Thu, 30 Sep 2021 in Fractal: Revista de Psicologia
“EnCAPSulados”: autonomia e dependência no processo de trabalho em CAPSad
Resumo
Este artigo analisa os fatores que facilitam ou dificultam a produção de autonomia entre os usuários que vivenciam a dependência química em um CAPSad. Trata-se do resultado de pesquisa qualitativa realizada com todos os profissionais de um CAPSad. Foram realizadas 80 horas de observação, entrevista coletiva com dez trabalhadores e 13 entrevistas em profundidade, seguidas da Análise Temática. Constatamos que faltam condições para a produção de autonomia dos usuários no serviço estudado. Com base em Edgar Morin e Gastão Campos foi possível concluir que fatores essenciais para a produção de autonomia de trabalhadores e de usuários no enfrentamento das drogas - como condições de trabalho adequadas, salários dignos, profissionais engajados e rede de apoio psicossocial - não foram observados. Estas situações levam ao sentimento de “enCAPSulamento”, como foi verbalizado, o que contribui para que tenham uma atitude de distanciamento afetivo da dimensão cuidadora do trabalho em saúde. Logo, se não há autonomia no processo de trabalho, é extremamente difícil que consigam produzir o sentimento de autonomia por parte dos usuários, que, diante disso, persistem em dupla dependência - a do serviço e a química.
Main Text
Introdução
O conceito de autonomia apresenta significados variados. Para o senso comum, o sujeito autônomo é entendido como aquele que “sabe se virar sozinho”. A palavra “autonomia” baseia-se no grego autos, que quer dizer si mesmo, e nomos, que se traduz como norma ou regra. Ou seja, uma pessoa autônoma seria aquela que tem o poder de conduzir a si mesma. Esta compreensão, contudo, apresenta algumas incoerências, uma vez que vivemos em uma sociedade com pluralidade de seres, culturas e histórias, e a autonomia não se compreende apenas por uma produção individual.
Buscamos nos aprofundar nesta discussão a partir de uma visão menos centrada no indivíduo, de forma a ampliar a noção de autonomia ao considerá-la contrária à ideia de independência absoluta, e abordamos a temática a partir do entendimento de que a autonomia é condição necessária à produção de saúde.
Acreditamos que a saúde de uma dada população está relacionada com sua capacidade de enfrentar as dificuldades inerentes à vida, como escreve Caponi (1997). Admitir tal premissa pressupõe aceitar que os sujeitos detêm saberes sobre o corpo e sobre práticas de cuidado e que, mediante a existência de recursos, são capazes de produzir os meios para o enfrentamento da dor e da doença, ou seja, que é necessário apoiar a autonomia dos sujeitos no seu caminho para a saúde
Concordamos com Campos (2006) ao afirmar que os serviços de saúde, além de produzirem o cuidado, também devem produzir a autonomia dos usuários, uma vez que a autonomia deve ser um objetivo ou finalidade do trabalho em saúde, da gestão e da política. Esta forma de pensar a produção da saúde pode gerar uma redefinição do que seria o “objeto” do trabalho nesta área. Neste ponto de vista, tal objeto passa a ser entendido como a articulação resultante entre os problemas de saúde e os sujeitos, ou seja, trata-se de produção de sujeitos (FARIA; DALBELLO-ARAUJO, 2010).
A valorização do “sujeito” e de sua singularidade exige uma reorganização nos modelos de gestão e de atenção em saúde. Portanto, o objetivo do trabalho em saúde se converte “na própria produção de saúde e também na co-construção de capacidade de reflexão e de ação autônoma para os sujeitos envolvidos nesses processos: profissionais e usuários” (ONOCKO-CAMPOS; CAMPOS, 2012, p. 669).
