquelas ruínas remetiam
tristemente. (RICOUER, 2007, p. 57).
Nesta seara, a casa de infância destaca-se como palco privilegiado das histórias de vida
narradas pelos idosos, tornando-se, em vista disto, um lugar de memória (NORA, 1993), veículo
responsável pelo adensamento das memórias que transformam o lugar mais do que o ponto de
morada, mas sim, lócus onde se desenrola a experiência e vivência de mundo, lar onde se funda
a compreensão de ser. De acordo com Mello (2012), a casa da infância se destaca como o
cenário dos dramas da vida, “revestida de sua originalidade, solidez e encantamento por um
desfile de festas de aniversário, casamentos, celebrações natalinas, bem como toques, cheiros,
pinturas, ora vibrantes, ora esmaecidos e mapas íntimos” (MELLO, 2012, p. 59), se inscreve
em nós como reservatório de recordações. Neste sentido, a casa de infância é o lugar onde se
desenrola uma parcela significativa das relações e acontecimentos que figuram na narrativa dos
sujeitos recordantes, como expressam os relatos de S. e B. (mulher de 81 anos de idade):
Eu vivia na casa do meu avô. Tião, meu filho, estava roçando o bananal e eu acho que
ele já passou da cava [alicerce] da casa. Deve estar limpo lá. Tem uma jaqueira e logo
acima tem a entrada da casa. Não sei como está aquilo hoje, já tem tempo que eu não
vou lá. Mas era tudo calçadinho de pedra, até em cima no lugar onde ficava a casa.
Havia um baldrame, assim, um muro dessa altura mais próximo do caminho. E a casa
era pra cima daquele muro. Uma casa grande. Tinha três quartos e uma sala de dançar,
onde faziam os bailes. Uma sala grande de dançar. A cozinha era separada da casa.
Era cozinha de lenha, onde fazia as comidas. E do outro lado ficava o trem de farinha.
A casa tinha uma roda de ralar a mandioca e, onde tem um monte de pedra, era o forno
de mexer farinha. A casa era de estuque. Acabei desmanchando a casa e plantei banana
por cima. Mas era uma casa muito bonita. Lembro direitinho dela (S.; ENTREVISTA
CONCEDIDA EM 30/04/2018).
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Eu me lembro quando morava lá pra cima, na casa lá de cima. Perto de A. e de E. Era
tão bom. Era tão divertido. A gente brincava até a noite. As vezes anoitecia e a gente
estava brincando. Pulava corda, brincava de balanço, brincava de roda. Mas era muito
bom. Era divertido. Eu gostava à beça. Às vezes, eu fico assim pensando que tudo se
acaba. Tudo se acaba. Depois que a gente cresce, se casa, um vai para um lado, o outro
vai pra outro. Aí, vai se acabando. Acabando. Entristece à beça. [...] Muita gente saiu.
Sabe, eu fico tão triste. onde minha mãe morou eu não vou mais. Agora eu
vejo mato onde era a casa. Não vejo mais nada. Aquele fogãozinho de lenha. Chegava
e ela fazia o cafezinho pra gente. Era tão bom. Eu chegava e ela fazia o cafezinho.
Botava no fogo. Cafezinho de lenha. Cafezinho tão gostoso. A gente se lembra de
tudo. Era tudo limpo. O meu pai cavava aquele caminho de baixo. De de baixo
até lá em cima no alto. Ele cavava e tirava a terra todinha. Não ficava um só mato. Só
trabalhava no sítio dele. Então aquilo era limpinho até em cima. Dava gosto de
andar (B.; ENTREVISTA CONCEDIDA EM 22/04/2018).
Em ambos os relatos é possível entrever o peso da casa de infância na reconstrução
das memórias como um núcleo de significado e valor, animado pelas recordações das pessoas
que ali viveram ou visitaram, das celebrações e bailes que por ocorreram, das brincadeiras
que se desenrolavam, dos cheiros e sabores dos cafés preparados e compartilhados, de sua
estrutura que, embora transformada no decorrer do tempo, resiste na memória. De acordo com
Tuan (2013), tais acontecimentos, embora denotem a simplicidade da vida cotidiana, com o
tempo podem se transformar em um profundo sentimento de afeição e pertencimento pelo lugar.
Recorrendo a Tuan (2013), podemos compreender, no caso dos relatos destacados, a casa de
infância como um lugar íntimo, qual seja, o lugar no qual se desenrolam experiências privadas
e trocas que se manifestam na intimidade entre as pessoas. Para o autor, tais lugares “podem
ficar gravados no mais profundo da memória e, cada vez que são lembrados, produzem intensa
satisfação” (TUAN, 2013, p. 173).
Neste sentido, a apreensão do desaparecimento concreto da casa de infância frente ao
avanço da cobertura vegetal, nas palavras de B., a invasão da casa pelo “mato”, reveste o lugar
por um sentimento de tristeza decorrente de sua perda, expressa no relato destacado por frases
como “tudo se acaba”, “Aí, vai se acabando” e “Entristece à beça”. Esta compreensão, longe
de ser um dado isolado, carrega consigo uma perspectiva nostálgica como elemento comum nas
recordações narradas pelos idosos da Serra de Piabas.
De acordo com Lowenthal (1975), a nostalgia, mais do que um sentimento de apego a
um passado seletivo, edificado por meio de recordações positivas frente às transformações
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impostas pelo tempo presente, se refere a uma das facetas pelas quais o ser humano se relaciona
com o seu passado, tornando-se elemento importante na edificação das experiências de lugar.
Desta forma, o caráter nostálgico a partir do qual se estruturam as memórias de lugar dos idosos
da Serra das Piabas não remete de forma simples a uma comparação ingênua entre um passado
iluminado por recordações que denotam um sentimento topofílico, para se utilizar do termo
cunhado por Tuan (2012), e um presente obscurecido pelas transformações concretas e
simbólicas do lugar, mas também como uma resposta as reconfigurações impostas quanto da
transformação de seu lar e morada em uma área de proteção ambiental, representada pela figura
institucional do parque. Neste sentido, a memória se torna uma ferramenta nos processos de
contestação política à figura institucional do parque, bem como elemento de resistência
cotidiana dos residentes.
Desta forma, a transição de parte da antiga zona rural para Unidade de Conservação
de Proteção Integral implicou na criação e imposição de uma série de normas e regras como
base nos processos de apropriação do lugar, tornando, inclusive, a presença de residentes como
uma condição de divergência com o que determina o ordenamento no qual a categoria parque
se insere.
Neste sentido, a constituição do PEPB impôs formas de uso divergentes daquelas
localmente realizadas, se sobrepondo a dinâmicas sociais pré-existentes. Ainda que a criação
do PEPB tenha se destacado como uma importante estratégia ambiental diante do avanço da
urbanização via especulação imobiliária, atuando como um instrumento na proteção dos
recursos naturais ali presentes (FERNANDEZ, 2009), sua implementação representou para a
população residente a incidência de um conjunto de regras e normas de caráter restritivo às suas
formas históricas de reprodução socioeconômica e cultural, modificando significativamente sua
relação com o/no lugar, além de se apresentar enquanto um elemento de ameaça à sua
permanência dentro dos limites oficiais do parque.
No ato de sua criação, através da promulgação da Lei Estadual 2.377, de 28 de junho
de 1974, se previa a desapropriação de toda a área abrangida pelo PEPB, reforçando sua
consideração enquanto um espaço de posse e uso públicos, de forma que as ocupações
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anteriores ao seu estabelecimento deveriam ser cadastradas a fim de promover a regularização
de sua situação fundiária mediante sua remoção ou realocação fora dos limites do parque.
Afora a tensão sobre o direito de permanência, a instituição de um conjunto de normas
no processo de edificação do PEPB, quando não inviabilizaram as formas de reprodução
econômica e social da população residente, fizeram com que esta tivesse que se adaptar aos
novos usos. Uma vez incluído no grupo de Unidades de Conservação de Proteção Integral,
como definido pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), é permitido apenas
o uso indireto de atributos naturais, sendo vetado o consumo, coleta, dano ou destruição dos
recursos ambientais (BRASIL, 2000) inseridos dentro dos limites do PEPB, o que, a tulo de
exemplo, impossibilitaria a captação de água para consumo e uso doméstico, ou mesmo o uso
de recursos minerais ou florestais para a realização de reparos nas trilhas ou residências
existentes.
Dentre as normas gerais de uso do PEPB, presentes em seu plano de manejo, destacam-
se a proibição da realização de quaisquer atividades ou ações que venham a impactar o meio
ambiente no interior desta Unidade de Conservação; da retirada total ou parcial de qualquer
planta, exemplar de fauna ou amostra mineral sem a autorização expressa dos órgãos gestores;
da introdução ou da reintrodução de espécies de flora e/ou fauna silvestre quando não
autorizadas pelo setor responsável do Instituto Estadual do Ambiente (INEA)
; da construção
de quaisquer obras de engenharia que não sejam de interesse direto dos órgãos gestores; da
entrada, uso e criação de animais domésticos ou de plantios agrícolas nas unidades, salvo nas
propriedades rurais não desapropriadas, quando permitido pelo setor responsável do INEA; da
introdução de espécies de fauna ou flora exóticas no interior da Unidade de Conservação.
Em meio à narrativa de suas memórias, J. destaca que a criação do PEPB se apresenta
como um dos motivos pelos quais uma parcela significativa dos antigos moradores da Serra das
Piabas resolveu abandonar a localidade. Tendo atuado na lavoura durante sua juventude e início
da vida adulta, J. assevera que, embora a criação do parque tenha acarretado benefícios
Órgão responsável pela administração e gestão do Parque Estadual da Pedra Branca.
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ambientais, esta, também provocou uma série de transformações das práticas locais, levando a
uma reconfiguração da própria compreensão e experiência deste frente ao lugar.
Hoje você não tem mais a oportunidade de trabalhar como se trabalhava.
Antigamente, falecido papai abriu, dentro dessa mata aí, uma roça. Dentro dessa mata.
[...] A evolução traz benefícios, mas tira também muita coisa do pessoal que é da roça.
Pra quem é da roça, a evolução tira muita coisa. Você vê? Naquele tempo você podia
chegar e fazer uma derrubada e fazer uma lavoura, pra plantar um aipim, um milho,
um feijão. Até mesmo pra você sobreviver ou vender mesmo, que o pessoal aqui
vendia. Hoje você não pode fazer. Não pode. Como vai fazer? Tem que deixar virar
mata. Floresta. Tá virando floresta. E vem cada vez tomando conta de tudo. As coisas
vão brotando e você não pode derrubar. Mas, também é benefício, não é? Porque a
gente tem um ar puro, um oxigênio bom. Aqui em cima geralmente não tem poluição.
(J.; ENTREVISTA CONCEDIDA EM 05/01/2019).
Isto posto, afora o caráter afetivo, as memórias de lugar como evocadas pelos idosos
residentes no PEPB são envoltas por um sentido político, expresso tanto na incerteza em relação
à permanência destes sujeitos no contexto de uma Unidade de Conservação de Proteção Integral
quanto aos limites impostos sobre as suas práticas e atividades de reprodução socioeconômica
e cultural. De acordo com Blunt (2003), por meio das histórias de vida as pessoas expressam
seus sentimentos e transmitem as condições de sua vida material, mas também as relações e
mecanismos de poder que permeiam os processos de construção e apreensão de seu lugar. As
memórias que emergem de tais narrativas, entendidas por Pollak (1989) como “memórias
subterrâneas”, qual seja, memórias de contestação diante do apagamento da história de grupos
subalternizados, atuam como elemento na construção de um sentido político de lugar por meio
da história de vida dos idosos do PEPB.
Nesta seara, tais memórias tornam-se ferramenta de contestação por parte dos
residentes, sendo mobilizadas em meio ao que o Scott (2013) denominou enquanto “discursos
ocultos de resistência”. De acordo com Scott (2013), o processo de resistência de grupos
subordinados ocorre não apenas através do enfrentamento direto ou da contestação na arena
pública, mas, por vezes, se manifesta em “microepisódios” da vida cotidiana, numa esfera
privada, constituindo discursos ocultos. Para o autor, tais discursos se revelam através de
tradições e expressões culturais que desafiam simbolicamente as estruturas de poder dominante
sem fazê-lo de forma pública e aberta. Deste modo, cada grupo subordinado elabora, a partir de
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
BRUM, Jean Lucas da Silva. Explorando memórias de lugar e lugares de memória através de histórias de vida de idosos residentes na Serra
de Piabas, situada no Parque Estadual da Pedra Branca, Cidade do Rio de Janeiro -RJ. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº 16,
pp. 75-97, janeiro-abril de 2022.
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sua experiência, um discurso oculto que se apresenta enquanto uma crítica ao discurso dos
grupos dominantes.
No contexto dos residentes do Parque Estadual da Pedra Branca, em especial os idosos,
a defesa de sua permanência nos limites de uma Unidade de Conservação de Proteção Integral
é permeada por discursos ocultos de resistência, recorrendo à memória como ferramenta de
legitimação de sua presença e como forma de contestação simbólica aos limites impostos pela
criação do parque, como revela a fala de C. (homem de 62 anos).
Meu pai já me falava de quando o pai dele morava aqui, e o avô dele também. Eu me
lembro de todas as histórias. De como veio morar aqui, do que plantava, de quem
morava aqui no lugar. A gente já estava aqui antes do parque. Hoje em dia já não pode
fazer muita coisa. Ninguém mais quer continuar plantando, porque, com o parque fica
mais difícil. Daí a gente que continua aqui, que depende disso, tem que fazer quase
que escondido (C.; ENTREVISTA CONCEDIDA EM 10/05/2019).
Desta forma, ao lado do discurso oficial que eleva a localidade à categoria de Unidade
de Conservação de Proteção Integral, emergem discursos ocultos de resistência, enfatizando a
memória como elemento de identificação e coesão com o lugar, entendido, de tal forma, tanto
em uma dimensão afetiva, como centro de significados dotado de valor, quanto de uma
dimensão política, como condição de reprodução social do grupo em questão.
