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A CONSTRUÇÃO DA JUSTIÇA E SOCIABILIDADE NUM PROCESSO DE
CRIME SEXUAL DA COMARCA DE CAMPOS DOS GOYTACAZES 1879
*
BUILDING JUSTICE AND SOCIABILITY IN A CRIME PROCESS IN CAMPOS DOS
GOYTACAZES - 1879
Fernanda Fonseca Alvarenga
https://orcid.org/0000-0002-6563-5926
Resumo: O presente artigo pretende demonstrar como a rede de sociabilidade na cidade de Campos
dos Goytacazes influenciou na resolução do crime de estupro ocorrido na Freguesia de Santo Antônio
de Guarulhos, mais propriamente em Cachoeiros de Muria, nas proximidades da estrada de ferro
do Carongola. O seguinte crime sexual ocorreu a uma criaa parda, de mais ou menos quatro a cinco
anos no ano de 1879. E a partir desse cenário, pretende-se elucidar sobre como a rede de sociabilidade
da cidade de Campos dos Goytacazes influencia na abertura do processo crime e sua investigação
inicial, isto é, como se procedeu a construção jurídica do crime.
Palavras-chave: estupro, justiça, sociabilidade, Campos dos Goytacazes.
Abstract: This article aims to demonstrate how the sociability network in the city of Campos dos
Goytacazes influenced the resolution of the crime of rape that occurred in Freguesia Santo Antonio
de Guarulhos, more precisely in Cachoeiros de Muriahé, near the Carongola railway. The sexual
crime occurred to a brown child, about four to five years old, in the year 1879. And from this setting,
it is sought to elucidate how the sociability network of the city of Campos dos Goytacazes influences
the opening of the process crime and its initial investigation, that is, how the legal construction of
the crime was carried out.
Key-words: rape, justice, sociability, Campos dos Goytacazes.
1. Introdução
Objetiva-se traçar uma análise sobre como a sociedade campista imperial possuía
redes de sociabilidade
1
presente em várias instâncias, que para ser compreendida, investigarei
características particulares e conceituais para se entender a ação dos agentes sociais no
contexto político e social e da fonte a ser analisada referente a cidade de Campos dos
Goytacazes oitocentista.
O processo criminal, que será a fonte primária deste artigo, data do ano de 1879. A
notícia sobre o crime saiu antes da abertura do processo, no jornal da cidade Monitor
*
Artigo recebido em: 05 de maio de 2019. Aceito em: 10 de dezembro de 2019
Universidade Federal Fluminense, Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil, Graduada em história pela
Universidade Federal Fluminense. Autor correspondente. E-mail: fernandafonseca17@gmail.com
1
Conceito de sociabilidade, de acordo com Marco Morel (2001), a ser explicado mais a frente no artigo.
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Campista
2
, que logo depois de sair neste jornal de grande renome na cidade, que as
autoridades tomam consciência do crime e o procuram investigar.
Para isso, também será feito uma análise sobre o código criminal de 1830, o primeiro
a ser elaborado e promulgado no Brasil s-independência para construir a ideia de
legalidade no novo cenário nacional. É também importante salientar como as redes de
sociabilidade estavam presentes nesse momento da construção do Código Penal de 1830, de
forma que a ideia de uma sociedade patriarcal atendia a uma moralidade cristã ocidental.
A autora Lana Lage (2013) teoriza sobre os processos de crimes sexuais na Comarca
de Campos dos Goytacazes e explana que a moralidade cristã do ocidente influencia o
discurso jurídico e médico desses processos. E ainda salienta sobre como os Códigos Penais
no Brasil vincula-se diretamente entre "direitos e conduta sexual adequada" (LAGE, 2013:
3). Dessa maneira, além da sociabilidade presente nessa construção da codificação criminal,
também presente na narrativa jurista a questão da moralidade cristã da ideia de pecado.
Contudo, iremos nos centrar na rede de sociabilidade presente no processo criminal a ser aqui
estudado.
Os processos sexuais nesse período em Campos dos Goytacazes são poucos, e
muitos crimes de cunho sexual não chegavam até a esfera jurídica. A partir desse cenário
oitocentista brasileira, e analisando o processo crime de 1879 como fonte, proporei uma
reflexão sobre como as denúncias eram realizadas, e a partir daí, analisarei o discurso das
testemunhas e os personagens presentes no processo de estupro em questão.
