Fri, 31 Mar 2023 in Fractal: Revista de Psicologia
Identidade indígena: olhares a partir da Psicologia Social
Resumo
Este estudo consiste numa revisão integrativa cujo objetivo é identificar como a Psicologia Social tem abordado as questões relativas à identidade indígena. O levantamento foi feito a partir de artigos que tratam das questões indígenas na perspectiva da Psicologia Social nas bases eletrônicas: SciELO, Pepsic, LILACS, BVS- Psi e APA. Os descritores foram: identidade étnica, indígena, índio, identidade social e Psicologia social. Considerando os critérios de inclusão e exclusão, foram compilados 19 estudos nacionais e internacionais referentes à última década, publicados em revistas de psicologia, evidenciando o caráter recente de estudos que aproximem a Psicologia Social de estudos sobre identidade indígena. Por meio do levantamento realizado, verificou-se que as publicações sobreA o tema se organizaram em quatro eixos: (1) compreensão da identidade étnica a partir da Psicologia Social; (2) representações sociais, preconceito e discriminação contra indígenas; (3) efeitos da relação interétnica para indígenas; e (4) os desafios da relação pesquisador e indígenas.
Main Text
1. Introdução
A temática indígena tem sido foco de estudos da ciência psicológica de maneira mais contundente nas duas últimas décadas. No Brasil, esses estudos ganharam força a partir dos anos 2000, período subsequente à constituição de 1988, considerada um marco no reconhecimento dos povos indígenas como pertencentes à sociedade brasileira e na condição de cidadania dessas populações (SOUZA; BARBOSA, 2011). Essa condição jurídica impulsionou a abertura de uma nova consciência étnica dos povos indígenas no Brasil. Ser índio passou a ser uma condição de orgulho identitário, contribuindo para desdobramentos importantes no que se refere ao campo científico, com estudos desenvolvidos sobre educação, saúde, políticas de identidade e direitos humanos (BANIWA, 2006; FERRAZ; DOMINGUES, 2016; MARTINS; SANTOS; COLOSSO, 2013).
Vale ressaltar que os direitos garantidos com a constituição federal foram conquistados a partir de tensionamentos constantes entre estado, sociedade não indígena e povos indígenas, que passaram a demandar reconhecimento identitário. Esses tensionamentos estão relacionados às condições de preconceitos e discriminações a que os indígenas foram submetidos ao longo de sua história, iniciada desde a chegada dos portugueses ao Brasil. Esse primeiro momento foi marcado por epidemias, extermínio e escravização, o que levou à diminuição drástica da população indígena no Brasil (FERRAZ; DOMINGUES, 2016; RIBEIRO, 2013). Ainda nos dias atuais, o imaginário social mantém o indígena vinculado a esse passado, aliado a uma concepção equivocada de cultura, compreendida como algo estático, exclusivamente ligada à ancestralidade (BARTH, 1998; LIMA, 2016). Esses são fatores que interferem e dificultam a mudança de postura da sociedade em relação às populações indígenas, contrariando as conquistas jurídicas alcançadas (CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO, 2016; SOUZA; BARBOSA, 2011).
De acordo com o Censo de 2010, existem atualmente no território brasileiro mais de 230 povos indígenas, que somam 896.917 pessoas, o que corresponde 0,47% da população total do país. Deste total, aproximadamente 36% vivem em cidades e 64% em áreas rurais (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2010). O aumento populacional desses grupos étnicos evidencia as contradições que vivenciam na relação com a sociedade não indígena e o Estado. Nessa relação, destaca-se o processo de aculturação, que coloca os indígenas em uma situação de desvantagem em relação à cultura dominante, enfraquecendo suas referências culturais, predispondo estes sujeitos a uma condição de vulnerabilidade, no que se refere, por exemplo, à incidência do alcoolismo, ao uso de drogas e ao suicídio (FERRAZ; DOMINGUES, 2016).