As histórias de vidas de idosos, portanto, dão conta não apenas de uma descrição
objetiva do que entendem como seu passado, mas revelam traços de sua própria geograficidade
(DARDEL, 2011), expressa, sobretudo, pelo desenvolvimento de um profundo elo de
pertencimento ao lugar, desenvolvendo-se no contexto de mediações que são ao mesmo tempo
afetivas, denotando laços topofílicos, mas também políticas, uma vez que coloca
constantemente o direito de permanecer em meio a uma Unidade de Conservação de Proteção
Integral.
Considerações finais
Procuramos demonstrar ao longo deste breve ensaio diferentes modos a partir dos
quais memória e lugar podem se articular em meio a experiência de mundo, tomando como
referência de análise e interpretação histórias de vida de idosos residentes no contexto de uma
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Unidade de Conservação do Proteção Integral, o Parque Estadual da Pedra Branca. Mais do que
simplesmente um espaço territorial e os recursos ambientais nele contidos, como o termo
Unidade de Conservação é definido pelo SNUC (BRASIL, 2000), o PEPB se revela como local
de vida e morada de diversas famílias nele estabelecidas e, no contexto dos idosos situados na
Serra de Piabas, como um lugar, um centro de significados edificado pela experiência, como
defendem os autores da Geografia Cultural-Humanista (RELPH, 1976; TUAN, 2011; 2013).
Segundo Ricouer (2007, p. 59), “os lugares habitados são, por excelência memoráveis.
Por estar a lembrança ligada a eles, a memória declarativa se compraz em evocá-los e descrevê-
los”. Isto posto, a memória se torna um elemento central de referência na edificação de sentidos
de lugar por parte dos idosos residentes no PEPB, de modo que sua evocação coloca em jogo o
complexo processo de apropriação simbólico-afetiva e política que é tecido na escala do lugar.
Nossas experiências do passado, reconstruídas através da memória, podem, portanto,
fornecer a base a para o desenvolvimento de uma profunda relação com o lugar (TUAN, 2013).
Como argumenta Marandola Jr. (2012, p. 228), “é pelo lugar que nos identificamos, ou nos
lembramos, constituindo assim a base de nossa experiência no mundo”. A construção de um
íntimo elo afetivo com o lugar é adensada por lembranças de pessoas ou eventos, servindo como
base para a construção da própria geograficidade. Portanto, a memória é a experiência vivida
que confere significado ao lugar (MARANDOLA JR, 2012).
Neste sentido, a memória torna-se, ao mesmo tempo, veículo na fruição e comunicação
do envolvimento dos sujeitos recordantes com o seu lugar, estando na base da edificação das
experiências de lugar e dos significados a este atribuídos, como também o lugar se revela como
palco privilegiado na evocação destas memórias, servindo como suporte para sua reprodução.
Assim, é por meio do lugar que os idosos residentes no PEPB lembram de eventos
significativos de sua existência, construindo a base da experiência de mundo (MARANDOLA
JR, 2012) e sua própria geograficidade. Deste modo, as experiências passadas, reconstruídas
por meio da evocação da memória, tornam o PEPB um rico centro de significados para estes
sujeitos, denotando sentimentos de pertencimento, afeição e apego, mas, também, sendo motivo
gerador de incertezas quanto à sua permanência.
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de Piabas, situada no Parque Estadual da Pedra Branca, Cidade do Rio de Janeiro -RJ. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº 16,
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
SOUZA, Lucas Kaliel Tavares de Souza. NETO, Romeu Bacelar de Souza. Merleau-Ponty e o primado do corpo como experiência nascente
da paisagem. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº. 16, pp. 98-123, janeiro-abril de 2022.
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SEÇÃO ARTIGOS
MERLEAU-PONTY E O PRIMADO DO CORPO COMO EXPERIÊNCIA
NASCENTE DA PAISAGEM
MERLEAU-PONTY AND THE PRE-EMINENCE OF THE BODY AS AN EARLY
EXPERIENCE OF THE LANDSCAPE
MERLEAU-PONTY Y LA PRIMACIDAD DEL CUERPO COMO EXPERIENCIA
CRECIENTE DEL PAISAJE
Lucas Kaliel Tavares de Souza e Souza1
Universidade da Amazônia (UNAMA),
Pará, Brasil
E-mail: lucaskaliel@protonmail.com
Romeu Bacelar de Souza Neto2
Universidade da Amazônia (UNAMA),
Pará, Brasil
E-mail: rbacelar.souza@gmail.com
Resumo
Neste artigo investigamos a conaturalidade do corpo-paisagem através do rompimento de uma ontologia clássica
para a compreensão de uma ontologia da experncia por intermédio das obras de Merleau-Ponty. Para a reflexão
da paisagem propõe-se: a) discutir os pontos de partidas que compreendem uma ontologia da experncia e ser
bruto, a Terra-corpo-ser-no-mundo serão relacionadas para um desdobramento do pensamento sobre a paisagem
que envolve uma reflexão de um mundo pré-objetivo; b) restituir noções filosóficas que envolvem a conceituação
de paisagem, mediante a relação do visível e aquele que vê, compreender o intermédio da relação que envolvem o
corpo, espacialidade e ser-no-mundo; c) considerar uma breve discussão sobre a não de carne que abre o corpo-
coisa enquanto unidade através disso apreender os desdobramentos do campo da experiência da paisagem em
possibilidade e latência enquanto sentido da presença. Em seus últimos escritos, Merleau-Ponty expressa uma
harmonia originária que envolve a relação corpo-coisa, que compreende uma pré-posse antes de qualquer reflexão
que possa determinar e fixar, o corpo sendo sensível para si que envolve as coisas em sua carne, fazendo-se assim
mundo.
Palavras-chave
Experiência; Fenomenologia existencial; Fenomenologia geográfica; Paisagem.
1
Graduado em Licenciatura Plena em Geografia (UNAMA Universidade da Amazônia).
2
Graduado em Licenciatura Plena em Geografia (UNAMA Universidade da Amazônia).
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SOUZA, Lucas Kaliel Tavares de Souza. NETO, Romeu Bacelar de Souza. Merleau-Ponty e o primado do corpo como experiência nascente
da paisagem. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº. 16, pp. 98-123, janeiro-abril de 2022.
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Abstract
In this article we investigate the connaturality of the body-landscape through the rupture of a classical ontology
for the understanding of an ontology of experience through the work of Merleau-Ponty. For a reflection on the
landscape, we will: a) discuss the starting points that make up an ontology of the experience and of the brute being,
the earth-body-being-in-the-world, will be related to an unfolding of the thought about the landscape which
involves the reflection of a pre-objective world; b) rescue philosophical notions that involve the conceptualization
of landscape, through the relationship between the visible and the one who sees, understanding the intermediary
of the relationship that involves the body, spatiality and being-in-the-world; c) propose a brief discussion on the
notion of flesh that opens the body-thing as a unit, through which the unfolding of the field of experience of the
landscape in possibility and latency as a sense of presence is apprehended. In his latest writings, Merleau-Ponty
expresses an original harmony that involves the body-thing relationship, which includes a pre-possession in the
face of any reflection that can determine and set, the body being sensitive to itself that involves things in its flesh,
thus making the world. Keywords
Experience; Existential phenomenology; Geographic phenomenology; Landscape.
Resumen
En este artículo discutimos el cuerpo como conductor ontológico para despertar una dimensión preobjetiva del
paisaje-experiencia, aportando un reflejo original de la percepción del paisaje frente a las múltiples formas de
abrirse en diálogo con las obras de Merleau-Ponty. Para el autor, el fundamento a priori de aprehender el mundo
sobre lo que vemos encierra una dificultad inherente desde el momento en que cuestionamos sobre el conocimiento
de esta mirada, del mundo y de nosotros. El paisaje, por tanto, entendido como aspecto visible y perceptible del
espacio, es un referente del fenómeno del estar-en-el-mundo, siendo el horizonte exterior el que me hace tener la
indudable certeza de mí mismo como diferencia específica. Nuestro entendimiento, en principio, es desvelar este
mundo circundante que acoge al hombre, cómo este momento vivido del paisaje se une como una forma de ser de
presencia subrayada como un proceso de significado y realización.
Palabras-clave
Experiencia; Fenomenología existencial; Fenomenología geográfica; Paisaje.
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SOUZA, Lucas Kaliel Tavares de Souza. NETO, Romeu Bacelar de Souza. Merleau-Ponty e o primado do corpo como experiência nascente
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Introdução
Este texto tem como fio condutor as implicações filosóficas das obras de Merleau-Ponty
e a aproximação para o esclarecimento do conceito de paisagem, sendo necessário a
compreensão e a relação do que são as dimensões do corpo próprio sobre o mundo perceptivo,
visto que no espaço ele mesmo e sem presença de um sujeito psicofísico não nenhuma
direção, nenhum dentro, nenhum fora” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 275).
Sendo assim, o conceito de paisagem e suas problemáticas fundamentais a respeito sobre
o que é o olhar, o mundo percebido e o corpo próprio são insuficientemente relacionados ao
âmbito filofico, consistindo restritamente aos geógrafos a resolução epistemológica de suas
aplicações científicas, o que recusa a uma abertura teórica sobre a totalidade que come a
estrutura da paisagem (MARANDOLA JR., 2012).
Para Holzer (1998), a insuficiência de reflexões fenomenológicas acerca da temática
paisagem e o erro em considerar o lugar com o mesmo aporte conceitual causam o
encarecimento de uma base epistemológica evidente e sólida para a geografia. O esforço de
trazer uma discussão acerca de uma geografia fenomenológica consiste em estabelecer o estudo
das essências e, principalmente, a correlação do espaço, tempo e o mundo “vívido” incorporado
na atitude descritiva sobre o espaço.
O que destacamos em nosso artigo e inclui em suas reflexões uma abertura do ser-
paisagem é a geografia existencialista de Eric Dardel. Para o autor, a compreensão da paisagem
move-se sobre a inserção do homem no mundo e a afirmação da consideração da experiência
no sentido de síntese de totalidade sempre aberta, definido como a correspondência e
sintonização com o espaço.
A paisagem se unifica em torno de um tonalidade afetiva dominante, perfeitamente
válida ainda que refratária a toda redução puramente científica. Ela coloca em questão a
totalidade do ser humano, suas ligações existenciais com a Terra, ou, se preferirmos, sua
geograficidade original: a Terra como lugar, base e meio de sua realização. Presença atraente
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SOUZA, Lucas Kaliel Tavares de Souza. NETO, Romeu Bacelar de Souza. Merleau-Ponty e o primado do corpo como experiência nascente
da paisagem. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº. 16, pp. 98-123, janeiro-abril de 2022.
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ou estranha, e, no entanto, lúcida. Limpidez de uma relação que afeta a carne e o sangue
(DARDEL, 2011, p. 31).
A paisagem, nesta condição, abre-se a possibilidade do pensar o mundo não como
acabado em si mesmo, mas em constante desdobramento e horizonte ilimitado da existência,
o sendo simplesmente ato estático, e sim, movimento constante que o cessa, e
"verdadeiramente geográfica a não ser pelo fundo, real ou imaginário, que o espaço abre além
do olhar" (DARDEL, 2011, p. 31). Portanto, a geograficidade originária se dando nesses
princípios de horizonte mesmo do cotidiano, a visão e o movimento expressam esses valores
que manifestam a relação geográfica do homem com o mundo, nesta lógica é onde o homem se
inscreve no solo e na paisagem como seu modo de ser, "sua maneira de se encontrar, de se
ordenar como ser individual ou coletivo" (DARDEL, 2011, p. 31), pertencendo, assim, como
expressão fundamental da presença
3
.
Maurice Merleau-Ponty nasceu a 4 de março de 1908 em Rochefort-sur-Mer. foi um
filósofo fenomenológico francês que fez parte da chamada geração existencialista dos anos 40
e 50, produziu ensaios políticos de base marxista, especialmente o livro As Aventuras da
Diatica, sendo crítica e análise de uma postura ultra bolchevista, que divergiu durante toda a
sua vida com o pensamento e amizade de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Introduziu a
questionabilidade da filosofia se constituir como um todo a priori, afastando a experiência como
todo o acontecimento possível. Dessa maneira, os seus esforços se dirigiram para a base
fenomenológica dos textos finais de Husserl, que considerava nesse tempo a precedência da
gênese de um mundo pré-objetivo, a passagem de um transcendental está sempre situado de
forma originário no fundo de mundo onde tudo é simultâneo, a abertura do vivido como
postulações necessárias para a filosofia, a mediação entre o mundo da natureza e o mundo das
pessoas se afirmam como uma questão. Em visto disso, em seus escritos sucede o retorno de
3
Em Inwood (2002), presença é a tradução da palavra em alemão chamada Dasein, em linhas gerais, o da
significando o "lá vem eles" e "vem eles", e o sein sendo "ser aí, presente e existente", os poetas comumente o
simbolizavam como a vida e o ser das pessoas. Neste sentido, Heidegger o utiliza sinteticamente como o ente que
pertence o privilégio do ser, ou melhor, o ser propriamente dos humanos, este que está habitualmente no mundo e
que é "aí" para o espaço que o abre para si mesmo e o ilumina, a condição de possibilidade par excellence de
orientação do estar ali e lá.
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SOUZA, Lucas Kaliel Tavares de Souza. NETO, Romeu Bacelar de Souza. Merleau-Ponty e o primado do corpo como experiência nascente
da paisagem. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº. 16, pp. 98-123, janeiro-abril de 2022.
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fato às origens da consciência constituinte, assim, principia o corpo, mundo, linguagem e
intersubjetividade como seu campo de reflexões, dirigido para uma ontologia da experiência
que considera o ser anterior a todas as identidades e fixações que os objetos podem suscitar no
mundo objetivo.