Neste contexto, Morin (2003, 2005), a partir da ideia de complexidade, contribui para a compreensão desta forma de autonomia, ao afirmar que o mundo de hoje se tece em teias altamente complexas. Assim, na complexidade, a capacidade autônoma dos organismos ocorre em processos de “auto-eco-organização”, de forma que os organismos ao mesmo tempo em que são autônomos são dependentes de fatores internos e externos, ou seja, nenhum organismo biossocial tem autonomia plena e absoluta. Para Morin (2003, p. 72) “o pensamento complexo é um pensamento que deve permitir ligar autonomia e dependência”.
Ainda segundo Morin (2005, p. 83), “a ideia de autoprodução ou de auto-organização não exclui a dependência em relação ao mundo externo: pelo contrário, implica-a. A auto-organização é, de fato, uma auto-ecoorganização”. O autor menciona que a complexidade biológica do ser vivo é um aspecto morfogenético que oferece meios de criar novas estruturas e formas a partir da complexidade. Com isso ele afirma que, quanto maior a complexidade biológica do ser, maior será sua autonomia e sua capacidade de decisão e, do mesmo modo, quanto menor sua complexidade menor será sua capacidade de autonomia.
Desta forma, a autonomia sofre variações conforme o organismo ou a espécie e seu grau de complexidade. Assim, Morin (2004, p. 118) propõe que tomemos a autonomia de forma inseparável da auto-organização: “A autonomia de que falamos não é mais uma liberdade absoluta, emancipada de qualquer dependência, mas uma autonomia que depende de seu meio ambiente seja ele biológico, cultural ou social”. Assim, segundo o autor, nós, que somos seres culturais e sociais, “só podemos ser autônomos a partir de uma dependência original em relação à cultura, em relação a uma língua, em relação ao saber. A autonomia não é possível em termos absolutos, mas em termos relacionais e relativos” (MORIN, 2004, p. 118).
Então, nos propusemos pensar a autonomia não mais a partir de uma concepção simplista, mas de uma noção complexa em que a autonomia não tem relação com uma suposta liberdade absoluta e sim com uma série de fatores de dependência. Esta é uma ideia contraditória, porém coesa, uma vez que somos seres culturais e sociais, e, de fato, dependentes uns dos outros e das nossas circunstâncias. Esta ideia é compartilhada por Campos (2009, p. 28) quando ele afirma que a autonomia “é a capacidade de pessoas e coletividades lidarem com a dependência”, seja a dependência da sociedade, da lei, do Estado, de gênero, entre outras.
Como se vê, para ambos os autores, a autonomia nunca é absoluta e diz respeito à capacidade de o sujeito saber lidar com sua rede de dependências. Assim, tal rede, ao mesmo tempo em que pode se configurar em aspectos que limitam o ser humano, também pode contribuir para que se obtenha organização, conhecimento, e assim, a liberdade. Dessa forma, ambas se retroalimentam a partir da teia da complexidade, ou seja, a autonomia se nutre da dependência e vice-versa.
Neste contexto, refletindo sobre a ideia de autonomia e dependência e tendo por base uma pesquisa realizada em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPSad), afirmamos que, para a produção da reabilitação e/ou reinserção social dos usuários de drogas, é fundamental que haja autonomia por parte dos profissionais de saúde (WANDEKOKEN, 2015). Esta, por sua vez, contribui para a construção da autonomia dos usuários, o que corrobora a ideia de redução de danos proposta pela atual Política de Atenção Integral aos Usuários de Álcool e outras Drogas - PAIUAD (BRASIL, 2003).
Assim, com base em Morin (2003, 2005) e Campos (2006), acreditamos que, para que haja autonomia, é preciso que a rede de dependências esteja presente. Esta rede muitas vezes se manifesta em aspectos como: estrutura de serviço adequada, rede de atenção eficaz, salário digno, profissionais engajados e gestão participativa. De acordo com esta compreensão, este artigo analisa os fatores que facilitam ou dificultam a produção de autonomia entre os usuários que vivenciam a dependência química em um CAPSad.