O estudo dos processos identitários tem interessado à Psicologia Social, seja para analisar o modo como indivíduos se constituem - identidade pessoal -, seja para estudá-los enquanto membros de grupos ou categorias sociais (DESCHAMPS; MOLINER, 2008; PAIVA, 2007). Embora esse reconhecimento acerca do interesse da Psicologia Social pelo estudo dos processos identitários seja legítimo, parece estar direcionado a grupos sociais específicos em detrimento de outros (MARTINS; SANTOS; COLOSSO, 2013). Se tomarmos como parâmetro as incipientes e reduzidas investigações científicas no campo da Psicologia Social que tratam de questões indígenas, podemos situar esses grupos étnicos entre os que têm recebido menos atenção ou despertado menor interesse dos pesquisadores (FERRAZ; DOMINGUES, 2016; LIMA, 2016).
Por outro lado, nas ciências sociais clássicas - Antropologia, Sociologia e Ciência Política - a categoria Identidade é utilizada, sobretudo, para descrever a noção de pessoa nas etnias indígenas, afrobrasileiras, populações tradicionais e, mais recentemente, para segmentos minoritários e emergentes (LOPES, 2002). Embora a Identidade seja uma categoria estudada por esses campos, quando abordamos a especificidade da identidade indígena ou identidade étnica, constatamos que os interesses se situam, sobretudo, no campo específico da Antropologia. Esta disciplina, até bem pouco tempo, dedicava-se exclusivamente à análise de sociedades primitivas, mais atualmente adota uma noção de Identidade como elemento de organização social, concedendo-lhe um caráter de dinamicidade (BARTH, 1998).
Na Psicologia Social a identidade tem sido estudada sob diferentes perspectivas, variando de um enfoque psicológico, que pressupõe o indivíduo compreendido a partir de sua participação em grupos sociais, a análises sociológicas, cuja ênfase se dá nas relações intergrupais. Mais que isoladas, a articulação dessas perspectivas tem contribuído de forma significativa para compreensão da identidade (FERREIRA, 2010).
No nível das relações intergrupais, a identidade vem sendo estudada, principalmente, pelo modelo de categorização e das investigações que envolvem as relações entre grupos, numa perspectiva de investigação que situa essas análises a partir da teoria da identidade social (TAJFEL, 1981), segundo a qual a identidade social de um indivíduo pressupõe o conhecimento que esse tem de sua pertença a um grupo social, associado ao significado emocional e valorativo dessa pertença. As relações intergrupais são marcadas pelos processos de comparação social, havendo uma tendência de acentuar semelhanças no endogrupo e diferenças no exogrupo, bem como de valorizar o grupo de que o indivíduo faz parte, em detrimento do outro grupo (TAJFEL, 1981; VALENTIM, 2008).
Para além de estudos acerca da identidade social, ressalta-se também o crescimento que estudos sobre preconceito e racismo têm ganhado no âmbito da Psicologia Social, contribuindo para o entendimento das relações entre grupos sociais distintos numa sociedade e o tratamento desigual que se estabelece entre estes grupos. Compreender conceitualmente e como se constituem fenômenos como preconceito, racismo e discriminação numa sociedade é primordial para entendermos a extensão dessa problemática vivida por populações indígenas no Brasil, dado o colonialismo que marca a história deste país. Por preconceito pode-se entender uma atitude1 hostil ou de antipatia contra um indivíduo ou um grupo todo, por considerá-lo socialmente desvalorizado (ALLPORT, 1954; LIMA, 2020). Já o racismo, de acordo com Lima e Vala (2004), consiste numa hierarquização e inferiorização de indivíduos ou grupos, decorrente da percepção das diferenças físicas ou culturais, compreendidas como determinantes naturais das habilidades sociais e culturais dos indivíduos ou grupos. (LIMA, 2020; CFP, 2022).
É a partir do colonialismo que surgem, no Brasil, as figuras do negro, do indígena e do branco. Até então essa distinção inexistia. Todos eram humanos, cidadãos, europeus e brancos. A ideologia que se constituiu a partir dessa diferenciação entre grupos étnicos/raciais se deu historicamente, sendo as pessoas negras e de origem indígena vistas como selvagens, agressoras, erradas, causadoras de males, enquanto o homem branco passa a ser visto como ideal de ser humano, “aquele que se almeja ser”.2 A invenção da “raça” para diferenciar grupos sociais passa a ser o marcador responsável pelas desigualdades que atingem tais grupos, violando os direitos humanos de grupos considerados minoritários (CFP, 2022).