Para os desdobramentos de nossas questões, o autor visa romper com a contradição
dicomica do sujeito-objeto e base do realismo ingênuo que estava presente na sensação e
percepção. Na filosofia, a consciência ou o sujeito transcendental, compreende uma identidade
consigo mesmo, logo, diferentemente do objeto com a sua interioridade absoluta em si, formam
esse sistema de separação um com o outro, que durante algum momento algum se realiza no
outro e vice-versa. A metafísica de Descartes, introduzido para Merleau-Ponty como
pensamento de sobrevoo, investiga sempre buscar este limite a si mesmo e estender a
dominação sobre a realidade exterior, o instante do ato de conhecimento procede nessa relação.
Diante dessa separação absoluta, a cisão entre consciência-mundo, as coisas no visível se
encerram apenas em representações empreendidas no sujeito, o pensamento de sobrevoo não
habita o mundo, no qual o pólo oposto transforma-o em ideia ou conceito. Destarte, é nesse
sentido que a ciência outorga como fim último a relação de causalidade, o que afeta nossa
relação do corpo próprio e a sensação que se efetiva nesse meio. Ambos, subjetivismo e
objetivismo, encaminham essa diferea que ora um se converte em idealismo, onde as coisas
começam a perder totalmente seus estados reais se transformando em verdadeiras aparências, e
o outro vai negando a realidade da presença em que o exterior se ime como puro
acontecimento observável e objetivo. Com essa contradição, encaminhamos o pensamento de
Merleau-Ponty na relação dessas origens, em como estes mesmos conceitos estão sempre
presentes na experiência e sobre a efetiva percepção de um sentido, isso quer dizer realizar um
outro ponto de partida, mostrar que a consciência reflexiva não é a única via fundante sobre se
referir ao mundo e a consciência, é nesta lógica que introduzimos o corpo como meio originário
de suceder a experiência deste mundo.
Com isso, na primeira seção trataremos sobre a reflexão de uma abertura da paisagem a
partir de uma ontologia do ser bruto, trazer necessariamente a diferenciação com a ontologia
tradicional que circunscreve o mundo em si e acabado separado por um sujeito vazio que
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
SOUZA, Lucas Kaliel Tavares de Souza. NETO, Romeu Bacelar de Souza. Merleau-Ponty e o primado do corpo como experiência nascente
da paisagem. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº. 16, pp. 98-123, janeiro-abril de 2022.
Submissão em: 16/11/2021. Aceito em: 06/04/2022.
ISSN: 2316-8544
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determina apenas a essencialidade do objeto baseado na estrutura cognoscente em processo
epistêmico, o esforço é advir um sentido de ser pré-objetivo que esteve sempre presente antes
de qualquer manipulação objetiva do mundo, compreender então a paisagem nascente no
sentido fenomenológico nesta correlação de Terra-corpo-ser-no-mundo onde a experiência
torna possível as diversas facetas do ser. Na segunda seção, trazer de forma aprofundada as
conceituações filosóficas de Merleau-Ponty a respeito do corpo, espaço e ser-no-mundo, além
de partir de diversas reflexões de Heidegger que possam contribuir com a mesma temática. Por
fim, envolver a paisagem com a determinação do autor sobre a carne do mundo e as conclusões
a respeito dessa investigação.
A ontologia da experiência
Segundo Dardel, a geografia não é simplesmente um conhecimento dado na medida em
que a realidade geográfica "não é um espaço em branco a ser preenchido a seguir com colorido"
(DARDEL, 2011, p. 33). A ciência geográfica, segundo ele, implica a relação próxima do
homem com a Terra, sendo este o ser-no-mundo dotado de condições terrestres que chamam o
homem a seu encontro, é neste sentido que o conhecimento geográfico se pressupõe. De certa
forma, a geografia não se daria em termos solipsistas puramente isolados, referindo-se a Terra
ela se trataria desse meio primordial de exprimir a partir disso "minha inquietação, minha
preocupação, meu bem estar, meus projetos, minhas ligações" (DARDEL, 2011, p. 33). A
realidade geográfica, portanto, é aquilo que está mais próximo de mim, os lugares que eu
frequento, o meu bairro, os hábitos cotidianos e o meu trabalho formam em geral o
pertencimento habitual da totalidade de meus horizontes. O sujeito nesta compreensão total do
ser enquanto disposição de sua vida afetiva pode até se esquecer de si mesmo, mas este
afastamento pode estar sempre oculto o seu descobrimento, o "exílio, a invasão tiram o
ambiente do esquecimento e o fazem aparecer sob a forma de privação, de sofrimento e de
ternura" (DARDEL, 2011, p. 34), o distanciamento demonstra o conflito geográfico entre
horizonte interior, do passado, e o horizonte exterior posto no visível presente, é neste sentido
que um país ausente pode designar um estranhamento e discordância profunda. Portanto, é no
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SOUZA, Lucas Kaliel Tavares de Souza. NETO, Romeu Bacelar de Souza. Merleau-Ponty e o primado do corpo como experiência nascente
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vivido que se desperta a consciência geográfica, e onde se apresenta a exteriorização da relação
fundamental com a Terra, sendo necessário afirmar que "não uma essência, uma ideia que
o se atenha a um donio de história e geografia, não que esteja nele encerrada, e inacessível
para os outros, mas porque o espaço ou o tempo da cultura, como o da natureza, não são
sobrevoáveis" (MERLEAU-PONTY, 2000b, p. 114).
Em Husserl
4
, a Terra afirma essa experiência originária, consistindo no mundo anterior
das "puras coisas"
5
em que o pensamento cartesiano relegada a um corpo qualquer dentre os
outros, diferente da percepção originária que trata a Terra como a região selvagem que brota o
sentido do ser. Dela não se retém a categoria de infinito e finito, portanto, não sendo
determinado como objeto, mas sim o originário de todos eles, "a Terra não está móvel, nem em
repouso, ela está aquém" (MERLEAU-PONTY, 2000a, p. 127). Desta maneira, ela é o ser que
abrange toda a possibilidade em relação ao homem e lhe serve de berço. O mundo objetivoo
conduz esses vínculos consigo, não habita a Terra como abertura e o horizonte universal. É
desse encobrimento fundamental do fenômeno que é possível a realização da ciência do infinito.
Esquecemos a não de Boden
6
, porque a generalizamos, situando a Terra entre os
planetas. Mas, diz Husserl, imaginemos um pássaro capaz de sobrevoar um outro
planeta: ele não teria um solo duplo. Pelo simples fato de que é o mesmo pássaro, ele
une os dois planetas num único solo. Aonde quer que eu vá, daquele lugar faço um
Boden. Ligo o novo solo ao antigo que habitei. Pensar duas Terras é pensar uma
mesma Terra. Para o homem, ali não pode haver senão homens: os animais, diz
Husserl, são apenas variantes da humanidade. O que de mais universal para nós,
nós o pensamos a partir do que temos de mais singular. O nosso solo amplia-se mas
não se desdobra, e não podemos pensar sem referência a um solo de experiência desse
gênero. A Terra é a raiz de nossa história. Da mesma forma que a arca de Noé continha
tudo o que podia restar de vivente e de possível, também a Terra pode ser considerada
como portadora de todo posvel (MERLEAU-PONTY, 2000a, p. 127).
4
Husserl, em seus escritos, considera duas vertentes filosóficas que se encaminham contraditoriamente: "um lado,
a ruptura com a atitude natural ou, de um outro lado, a compreensão desse fundamento pré-filosófico do homem"
(MERLEAU-PONTY, 2000a, p. 118). Nesta condição, é presente em momentos na fenomenologia a exigência de
considerar o irrefletido como o fundo da reflexão, não se conduzindo à exclusão de um com o outro, mas
compreendendo o mundo pré-reflexivo como a forma originária.
5
Pura coisa é a Natureza concebida no cartesianismo e tal como o mundo objetivo se constitui para o olhar do
cientista. Em Husserl, é nascente na estrutura da percepção este fundamento, tanto que é possível dizer que as
coisas estão longe de serem uma qualidade de valor. O ego, ao invés de ser lançado no mundo, dentro da lógica
do objeto em geral se torna indiferente para apreender as coisas como sujeito teórico. Portanto, neste Eu purificado,
contém o cerne da concepção do em-si. (MERLEAU-PONTY, 2000a).
6
“Solo”.
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Nessa condição, a forma de "pura coisa" se constitui dentro do fundo de mundo
primordial, dessa maneira nada exclui a referência do vivente, o paradoxo aparente entre o
sujeito-objeto do conhecimento é existente com o "ego" que exclui o fenômeno de ser-no-
mundo. Dessa maneira, o "meu ego (...) pode ser aquele que tem a experiência do mundo e
está em comunidade com outros egos, seus semelhantes" (HUSSERL, 2001, p. 152). Husserl,
portanto, restitui o caráter de verdade comum entre os sujeitos que é assegurado pela Natureza,
onde se encontra a totalidade dos objetos aparentes em sua condição originária, entre o ego e
seus semelhantes a Terra é o meio de comunicação único para todo o mundo. Portanto, "a
Natureza envolve tudo, a minha percepção e a dos outros, enquanto estas podem ser para
mim um afastamento do meu mundo" (MERLEAU-PONTY, 2000a, p. 129).
Segundo Husserl, os objetos estão determinados como existentes em relação a uma
consciência real ou possível, o ego transcendental representando unicamente os objetos
intencionais situados. Como o ego familiariza-se com o mundo, estes objetos o, então,
separados entre pólos distintos, consistindo nos primeiros em uma unidade sintética, e a
segunda em uma polarização com uma diferente espécie de síntese, "que abrange as
multiplicidades das cogitationes, do eu intico, que, ativo ou passivo, vive em todos os vividos
da consciência" (HUSSERL, 2001, p. 82).
A Terra, como base, é o advento do sujeito, fundamento de toda a consciência a
despertar a si mesma; anterior a toda objetivação, ela se mescla a toda tomada de
consciência, ela é para o homem aquilo que ele surge no ser, aquilo sobre o qual ele
erige todas as suas obras, o solo de seu hábitat, os materiais de sua casa, o objeto de
seu penar, aquilo a que ele adapta sua preocupação de construir e de erigir (DARDEL,
2011, p. 41).
É a Terra, segundo Heidegger, que o homem histórico dá o princípio para estabelecer o
mundo, enquanto a forma institui uma instalão no mundo, produzindo terra, "a obra move a
própria terra para o aberto de um mundo e nele se mantém" (HEIDEGGER, 1992, p. 36), é
neste sentido que a criação da obra permite que a Terra seja ela mesma. As coisas postas na
Terra impedem qualquer intromissão interior em si mesmo, se racho algum objeto "as partes
nunca mostram algo de um interior e de um aberto" (HEIDEGGER, 1992, p. 37). O que quer
dizer isto? Todas as coisas na Terra resultam em uma condição de harmonia na totalidade, ela
pode se tornar abertamente descoberta longe de um ato intelectualista rigoroso em que a
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Terra está sobre a régua da medida técnico-científica da Natureza. Diferentemente disso, ela só
se mantém como essência quando "recua perante toda a exploração" (HEIDEGGER, 1992, p.
37), sendo algo que se fecha a si mesmo, a produção a Terra tem o significado de "traze-la ao
aberto como o que em si se fecha" (HEIDEGGER, 1992, p. 37), se descobrindo enquanto
ela mesma fechada não abrigando o idêntico a si mesmo, mas a plenitude possível de modos e
formas simples de ser.
O mundo é a abertura que se abre dos vastos caminhos das decisões simples e
decisivas no destino de um povo histórico. A Terra é o ressair forçado a nada do que
constantemente se fecha e, dessa forma, guarida. Mundo e Terra são
essencialmente diferentes um do outro e, todavia, inseparáveis. O mundo funda-se na
Terra e a Terra irrompe através do mundo. Mas a relação entre mundo e terra nunca
degenera na vazia unidade dos opostos, que não têm que ver um com o outro. O mundo
aspira, no seu repousar sobre a Terra, a sobrepujá-la. Como aquilo que se abre, ele
nada tolera de fechado. A Terra, porém, como aquela que guarida, tende a
relacionar-se e a conter em si o mundo (HEIDEGGER, 1992, p. 38).
Para Merleau-Ponty, o mundo objetivo manipula as coisas e se recusa a habi-las, se
constitui em modelos a priori que estão distantes propriamente do mundo real, "operando sobre
esses índices ou variáveis as transformações permitidas por sua definição" (MERLEAU-
PONTY, 2004b, p. 13). Este mundo trata-se sempre da primazia do objeto em geral, esquecendo
da existência da subjetividade no processo epistemológico, sendo assim, "como se ele nada
fosse para nós e estivesse no entanto predestinado aos nossos artifícios" (MERLEAU-PONTY,
2004b, p. 13). Mas a ciência cssica reconhecia, de certo modo, essa operação de opacidade
do mundo, nessa lógica é que sempre através desse espanto se solicita o estatuto filofico
transcendental e transcendente que possa determinar o fundamento dessa relação. Nessas
tentativas da filosofia da ciência, pensar é unicamente uma operação de "controle experimental
em que intervêm apenas fenômenos altamente trabalhados" (MERLEAU-PONTY, 2004b, p.
13), os quais nossos sentidos estão unicamente em condição de função do que captar o
fenômeno circundante. O pensamento torna-se apenas o instrumento de técnicas
7
, a prática de
7
Para Adorno e Horkheimer (1985), o mundo considerado através da técnica se desencanta substituindo a
imaginação pelo saber, mas essa ruptura não se oferece de maneira simples, os fins se apresentam com base no
poder e o saber, com vista sempre do progresso do conhecimento destituir o mundo de seus significados, o caos
aparente do mesmo se tornando simplesmente determinado. Portanto, o que impera nesta relação patriarcal do
conhecimento é "a técnica é a essência desse saber, que não visa conceitos e imagens, nem o prazer do
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constituição do Para Si é considerada independente, deste que se considera a tomada de
captação do mesmo. Essa determinação de operação pode se salvar de fracassos desde que se
pergunte sobre a funcionalidade do instrumento, "contanto que essa ciência fluente compreenda
a si mesma, se veja como construção sobre a base de um mundo bruto ou existente"
(MERLEAU-PONTY, 2004b, p. 14).