Método
Trata-se de uma pesquisa qualitativa realizada em um CAPSad de um município do estado do Espírito Santo, com 400 mil habitantes. Participaram da pesquisa os 28 profissionais que compõem o serviço, incluindo médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes administrativos, motoristas, recepcionistas, vigilantes, auxiliares de serviços gerais, farmacêuticos, educadores físicos, terapeutas ocupacionais, gerentes, técnicos de enfermagem e assistentes sociais. Buscamos adotar uma perspectiva ampliada, pois entendemos que o trabalho na área da saúde não é desenvolvido apenas por aqueles que intervêm a partir de conhecimentos técnicos, mas também por aqueles que de alguma forma contribuem para a cadeia produtiva do cuidado.
Para tanto, todos os trabalhadores, independentemente de sua formação ou função, foram convidados a participar da pesquisa, de forma que não haverá qualquer identificação, pois acreditamos que todos estão atravessados pelas forças, emoções, ansiedades e desejos que compõem a atuação na instituição. Além disso, optamos por não os identificar por função, a fim de favorecer o sigilo das identidades e das informações.
A coleta de dados1 foi realizada de janeiro a abril de 2014, a partir de 80 horas de observação do cotidiano e das reuniões de equipe, registrados em diário de campo. Também foram feitas sessões de entrevistas coletivas com dez participantes (dois psicólogos, um terapeuta ocupacional, um enfermeiro, dois técnicos de enfermagem, um educador físico, um recepcionista, um farmacêutico e um gerente) e 13 entrevistas em profundidade (um médico psiquiatra, um médico clínico geral, dois psicólogos, um terapeuta ocupacional, dois enfermeiros, dois técnicos de enfermagem, um educador físico, um recepcionista, um farmacêutico e um gerente) baseadas na questão: “O que você acha de trabalhar aqui?” Os dados foram tratados por meio da análise temática derivada da análise de conteúdo, desenvolvida por Bardin (2009), da qual destacamos temas por meio de palavras e categorias de análise.
Resultados
Constatamos que neste CAPSad os fatores que deveriam auxiliar na produção de autonomia dos trabalhadores não estão presentes, já que se verifica: a insegurança e o desestímulo de alguns profissionais para realizar atividades; a ausência de condições de trabalho adequadas, uma vez que a estrutura física do serviço é deficiente, que os salários são baixos, que a rede de atenção é precária e que há ausência de normas, o que ocasiona sobrecarga de trabalho de alguns profissionais.
Diante da ausência dos fatores dos quais depende a produção de autonomia, os trabalhadores sentem-se “enCAPSulados” - aprisionados devido à incapacidade de agir diante dessas situações.
Discussão
A princípio, ressaltamos que o trabalho na área de dependência química é complexo, já que envolve aspectos biopsicossociais e, portanto, dependente de muitos fatores para ser eficaz, ou seja, produzir reinserção social e reabilitação, gerando autonomia por parte dos usuários.
A primeira categoria de análise que destacamos diz respeito à “insegurança e desestímulo” por parte da maioria dos profissionais para realizarem determinadas atividades próprias de um CAPSad, tais como as atividades grupais. Neste serviço tais atividades são realizadas apenas por psicólogos. Assim, as oito modalidades de grupos estão sob a coordenação de três profissionais que também se revezam no acolhimento, na atenção diária, no atendimento individual. Os demais reclamam da falta de formação adequada para coordenar um grupo terapêutico, e por isso não se sentem aptos para tal.
A Portaria nº 336 de 2002 do Ministério da Saúde (BRASIL, 2002) regulamenta os grupos terapêuticos e apresenta as modalidades de grupos que devem ser realizadas pelos CAPSad: psicoterapia de grupo, grupos operativos, atividades de suporte social e outras. Sendo assim, há modalidades que podem ser realizadas por qualquer profissional de nível superior. No entanto, o que se constata é que os profissionais não se sentem preparados para a atividade: “A nossa formação para trabalhar com grupo é deficitária” (Trabalhadores em roda).