A Psicologia Social se apresenta como uma fonte de conhecimento relevante para compreendermos o fenômeno do racismo em seus aspectos individuais, sociais, históricos e culturais. Os fenômenos do preconceito e racismo são estudados em sua natureza, semelhanças e diferenças com outros fenômenos sociais, além de uma compreensão político-ideológica e o papel da dinâmica da estrutura das relações sociais. É importante olharmos como esses fenômenos se apresentam no contexto brasileiro, como características e expressão, a fim de de combatê-los (LIMA, 2020). Nesse sentido, no Brasil, o fenômeno do racismo manifesto contra os povos originários se expressa predominantemente pelo racismo cultural, fruto de uma cultura etnocêntrica, que privilegia um grupo étnico em detrimento de outro, e, de forma mais específica, pelo racismo ambiental, quando a diferença é marcada pela violação de direitos e negação de políticas públicas ambientais aos povos originários (PACHECO; FAUSTINO, 2013).
Em estudo sobre a manifestação de racismo contra povos indígenas no Brasil, Ribeiro (2022) apresenta um panorama dos casos ocorridos em cidades brasileiras, a partir de um levantamento feito no período entre 2003 e 2019. O estudo feito a partir da sistematização e análise das publicações do Conselho Indigenista Missionário - CIMI sobre violências contra povos indígenas revela diferentes manifestações de racismo, tendo como decorrência comum a exclusão dos indígenas nas cidades brasileiras.
À Psicologia Social interessa, ainda, compreender como as atitudes e comportamentos sociais desenvolvidos contribuem para a construção dos processos de identificação individual e coletiva. A depender do indivíduo e do grupo ao qual pertença, essa identificação pode ser comprometida, podendo levar a uma negação de uma identidade originária e, ainda, a um preconceito com seu próprio grupo de origem (CARONE; BENTO, 2017).
Partindo dessas considerações e de uma revisão integrativa de literatura, neste trabalho busca-se identificar as contribuições da Psicologia Social para as questões relativas à identidade indígena, assumindo uma perspectiva crítica e apontando os avanços e limites das pesquisas sobre a temática. Em uma perspectiva mais ampla, abordar essa problemática pode contribuir para fomentar diálogos e definir formas de atuação que busquem a superação de preconceitos e favoreçam a inclusão social desses grupos étnicos (FERRAZ; DOMINGUES, 2016).
2. Método
O presente estudo configura-se como uma revisão integrativa que reúne e resume o conhecimento científico produzido sobre o tema investigado, produzido em um determinado período de tempo, permitindo avaliar e sintetizar as evidências disponíveis, contribuindo para ampliar o conhecimento sobre o tema. A revisão integrativa consiste no tipo de método mais amplo de pesquisa de revisão por permitir incluir estudos experimentais e não experimentais, reunir estudos teóricos e empíricos, com a finalidade de compreender, da melhor forma possível, um fenômeno preocupante (WHITTEMORE; KNAFL, 2005).
Partindo da questão norteadora “Como a Psicologia Social tem abordado a questão da identidade étnica indígena?”, a pesquisa foi realizada com base em produções científicas selecionadas nas seguintes bases de dados: Scielo, Pepsic, Lilacs, BVS- Psi e APA. Os descritores utilizados em português para a busca foram: identidade étnica, indígena, índio, identidade social e Psicologia Social, com a utilização de operadores boleanos “and” na combinação dos descritores e “or”, para a alternância entre o descritor “índio” e “indígena”. A busca foi feita em três idiomas: espanhol, inglês e português, no período de agosto e setembro de 2018. Por se tratar de tema não muito explorado na ciência psicológica, não se delimitou o período das publicações.
Os critérios de inclusão utilizados foram os seguintes: publicações que abordem estudos na área da Psicologia Social; estudos que abordem a questão da identidade étnica indígena; estudos publicados em revistas de psicologia, podendo ser estudos teóricos e/ou empíricos. Como critérios de exclusão, foram definidos: trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses, publicações que não abordam como questão central a identidade indígena e artigos cujo foco não correspondam à questão da pesquisa.