É preciso que o pensamento de ciência - pensamento de sobrevôo - pensamento do
objeto em geral, torne a se colocar um "há" prévio, na paisagem, no solo do mundo
visível e do mundo trabalhado tais como são em nossa vida, por nosso corpo, não esse
corpo possível que é lícito afirmar ser uma máquina de informação, mas esse corpo
atual que chamo de meu, a sentinela que se posta silenciosamente sob minhas palavras
e sob meus atos. É preciso que com meu corpo despertem os corpos associados, os
"outros", que não são meus congêneres, como diz a zoologia, mas que frequentam,
que frequento, com os quais frequento um único Ser atual, presente, como animal
nenhum frequentou os de sua espécie, seu território ou seu meio. Nessa historicidade
primordial, o pensamento alegre e improvisador da ciência aprenderá a ponderar sobre
as coisas e sobre si mesmo, voltará a ser filosofia (MERLEAU-PONTY, 2004b, p.
14).
Diante disso, nunca temos perante nós o puro indivíduo com essências sem a condição
do tempo e o espaço, visto que somos ontologicamente experiência e pensamentos que
sustentam o "peso do espaço, do tempo, do próprio Ser que eles pensam, que, portanto, não têm
sob seu olhar um espaço e um tempo serial, nem a pura ideia das séries, tendo, entretanto, em
torno de si mesmos um tempo e um espaço de empilhamento, (...) essência bruta e existência
bruta" (MERLEAU-PONTY, 2000b, p. 114). Portanto, os fatos e essências são puramente
abstrações, o que é de imediato dado é o mundo, ou melhor, ser-no-mundo, o a sistematização
de ideias que se dariam alhures, e sim, a impossibilidade de um nada ontológico, o espaço e o
tempo não são a justaposição de indivíduos locais e temporais, "mas a presença e a latência
atrás de cada um deles, de todos os outros, e atrás destes, de outros ainda, que o sabemos o
que são, mas ao menos são determináveis em princípio" (MERLEAU-PONTY, 2000b, p. 115).
O mundo não é contingência, mas o meio que habitamos, de nossa vida, nossa ciência e tão
somente nossa filosofia.
discernimento, mas o método, a utilização do trabalho de outros, o capital (...) o que os homens querem aprender
da natureza é como empregá-la para dominar completamente a ela e aos homens" (ADORNO; HORKHEIMER,
1985, p. 18).
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Corpo e percepção: ser-no-mundo
Inicialmente, é necessário circunscrever a noção de sensação, que, no pensamento
objetivo, foi velada a experiência perceptiva como parte do sujeito, tratando o mundo como
meio simplesmente dado de todo acontecimento possível. Na análise clássica, a sensação é
determinada como "a maneira pela qual sou afetado e a experiência de um estado de mim
mesmo" (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 23), o sentir deixa de ser situado no mundo objetivo,
envolvido como definição o estado de puro sentir despojada de qualquer experiência efetiva.
O que é admitir que deveamos procurar a sensação aquém de qualquer conteúdo
qualificado, já que o vermelho e o verde, para se distinguirem um do outro como duas
cores, precisam estar diante de mim, mesmo sem localização precisa, e deixam
portanto de ser eu mesmo. A sensação pura será a experiência de um "choque"
indiferenciado, instantâneo e pontual (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 23).
Deste modo, Merleau-Ponty observa, a partir dessa condição, o que aparenta ser de
imediato e dado como elemento da consciência, exige um desvelar sobre o que determina de
direito a investir na experiência perceptiva uma camada de "impressões". Ao perceber uma
mancha branca sobre um fundo homogêneo, a mancha se apresenta não apenas como algo
isolado em si mesma, e sim no entanto, pelo interior de um conjunto enquanto "o algo
perceptivo está sempre no meio de outra coisa" (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 24), logo, a
mancha branca com a cor mais densa e resistente não são solidários ao fundo todavia contíguo,
"a mancha parece colocada sobre o fundo e não o interrompe" (MERLEAU-PONTY, 1999, p.
24). Dessa maneira, para se ter uma compreensão da experiência perceptiva, é evidente advir
sobre que maneira a estrutura da percepção de fato se apresenta como figura-fundo, e o que se
anuncia de sentido para a abertura do sensível como qualidades de significados que o habitam.
Atingindo a estrutura da experiência em figura-fundo, o corpo próprio torna-se o terceiro termo
para a clareza de percepção do espaço, "e toda figura se perfila sobre o duplo horizonte do
espaço exterior e do espaço corporal" (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 147), o espaço exterior
investidos de intencionalidades que dispõe o corpo próprio potencializando significados "para
nós". A existência da coisa se constitui no limiar do sujeito encarnado, sendo este o fundo de
o-ser "diante da qual podem aparecer seres precisos, figuras e pontos" (MERLEAU-PONTY,
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1999, p. 146). É no corpo que deriva uma espacialidade de situação, diferente do espaço que se
origina nas coisas que provém da posição, "a palavra "aqui", aplicada ao meu corpo, não designa
uma posição determinada pela relação de outras posições" (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 146),
portanto, o corpo determina de uma maneira originária de ser situado, a forma pela qual me
ancoro em objetos, o fundo do qual pelo o movimento do olhar perfaz a estrutura de ponto-
horizonte.
Nossa percepção atinge objetos e este se constitui como uma síntese de todas as
aparições da experiência que dele poderíamos ter. Tal como,
Vejo a casa vizinha sob um certo ângulo, ela seria vista de outra maneira da margem
direita do Sena, de outra maneira do interior, de outra maneira ainda de um avião; a
casa ela mesma não é nenhuma dessas aparições, ela é, como dizia Leibniz, o
geometral dessas perspectivas e de todas as perspectivas possíveis, quer dizer, o termo
sem perspectivas do qual se podem derivá-las todas, ela é a casa vista de lugar algum.
Mas o que significam estas palavras? Ver o é sempre ver de algum lugar? Dizer que
a casa ela mesma é vista de lugar algum o seria dizer que ela é invisível? Entretanto,
quando digo que vejo a casa com meus olhos, certamente não digo nada de
contestável: não entendo que minha retina e meu cristalino, que meus olhos enquanto
órgãos materiais funcionam e fazem com que eu a veja; interrogando apenas a mim
mesmo, não sei nada disso. Eu quero exprimir com isso uma certa maneira de ter
acesso ao objeto, o "olhar", que é tão indubitável quanto meu próprio pensamento
conhecido por mim. Precisamos compreender como a visão pode fazer-se de alguma
parte sem estar encerrada em sua perspectiva (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 103).
Em tal caso, é necessário compreender a organização corporal que aparentemente é
contingente na apreensão do objeto. Quando se olha para um objeto percebe-se uma capacidade
mesmo de poder fixá-lo à margem do campo visual, ou ir de encontro a ele e coincidir em sua
tentação. Neste momento, acontece um movimento do olhar determinando a diferença de minha
circunvizinhança, uma condição de "parada" da minha retina, sendo possível me ancorar em
objetos e poder fi-lo, "continuo no interior de um objeto a exploração que, há pouco,
sobrevoava-os a todos, com um único movimento fecho a paisagem e abro o objeto"
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 104). Dessa forma, os objetos formam um sistema que, para se
habitar neles, é primordial "perder em fundo o que se ganha em figura" (MERLEAU-PONTY,
1999, p. 104). O objeto se apruma em um perfil de horizonte através dos outros objetos
circundantes presentes, onde me apoio em algum fragmento da paisagem e os restantes recuam
para a margem adormecida. A visão, portanto, comporta esses dois movimentos ao perceber
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algo, e "a perspectiva, não me perturba quando quero ver o objeto: se ela é o meio que os objetos
têm de se dissimular, é também o meio que eles têm de se desvelar" (MERLEAU-PONTY,
1999, p. 105). Destarte, a estrutura ponto-horizonte
8
é a razão do espaço, o horizonte ou o fundo
tem o mesmo ser que a figura a partir de um movimento do olhar, e a presença de conversão de
ambos é apenas disposto a partir de uma zona de corporeidade de onde é existente o vidente, a
quantidade das circunstâncias vividas do "aqui" ou pontos na experiência é dado como uma
constituição de que um dentre eles permite a abertura do objeto, onde "se faz ela mesma no
coração deste espaço" (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 149), ou seja, não haveria espaço sem a
minha singular corporeidade.
Segundo a psicologia clássica
9
, o corpo próprio é uma existência fenomênica diferente
de um estatuto de objeto, em razão do corpo sempre estar constantemente ao meu lado como
algo percebido, ao passo que o objeto possa situar-se a distância e tenho simplesmente o poder
de me afastar dele. Assim sendo, o corpo é o movente que define "o hábito primordial, aquele
que condiciona todos os outros e pelo qual eles se compreendem" (MERLEAU-PONTY, 1999,
p. 134). Os objetos se oferecem em uma perspectiva particular, correspondendo essa a uma
necessidade sica, o corpo não é aprisionado no espetáculo visível posto, tendo potencial de
ação para si mesmo, é dessa forma que posso manejar, escolher os lados escondidos e observar
objetos exteriores. Nesta acepção, não é "objeto do mundo, mas como meio de nossa
comunicação com ele, ao mundo não mais como soma de objetos determinados, mas como
horizonte latente de nossa experiência presente sem cessar" (MERLEAU-PONTY, 1999, p.
136).
8
O horizonte é aquilo que permite estabelecer o limite, onde situa minha visão inserida como atual, e outras demais
coisas que ainda não foram vistas e estão aquém do meu campo. De certo modo, a visão é essa maneira de ser
pensamento para um certo campo e é disso que brotam os sentidos. Em vista disso, podemos dizer que toda a
sensação é realizada como um eu espacializado e que se efetiva como experiência que impede de ser um mundo
fechado totalmente, "quando vejo um objeto, sinto sempre que ainda existe ser para além daquilo que atualmente
vejo, não apenas ser visível mas ainda ser tangível ou apreensível pela audição, e não apenas ser sensível mas
ainda uma profundidade do objeto que nenhuma antecipação sensorial esgotará" (MERLEAU-PONTY, 1999, p.
291).
9
"Ele tentava descrever os dados da consciência, mas sem colocar em questão a existência absoluta do mundo em
torno dela. Com o cientista e com o senso comum, ele subentendia o mundo objetivo enquanto quadro lógico de
todas as suas descrições e meio de pensamento" (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 92).
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O corpo pode distinguir- se distinguir dos objetos exteriores através de "um tipo de
reflexão" inerente por uma experiência do tato, em meio de uma apreensão por si. Quando toco
a minha mão esquerda com a minha o direita sucede uma organização flutuante em que as
duas mãos alternam-se entre "tocante" e "tocado". Essa variação de função permite dizer que
sempre se trata da mesma mão enquanto se toca tocando, o corpo realiza "uma espécie de
reflexão, de cogito" (MERLEAU-PONTY, 2000a, p. 123). Com isso, reconhece-se a si mesmo
do exterior, o corpo torna-se um sujeito "que ocupa espaço, que se comunica interiormente,
como se o espaço se pusesse a conhecer-se interiormente" (MERLEAU-PONTY, 2000a, p.
123).
Movo os objetos exteriores com o auxílio de meu próprio corpo que os pega em um
lugar para conduzi-los a um outro. Mas ele, eu o movo diretamente, não o encontro
em um ponto do espaço objetivo para levá-lo a um outro, não preciso procurá-lo, ele
está comigo não preciso conduzi-lo em direção ao termo do movimento, ele o
alcança desde o começo e é ele que se lança a este termo, relações entre minha decisão
e meu corpo no movimento são relações gicas (MERLEAU-PONTY, 1999, p.
138).
De acordo com isso, o corpo operante e atual experimenta a coisa em função de movente
com o fundo de movimento dado no visível, sendo assim, a percepção não é pensada como
fatores objetivos, a consciência que tenho de meu corpo é uma consciência escorregadia, o
sentimento de um poder" (MERLEAU-PONTY, 2000a, p. 122), logo, é uma potência
sistemática de organizar o espetáculo visível que realiza uma "síntese de transição" para tal e
tal aparência enquanto se encontra habitado no interior do tecido mundo, conduzindo sua
existência na qualidade de coisa, "mas dado que vê e se move, ele mantém as coisas em círculo
a seu redor (...), estão incrustadas em sua carne, fazem parte da sua definição plena, e o mundo
é feito do estofo mesmo do corpo" (MERLEAU-PONTY, 2004b, p. 17).
O ser-no-mundo, base de entendimento a priori da presença, é a forma fundamental de
ter-se uma abertura para uma análise de conhecimento em primeira pessoa, sendo conforme a
determinação da presença como existência e enquanto o ente que simplesmente sou. É como
advém o estatuto ontológico do ser e o ponto de partida para "a multiplicidade de momentos
estruturais que compõe esta constituição" (HEIDEGGER, 2009, p. 90), mesmo que ser-no-
mundo seja um femeno de unidade. O ser-no-mundo, antecipadamente concebido como um
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
SOUZA, Lucas Kaliel Tavares de Souza. NETO, Romeu Bacelar de Souza. Merleau-Ponty e o primado do corpo como experiência nascente
da paisagem. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº. 16, pp. 98-123, janeiro-abril de 2022.
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fenômeno de totalidade, é dividido em três essenciais constituições: o "em-um-mundo", sendo
a estrutura ontológica do mundo mesmo e a compreensão da mundanidade como tal; o ente que
sempre é, o modo da cotidianidade mediana da presença; o ser-em como tal, concernente como
constituição ontológica do próprio "em". A respeito do ser-em,
O ser-em, ao contrário, significa uma constituição ontológica da presença e é um
existencial. Com ele, portanto, não se pode pensar em algo simplesmente dado de uma
coisa corporal (o corpo humano) "dentro" de um ente simplesmente dado. O ser-em
não pode indicar que uma coisa simplesmente dada está, espacialmente, "dentro de
outra" porque, em sua origem, o "em" não significa de forma alguma uma relação
espacial desta espécie, "em" deriva de inmnan-, morar, habitar, deter-se; "an"
significa, estou acostumado a, habituado a, familiarizado com, cultivo alguma coisa;
possui o significado de colo, no sentido de habito e diligo (HEIDEGGER, 2009, p.