Partindo dessa perspectiva, veremos como essa sociedade campista recebeu tal
denúncia e consequentemente assimilou tal crime
3
, sendo a violentada e deflorada uma
criança parda, da Freguesia Santo Antônio de Guarulhos, uma área afastada da parte central
da cidade, que era a Freguesia de São Salvador, do outro lado do rio que corta a cidade, o
Paraíba do Sul.
Neste artigo, primeiro se analisará como a positivação das leis no século XVIII na
Europa, principalmente na Itália, influenciou o discurso em torno da codificação das leis no
Brasil pós-independência, isto é, o Código Criminal de 1830. Logo após a análise desta parte,
se transcorrerá um discurso sobre como a “boa sociedade” imperial tem sua inflncia na
construção das leis e no âmbito político e a sociabilidade entre seus pares. Utilizarei, para
discutir o conceito de boa sociedade, as discussões do autor Ilmar Rohloff de Mattos (1991).
2
Jornal "Monitor Campista" de setembro de 1879/ Arquivo Público Municipal de Campos dos Goytacazes.
3
Processo Crime, outubro de 1879/ Arquivo Público Municipal de Campos dos Goytacazes.
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As a analise desse conceito de boa sociedade na fonte, a partir disso, será feita
uma reflexão do crime de estupro a uma criança nesse período, como tamm o contexto da
cidade de Campos dos Goytacazes para que se compreenda como foi interpretado o crime
questão nessa sociedade. Para isso, será necessário interpretar as leis do Código Criminal
vigente neste período, que é o de 1830, para que se estabeleça um discurso entre os
personagens, como foi feito a resolução do crime, e como também se tornou conhecimento
geral.
Antes da análise da fonte primária, será traçado brevemente a história da cidade de
Campos dos Goytacazes até o século XIX, para se compreender as redes de sociabilidade e
como essa rede influência o discurso jurídico do processo crime analisado. E assim, buscou-
se, considerando os limites impostos pelo trabalho, descrever o perfil da menina violentada
e sua família, do réu do processo Manoel Rodrigues, das quatro testemunhas, e
principalmente a relão de sociabilidade e a rede clientelar entre o inspetor do quarteirão da
localidade do crime e o dono da fazenda em que o crime foi cometido, JoGoalves
Monção, que fazia parte da boa sociedade campista a ser explicada mais a frente deste artigo.
Diante do exposto, a narrativa histórica a seguir evidenciará como esse crime sexual
e sua resolução (ou não), foi assimilado pela sociedade de uma cidade que era pautada na
ruralidade, conservadorismo, redes de sociabilidade que respondiam somente por uma
pequena elite agrária ligada a Capital da Província do Rio de Janeiro Imperial. E assim marcar
essas inflncias sociais em todo o processo do crime.
É importante levar em consideração, por fim, que este é um trabalho inicial sobre
esta temática, que contou com a escassez das fontes e com o pouco tempo para a pesquisa.
É, portanto, um esforço inicial em se analisar o processo judicial citado. Preciso ressaltar
ainda que o referido processo faz parte do acervo do Arquivo Público Municipal de Campos
dos Goytacazes que reúne processos crimes referentes a comarca, que perpassam todo o
século XIX, avançando o século seguinte.
2. A Construção da Legalidade no Império do Brasil através do Código Criminal de
1830
O papel histórico do Direito Penal no processo de formação dos Estados Modernos
europeus no fim do século XVIII e toda inflncia das ideias iluministas sobre Estado, foram
primordiais nos anseios para a construção do Estado Nacional brasileiro no pós-
independência. A partir desse pressuposto, a codificação penal do Império Brasileiro possuiu
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um caráter jurídico-legislativo sob o fenômeno estatal para a positivação das leis penais.
(CHIEREGATI, 2013)
Ela teoriza sobre o teor jurídico-legislativo da codificação penal brasileira nesse
período como uma forma de autonomia potica e jurídica, na qual analisa as características
pluralistas para a reforma da máquina burocrática desse Estado em formação. De acordo com
a autora, essa pretensão de consolidar o poder para exercer a jurisdição em todo território
nacional moldou o sistema jurídico brasileiro em formação. Dessa forma, a autora salienta a
importância da reforma administrativa para se consolidar esse poder estatal. A aprovação do
Código Criminal em 1830 demonstra, portanto, como esse ordenamento jurídico se procedeu.