A seleção dos trabalhos, considerando os critérios de inclusão e de exclusão, foi realizada a partir da leitura dos resumos. Após a verificação do atendimento aos critérios estabelecidos, os trabalhos foram lidos na íntegra. Salienta-se que as publicações duplicadas foram contabilizadas uma única vez.
Com relação ao referencial teórico, embora alguns artigos não tenham explicitado as fontes utilizadas, foram excluídos artigos que apresentaram teorias que se distanciam da Psicologia Social, no sentido de compreender as relações interétnicas, os efeitos dessas relações e, ainda, o próprio esforço da psicologia, enquanto ciência que busca compreender e lidar com grupos populacionais distintos culturalmente da sociedade em geral.
3. Resultados
A partir do levantamento realizado nas bases de dados Scielo, Pepsic, BVS- Psi, foram encontrados 32 artigos. Após a leitura dos resumos verificou-se que apenas nove artigos atenderam aos critérios de inclusão adotados. Na base de dados ApaPycnet, da American Psychological Association, foram encontrados 39 artigos. Após a leitura dos resumos, verificou-se que apenas dez artigos atendiam aos critérios estabelecidos. Desse modo, serão apresentados e discutidos um total de 19 artigos.
Desses 19 artigos, seis foram publicados em revistas brasileiras, dois em colombianas, um em costarriquense e 10 em periódicos científicos americanos, publicados pela APA. Todos os artigos selecionados foram publicados na última década, o que revela o caráter recente das produções científicas em Psicologia Social sobre populações indígenas. Desse total, apenas duas publicações consistiam em artigos teóricos. Os 17 estudos empíricos encontrados foram predominantemente quantitativos (9) e utilizaram diferentes métodos de investigação. Foram encontrados também estudos etnográficos (3), estudos qualitativos (3) e estudos mistos de caráter quantitativo-qualitativo (2).
Após a leitura na íntegra dos artigos selecionados, foi possível organizá-los em quatro categorias temáticas: (1) compreensão da identidade étnica a partir da Psicologia Social; (2) representações sociais, preconceito e discriminação contra indígenas; (3) efeitos da relação interétnica para indígenas: e (4) aspectos da pesquisa com grupos étnicos. Desse modo, as publicações serão apresentadas e discutidas conforme as categorias indicadas na tabela 1.
3.1 Compreensão da identidade étnica a partir da Psicologia Social
Nesta categoria foram incluídas sete publicações (36,8%), estando estas caracterizadas por uma intencionalidade em compreender o fenômeno da identidade étnica, seus elementos constituintes, como se forma, o que a fortalece, bem como aproximar a compreensão desta categoria de conceitos como etnicidade e cultura.
Numa perspectiva de categorização, comparação e sentimento de pertença que envolve as relações intergrupais, destacam-se os estudos de identidade étnica que elencam e testam elementos/categorias considerados como significativos para a constituição e que, consequentemente, permitem a compreensão da identidade étnica de grupos indígenas.
Kulis et al. (2016) realizaram estudo com jovens estudantes indígenas americanos, com o objetivo de identificar fontes de sua identidade indígena. Para tanto os autores utilizaram um questionário autoaplicado em que três dimensões relacionadas com a identidade étnica foram analisadas: identificação (tribal), conexão (laços familiares) e envolvimento com a cultura e a espiritualidade tradicionais. Os autores verificaram a presença de indicadores das três dimensões da identidade: herança dos pais nativos, envolvimento com práticas culturais, linguagem e espiritualidade tribais (KULIS et al., 2016).
A identidade étnica de povos indígenas da Nova Zelândia pôde ser medida por instrumento - Modelo Multidimensional da Identidade e Engajamento Cultural Maori (MMM- ICE), desenvolvido para avaliar aspectos da identidade e engajamento cultural do povo Maori. Esse instrumento é composto por seis fatores: avaliação de membros do grupo, consciência sociopolítica, eficácia cultural e engajamento ativo de identidade, espiritualidade, autoconceito interdependente e crenças de autenticidade. O instrumento foi aplicado numa amostra de 492 pessoas do povo Maori. Essa escala apresentou alto grau de confiabilidade e precisão para análise da identidade étnica desse povo (SIBLEY; HOUKAMAU, 2013).