92).
O ser-em é diferente no tocante a dois entes extensos simplesmente dados como um
estar "dentro de...", referindo-se a ambos em "caracteres ontológicos que chamamos de
categorias" (HEIDEGGER, 2009, p. 92), e que são desprovidos dos modos de ser do ente da
presença. O "ser-junto" ao mundo, compreendido como existencial, não é um "conjuntos de
coisas que ocorrem" (HEIDEGGER, 2009, p. 93), o que se daria em relação de sobreposição
entre o ente da presença e o mundo. O "eu sou" está sempre posto em vínculo a um "junto", o
mundo sempre disposto a aquilo que me é familiar, dessa maneira, "o ser, entendido como
infinito de "eu sou" (...), a expressão formal e existencial do ser da presença que possui a
constituição essencial de ser-no-mundo" (HEIDEGGER, 2009, p. 92).
Por vezes, sem dúvida, costumamos exprimir com os recursos da língua o conjunto
de dois entes simplesmente dados dizendo: "a mesa es junto à porta", "a cadeira
’toca’ a parede". Rigorosamente, nunca se poderá falar aqui de um "tocar", não porque
sempre se pode constatar, num exame preciso, um espaço entre a cadeira e a parede,
mas porque, em princípio, a cadeira o pode tocar a parede mesmo que o espaço
entre ambas fosse igual a zero. Para tanto, seria necessário pressupor que a parede
viesse ao encontro "da" cadeira. Um ente só poderá tocar um outro ente simplesmente
dado dentro do mundo se, por natureza, tiver o modo ser-em, se, com sua presença,
se lhe houver sido descoberto um mundo. Pois a partir do mundo o ente poderá, então,
revelar-se no toque e, assim, tornar-se acessível em seu ser simplesmente dado.
(HEIDEGGER, 2009, p. 93).
Portanto, o "tocar" é a maneira do ser de formar o mundo, sendo o que funda a separação
entre um ente destitdo de mundo e aquele que está sempre, de início, no modo de ser-em, e
suas constituões se dão simplesmente "no" mundo. É com a facticidade que a presença alcança
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da paisagem. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº. 16, pp. 98-123, janeiro-abril de 2022.
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o seu ser mais próximo, e onde ela simplesmente se dispersou em várias determinações de ser-
em através da ocupação com "ter o que fazer com alguma coisa, produzir alguma coisa, tratar
e cuidar de alguma coisa" (HEIDEGGER, 2009, p. 95). Deste modo, ao transpormos as
condições de ser-em, compreendemos a particular forma da presença ter seus modos de lidar
com aquilo que lhe vêm ao encontro. Desta maneira, teremos a abertura de compreender a
qualidade como:
Existem duas maneiras de se enganar sobre a qualidade: uma é fazer dela um elemento
da consciência, quando ela é objeto para a consciência, tratá-la como uma impressão
muda quando ela tem sempre um sentido; a outra é acreditar que este sentido e esse
objeto, no plano da qualidade, sejam plenos e determinados. E o segundo erro, assim
como o primeiro, provém do prejuízo do mundo. s construímos, pela ótica e pela
geometria, o fragmento do mundo cuja imagem pode formar-se a cada momento em
nossa retina. Tudo aquilo que está fora desse perímetro, o se refletindo em nenhuma
superfície sensível, não age sobre nossa visão mais do que a luz em nossos olhos
fechados (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 26).
A qualidade encontra-se como um fenômeno indeterminado, isto é, no sentido de se
apresentar como um valor expressivo que de "um quale, uma película de ser sem espessura"
(MERLEAU-PONTY, 2000b, p. 128), que se realizaria no visível como um mundo fechado em
si. Efetivamente, o visível e o vidente estão profundamente em relação entre horizontes
exteriores e interiores sempre transparentes, impelindo uma modulação existencial e temporal
deste mundo, assim sendo, "menos cor ou coisa do que diferença entre as coisas e as cores,
cristalização momentânea do ser colorido ou da visibilidade" (MERLEAU-PONTY, 2000b, p.
129).
O que é dado na qualidade não é uma síntese intelectual rigorosamente dos diferentes
sentidos distinguidos sistematicamente em campos do olfato, do tato e da visão, "do qual todas
as qualidades são apenas diferentes manifestações" (MERLEAU-PONTY, 2004a, p. 19). Mas,
longe dos sentidos estarem isolados um dos outros, o que permite o conjunto é a "significação
afetiva que coloca em correspondência com a dos outros sentidos" (MERLEAU-PONTY,
2004a, p. 20). Portanto, através da experiência perceptiva, a significação emocional brotam as
qualidades de um certo comportamento em relação a meu corpo e os objetos exteriores, é nesse
sentido que "Cézanne dizia que devemos poder pintar o cheiro das árvores" (MERLEAU-
PONTY, 2004a, p. 22), a unidade da coisa não posta entre uma relação de distância, "cada uma
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delas simboliza e evoca para nós uma certa conduta, provoca de nossa parte reações favoráveis
ou desfavoráveis" (MERLEAU-PONTY, 2004a, p. 23).
Sensação não é estado de consciência ou consciência de um estado, o meio em que se
realiza não é o horizonte determinante de um mundo objetivo em que as qualidades se encerram.
O intelectualismo compreende a sensação e percepção como algo dado e para si, em que é
necessário se afastar do sentido e investi-lo de pensamento para dissipar o aparente que se
mostra. O eu encarnado é dado como não-ser dentro do processo reflexivo, sendo que a
consciência nascente é imanente a um fundo irrefletido. Pelo contrário, a qualidade expressa
primordialmente uma potência de ser-no-mundo em que meu corpo vai de encontro e se perfaz.
É a chegada submersa do sensível em que meu corpo é a unidade absoluta que lhe sentido,
subitamente algo é dado em situação, o sujeito que sente e o sensível o se determinam em
pólos distintos em que um invade o outro. Assim, se compreende que a sensação é intencional,
um ir além de si mesma, "porque encontro no sensível a proposição de um certo ritmo de
existência" (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 288), no qual a experiência do sentir vai além da
simples definições de objetos, mas corresponde a familiaridade do corpo, do vivido e que
produz sua lei momentânea sempre latente. Além disso, a sensação é diferenciada de um ato
pessoai que se sujeita ao ato de minha experiência individual, significa dizer que é existente um
saber originário, modalidade de uma existência em geral em que se encontra uma determinada
sensibilidade do mundo do qual não sou inteiramente o constituinte. Se estabelece, então, uma
reflexão integral, onde o sentido dos múltiplos aspectos do ser se operam em uma
conaturalidade de meu corpo, sem que se tenha dado pôr um pensamento causai e da reflexão
seu verdadeiro significado. A questão sobre o que é a experiência e a sensação funda uma
relação de sujeito-objeto em estado nascente, no qual o sujeito puro para si que tematiza a
consciência e o objeto como absoluto encerrando cada acontecimento em síntese se ver tocado
por um horizonte de experiência infinitamente aberto, o curso do tempo fazendo e refazendo o
sujeito que se considera puro e distante do mundo. O meio da experiência, assim sendo o
espaço, é o contato primordial do ser, sendo "cada uma delas uma maneira particular de ser no
espaço e, de alguma maneira, de fazer espaço" (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 299), é por essa
condição que a particularidade é necessária ao todo.
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O espaço se precede a si mesmo. Essa proposição tem como efeito a questão de onde se
encontra o nível primordial do espaço que condiciona todos os outros que aparecem sobre mim.
Se um sujeito se defronta com um objeto ou espetáculo visível invertido e desorientado, o corpo
se afasta de uma atitude natural do qual se encontrava e procura habitar este novo nível espacial
lhe postulando um sentido, o ser-para-o-olhar tem a condição de poder se orientar sobre um
determinado objeto em direção a movimentos, ordem e orientação que lhe sejam "preferidos",
neste sentido a percepção nunca pode ser dada como tematizada, mas o processo de todas as
nossas experiências vívidas respondem por uma espacialidade adquirida e que se opera
constantemente no mundo. Este ser-, que reporta ao primeiro nível de um sujeito abaixo de
mim e que funda o meu lugar, é o meu corpo, a comunicação com o mundo mais antiga que o
próprio pensamento, "e ele que seu sentido a toda percepção ulterior do espaço, ele é
recomeçado a cada momento" (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 342), é assim que a paisagem
aparece e se determina espacialmente.
O mostrar o que se vê: a carne como elemento comum da paisagem
Para Santos (1988), o conceito de paisagem é tudo aquilo que abarcamos com o olhar e
pertence privilegiadamente ao domínio do visível, não sendo formado meramente sobre a
extensão da coisa, e sim, "também de cores, movimentos, odores, sons e etc" (SANTOS, 1988,
p. 21). Para ele, a dimensão da percepção é sempre um processo de risco em confundir a verdade
com a aparência, consistindo a compreensão intelectual substancial na assimilação do fato, é
nesse sentido que "pessoas apresentam diversas versões do mesmo fato" (SANTOS, 1988, p.
22). A visão, nessa perspectiva, é uma mera forma contingente de entendimento das coisas
materiais, não tocante como aspecto essencial da estrutura da paisagem. No entanto, o corpo
entre outros entes não é simplesmente coisa, mas é sensível para si, o que permite dizer não a
existência de uma separação direta entre sujeito-objeto, "mas este paradoxo: o conjunto de cores
e superfícies habitadas por um tato, uma visão, portanto, sensível exemplar, que capacita a quem
o habita e o sente de sentir tudo o que de fora se assemelha" (MERLEAU-PONTY, 2000b, p.
132). O corpo é significativamente essas duas camadas de ser, visto que é o sensível sentiente,
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pertencendo em seu sentido próprio algo que me une diretamente às coisas. Portanto, é
fundamental saber a maneira que o visível habita o interior do olhar como uma "familiaridade
tão estreita como a do mar e a praia" (MERLEAU-PONTY, 2000b, p. 128).
Segundo Heidegger (2008), o ver, cujo o significado é o modo de experiência primordial
do mundo grego, se contempla como "prover alguém com o olhar (...) no qual algo mostra e
apresenta a si mesmo" (HEIDEGGER, 2008, p. 150), neste sentido, o olhar não se compreende
como ego e sujeito, que a partir de suas representações Para Si apreende o ente enquanto objeto,
e sim, aquele que vê se deixa ser encontrado no mundo pré-objetivo, coincidindo com o
vislumbre daquilo que lhe vem ao encontro e " como posto em ser situado. O mostrar o
que se vê, de acordo com Cauquelin (2007), é a forma de compreensão da paisagem, o limiar
do vidente e o visível, a separação da "pura coisa" restrita ao ambiente lógico e onde é possível
ter o potencial ato de significar.
Para a autora, a paisagem demonstra uma evidência inquestionável, "parece traduzir
para nós uma relação estreita e privilegiada com o mundo" (CAUQUELIN, 2007, p. 28), como
se estivesse em uma consonância anterior a nós mesmo, sucedendo a ser impossível questio-
la sem cometer equívocos a respeito, pois é dela tudo que deriva a compreensão do que está em
torno de mim, meus limites e a aprendizagem da proporção deste mundo com os sentimentos
habituais que estão inseridos em nossa presença, "intermediário obrigatório de uma
conversação infinita, veículo de emoções cotidianas, invólucro de nossos humores"
(CAUQUELIN, 2007, p. 28), este imperativo do que está a mostra é dado antes mesmo de
qualquer consciência de reflexão.
Originária, a paisagem? Isso não seria confundi-la com aquilo que ela manifesta a seu
modo, a Natureza? O originário sob a forma, entre outras, da Natureza permanece fora
de alcance: a Natureza é "uma ideia que aparece vestida", isto é, em perfis
perspectivistas, cambiantes. Ela aparece sob a forma de "coisas" paisagísticas, por
meio da linguagem e da constituição de formas específicas, elas próprias
historicamente constituídas. Contudo, se podemos distinguir esses a priori "culturais"
pela reflexão e pela análise, sua unidade se reforma permanentemente, as diferenças
se apagam para suscitar em nós o sentimento de uma e única presença: um dado de
si (CAUQUELIN, 2007, p. 29).
Neste imperativo do "ver", se comporta sempre com mil estratos do tempo justapostos,
é nessa lógica que podemos dizer que figura a existência do descobrimento da paisagem, a
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sensibilidade do espaço podem ser historicamente datadas durante o nosso processo de
realização, é neste significado que podemos dizer que a beleza se descobre, durante um
momento que reconhecemos o deserto maléfico como realidade aterradora "eles entram na
moda, primeiro para a elite da sociedade, depois entram no vocabulário das necessidades
naturais, são um bem comum, disponível a todos" (CAUQUELIN, 2007, p. 92), dessa maneira,
é possível dizer que as paisagens são suscetíveis de ser inventadas.
A paisagem contém essa realidade social, uma condição do ver enquanto se passa pela
realização de ser-no-mundo, onde é possível traçar o filtro no tempo e dizer sobre nossa
historicidade. O visível pode se apresentar como forma mista, tanto mais pregnante quanto mais
finamente trançada, a ponto de não se ver seu início e de ela poder passar por original, como se
o tivesse origem determinável" (CAUQUELIN, 2007, p. 96), o olhar diante dessa camada do
ser comporta a paisagem como fala, diante de que é possível manifestar que "toda a paisagem
é inundada pelas palavras como por uma invasão, a paisagem é, a meu ver, uma variedade da
fala, e falar de seu estilo, é usar uma metáfora" (MERLEAU-PONTY, 2000b, p. 149).
A arte vai de encontro com esse sentido de fabricação, a efetiva produção de poemas
sobre montanhas ou litorais podem dizer que originaram o sentido da condição desse visível,
no qual eles se tornaram presentes com efeito em significantes e significados, cobertos do
estrato da linguagem em que posso me referir e dizer "eis a montanha". Dessa forma, poemas,
meditações, relatos de viagem desvelam o caminho, a pintura o segundo momento onde "leva
a partilhar a visão da imagem descrita pela ngua" (CAUQUELIN, 2007, p. 93), apesar de que
esses dois comportam caminhos diferentes, enquanto o oferecimento das palavras podem se
tornar aparentes, a pintura simplesmente fixa o dado como imagem, dessa forma o visível se
oferece como verdadeiro. Portanto, o "ver" comporta dobras no tempo, onde "parece que só se
pode ver aquilo que já foi visto, isto é, contado, desenhado, pintado e realçado" (CAUQUELIN,
2007, p. 94).