É importante frisar que a construção dessas leis sugere as singularidades do período
que o Brasil passava, sendo uma ex-colônia recém independente de Portugal. Desse modo,
ainda carregava suas mazelas, isto é, era um Estado escravocrata e sua ideologia política
sofreu influências da formação das Monarquias Modernas e dos movimentos revolucionários
nos países europeus no século XVIII. Esse período formativo do Estado Nacional brasileiro
teve seus anseios vinculados ao que Chieregati chama de iluminismo jurídico
4
. Para ela, o
iluminismo jurídico objetivava destacar o declínio da jurisprudência do Antigo Regime, ou
seja, a decaída das Ordenações Filipinas de 1603, que eram as ordenações que regiam
Portugal e consequentemente suas Colônias. O livro V das Ordenações Filipinas
5
regulava
sobre a matéria penal em todo Reino e seus donios. A positivação do direito ocidental veio,
de acordo com Chieregati, para superar a estrutura jurídica do Antigo Regime e dessa maneira
instaurou-se o direito codificado, que inflamou os discursos contra o pluralismo jurídico do
Antigo Regime, e logo as ideias racionalistas sobre o direito ganharam cenário na Europa a
partir da segunda metade do século XVIII. (CHIEREGATI, 2013)
A positivação do direito veio propor uma superação dos antigos consensos
populares sobre a justiça e sua administração, isto é, pretendia trazer um novo sistema de
fontes a partir da simplificação técnica da prática do direito para centralizar o judiciário e
cessar o pluralismo de direito. A ideia de codificação dessas leis racionalizadas e
sistematizadas vinha para trazer uma reforma à estrutura jurídica.
4
São as reformas nas normatizações legais produzidas na Europa no século XVIII, que criticavam o sistema
penal até então pluralistas e jurisprudencional do Antigo Regime, para uma edificação dos primeiros pilares da
codificação contemporânea em prol da positivação das leis. (CHIEREGATI: 17)
5
Era uma compilação legal portuguesa, enquanto o Brasil ainda era Colônia, desde 1603 para regular as
questões criminais. De forma que crime e pecado confundiam-se, e era uma das críticas do iluminismo
jurídico. (CHIEREGATI: 49)
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Portanto, essa unificação de fontes jurídicas oriundas de uma reforma científica do
direito positivo sofreu influência da teoria do contrato social, na questão da ideia da
superioridade da Razão do Estado sobre os indivíduos. Essa vertente que trazia a ideologia
da estrutura jurídica pluralista das monarquias corporativas do Antigo Regime, levantava a
ideia sobre a positivação do direito, que almejava ter um sistema conceitual normativo.
Seguindo por esse ponto, a influência do italiano Baccaria nesse momento é importante, pois
é ele quem reforça a importância do direito estatal de punir. Para Beccaria, a concepção de
crime teria que ser estatal e laica, um dos mais profundos princípios da positivação das leis
que influenciou grande parte da codificação europeia moderna. (CHIEREGATI, p.28)
Nessa configuração de racionalização administrativa que prezava o direito estatal, a
punição seria uma forma de defender a ordem social do Estado. O delito, por sua vez, seria
agora visto não como uma regulamentação moral ou do senso comum, mas um atentado
direto contra Estado e Soberania. Nesse contexto, o iluminismo de Beccaria sobre o direito
estatal de punir exerceu grande inflncia, onde as leis emanavam de um legislador soberano
pautado nos princípios da legalidade e do direito à condição de valores jurídicos supremos.
Portanto, a teoria de Beccaria aponta sobre a subordinação do direito a lei, e esse
iluminismo penal setecentista teve importante papel na construção dos códigos modernos e,
consequentemente, na construção da codificação das leis do Brasil recém independente nos
oitocentos. (CHIEREGATI, p.29-41)
no Brasil oitocentista, processos semelhantes aos analisados (...) adquiriram força
e materialidade a partir da instalação de um regime constitucional e representativo
no período pós-independência (...) o importante papel desempenhado pela
positivação das leis na configuração dos Estados Modernos ocidentais (Chieregati,
2013, p.41)
Assim, a aprovação do Código Criminal no Brasil em 1830 figura a nova
configuração do direito nacional no Império, que possuem suas concepções de justiça e lei
nas transformações ocorridas na Europa. Da mesma forma, teorias, concepções,
metodologias e modelos jurídicos foram sendo concebidos na Europa no final do século
XVIII, influenciando a construção de diplomas penais em várias partes do mundo da época.