Em outro estudo realizado com povo Maori, a partir de uma amostra probabilística nacional de maori (N= 663), o uso da escala MMM-ICE permitiu identificar as facetas da identidade étnica que predizem a mobilização política dos povos indígenas. Os autores identificaram que a forte correlação entre identidade e consciência sociopolítica demonstra a importância da identidade étnica enquanto um elemento preditor do comportamento político dos povos indígenas (GREAVES et al., 2018).
Um estudo qualitativo com indígenas australianos, utilizando entrevistas e grupo focal como instrumentos, permitiu identificar as cinco principais dimensões inter-relacionadas do termo “Racial-Étnico- Cultural- REC”, que tem como dimensão central o sentido de pertencer. As dimensões inter-relacionadas do REC são: história/memória, senso comunitário, aceitação e orgulho, linguagem e cultura compartilhada e interconexões. Além das dimensões, o estudo permitiu a identificação das principais barreiras que atrapalham o senso de pertença, como o fenótipo, o pertencimento a outras identidades sociais e o processo de colonização (NEVILLE et al., 2014).
Em relação à compreensão de etnicidade, esta se apresenta na Psicologia Social, a partir de uma flexibilidade situacional das identidades sociais, na atribuição de identidade que os sujeitos fazem em sua vida cotidiana, em que há uma ênfase no contexto intergrupal que permite a percepção do grupo como entidade significativa e como propriedade, não do grupo em si, mas dependente das relações com outros grupos (RIAL; HAYE, 2015; TAJFEL, 1981). Trazendo a concepção de identidade marcada pelos aspectos culturais, que marcam a diferença de um grupo frente a outro, nos deparamos com duas concepções distintas ao pensar a definição de grupos étnicos. Tradicionalmente, a identidade étnica de um grupo é concebida pela ideia de se fazer parte de um grupo humano que tem uma identidade comum, aspectos grupais essenciais ao grupo e um passado comum (RIAL; HAYE, 2015). Em uma outra perspectiva, a etnicidade é compreendida de forma dinâmica e pluralista, dando conta do agrupamento entre diferentes grupos, formando sociedades multiétnicas. A perspectiva essencialista vem sendo abandonada para dar lugar a processos dinâmicos de construção de identidades e fabricação de etnicidades (RIAL; HAYE, 2015).
Um estudo etnográfico com grupo de tecelãs da etnia Mapuche, no Chile, traz uma discussão sobre o conceito de etnicidade, saindo de uma perspectiva essencialista para uma visão dinâmica e pluralista da identidade étnica. O que se constata nesse estudo etnográfico é a presença de uma heterogeneidade de identidades étnicas, ou seja, uma diversidade de identidades Mapuche (RIAL; HAYE, 2015).
Estudo teórico desenvolvido por Noriega, Carvajal e Grubits (2009), realizou uma revisão das teorias contemporâneas da Psicologia Social, avaliando e teorizando sobre o uso que fazem do conceito de cultura. Em relação à perspectiva cultural, considerando a teoria da identidade social de Tajfel (1981), podemos compreender que os conceitos de identidade e cultura se fundem numa perspectiva de limites de inclusão e exclusão, sendo a cultura entendida como processo de socialização entre e dentro de um coletivo (NORIEGA; CARVAJAL; GRUBITS, 2009).
3.2 Representações sociais, preconceito e discriminação contra povos indígenas
Estudos da Psicologia Social sobre povos indígenas dão destaque ao preconceito e discriminação que marcam a relação entre esses grupos étnicos e a sociedade não indígena. Estudos sobre relações intergrupais, teoria da identidade social de Tajfel (1981), teoria das representações sociais de Moscovici (2010) aparecem como possibilidades de discussão teórica a respeito destes fenômenos sociais que perpassam as relações entre grupos distintos (SALAS, 2011).
Sob este tema foram agrupadas publicações que trazem desde estudos sobre a constituição de representações sociais a respeito de indígenas até estudos que indicam percepções estereotipadas a respeitos desses grupos étnicos, passando ainda por estudos que apontam o efeito da percepção da discriminação pelos próprios grupos indígenas. Foram seis publicações, que correspondem a um percentual de 31% dos estudos compilados nesta revisão.