Ver (...) é: oferecer o vislumbre
10
, ou seja, o vislumbre do ser dos entes, que são os
próprios entes enquanto aqueles que vislumbram. Mediante um tal olhar o homem se
10
O vislumbre é propriedade do ser do homem que sempre o aberto, "de modo mais específico, o homem
consegue, antes de tudo e na maioria dos casos, ter um vislumbre para o aberto" (HEIDEGGER, 2008, p. 227),
sendo assim, essa relação de comportamento com o ente se emerge sempre como presente na qualidade de estar
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distingue e pode se destacar somente através disso, porque esse vislumbrar que mostra
o próprio ser não é algo humano, mas pertence à essência do próprio ser como
pertencendo à aparência no descoberto (HEIDEGGER, 2008, p. 151).
O ver, sendo o modo no qual o homem se emerge enquanto vidente, não se funda na
própria coisa do visível que se oferece a si mesma como idêntico e que se abre para um vazio
de si como presença, mas o que se "emerge e vem à presença com outros entes, mas como
homem na sua essência" (HEIDEGGER, 2008, p. 151), sendo próprio do envolvimento do olhar
as vestir com sua carne.
Os elementos são representativos do todo, estão no individual e no universal como um
emblema, um estilo de ser. A carne é elemento comum do sujeito e do mundo, corpo
e mundo se constituem reciprocamente numa experiência tecida no fundo carnal. Ela
é o ponto de partida, origem, antes do que nada é pensável. Como elemento originário,
possibilidade e tecido invisível, a carne sustenta o visível que irradia um modo de ser,
aparece como cristalização momentânea a partir da experiência no mundo que reúne
sujeito e mundo, corpo e coisas, num horizonte comum. Ela liga aquilo que é visível
coisa do mundo e aquele que corpo, sendo estofo de que ambos são feitos,
indicando uma relação de parentesco que àquele que uma familiaridade, por
assim dizer, prévia com o visível. (ALVIM, 2011, p. 145).
A visão e tato se formam no visível como se fossem uma imagem posta diante do
espelho, visto que o corpo está envolvido no âmago das coisas, logo essa dupla réplica evidencia
um intercâmbio de uma visibilidade e tangibilidade em si que naturalmente "não pertence nem
ao corpo como fato nem ao mundo como fato (...) ambas constituindo, portanto, um par mais
real do que cada uma delas" (MERLEAU-PONTY, 2000b, p. 135). Portanto, o vidente se situa
preso ao mundo que vê e, ao mesmo tempo, consegue ver-se a si mesmo, neste sentido os dois
seres se encontram encerrado neste mesmo processo, "se o apalpa e é unicamente porque,
pertencendo à mesma família, sendo, ele próprio visível e tangível, utiliza o seu ser como meio
para participar do deles, é porque cada um dos dois seres é para o outro o arquétipo"
(MERLEAU-PONTY, 2000b, p. 134). O elemento comum desse entrelaçamento é chamado de
carne, não sendo matéria, espírito e nem substância, mas no sentido do uso verbal de "elemento"
em que os gregos designavam a água, o ar, a terra e o fogo, deste modo, a forma de coisa em
habitado nesta abertura e no projeto aberto pelo ser. Somente o homem lhe pertence essa visão, sendo o guardião
do ser, em diferença do "animal, ao contrário, não nem vislumbra o aberto no sentido do desencobrimento do
desencoberto. (...) O sinal desta exclusão essencial é que nenhum animal ou planta "tem a palavra" (HEIDEGGER,
2008, p. 227).
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geral que pertence a todo o indivíduo espácio-temporal, sendo o princípio encarnado que está
presente enquanto experiência na totalidade dos lugares.
Percebe-se rapidamente, todavia, que o domínio é ilimitado. Se pudermos mostrar que
a carne é uma noção última, que não é união ou composição de duas substâncias, mas
pensável de per si, se há uma relação do visível consigo mesmo que me atravessa e
me transforma em vidente, este círculo que não faço mas que me faz, este enrolamento
do visível no visível pode atravessar e animar os outros corpos como o meu. Se pude
compreender como nasce em mim esta vaga, como o visível que está aco é
simultaneamente minha paisagem, com mais razão posso compreender que alhures
ele também se fecha sobre si mesmo, e que haja outras paisagens além da minha. Se
se deixou captar por um de seus fragmentos, o princípio da captação está assimilado,
e o campo aberto para outros Narcisos, para uma "intercorporeidade" (MERLEAU-
PONTY, 2000b, p. 136).
A carne é esses dois lados do meu corpo que manifesta a mesma condição dos lados das
coisas, é entre esses avessos de lados é que estou inserido na visibilidade, enquanto corpo que
é matriz da coisa e as coisas modelo de meu corpo, o corpo é habitante no mundo "não como
fato ou soma de fatos, mas como lugar de uma inscrição de verdade" (MERLEAU-PONTY,
2000b, p. 128), não sendo diferença entre ambos mas o meio que permite a comunicação.
Consequentemente, naturalmente sou este vidente que posso me afastar das coisas, visto que o
visível é destinado a encarar como existência o corpo que se destina conforme um fundo. É
dessa maneira que a paisagem possibilita a admitir múltiplas maneiras de ser, portanto, a
paisagemo se mostra como quando o sujeito-observador considera o dado como mero objeto,
mas "um espaço percebido, por seu turno, supõe o próprio sujeito se engajando e vivenciando
um fragmento do espaço, entrelaçando-se com ele" (LIMA, 2007, p. 81).
Levada a efeito como que num acontecer progressivo, se é que se pode tratar nesses
termos, a experiência espacial fundante decorre de uma relação que nos suscita o
recorte da paisagem, de sorte que essa relação acate a chancela de uma experncia
perceptível. O discurso geográfico da relação homem-meio, transfigurada na relação
sociedade-espaço, é mediada pela paisagem em suas variadas perspectivas: relação
metabólica entre homem e natureza; gêneros de vida; meio geográfico; experiência
sensível e outros (LIMA, 2007, p. 81).
A deiscência, termo adquirido da botânica, significa o fenômeno quando algum órgão
vegetal abre-se espontaneamente para atingir a maturação, segundo Alvim, é neste sentido que
Merleau-Ponty compreende uma nova forma de filosofia, as contradições são o essencial para
as suas respostas, e que dessa maneira surge a noção de carne como conformidade, "um fruto
quando maduro, amolece e se abre, oferecendo-se ao mundo como alimento para outro ser, para
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a terra, num ciclo de vida interminável que mantém viva a vida, renovando-se e transformando-
se" (ALVIM, 2011, p. 146).
Considerações finais
A temática da experiência do ser-paisagem compreende diversas regiões do saber que é
necessário descrever para ter-se um entendimento totalizante do conceito. Como vimos, a busca
de entender uma geografia fenomenológica em diálogo com os filósofos sobre a sensação,
Terra, ser-no-mundo e sujeito encarnado proporcionou determinadas respostas a respeito do
olhar, o mundo percebido e sobre nós, que são essenciais para desvelar o que é propriamente a
experiência da paisagem. A percepção do espaço não é um momento particular de “estados de
consciência” ou atos, mas é o espaço originário primordial de um sujeito encarnado pré-lógico
de onde brotam nossas experiências sobre o mesmo. Como demonstramos na exposição, a
consciência é algo que possui um irrefletido em si mesma, um sentido primordial do corpo
como fio intencional que se intercalam em nossa relação com o mundo brotando-o de
significados, sendo assim, o que existente é uma situação que reivindica em si potenciais de
ação, o que transparece uma atitude fenomenológica de habitar a paisagem.
O que destacamos em nosso texto é que o intelectualismo e o empirismo filosófico não
encerram a questão do espaço único, a percepção como vimos é se realiza no cerne de fundo do
mundo, o que inclui a paisagem enquanto categoria geográfica dentro deste horizonte subjetivo
de realização. Assim sendo, se desvela a unidade entre "paisagem e espaço corporal ou
percebido são uma a mesma coisa, contanto que o sujeito se-ia co-partícipe de seu movimento
e reprodução" (LIMA, 2007, p. 82). O que devemos considerar é essa percepção vivida daquele
que está presente na experiência com seu corpo e o mundo.
É necessário refletir sobre a questão que fizeram para Merleau-Ponty em razão do modo
de pensar em ser preferível o sol do astrônomo ao sol do camponês. Ambos coabitam o mesmo
fundo de mundo e as suas referências se constituem não em continuidade, mas trazem uma
questão referente à experiência vívida, de algo de interesse para uma compreensão existencial
do homem ôntico-ontológico. Sem dúvida, como diz Merleau-Ponty, ao citar Hegel que a Terra
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
SOUZA, Lucas Kaliel Tavares de Souza. NETO, Romeu Bacelar de Souza. Merleau-Ponty e o primado do corpo como experiência nascente
da paisagem. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº. 16, pp. 98-123, janeiro-abril de 2022.
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é o centro metasico do mundo, logo, percebe que o sol do astrônomo é uma necessidade para
a liberdade, quanto mais se adquire conhecimento exato sobre a natureza. Não se trata de
contradizer um com o outro, em termos de percepção innua e percepção científica, mas é não
encerrar o homem e o mundo em uma imagem imóvel do universo. O universo da experiência
e o sujeito desse processo de estar-no-mundo é um constante refazer do em si e para si. Assim
como Milton Santos, a paisagem não pode ser confundida com o puro substrato material que é
dotada de um em si no processo anatico, mas é existente o homem que e o espaço em
perspectiva, ou melhor dizendo, o ser-no-mundo que se abre e abriga uma pretensa
materialidade congelada no tempo em história viva por fazer.
O esforço do texto está distante de abarcar totalmente a possibilidade da discussão das
descrições estruturas do ser-no-mundo da paisagem, mas ele contém como um caminho a ser
empreendido para a compreensão da totalidade do que está sempre em torno do homem, com o
vínculo de uma geografia fenomenológica necessitamos abarcar pontos que possam dar o
devido suporte teórico que esteja em vista perante uma epistemologia que abarque a vasta
abertura do ser-paisagem. Como vimos, é o corpo que intercala o terceiro termo da mediação,
considerando em vista que o mesmo é capaz de atravessar o mundo com seu sentido próprio de
ser.
Referências bibliográfica
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Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
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Gestalt-terapia: entrelaçamentos. Rev. abordagem gestalt., Goiânia, v. 17, n. 2, p. 143-151,
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CAUQUELIN, Anne. A Invenção da Paisagem. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
DARDEL, Eric. O Homem e a Terra: Natureza da realidade geográfica. São Paulo:
Perspectiva, 2011.
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
SOUZA, Lucas Kaliel Tavares de Souza. NETO, Romeu Bacelar de Souza. Merleau-Ponty e o primado do corpo como experiência nascente
da paisagem. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº. 16, pp. 98-123, janeiro-abril de 2022.
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HEIDEGGER, Martin. A Origem da obra de arte. Trad. de Maria da Conceição Costa, Lisboa:
edições 70, 1992.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução de Maria Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis:
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HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Tradução de Sérgio Mário Wrublevski. Petrópolis: Vozes;
Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2008.
HOLZER, Werther. Um estudo fenomenológico da paisagem e do lugar: a crônica dos
viajantes no Brasil no século XVI. 1998. Tese (doutorado em Geografia) Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.
HUSSERL, Edmund. Meditações Cartesianas: introdução à fenomenologia. Tradução Frank
de Oliveira. São Paulo: Madras, 2001.
INWOOD, Michael. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. (Dicionários
Filoficos). Tradução de Luísa Buarque de Holanda; revisão técnica de MárciaCavalcante
Schuback.
MARANDOLA JR, Eduardo. Heidegger e o pensamento fenomenológico em Geografia: sobre
os modos geográficos de existência. Geografia, v. 37, p. 81-94, 2012.
LIMA, E. L. DE. Do corpo ao espaço: Contribuições da obra de Maurice Merleau-Ponty à
análise geográfica. GEOgraphia, v. 9, n. 18, 22 fev. 2007.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes,
1999.
MERLEAU-PONTY, Maurice. A natureza. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2000.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Conversas-1948. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
SOUZA, Lucas Kaliel Tavares de Souza. NETO, Romeu Bacelar de Souza. Merleau-Ponty e o primado do corpo como experiência nascente
da paisagem. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº. 16, pp. 98-123, janeiro-abril de 2022.
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123
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. Tradução de Paulo Neves e Maria
Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Cosac e Naify, 2004.
SANTOS, Milton. Metamorfose do espaço habitado: fundamentos teóricos e metodológicos
da geografia. São Paulo: Hucitec, 1988.
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
IBANHEZ, João Carlos Nunes. Por que não posso ser Doreen Massey?. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº 16, pp. 125-126,
janeiro-abril de 2022.
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SEÇÃO LEITURAS
POR QUE EU NÃO POSSO SER DOREEN MASSEY?
WHY CAN’T I BE DOREEN MASSEY?
¿POR QUÉ NO PUEDO SER DOREEN MASSEY?
João Carlos Nunes Ibanhez1
Universidade Federal de Grandes Dourados (UFGD),
Mato Grosso do Sul, Brasil
E-mail: zamoms@hotmail.com
Dagmar, Dagmar!
“Qualé” bicho, para de frescura, mas que cara chato,
simplesmente você não pode ser Doreen Massey,
vai fazer poesia ou pedalar, não vem com essa!
Mas eu quero ser essa esfera de encontro.
Seria necessário perceber o espaço como produto das dificuldades e complexidades.
Os indígenas tiveram suas terras violadas, os negros foram retirados de sua terra.
É indispensável distinguir trajetórias relativamente autônomas.