A autora Andrea Slenian (2008) também evidencia sobre como a ideia de
racionalização e sistematização da esfera jurídica ocorridas nos setecentos nas monarquias
europeias teve papel na construção do direito nacional no Império, ou seja, na positivação da
lei. Para Slemian essa positivação das leis “é a transformação de princípios em leis efetivas”
(SLEMIAN, 2008, p.176).
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Dessa forma, era esse o conceito-objetivo que os deputados brasileiros, naquele
momento, pretendiam seguir ao elaborar as matérias para a aprovação das leis na primeira
década s-indepenncia. Esse esforço para a criação de uma nova estrutura institucional
estava relacionada, segundo a autora, com a tentativa de construir-se a nação brasileira.
Diante do exposto, é importante salientar sobre as disputas ideológicas no projeto
de ruptura com Portugal na construção dessa nova unidade política no Brasil, para um novo
pacto, de acordo com Slemian. Na explicação desse pacto a autora cita que o seu
funcionamento era pautado na ideia de nação enquanto uma unidade abstrata e soberana, em
que os deputados eram incumbidos de representar a totalidade dos interesses coletivos. Por
isso, medidas urgentes à administração do Império e a reformulação da legislação eram de
suma importância para eles. Logo, a construção do direito nacional brasileiro entra em voga
para se estabelecer com caráter de urgência a realização dos Códigos para o Brasil.
(SLEMIAN, p.180)
A autora segue falando sobre as reformas feitas nos primeiros anos pós-
independência para a renovação do ordenamento jurídico e para isso, foi criado “órgãos e
instituições que valorizavam a eficácia do Estado na construção da ordem nacional”. Salienta
também as disputas no espaço legislativo. A transformação do direito em um campo estatal
estava cada vez mais ressoante e a ideia de racionalização das instituições e garantia de
direitos, como a autora evidencia, de forma que o sentido de lei consolida-se a partir da
experiência codificadora napoleônica ocorrida na França em 1810. Por isso,
os códigos representariam a mais completa síntese de positivação dos princípios
constitucionais (...) foram pensados como forma de organização da legislação sobre
determinada temática, nos oitocentos eles assumiram seu papel como fonte de
direito (...) forneceriam materialidade para aplicação cotidiana do direito por meio
de uma lógica que mesclava sistematicidade e generalidade suficientes de forma a
serem colocados em prática pelas (...) instituições políticas. (SLEMIAN, 2008,
p.185)
Essa cultura jurídica europeia de valorização do interesse público pela ação
legislativa, isto é, o Direito Público veio como tangente para a produção de um ordenamento
jurídico para o Império do Brasil. O autor Pedro Jorge Costa (2015) salienta que a legislação
criminal do Império era positiva e estatal e indicava a “seletividade do sistema de justiça
criminal do império”. Também mostra a disputa entre as ideologias liberais e conservadoras
dos deputados presentes na construção do Código Criminal. O Código foi construído de
acordo com o autor a partirde um projeto liberal do deputado Bernardo Pereira de
Vasconcelos” (COSTA, p.41).
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Partindo desse ponto, a concepção do Código Criminal era inovadora no expoente
da ideia de institucionalização dos direitos e a formularem a partir dos conhecimentos da
sociedade o direito nacional. Essa era uma forma de tentar implementar uma estabilidade
interna e o controle da ordem blica através do campo da justiça. O direito nacional
funcionava para estabelecer essa ordem e, portanto, trazia, de acordo com a autora Slemian,
uma “ambivalência entre universalidade de princípios na sua interface com as realidades
locais” (SLEMIAN, 2008, p.205).
O esfoo para a codificação em prol da unidade nacional, dentro da cultura jurídica
aqui discutida, vem em resposta para a concepção jurídica da luta política vivida naquele
momento, em que os discursos normativos estavam objetivando um ordenamento, em longo
prazo, para a prevalência dos princípios universais. O ponto chave aqui é a necessidade de
fortalecer as instituições constitucionais.
Contudo, como era essa sociedade e como essas leis eram aplicadas? Pois como o
autor Pedro Jorge Costa enfatiza em seu texto sobre o tema, há uma seletividade na criação
dessas leis e a forma em que seriam aplicadas. Pois a sociedade imperial era formada por
grupos heterogêneos e reinterpretados socialmente, de forma divergente, pois esse é o pilar
da verdade jurídica imperial. (COSTA, p.18-20)
Em 1832 a publicação do Código do Processo Criminal. O documento vinha
estabelecer os caminhos para a efetivação e aplicabilidade das penas. Ao mesmo tempo
refletia a autonomia provincial num período de descentralização potica, as regências. Esse
foi um período de grandes conflitos sociais e poticos. Perante esse cenário de divergência,
ocorre em 1841 a reforma do código, pois deputados conservadores e liberais divergiam na
construção da redação da codificação vigente, e procuravam um denominador comum.