Apenas dois estudos nesta categoria são brasileiros: o estudo de Lima, Faro e Santos (2016), que se propôs a discutir o processo de desumanização de índios e ciganos nos estados de Alagoas e Sergipe, e o estudo de Braga e Campos (2012), que se propôs a investigar o efeito da mídia de massa na estruturação de um discurso de autoridade, constituindo uma realidade particular. No primeiro estudo, a amostra foi de 378 moradores de cinco cidades de Sergipe e uma de Alagoas. Os dados foram avaliados pelos programas EVOC e SPSS. As variáveis proximidade e distância entre moradores e grupos indígenas foram consideradas, a fim de verificar se interferiam na construção da imagem a respeito dos grupos étnicos analisados. Os resultados apontaram para uma imagem do índio exótico, diferente em suas práticas e hábitos, considerados distantes e diferentes. Foi constatado que houve o predomínio da exclusão moral no processo de desumanização dos índios (LIMA; FARO; SANTOS, 2016). No estudo sobre representações sociais, o método utilizado foi documental, sendo utilizadas matérias sobre processo demarcatório de reserva indígena, publicadas em jornal de grande circulação nacional. A análise foi feita a partir da teoria do núcleo central, em um corpus de 266 notícias, com o auxílio do software Analyse Lexicale par Contexte d’um Ensemble de Segments de Texte - Alceste (BRAGA; CAMPOS, 2012).
A percepção da discriminação social é um fenômeno amplamente estudado na Psicologia Social. Os estudos sobre teoria do campo de Kurt Lewin (1939), as contribuições de Allport (1954) sobre preconceitos e estereótipos, a teoria da identidade social de Tajfel (1981), dão uma contribuição significativa para a compreensão da temática e perspectivas das relações intergrupais. Estudo exploratório e descritivo com indígenas da reserva de Quitirrisí, com o objetivo de conhecer a percepção da discriminação individual e grupal, bem como os eventos sociais percebidos como discriminatórios, foi desenvolvido por meio um questionário aplicado a 90 indígenas. Entre os resultados foram identificados altos níveis de percepção de discriminação contra o grupo étnico, confirmando o reconhecimento da discriminação sofrida por grupos minoritários, que se utilizam de uma identidade social positiva como forma de proteção das desigualdades (SALAS, 2011).
Estudo feito em Bangladesh examinou pensamentos e percepções estereotipados de membros de Chakma, maior comunidade indígena, e de bengalis, colonos que vivem nos Chittagong Hill Tracts (CHT), no sudeste do país. O método foi qualitativo, tendo como instrumento de coleta uma entrevista em profundidade com 26 participantes de uma amostragem intencional, sendo 12 indígenas e 14 colonos, predominantemente agricultores, professores de escola, estudantes e pequenos empresários. Os resultados apontam para a identificação de pensamentos e percepções equivocados por parte de quem manifestou alto preconceito. Os autores propõem rever estratégias de redução do preconceito a partir do aumento do contato entre os grupos (MOZUMDER; HAQUE, 2015).
Estudo comparativo, com 114 jovens adultos indígenas americanos a respeito de experiências de microagressões raciais, utilizou como instrumentos a Escala de Microagressões Racial Diária, forma reduzida (DRM), Medida de Identidade Étnica para Multigrupos (MEIM) e Escala de Identificação Ortogonal Cultural (OCIS). Entre os resultados, observou-se forte correlação entre identidade étnica e relatos de microagressões. Os autores concluíram que experiências de discriminação funcionam como catalisador potencial para a exploração da identidade étnica (JONES; GALLIHER, 2015).
Investigando a percepção da discriminação contra o povo Maori da Nova Zelândia, foram realizados estudos com métodos transversal (estudo 1) e longitudinal (estudo 2). As hipóteses foram testadas em dois estudos, utilizando dados de uma amostra nacional do povo Maori, totalizando 1981 (estudo 1) e 1373 (estudo 2) pessoas. Os resultados indicaram que a discriminação percebida tinha relação direta com a diminuição da satisfação com a vida, e relação indireta com o aumento da satisfação com a vida a partir de níveis elevados de identificação étnica. Outro resultado identificou relação direta entre discriminação percebida e aumento de apoio aos direitos maori, e relação indireta com o aumento de apoio aos direitos Maori, partindo de níveis mais altos de identificação étnica (STRONGE et al., 2016).