Vivo em barraco, leio romances, o governo vai taxar livros porque pobre não lê.
Vislumbrar a coexistência de uma multiplicidade de estórias-até-agora.
Simplesmente ele foi preso com tornozeleira falsa para impressionar.
Pense em uma nova política da espacialidade.
As facções dão rajadas para desaglomerar, mas é o papel do Estado,
o governo vai cair. Guerra civil e caos. Eles serão a nova política!
Doutorando em Geografia pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
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IBANHEZ, João Carlos Nunes. Por que não posso ser Doreen Massey?. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº 16, pp. 125-126,
janeiro-abril de 2022.
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Tente refletir o que molda sua cosmologia.
Matei uma cobra, era ela ou eu, mas é crime matar animais silvestres.
Reconheça a coexistência da(s) diferença(s).
A leoa não namora o mico-leão porque ele é primata.
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BORGES, Thiago. Meu contexto. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº. 16, pp. 126-131, janeiro-abril de 2022.
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SEÇÃO LEITURAS
MEU CONTEXTO
MY CONTEXT
MI CONTEXTO
Thiago Borges1
Universidade Federal Fluminense (UFF),
Rio de Janeiro, Brasil
E-mail: mpt.thiago@gmail.com
Meias palavras na cabeça que não querem ser ditas
Versos surgem como gota d'água no deserto
Depois de cair no sono, elas evaporam
Da janela do meu celular, vejo mundos em seus respectivos
Geograficidade
Os delírios dessa droga
Me fazem pensar em todas as relações que tive outra hora
Sentir a ansiedade correr pela minha respiração
E meu braços pesados demais pro meu corpo
Que não sabe o que fazer
1
Graduando em Geografia pela UFF.
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Mesmo com tantas obrigações
Thêmis, ó santa
Seu governo está penoso
Uma porrada atrás da outra
Mano Brown falou pra ter fé em Deus
Já tentei, mas confesso, fraquejei
Se eu pudesse gritar e ser ouvido
Diria a Rousseau
Que esqueceram de passar o contrato aqui
Diria também
Que o império da violência nunca passou
E o mundo continua dividido entre nós e eles
Eles
Palmas a eles, eis os futuros mestres sociais de nossa sociedade
Que estudam com afinco na universidade
Já descobriram que existe pobreza na sua cidade ?
Vamos à praça, enquanto você me conta sobre como descobriu a desigualdade
Tá bom, eu sei, já tô sabendo que eles não são os culpados
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Só é um pouco difícil pra mim diferenciar
Responveis de beneficiados
A verdade é que
Eu luto pra estrutura não me dominar
Mas, no fim de dias,
Minha força sempre vem acabar
E
Eu tento não ver racismo
Mas vocês não deixam !
Eu tento ouvir outras músicas
Mas vocês não deixam !
Eu tento não ser subalterno
Mas vocês não deixam, porra !
Eu tento esquecer as histórias demolidas
Que perseguem nossa sociedade. Mestiça ?
Mas suas atitudes não deixam !
Estou deixando de ser o gato encurralado
Para um leão esfomeado
Que não aceita mais apanhar
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Aquele que não compra suas mentiras de toque caviar
Esse é um grito de socorro
De quem não pediu para vir a este mundo
Mas desde que chegou só quer ser aceito sem esforço
Mais uma vez fui deitar com a cabeça
Tentando bolar estratégias para não deixar me afetar essas coisas
Que me atravessam que nem bala sutil e retardada
Vai, me digam mais uma vez,
Como a "energia" sempre está a um passo de nos ajudar
E como ela fez seu dia melhor
Diga isso, também, aos meus colega de infância
Que hoje veem o sol por tempos regulados, presos, foram atrás de suas ganância
Ou àqueles que nem mais veem
Se minha mãe não fosse quem fosse
E meu pai uma vez não fosse atropelado tentando alimentar uma casa
Aqueles eram eu
Entende ?
Talvez por isso as palavras me faltem com você
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BORGES, Thiago. Meu contexto. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº. 16, pp. 126-131, janeiro-abril de 2022.
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Meu fôlego vale demais pra tu entender
Da rima eu já abri o
Usar palavras estou tentando
Mas não tá funcionando
Contraditório
A verdade é que rir com quem sabe de tudo
Sem precisar dizer nada
Por que também é seu contexto
É bem mais fácil que escrever esse texto
Ando pela cidade e vejo os meus sofrerem
Vejo suas almas cansadas e atribuladas
Aqueles que nem tempo de sofrer têm
Porque é isso o tempo todo
Será que temos todo o tempo do mundo ?
É só apanhando que se pode resistir, meu caro
Minha consciência de pobreza não foi um esforço
Tampouco uma escolha, se quero pensar nisso agora ou depois
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BORGES, Thiago. Meu contexto. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº. 16, pp. 126-131, janeiro-abril de 2022.
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Desde cedo a gente aprende a não sofrer por pouco
Será que conseguimos mémo ?
Ou só suprimimos o que não se pode esconder
Pensando bem, nem depressão nós pode parar pra ter
Seus privilégios vão daí até muito mais
Sentar no sofá e não duvidar que nada essencial vai faltar
Ver todos os filmes em cartaz
Conhecer todos os cantores do Brasil, sensacionais
Vo não conhece essa música ? Esse filme ? Nunca veio aqui ? Ou viajou pra lá ? Qual
mundo que você tá ?
Pois é, no seu é que nunca estive
Tá bem, deixa disso
Não pra viver com a cabeça nesse pleito
Vou dormir, logo logo eu recarrego pra te ouvir falar sobre preconceito.
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SILVA FILHO, Luiz Carlos da. A Captura do Capturado Capturante. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº 16, pp. 133-135,
janeiro-abril de 2022.
Submissão em: 11/10/2021. Aceito em: 25/04/2022.
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SEÇÃO VISUALIDADES
A CAPTURA DO CAPTURADO CAPTURANTE NAS MARGENS DA ILHA DE
DEUS, RECIFE/PE
THE CAPTURE OF THE CAPTURING CAPTURED ON THE MARGINS OF THE
ILHA DE DEUS, RECIFE/PE
LA CAPTURA DEL CAPTURADO CAPTURANTE EN LOS MÁRGENES DE ILHA
DE DEUS, RECIFE/PE
Luiz Carlos da Silva Filho1
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN),
Rio Grande do Norte, Brasil
E-mail: luizcarloss246@gmail.com
1
Mestre em Geografia pelo Programa de Pós-graduação em Geografia PPGE/UFRN, licenciado em Geografia
pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente é professor da Rede Municipal de Ensino deo Lourenço
da Mata na Escola Municipal Cleto Campelo.
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
SILVA FILHO, Luiz Carlos da. A Captura do Capturado Capturante. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº 16, pp. 133-135,
janeiro-abril de 2022.
Submissão em: 11/10/2021. Aceito em: 25/04/2022.
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JUSTIFICATIVA
Ao longo de 2021, eu realizava um trajeto de mais ou menos uma hora e meia entre
São Lourenço da Mata (município no qual resido) até um território marginalizado e
estigmatizado pela sociedade. Ia em direção à Zona Especial de Interesse Social Ilha de Deus
ZEIS-Ilha de Deus, localizada no bairro do Pina, na Região Metropolitana do Recife.
Lembro-me que ao chegar pela primeira vez, em 2019, eu era tomado e levado a
percorrer com medo um mundo construído pelo meu preconceito que era resposta ao que era
absorvido pela verticalidade burguesa do Recife. Em busca de vivenciar e submergir, a fim de
desenvolver um hódus-metá intitulado Cartografias antropofágicas das paisagens” junto aos
movimentos dos corpos capturantes que expressavam naturalmente suas habilidades
genealógicas, eu descobria as cores no desassombro com o outro ao longo dos anos. Formava-
se ali, naquele breve instante, um elo entre o capturador (geofotógrafo), capturados e
capturantes (moradores e a paisagem).
A bela e pequena Ilha de Deus é cenário cultural e econômico da cidade do Recife. A
coleta e a venda de mariscos, sururus, camarões, caranguejos e pescados é essencial na
rotatividade econômica e afetiva. É no tocar e limpar que as experiências são passadas entre
gerações. É com as mãos e os pés desnudos tocando a lama que o ser-Ilha de Deus sente-se
parte, pedaço, gente, sente-se humano. A vaidade, o cuidado com sua íntima beleza é deixado,
por instante, em repouso, pois a lama torna-se parte única do seu corpo em todo processo
mecanizado e humano.
O que existe na pequena Ilha de Deus é uma simbiose entre o homem-mulher-criança-
mangue que relembra ao homem-caranguejo de Josué de Castro (1967), a poesia do maracatu
frenético e psicodélico de Chico Science e Nação Zumbi em Risoflora (1994), na obra de
Abelardo da Hora em suas gravuras existenciais, que por ventura são dignas de análises
esquisoanalíticas em Meninos do Recife (1962).
Com suas mãos inocentes e com seus s descalços em pleno meio-dia, uma criança
curvava-se em direção ao chão em um ato de captura de um animal, o mimetismo da criança a
tornava menino-caranguejo. Sua mão tornava-se pinça capturante, a pinça do animal deixava
de pinçar, e ele então era capturado. Essas capturas formavam elos: “A captura do caranguejo
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
SILVA FILHO, Luiz Carlos da. A Captura do Capturado Capturante. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº 16, pp. 133-135,
janeiro-abril de 2022.
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pelo garoto que tem sua pele contrastada com o cinza do chão, um caranguejo que tem sua ação
de pinçar-defesa ‘roubada’ pelo garoto e ressignificada; e pelo geofotógrafo que captura as
capturas dos capturados” (SILVA FILHO, 2021, p. 11).
O Capturado-capturante, Ilha de Deus, Recife, Pernambuco, Brasil.
REFERÊNCIAS
CASTRO, J. Homens e Caranguejos. São Paulo, Ed: Brasiliense, 1967.
HORA, A. Meninos do Recife. 1962.
SCIENCE, C. Risoflora. Recife: CHAOS, 1994. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=BMHltpsyTzY>. Acesso em: 02 abr. 2022.
SILVA FILHO, L. C. Meeting of the multiplicity in supermodernity in the geo-photographies
of the being-mangrove in the ZEIS Ilha de Deus, Recife-PE. Geopauta, [S. l.], v. 5, n. 4, p.
e9756, 2021. DOI: 10.22481/rg.v5i4.e2021.e9756. Disponível em:
<https://periodicos2.uesb.br/index.php/geo/article/view/9756>. Acesso em: 2 abr. 2022.
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
FREITAS, Rafael Alves. As transformações na Paisagem Portuária do Rio de Janeiro. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº. 16,
pp. 135-147, janeiro-abril de 2022.
Submissão em: 21/12/20121. Aceito em: 07/04/2022.
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SEÇÃO VISUALIDADES
AS TRANSFORMAÇÕES NA PAISAGEM PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO
THE LANDSCAPE TRANSFORMATIONS AT RIO DE JANEIRO’S PORT AREA
TRANSFORMACIONES EN EL PAISAJE PORTUARIO DE RÍO DE JANEIRO
Rafael Alves de Freitas1
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ),
Rio de Janeiro, Brasil
E-mail: uerj.raf@gmail.com
Mestrando em Geografia, pelo PPGGEO - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Possui
Licenciatura Plena em Geografia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
FREITAS, Rafael Alves. As transformações na Paisagem Portuária do Rio de Janeiro. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº. 16,
pp. 135-147, janeiro-abril de 2022.
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JUSTIFICATIVA
A Zona Portuária (ou Porto Maravilha) da cidade do Rio de Janeiro faz parte da
Região Administrativa da capital, compreendida pelos bairros do Centro, Caju, Gamboa, Santo
Cristo e Saúde, com um total de 35,001 habitantes, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística IBGE (2010). A história da zona portuária remonta ao período colonial, em que
essa área exerceu importante papel econômico para a cidade e para o país. Contudo, a partir da
segunda metade do século XX, os investimentos nessa área da cidade deixam de existir, e aos
poucos a zona portuária vai sofrendo um esvaziamento econômico de toda ordem, com o
abandono de diversos armazéns e galpões. Por outro lado, percebeu-se o aumento de bairros
adensados, formando o processo de favelização no entorno dessa área (FARIAS, 2019). A
figura 01 representa a delimitação espacial da zona portuária do Rio de Janeiro / RJ.
Figura 01: Recorte espacial da Zona Portuária / RJ, com indicação de bairros e logradouros principais.
Fonte: BaseGeo do site da prefeitura do Rio de Janeiro.
Elaborado pelo autor (2021).
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Vale ressaltar que o crescimento rodoviário da cidade também teve papel determinante
na degradação espacial da zona portuária, pois transformou o antigo centro histórico e
econômico em um local de passagem. Com a abertura da Avenida Presidente Vargas, entre o
Centro e a zona portuária, houve um isolamento espacial desta última, que por sua vez perdeu
as vantagens locacionais utilizadas economicamente até o início do século XX. A construção
do Elevado da Perimetral sobre a Avenida Rodrigues Alves, na década de 1970, também
acelerou o processo de degradação urbana na área portuária (FARIAS, 2019). Pela figura 02,
vemos a Praça Mauá no início do século XX.
Figura 02: Vista aérea da Praça Mauá (1916)
Fonte: http://www.rio.rj.gov.br/web/arquivogeral/acervodigital
Acesso em: 07 de maio. 2021.
nos anos 2000, na entrada do século XXI, a gestão do prefeito César Maia buscou
alternativas no que ele próprio chamou de "revitalização" da área portuária. Nesse sentido,
algum tempo depois, tendo o Eduardo Paes como prefeito, a Operação Urbana Consorciada
Porto Maravilha propôs um novo paradigma para a zona portuária carioca. A intenção era trazer
de volta investimentos econômicos e transformá-la em um modelo de empreendedorismo
urbano, em que o setor público contaria com o apoio financeiro do setor privado para a
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FREITAS, Rafael Alves. As transformações na Paisagem Portuária do Rio de Janeiro. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº. 16,
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implantação das transformações urbanas da até então área degradada/abandonada (FARIAS,
2019).