Contudo, salienta-se que o que mais se colocava em discussão para a reforma do processo
criminal de 1832, é que quando foi aprovado nas Províncias do Império que haveria "um juiz
de paz, um escrivão e quantos inspetores de quarteirão e oficiais de justiça fossem
necessários" (DANTAS, 2009, p.3). É discutido entre os deputados o poder desses juízes de
paz, que muitas vezes era superior ao Juiz de Direito.
O Código do Processo Criminal empunhava instruções para a execução do Código
Criminal vigente (DANTAS, 2009), o de 1830. Contudo, a reforma realizada em 1841 vem
para atualizar as discussões dessas leis e essa reforma estabelecia que as “atribuições
criminais e policiais que atualmente pertencem aos Juízes de Paz, e que por esta Lei não
forem especialmente devolvidas às Autoridades, que cria, ficam pertencendo aos Delegados
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e Subdelegados” (DANTAS, 2009, p.11). E assim ficavam também abolidas as Juntas de
Paz
6
.
A reforma do Código em 1841 vem trazendo mudanças quanto ao papel dos
Promotores e da instituição do Júri. Mas enquanto a interpretação do que seria um crime de
estupro e defloramento, o crime que será analisado neste artigo, a reforma não muda essa
parte na codificação. Porém é necessário atentar para a nova interpretação que a reforma do
Código trazia em relação às "Disposições Policiais"
7
. Com isso, muda-se somente a forma
hierárquica de resolução dos crimes, incluindo nesta interpretação a resolução do crime de
estupro.
3. A “Boa Sociedade”, sua moralidade e a questão da sociabilidade imperial brasileira
Na sociedade imperial brasileira era conhecido como cidadão o brasileiro livre.
Reconheciam-se semelhantes e conjugavam interesses econômicos, políticos e sociais.
Segundo o autor Ilmar Rohloff de Mattos (1991), essa sociedade era composta por cidadãos
brasileiros que almejavam igualdade potica e jurídica entre si para a construção desse
Estado Nacional. Esse era o projeto de nação para eles, o homem brasileiro (não estrangeiro
e não escravo e com renda para isso) almejava gozar dos seus direitos políticos.
Para o autor, a boa sociedade era composta pela “parte mais importante da
nacionalidade (...) que reuniam em suas mãos a riqueza, poder e prestígio (...) eram livres,
brancos e proprietários” (MATTOS, 1991, p.16). Portanto as pessoas da dita “boa sociedade”
se viam como os brasileiros responsáveis pelo destino do Império, pois eles se diferenciavam
do restante da sociedade. Porque era da boa sociedade os cidadãos brancos e de prestígio,
logo se subentende que essas pessoas possuíam propriedades de terra.
A dita Boa Sociedade” era, de acordo com o autor, uma sociedade branca e de
modos europeus, tanto em sua organização política, como cultural. São esses homens que
pertencem a essa sociedade, divergente da outra parcela de pessoas que não eram cidadãs e
o tinham, consequentemente, esse poder, que construíram as leis para reger esse Estado
em formação para atender suas demandas. Esses brasileiros se sentiam responsáveis pelo
destino do Império, frente às instabilidades políticas e sociais. Tinha-se a ideia que eles eram
os “cidadãos ativos”, os que tinham voz, pois tinham poder econômico e propriedades,
6
Artigo 95, “Lei no. 261 de 3 dezembro de 1841”, op. cit.