Além disso, para coordenar atividade coletiva é preciso que o profissional possua atributos que favoreçam a sua execução, como a capacidade de liderança e a responsabilidade, ou seja, ele depende de algo do seu ambiente, seja ele biológico, cultural ou social (MORIN, 2004, p. 118). Logo, não basta apenas formação, é preciso acreditar no trabalho que é desenvolvido, ser empático, comunicativo, ter capacidade de integração e de síntese, entre outros. No entanto, o que se observa é que há dificuldades neste sentido, como disse um trabalhador: “Com outro profissional o paciente não vai nem chorar porque a abordagem é outra!”. E completou: “Eu não aguento ouvir chororô!”
Segundo Campos (2007, p. 229), “autonomia pressupõe liberdade; porém, para que o trabalho autônomo seja eficaz, pressupõe-se a capacidade de responsabilizar-se pelos problemas dos outros”. Assim, cabe o questionamento: como articular autonomia e responsabilidade com compromisso ético no trabalho de um CAPSad?
Para entendermos melhor situações tão complexas, foi importante ouvirmos outros profissionais: “[...] Você viu que quando consegue um profissional não tem tarefa! A equipe pede profissional, o profissional vem, e vai fazer o quê? Entendeu? Então que práticas são essas que nós estamos fazendo aqui no CAPS?” (Trabalhador).
Como se observa, o profissional parece refletir que falta compromisso e/ou motivação para desempenhar as tarefas. Assim, buscamos em Onocko-Campos e Campos (2012) algumas considerações. Segundo os autores, a autonomia se relaciona com o compromisso, uma vez que depende da capacidade de o sujeito “estabelecer compromissos e contratos com outros sujeitos para criar bem-estar e um contexto mais democrático” (ONOCKO-CAMPOS; CAMPOS, 2012, p. 671).
Nesta discussão, outro participante acrescenta:
É igual àquela reflexão que a gente fez aqui... quer dizer... ao mesmo tempo que não tem profissional, tem gente sobrando? Então, o que é isso? Por que é que nós não estamos assumindo? Então será que a equipe está assim... com... não é medo... mas assim... a equipe evitando começar novas tarefas? Exatamente porque não quer trabalhar mais? (Trabalhador).
Campos (2007) defende a tese de que não haverá solução para a questão dos recursos humanos se o foco do trabalho não for a defesa da vida. Para o autor “a gerência teria o direito e o dever de cobrar essa disposição de todo e qualquer profissional da saúde” (CAMPOS, 2007, p. 233). E questiona: é possível haver produção de saúde sem que os trabalhadores se empenhem na defesa da vida? Ou seja, haveria algum sistema gerencial forte o bastante que compensasse a ausência deste princípio? Haveria algum mecanismo de controle que o substituísse? Haveria alguma forma de comprar criatividade, responsabilidade e empenho?
O autor afirma que para potencializar a autonomia nos serviços de saúde é preciso que haja grande “apego à missão de curar, reabilitar, prevenir e promover saúde, sempre procurando estender ao máximo o limite imposto pelas circunstâncias” (CAMPOS, 2007, p. 245).
Neste ponto, é preciso enfatizar a complexidade da área de saúde mental e, ainda mais, da área da dependência química, uma vez que o indivíduo imerso nesta problemática é um ser único com necessidades e implicações biológicas, psicológicas, sociais, culturais, de desenvolvimento, entre outras (RIBEIRO; SANCHEZ; NAPPO, 2010). Corroborando essas ideias, Vasconcellos e Azevedo (2012) ressaltam que a imprevisibilidade do trabalho em saúde mental traz ainda mais complexidade para o cuidado nesta área, de modo que o espaço relacional assume grande relevância. São questões como essas que tornam a situação ainda mais desafiadora não só para os usuários, mas em especial para os profissionais que lidam dia a dia com diferentes desafios.
Prosseguindo com a discussão, um profissional expõe outro problema: “Não adianta inchar o CAPSad com mais profissionais porque aqui não tem estrutura para isso, não tem sala. A solução é criar outro CAPS; o município precisa de um CAPS III, já que possui mais de 400 mil habitantes” (Reunião de equipe).