Assim, de um passado esquecido pelo poder público, tornando-se palco de uma das áreas
mais violentas/inseguras da cidade, sendo refúgio para moradores de rua, assaltantes e com
construções antigas e abandonadas, mas também marcada por uma vida pulsante, a zona
portuária e, mais precisamente a Praça Mauá “ressurgem” após uma intensa revitalização que
acontece no momento em que a cidade passa a sediar a Copa do Mundo em 2014 e os jogos
olímpicos Rio-2016.
Figura 03: Praça Mauá com a Perimetral (ponte), nos anos 2010, antes da revitalização
Fonte: O autor (2010).
Dentro desse contexto de revitalização, temos o Boulevard Olímpico que fica localizado
na zona portuária (Praça Mauá), que foi projetado para ser um lugar de convivência/interação
de cariocas e turistas ao longo da Olimpíada Rio-2016, que a prefeitura à época disponibilizou
telões para que as pessoas pudessem assistir e torcer pelos brasileiros nas diversas modalidades
olímpicas. O sucesso foi tanto que este lugar até hoje recebe diariamente centenas de pessoas
entre cariocas e turistas de outros estados e até internacionais, segundo informações da
secretaria municipal de turismo da cidade do Rio de Janeiro (SETUR, 2021). Não podemos
esquecer que a Praça Mauá passou a abrigar um dos maiores e mais conceituados museus do
mundo moderno, que é o Museu do Amanhã.
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Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
FREITAS, Rafael Alves. As transformações na Paisagem Portuária do Rio de Janeiro. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº. 16,
pp. 135-147, janeiro-abril de 2022.
Submissão em: 21/12/20121. Aceito em: 07/04/2022.
ISSN: 2316-8544
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Figura 04: Praça Mauá após as obras de revitalização, sem a Perimetral e com o Museu do Amanhã ao fundo
(2016).
Fonte: https://museudoamanha.org.br/ - Acesso em: 10 de maio. 2021
Portanto, com a realização dos jogos olímpicos, a cidade do Rio de Janeiro - como a
zona portuária - passa a receber investimentos e diversas obras são realizadas. Uma dessas obras
que mais impactou a cidade no contexto turístico foi realizada na zona portuária, tendo na Praça
Mauá um símbolo máximo dessa revitalização.
A zona portuária por ter mais de 05 milhões de metros quadrados, apresenta hoje
diversas opções turísticas, um verdadeiro complexo turístico inserido numa área em que a vida
não parou, sendo resistência por parte de muitos que viveram e vivem nessa área da cidade.
Dessa revitalização surge o nome Porto Maravilha em alusão à cidade maravilhosa.
Dentro desse complexo encontramos os seguintes atrativos turísticos: Praça Mauá,
Museu do Amanhã, Museu de Arte do Rio (MAR), Largo de São Francisco da Prainha,
Pedra do Sal, Morro da Conceição, Cais do Valongo, Jardim Suspenso do Valongo,
AquaRio, Boulevard Olímpico (Orla Conde), Beco das Sardinhas, Angu do Gomes e mais
recentemente a maior roda gigante da América Latina. Podemos dizer então que a zona
portuária guarda muitas histórias do Rio, e uma caminhada por suas ruas revela a riqueza
material e imaterial contidas ali. Toda essa área, onde nasceu o samba, tem notória vocação
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cultural, com manifestações artísticas de todo tipo, marca da identidade desses bairros que
compõem a zona portuária.
Figura 05: Museu do Amanhã
Fonte: https://museudoamanha.org.br/ - Acesso em: 10 de maio. 2021
Figura 06: Roda Gigante do Rio de Janeiro (Praça Mauá) Fonte: https://riostar.tur.br/- Acesso em: 10 de maio.
2021
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Figura 07: Museu de Arte do Rio (MAR)
Fonte: http://museudeartedorio.org.br/ - Acesso em: 10 de maio. 2021
Assim, percebemos que esses fixos (construções), conforme figuras 05, 06 e 07
(Museu do Amanhã, Roda Gigante e Museu de Arte do Rio - MAR), entram no circuito carioca
do turismo, complementando a vocação turística original de uma cidade que apresenta belas
praias, e muitas famosas pelo mundo todo. Segundo Allis e Vargas (2015), a concepção
tradicional de “turista” não parece dar conta de explicar o avanço do turismo urbano na
dinâmica de grandes cidades, como da cidade do Rio de Janeiro, especialmente porque os
comportamentos espaciais dos turistas e dos moradores (cariocas ou não) são, em grande
medida, semelhantes e se confundem. A própria Praça Mauá é um lugar plural em que
encontramos pessoas das mais diversas nacionalidades, e nesse sentido, morador e turista se
confundem e se entrecruzam.
Logo, o Rio de Janeiro por meio da revitalização da zona portuária passa por um
processo em que o turismo se diversifica, oferecendo opções para além das praias, e no contexto
pandêmico de 2020 até agora, a praça passa por um esvaziamento em virtude do isolamento
social.
E nesse contexto, a cidade do Rio por ser uma cidade extremamente desigual e
segregada, é possível encontrarmos cariocas (e moradores) que não desfrutam desses eventos
turísticos pelos mais variados motivos. Assim, podemos citar, por exemplo, a dificuldade de
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acesso dos moradores que estão em áreas mais afastadas do centro do Rio e dos locais onde há
oferta de serviços turísticos e que dependem de um sistema de transporte que seja eficaz, o que
não acontece na cidade. Importante frisar que existe uma linha tênue entre o que é ser turista ou
não, e assim concordamos com Allis e Vargas (2015, p. 501),
Por mais corriqueira que possa ser a paisagem urbana a seus moradores, os
significados e as interações que se processam podem perfeitamente variar, de maneira
que o residente, como sugerido por Walter Benjamin, pode se converter, se assim o
desejar, no flâneur, “perambulando” pela cidade, muitas vezes com o mesmo grau de
estranhamento e deslumbramento de um turista, ainda que considerá-los viajantes
possa parecer um exagero.
Porém, para além dos fixos que encontramos nessa área da cidade, ainda temos lugares
dotados de valor cultural para além daquilo que a visão abarca. Exemplo disso é o Cais do
Valongo, outro atrativo turístico da zona portuária.
O tráfico Atlântico (pessoas escravizadas) e a escravização de africanos nas Américas
entre os séculos XVI e XIX é um longo e trágico episódio de enorme relevância para a história
da humanidade. Quase um quarto de todos os africanos escravizados nas Américas chegaram
pelo Rio de Janeiro. Portanto, a cidade pode ser considerada o maior porto escravagista da
história.
Revelado por escavações arqueológicas realizadas em 2011, em virtude das obras para
as Olimpíadas, o Cais do Valongo assumiu o valor simbólico de testemunho material das raízes
africanas nas Américas e constitui um desses espaços em que a materialidade se condensa em
memória viva, exemplo da chegada e da fixação dos africanos neste lado do Atlântico, conforme
figura 08. E, recentemente, o Cais do Valongo recebeu o tulo de Patrimônio Histórico da
Humanidade, pela UNESCO.
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Figura 08: Vista frontal do Sítio Arqueológico Cais do Valongo Fonte: O autor (2019).
No primeiro plano, os vestígios do Cais da Imperatriz, seguidos do calçamento do Cais do Valongo. Ao
fundo, no centro, a coluna alusiva do Cais da Imperatriz.
Assim, concordamos com Cifelli (2012, p. 119), e entendemos que,
Num cenário de acirramento da competição global entre cidades, os centros urbanos
patrimonializados, por seus atributos materiais diferenciais e pelo forte simbolismo
que carregam, constituem-se em elementos representativos para a criação e difusão de
imagens dotadas de especificidades que distinguem e valorizam a cidade em que se
localizam, tendo o patrimônio como sua principal referência identitária.
A zona portuária é, pela riqueza que apresenta, uma área repleta de atributos com valor
turístico, permeado de histórias de resistências do passado, mas também resistências
encontradas no presente. Isso se dá em virtude, por exemplo, de locais pobres no entorno dessa
área que não foram “revitalizadas”, muito pelo contrário, criou-se um cenário/paisagem de
contraste ainda maior entre locais pobres e áreas turísticas, a exemplo do Morro da Conceição,
vizinho à Praça Mauá.
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Figura 09: Morro da Conceição Zona Portuária / RJ Fonte: O autor (2019).
Por outro lado, temos, conforme figura 10, o Boulevard Olímpico (Orla Conde), em que
é possível perceber que é uma área ampla, com paredões imensos, voltados ao grafite de
diversos artistas, inclusive Eduardo Kobra e os Gêmeos. É possível vermos também, em
primeiro plano, a presença do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), que além de cumprir seu
papel principal, ligando à rodoviária Novo Rio ao aeroporto do Rio de Janeiro (Santos
Dumont), exerce também um valor turístico, já que o VLT passa por todo circuito turístico em
que a zona portuária se encontra.
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Figura 10: Boulevard Olímpico (Orla Conde)
Fonte: https://www.vltrio.com.br/#/ - Acesso em: 10 de maio. 2021.
É possível aproximarmos, a exemplo do que aconteceu em Havana Velha (Cuba), que a
refuncionalização da zona portuária gerou um processo de acentuação das disparidades sociais.
Na América Latina tais intervenções, lidas aqui no contexto da revitalização da zona
portuária, passa a ocorrer de forma mais acentuada nos centros urbanos e nos sítios antigos,
voltados à recuperação destas áreas para o consumo cultural, do lazer e para o turismo, e não
para o retorno das classes médias e das elites para fins residenciais, como ocorreu nos países
centrais. Embora, aqui, vemos que na verdade a zona portuária passa a ser local de moradia
precária devido ao seu abandono e das políticas higienistas promovidas por Pereira Passos, e
hoje, essas mesmas construções contrastam com as edificações robustas e modernas que
ocupam a mesma área (GONZÁLEZ; PAES, 2020).
Ainda, podemos perceber que de uma forma mais sutil, a presença de um arquétipo, em
que o simulacro criado é o aquário do Rio (AquaRio), que exerce para os seus
visitantes/turistas uma experiência de contato “direto” com o mundo marinho.
Para Fernandes (2020, p. 175), “nesta viagem por lugares reais e irreais, mas vividos,
nesta globalização que traz complexidade ao conceito de distância (e não a sua simples
compressão), é comum a encenação do que está longe e do que parece inalcançável”.
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Figura 11: Aquário do Rio (AquaRio)
Fonte: https://www.aquariomarinhodorio.com.br/ - Acesso em: 10 de maio.
Segundo Milton Santos, os objetos fixos que compõem o espaço, entendidos como
aqueles que são construídos pelo homem em determinado momento histórico, são de grande
importância, pois funcionam como legado, por sua permanência no espaço geográfico ao qual
esteja inserido, e isso ajuda a entender o espaço que temos hoje nessa região da zona portuária.
Santos, afirma que,
O passado passou e o presente é real, mas a atualidade do espaço tem isto de
singular: ela é formada de momentos que foram estando agora cristalizados como
objetos geográficos atuais; essas formas-objetos, tempo passado, são igualmente
tempo presente, enquanto formas que abrigam uma essência, dada pelo fracionamento
da sociedade total. Por isso, o momento passado está morto como tempo, não, porém
como espaço; o momento passado já não é, nem voltará a ser, mas sua objetivação
não equivale totalmente ao passado, uma vez que está sempre aqui e participa da vida
atual como forma indispensável à realização social (SANTOS, 2007, p. 14).
Podemos concluir então, que a revitalização da zona portuária trouxe inúmeros avanços
no meio turístico, valorizando uma área até então degradada, aquecendo a economia local e
dando oportunidade de lazer e entretenimento, inclusive aos moradores do entorno, como do
Morro da Conceição. Sem perder a crítica, ao olharmos para a dualidade da zona portuária com
seus investimentos refletidos nas paisagens e em contraste com algumas localidades carentes,
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percebemos que esses lugares ainda sofrem com problemas picos da ausência do Estado, a
começar pela falta de segurança pública.
Em suma, percebemos então as transformações da paisagem da zona portuária do Rio
de Janeiro ao longo da sua história. E hoje, temos uma paisagem encenada, que cumpre com a
finalidade de atender a um público que deseja usufruir de momentos de lazer e entretenimento.
Contudo, essa mesma paisagem que agrega é a mesma que segrega. Ou será que todos têm
acesso igualitário aos mesmos serviços ali oferecidos?
REFERÊNCIAS
ALLIS, T.; VARGAS, H, C. Turismo Urbano em São Paulo: reflexões teóricas e
apontamentos empíricos. Turismo em Análise, V.26, N.3, p. 496 - 517, 2015.
CIFELLI, G. Imagem, representação e dinâmica territorial do turismo em Ouro Preto e
no Pelourinho Salvador. E cadernos CES [Online], n. 15, 2012, p. 118-141.
FARIAS, Bárbara Rosendo de. Parcerias blico-Privadas na Operação Urbana
Consorciada Porto Maravilha. Trabalho de Conclusão de Curso Universidade Federal
Fluminense (UFF) - (Graduação em Geografia), Niterói 2019. P. 55.
FERNANDES, José Luís Jesus. Arquétipos e paisagens. Simulacros e anatopias geográficas
nos territórios de consumo, lazer e turismo. Revista Biblos. N. 06. 3ª. Edição. P. 169-191.
2021. https://doi.org/10.14195/0870-4112_3-6_8
GONZÁLEZ, María Karla Hernández; PAES, Maria Tereza Duarte. Refuncionalização
turística do centro histórico de Havana Velha. Mercator, Fortaleza, v.19, e 19020, 2020.
IBGE: Aglomerados Subnormais no Censo, 2010. Fonte:
https://censo2010.ibge.gov.br/agsn/ - Acesso: 10 de mai. 2021.
SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. 5. ed. São Paulo: EdUSP, 2007.
SECRETARIA MUNICIPAL DE TURISMO DO RIO DE JANEIRO (SETUR/RJ)
Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/web/setur - Acesso: 09 de mai. 2021.