3.3 efeitos da relação interétnica para indígenas
Nesta categoria foram incluídas quatro publicações, que reúnem estudos sobre os efeitos da relação interétnica para grupos indígenas, predominantemente caracterizada por situações de discriminação contra esses povos, por se tratarem de minorias étnicas. A identidade étnica, enquanto identidade social, se caracteriza pelo autoconceito positivo que o indivíduo desenvolve em relação a si por se sentir pertencente a um determinado grupo, seja ele nacional, linguístico, religioso ou étnico (GUITART; DAMIAN; DANIEL, 2011; PHINNEY; ONG, 2007; TAJFEL, 1981).
Em estudo realizado com jovens universitários mestiços e indígenas em Chiapas, no México, examinou-se o relacionamento entre identidade étnica e autoestima, por meio de uma amostra de 517 estudantes (256 mestiços e 261 indígenas), que responderam os seguintes instrumentos: Escala de Identidade Étnica Multigrupo Revisada - EIEM-R (PHINNEY; ONG, 2007) e Escala de Autoestima de Rosemberg. Os resultados indicaram uma maior pontuação dos índios em relação à identidade étnica, frente aos mestiços. No que se refere à correlação de variáveis, observou-se uma correlação positiva entre identidade étnica e autoestima para os índios, mas não para os mestiços. Esse resultado confirma a hipótese inicial de que grupos minoritários buscam estratégias de valorização de seu grupo étnico com o intuito de valorização de sua identidade diante de outros grupos sociais (GUITART; DAMIAN; DANIEL, 2011).
Em uma perspectiva semelhante, estudo feito com 124 jovens indígenas em universidade indígena do Kansas, EUA, investigou se o engajamento com a identidade indígena, avaliado em três dimensões: grau de identificação, tribo e contexto (reserva ou não-reserva), pode servir como recurso psicológico para o bem-estar e libertação da opressão. Para avaliar essa hipótese, foram utilizadas medidas de autoestima, eficácia comunitária, identificação étnica e percepções de racismo. Os resultados indicaram a consistência da hipótese, correlacionando positivamente identificação com eficácia da comunidade e percepção do racismo (ADAMS et al., 2006).
Pesquisas recentes indicaram a relação entre perda histórica e o surgimento de sintomas depressivos em indígenas americanos nativos do Alasca. O estudo investigou como os aspectos da experiência da minoria étnica se relacionam com a incidência de perdas históricas e sintomas de depressão em índios americanos. A pesquisa se deu através do uso da Escala de Perda Histórica de Adolescente (AHLS), a Escala de Experiências Étnicas (SEE) e Escala de Depressão (CES-D) aplicadas em uma amostra de 123 estudantes americanos indígenas autoidentificados. Os resultados indicaram uma associação entre uma forte identificação étnica e percepção de discriminação e aumento do pensamento histórico de perdas. E, ainda, que a percepção da discriminação estava diretamente relacionada aos sintomas de depressão (TUCKER; WINGATE; O’KEEFE, 2016).
Embora sejam muitos os estudos feitos sobre a importância de uma identidade étnica fortalecida como suporte para o enfrentamento de situações adversas para minorias étnicas, poucos estudos analisam o efeito da idade, ou seja, levam em consideração a identidade ainda em desenvolvimento. Em um estudo longitudinal, por um período de 14 meses, com 114 adolescentes indígenas americanos, moradores de uma reserva indígena, foi possível investigar as associações entre identificação étnica com sentimentos de desesperança. Não foi identificada correlação positiva entre a identificação cultural com sentimentos de desesperança, em nenhum tempo, dentro do período avaliado (ALBRIGHT; LAFROMBOISE, 2010).
3.4 aspectos da pesquisa com grupos étnicos
Nesta categoria foram contemplados dois estudos que tratam da relação entre pesquisador e grupos étnicos indígenas. O que há de comum nos estudos é a análise feita a respeito do papel do pesquisador frente a pesquisas com populações indígenas, caracterizadas como etnicamente distintas.