O depoimento deixa claro que um CAPSad na modalidade II não é suficiente para as demandas de um município com 400 mil habitantes. É preciso maiores investimentos, considerando inclusive o fato de não haver nenhum CAPS I, II ou III na localidade. Assim, como já relatado, há falta de recursos, o que denota pouco interesse da gestão municipal em investir na área da dependência química e de saúde mental no município. Além disso, em estudo anterior, Wandekoken (2015), ao analisar o conjunto de normas locais deste município, percebeu poucos investimentos nesta área, pois o foco ainda é na repressão, a ênfase em recursos baseados na religiosidade como expediente terapêutico e no amedrontamento da população como estratégia de prevenção.
Outra categoria que destacamos é a “deficiente estrutura física do serviço”. A princípio, é importante considerar que, por se tratar de um local onde os trabalhadores permanecem um longo período do dia e da semana, é considerado por muitos seu “segundo lar”. Pudemos vivenciar o convívio cotidiano no ambiente da cozinha, que, além de ser um espaço onde se realizam as refeições, é um lugar em que ocorrem conversas informais, brincadeiras, confidências e até desabafos relacionados às difíceis situações enfrentadas.
Da mesma forma que quanto mais acolhedor e aconchegante é o ambiente, tanto mais próximas poderão ser as relações afetivas entre os trabalhadores e destes com os usuários. O inverso também se manifesta, e a estrutura física do serviço influencia a satisfação dos profissionais e afeta diretamente a prestação da assistência ao usuário.
Não foram poucas as falas dos servidores sobre a precariedade da estrutura. Assim, ao nos apresentarem o local onde ocorrem as atividades da atenção diária, um profissional afirmou: “O espaço é pequeno, e mesmo com a telha fica muito quente” (Observação do cotidiano).
Constatamos que era de fato ali, em condições insalubres, sob a telha, com o sol quente, que eram desenvolvidas as atividades físicas e de oficinas com os usuários que fazem uso do serviço durante todo o dia. Assim, mais um trabalhador comentou o desgaste que é atuar na atenção diária do CAPSad frente às condições de trabalho:
[...] lá é praticamente um inferno no sol quente [...] Então você imagina, por exemplo, ficar na atenção diária de manhã: vai ter o desgaste vocal, né? E tem o desgaste que é um calor danado. Então eu penso que isso tudo influencia para que os profissionais não queiram estar lá.
Além do local da atenção diária, também ouvimos queixas sobre as demais áreas do CAPSad. Ao indagarmos sobre a principal dificuldade no trabalho, um trabalhador declarou:
[...] teve uns dias aí que ficamos sem luz nesta sala, não tem ar condicionado, não tem nem uma acessibilidade para quem vem de cadeira de rodas ou vem com dificuldade de andar, como aquele que está aqui [o paciente que estava sendo atendido usava muletas], não tem uma rampa... e essa escada aí? Não tem como muitos pacientes subirem lá em cima, né... então a estrutura é péssima!
Estas condições levam a situações “desumanizantes” que são vivenciadas não só pelos usuários que buscam o serviço, mas também pelos profissionais que lá atuam. Ressaltamos que, segundo Morin (2015), para que o profissional tenha autonomia é preciso que esta esteja relacionada com sua rede de dependências. E, pelos depoimentos, fica claro que o servidor depende de uma estrutura física, que se encontra deficiente.
Alguns também mencionaram a falta de veículo para as atividades externas, uma vez que, segundo eles, o carro, por meses, vem sendo utilizado também para as atividades do consultório de rua e para as internações compulsórias: “O CAPSad tinha que ser mais articulado com a rede, mas a falta do carro e de profissionais dificulta”. “Estamos enCAPSulados mesmo! Não tem como fazer os serviços externos do CAPSad” (Trabalhadores em roda).
Como se pôde observar, a falta do veículo e do motorista dificulta a realização das atividades externas, previstas na Portaria nº 336/2002 (BRASIL, 2002), tais como as visitas domiciliares, a prevenção e o matriciamento. Além disso, o veículo também deixou de ser utilizado para os passeios com os usuários em cuidado intensivo na atenção diária e para as internações demandadas. O fato de o carro e o motorista terem sido destinados a outras funções, que não são do CAPSad, faz com que estas deixem de ser realizadas.
Destacamos que os trabalhadores afirmam que estão “enCAPSulados”, pois se trata de um aprisionamento em um CAPS - como destacado na palavra em questão. Ou seja, faltam recursos dos quais depende a produção de autonomia (MORIN, 2015), o que favorece a incapacidade de agir relatada pelos profissionais. Assim, se encontram “enCAPSulados”.
Ainda a respeito do “enCAPSulamento”, um trabalhador ressaltou que a falta do veículo para a atenção diária compromete as funções de um CAPSad e torna todos presos a uma situação:
A gente não está mais levando os pacientes para lugar nenhum, porque é constante a falta de motorista e aí não tem como planejar nada. Então, a atenção diária ficou realmente aquela coisa deficiente: ela não está atingindo o objetivo! Então assim, o que quê a gente está fazendo ali de psicossocial? Você leva a pessoa, por exemplo, pra visitar uma feira do verde? [...] não tem como, por que o motorista está sempre na internação compulsória, né... então isso tudo vai desestimulando não só o profissional, como o paciente também.
Além disso, a falta de um veículo específico dificulta sobremaneira a atuação em momentos de emergência, como em crises, convulsões e surtos:
“O posto de enfermagem está lá, mas não tem ambulância, não tem motorista”.
“Geralmente a gente dá carona para o PA! [Pronto Atendimento]. Despacha ele lá!”.
“O negócio é se livrar da pessoa que passa mal!” (risos).
“Põe o paciente na kombi se o SAMU não vem; dá uma carona ao PA ou ao HEAC [Hospital Estadual de Atenção Clínica]” (Trabalhadores em roda).
Esta conversa parece refletir o grande descaso dos órgãos competentes. A falta de recursos é patente. Dizeres como “despacha ele lá”, “o negócio é se livrar da pessoa” e ainda “mandam para o PA” denunciam a ausência de cuidado e de afeto que deve haver nas relações em um serviço de saúde. Assemelha-se a um descaso frente às condições desumanizantes que a falta de recursos proporciona e uma tentativa clara de não se vincular a estes usuários, uma vez que não encontram alternativas - estão “enCAPSulados”.
Neste ponto, também chama a atenção uma outra categoria que em muito se relaciona com a discutida: “os baixos salários”. Às dificuldades relacionadas ao exercício das atividades no CAPSad soma-se o fato de a remuneração não ser condizente. Afirmação feita por muitos servidores, em vários momentos, durante a coleta de dados. Referem-se a tal situação como uma forma de desvalorização: “O salário é muito baixo e o prefeito do município não está nem aí para o servidor” (Trabalhadores em roda).
Concordamos com Campos (2007) quando afirma que a realização profissional está relacionada com a remuneração financeira pelo seu trabalho. Em vários relatos, por não encontrarem outra solução frente ao sentimento de desvalorização e insatisfação, os trabalhadores optam pela exoneração do cargo, em busca de outras opções: “Eu vou sair do CAPS, porque eu vou ser convocada, né? Passei no concurso, estou só esperando chamar, porque o salário de lá é melhor [...]” (Observação do cotidiano).
Assim, se observa que a satisfação e a valorização, para além de sua dimensão subjetiva, como aptidão para o trabalho em saúde mental, também se relaciona à remuneração. Ambas as dimensões interferem para que os profissionais do CAPSad desenvolvam suas capacidades, de forma a realizar suas atividades, gerando muitas vezes uma situação de distanciamento afetivo que reflete bem a situação de “enCAPSulamento” na qual se encontram.
Campos (2006) afirma que, ao se observar os profissionais da área da saúde, constata-se que estes frequentemente se encontram frustrados e descontentes e que o exercício da atividade ocorre, muitas vezes, apenas em prol da sobrevivência e de um nível de consumo esperado.