Grubits e Sordi (2017) propuseram fazer uma análise teórica, tendo como referencial a Psicologia Social, sobre a relação pesquisador e populações indígenas, levando em consideração seus conflitos, a partir da experiência de pesquisas realizadas com etnias Guarani/Kaiowá, Terena e Kadiwéo do Mato Grosso do Sul e Bororo no Estado do Mato Grosso, no Brasil. A discussão trazida neste estudo leva em conta questões éticas, princípios de justiça e igualdade e respeito à diferença, permitindo a vida do indígena dentro de seus pilares culturais.
O estudo de Petit (2013), realizado numa comunidade Mapuche, da Argentina, se utiliza do referencial teórico da Psicologia Social Comunitária, seguindo uma perspectiva etnográfica para analisar a intervenção comunitária numa comunidade indígena. Foram realizadas entrevistas individuais, grupais e institucionais, além de uma convivência comunitária que permitiu compartilhar a vida cotidiana dos moradores. A discussão trazida pelo estudo reflete o papel do psicólogo social numa perspectiva de fortalecimento da comunidade pesquisada, trabalhando a construção identitária e a de pertença a esse grupo.
4. Considerações finais
O interesse da Psicologia Social pelos grupos étnicos indígenas vem aumentando de forma gradativa nos últimos anos. De forma geral, estudos sobre grupos étnicos eram o foco de estudo e interesse de outras áreas científicas, predominantemente da Antropologia, visto que esta ciência se ocupava de estudos voltados a povos originários. Mas foi preciso ampliar essa discussão, contextualizando no presente implicações do que é ter uma identidade de povo originário e viver na contemporaneidade.
Nas últimas décadas, no Brasil e América Latina, os estudiosos da ciência psicológica têm aprofundado discussões sobre contribuições da psicologia para a atuação junto a grupos indígenas. Este estudo permitiu visualizar que as contribuições podem se dar em nível teórico, repensando o conceito de identidade a partir de elementos como cultura e etnicidade, e em níveis empíricos, a partir de identificação de formas de legitimação do preconceito e discriminação que acabam por repercutir em problemas que se tornam comuns e são frutos da relação entre sociedade indígena, enquanto minoria, e sociedade não indígena.
Destaca-se a importância de a psicologia se aproximar de outras ciências para compreender e rediscutir os conceitos de cultura e identidade étnica. A Psicologia Social tem oferecido tanto perspectivas que nos permitem pensar a essencialidade relacional, que consideram a flexibilidade situacional das identidades, quanto as condições de emergência do essencialismo na atribuição da identidade pelos sujeitos em suas vidas diárias (RIAL; HAYE, 2015).
A atuação da psicologia com populações indígenas tem sua relevância pela possibilidade de abordar problemas psicológicos advindos da relação interétnica entre grupos indígenas e sociedade não indígena. A incidência de casos de depressão, suicídios e demais transtornos que acometem povos indígenas pode estar associada a processos de exclusão social a que estão submetidas essas populações. Fica evidente, a partir da análise dos estudos aqui abordados, que o fortalecimento da identidade étnica é condição de enfrentamento de conflitos internos (autoestima) e externos (relações intergrupais).
Ao se aproximar dos povos indígenas, a Psicologia Social tem a possibilidade de conhecer a realidade desses povos e repensar as relações intergrupais que vêm se estabelecendo entre “índios” e “não índios”. Compreender a constituição da identidade étnica, como identidade social, as representações acerca desses grupos étnicos e, ainda, os efeitos da discriminação, coloca a psicologia numa perspectiva de maior contribuição, tanto no que se refere a estudos teóricos quanto à possibilidade de intervenção, no sentido de minimizar a distância entre os grupos sociais, contribuindo, como consequência, para a diminuição dos fatores de exclusão social a que estão submetidos esses grupos.
Resumo
Main Text
1. Introdução
2. Método
3. Resultados
3.1 Compreensão da identidade étnica a partir da Psicologia Social
3.2 Representações sociais, preconceito e discriminação contra povos indígenas
3.3 efeitos da relação interétnica para indígenas
3.4 aspectos da pesquisa com grupos étnicos
4. Considerações finais