Além disso, constatamos que, para alguns funcionários, há uma relação direta entre a baixa remuneração e o atendimento que ele prestará aos usuários, o que foi evidenciado em outro momento: “[...] não posso dizer que eu sigo o horário não... até porque eu não ganho pra isso!” “Eu ganho muito pouco, e o que eu faço é suficiente!” (Observação do cotidiano).
Assim, observamos que há desmotivação e sentimento de desvalorização diante do baixo salário, que se reflete no distanciamento afetivo da atividade. Essa situação ocorre quando o profissional, mesmo presente, se distancia de tal forma do seu processo de trabalho que evita criar vínculo com o cotidiano, reduzindo-se a um cumpridor de tarefas.
Campos (2007) afirma que uma gestão que remunere da mesma forma o produtivo e o improdutivo transmite a mensagem de que de nada adianta se esforçar, uma vez que todos terão igual remuneração, ou seja, a ninguém interessa o resultado do seu trabalho.
Aqui cada um faz o que quer. A pessoa pode vir e fazer só feijão com arroz, ou até só feijão com farinha, não faz nem o arroz. Ou tem dia que faz o arroz, o feijão, e faz uma batatinha frita, um bifinho. Ou faz até uma feijoada... e não muda nada! Aí ela pode até deixar passar fome, não fazer nada que não muda nada! Não deveria ser assim, né... mas é desestimulante, desmotivante (Trabalhador).
Mas qual seria a solução? Questão complexa para ser respondida, uma vez que o pagamento por produtividade, por exemplo, pode não ser o ideal para o campo da saúde. Segundo Campos (2007), isso poderia estimular os trabalhadores a desempenharem suas funções sem se atentar para o objetivo final de um serviço de saúde, que não se resume à realização de procedimentos, mas deve-se orientar pela responsabilização e resposta às necessidades de saúde da população a que serve e pelo esforço de produzir autonomia entre os usuários.
Alguns profissionais ouvidos discordam da ideia de trabalhar pouco porque se paga mal, e afirmam que isso não condiz com a ética do trabalho em saúde: “Isso não é desculpa, porque quando assumimos o cargo a gente sabia que era assim. O problema é que não tem reajuste, e alguns profissionais dizem que não trabalham direito porque se paga mal. Isso é antiético” (Trabalhadores em roda).
Para entendermos melhor essa questão, nos propomos a discutir sobre uma categoria que se relaciona em muito com esta: “a ausência de normas”. Vários depoimentos refletem o sentimento de indignação pelos que querem realizar sua atividade de maneira satisfatória, seja porque acreditam na proposta da RAPS, seja porque valorizam sua prática.
Vou te falar uma coisa bem sincera... o problema daqui são os funcionários! [...] aqui o problema não são os usuários, os casos não são difíceis, só um ou outro que é difícil. Mas a maioria não. Então o problema aqui são os funcionários. É muita falta de organização. Não tem uma rotina, cada um faz o que quer. É complicado trabalhar assim (Trabalhadores em roda).
No entanto, concordamos com Morin (2004, 2005, 2015) e Campos (2007), ao afirmarem que a autonomia difere da liberdade, pois não a compreendemos como algo individual e descolado da rede de dependências e responsabilidades. A sensação de estar em uma encruzilhada e as indisposições no decorrer do trabalho são vivenciadas pelos profissionais, como se pode observar nas falas anteriores.
No entanto, sabemos que isso não ocorre apenas em um CAPSad, mas em toda e qualquer atividade laboral. Assim, saber lidar de modo eficaz com esse cotidiano é o que irá favorecer ou não o processo de trabalho de toda a equipe.
Finalmente, tratamos da última categoria a ser destacada: “a fragilidade da rede de atenção psicossocial”. O entrevistado parece perceber claramente a noção de dependência e autonomia ao afirmar:
Trabalhar assim não é fácil, porque não tem uma rede externa de apoio, e sem essa rede não tem como o usuário ter uma melhora. [...] como no município não tem uma rede externa, o paciente fica sendo atendido no CAPSad e fica nos abrigos, mas quando sai, não tem o suporte que precisa, não tem emprego, não tem onde ficar e acaba voltando ao uso de drogas. E aí volta para o CAPSad, o que acaba gerando um ciclo. Ou seja, o paciente fica dependente do CAPSad. Alguns usuários, muitas vezes, chegam a ficar seis meses ali na atenção diária (Trabalhador).
Como se vê, o profissional afirma que a falta de uma rede de atenção aos usuários de substâncias psicoativas no município prejudica a reabilitação da dependência química, já que na maioria das vezes não há progressos. E, devido à precariedade da rede, o usuário fica dependente do serviço.
Questionamos se este serviço de fato se propõe a atuar na construção da autonomia dos usuários frente à dependência química. Como descrito por Morin (2015, p. 66), a autonomia é sempre relativa, pois os trabalhadores dependem de vários fatores que devem auxiliar na construção de sua autonomia. E, no caso do trabalho em saúde mental, os profissionais dependem de uma rede de atenção fortalecida para que tenham a autonomia necessária para executar suas atividades.
O mesmo acontece em relação aos usuários, que dependem do serviço e da rede para a construção de sua autonomia frente às drogas. Mas essa dependência deve ser pontual e não promover o enclausuramento do usuário ao serviço. Até porque autonomia “é a capacidade de pessoas e coletividades lidarem com a sua rede de dependências” (CAMPOS, 2009, p. 28).
Um dos profissionais retoma o termo que criou para definir a situação em que se encontram:
É o termo que eu criei: a gente acaba ficando enCAPSulado, não faz rede. A rede é fragmentada, o que faz com que o CAPSad fique sobrecarregado. Não há PSF; o paciente é do CAPSad. [...] isso repercute no processo de trabalho da equipe do CAPSad (Trabalhadores em roda).
Como se vê, o termo criado por um trabalhador e adotado pelos demais demonstra a falta de dependência do CAPSad frente aos demais serviços da rede, ou seja, devido à precariedade da rede os servidores se sentem isolados, aprisionados, impotentes - ou “enCAPSulados”.
Conclusão
Constatamos condições precárias no serviço oferecido no CAPSad analisado. Com base em Morin (2003, 2005) e Campos (2006), foi possível concluir que fatores essenciais para a produção de autonomia de trabalhadores e de usuários no enfrentamento das drogas - como condições de trabalho adequadas, salários dignos, profissionais engajados e rede de apoio psicossocial - não foram observados. Essas situações levam ao sentimento de “enCAPSulamento”, como foi verbalizado, o que contribui para que os profissionais tenham uma atitude de distanciamento afetivo da dimensão cuidadora do trabalho em saúde.
O conceito de “autonomia” aqui debatido enseja uma reflexão sobre a atividade desses profissionais, que dependem da formação de redes - entendendo que a autonomia é a capacidade de criação de redes, sentimento de pertencimento a uma coletividade. Logo, se não há autonomia no processo de trabalho, é extremamente difícil que eles consigam produzir o sentimento de autonomia por parte dos usuários, que, diante dessa realidade, persistem, dependentes do serviço e aprisionados na dependência química - ou seja, uma dupla dependência.
Esses efeitos nocivos, no entanto, não parecem produzir movimentos de mudança por parte dos profissionais ou da gestão, o que os leva a pensar que talvez esse serviço não se preste a um trabalho sob a égide da eficiência e da eficácia que configuram os métodos de gerência dos demais serviços da rede de saúde, devido à sua pouca importância, visto que atua sobre uma população excluída, conforme se pode constatar em pesquisa anterior (WANDEKOKEN, 2015). Assim, corroborando os estudos de Wandekoken (2015), questionamos se o CAPSad é apenas figurativo, já que os recursos nesta área são escassos e a rede é inexistente, o que, de fato, dificulta a atuação do profissional, acarretando a dupla dependência dos usuários.
Resumo
Main Text
Introdução
Método
Resultados
Discussão
Conclusão