7
A quem incumbia a polícia administrativa e judiciária, esclarecia-se a hierarquia de mando (DANTAS, 2009:
13)
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diferente dos escravos ou cidadãos livres, mas que não possuíam propriedades de escravos e
terras. Era isso que definia um cidadão ativo nessa sociedade Imperial. (MATTOS, p.35)
Dessa maneira, a liberdade e a propriedade eram atributos de privilégios dessa
sociedade. O autor salienta que essa divergência entre as classes (Boa Sociedade, Povo e
Escravos) era vista como natural e eterno pela justificativa de hierarquização entre essas
pessoas dentro do Império. Aboa sociedade” almejava exaltar a liberdade e as propriedades
como ferramentas para legitimação do poder e gozo de seus direitos poticos para consolidar
a ordem no Império brasileiro. (MATTOS, p.44)
Dentro dessa razão, foi promulgado o Código Criminal em 1830, editado por esses
cidadãos de bem”, para legitimar a ordem a qual eles acreditavam, segundo a dualidade
ideológica dos liberais e conservadores para todas as classes dessa sociedade imperial,
porque como já vimos antes, de acordo com Jorge Costa (2015), havia uma seletividade na
aplicação da justiça, forma que legitimava os privilégios da “boa sociedade” e a ordem. Pois,
o Código Penal previa como penas a morte, as galés, a prisão com trabalho, a prisão
simples, (...) As penas de morte e galés foram suprimidas para os crimes políticos,
mas mantidas para os crimes comuns, em uma vitória dos conservadores no
congresso. Argumentavam eles que não se manteria a ordem entre os escravos com
a supressão dessas penas. [...] Nesse ambiente liberal, as galés e os açoites eram
previstos apenas para os escravos. (COSTA, 2015, p.49-50)
Importante lembrar que o Código do Processo Criminal de 1832, representou muito
bem os reflexos dessa potica elitista que almejava, nesse período, maior autonomia regional.
Ao mesmo tempo, como já discutido acima, a Reforma do Código do Processo Criminal, em
1841, reflete a virada conservadora representada pelo Regresso, a partir de 1837.
Ilmar Rohloff de Mattos teoriza também sobre essa seletividade afirmando que a
construção das leis imperiais foi usada como arma, um tipo de proteção contra levantes ou
crimes de insurreição. Tal fato legitimava, segundo o autor, a autoridade da “Boa Sociedade”,
isto é, os legisladores da Câmara, sobre os escravos e os privilégios da mão de obra
compulsória para a ordem pública do estado Imperial e a liberdade. (MATTOS, p.47-48)
Essa divergência entre os grupos dentro do Império foi estudada por Marco Morel
(2001) numa discussão sobre o conceito de sociabilidade. Para ele essas relações sociais eram
uma história da vontade associativa com dados quantitativos e comparativos, com suas
mudanças no tempo e no espaço (MOREL, 2001, p.5), e a teoria de que movimentos
associativos poticos formavam o direito e justiça imperial, de modo que
as associações não são sempre unifuncionais, mas que podem cumprir
simultaneamente várias funções sociais. Isto é, trata-se de considerar as
associações multifuncionais. As dimenes econômica, filantrópica, pedagógica,
corporativa, política e cultural podem encontrar-se numa mesma instituição.
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Entretanto, algumas referências marcam as especificidades de tais agrupamentos.
(MOREL, 2001, p.5)
Assim as associações poticas do Rio de Janeiro Imperial que construíram o
discurso jurídico, garantiriam a ordem que era um princípio e fundamento dos projetos
políticos das elites do Império. E dentro dessas redes de sociabilidades que se construiu a
narrativa jurídica oitocentista brasileira.
os princípios democráticos propiciavam a desorganização e a anarquia, que
comprometiam a liberdade. Para subsistir, a liberdade necessitava de autoridade;
para garantir e expandir seus interesses, o governo da casa precisava do governo
do Estado; para manter a posição privilegiada e hierarquicamente superior, a “boa
sociedade” dependia de “bons governantese “bons administradores no governo
do Estado” (MATTOS, 1991, p.44)
Dessa forma, era necessário que a “boa sociedade” reconhecesse a necessidade da
existência de um poder centralizado e forte, para a imposição da ordem, e assim dar a
continuidade dos privilégios que a elite objetivava manter. Os interesses do Império são os
mesmos interesses da “boa sociedade”, que segundo Ilmar Rohloff de Mattos, são entusiastas
da liberdade e autoridade e “sob a supervisão de um imperador que não se deixava levar pelas
paixões partidárias” (MATTOS, p.87).
Portanto, na sociedade imperial brasileira o princípio conservador marcou a
continuidade das relações entre senhores e escravos e mais proeminentemente a conservação
de uma sociedade hierarquizada. Além de distinguir homens livres de escravos, também se
conservou um papel e uma posição privilegiada para a “boa sociedade” entre todas essas
diferenciações entre as pessoas, como também para o que o autor Rohloff cita como
dirigentes imperiais”. Esses dirigentes, inseridos na “boa sociedade”, “também possuíam
privilégios” e se tornavam os grandes defensores da ordem e da ideia de civilização sob esses
moldes de hierarquias. (ROHLOFF, p.81-89)
A função do Governo residia também na conservação e defesa da ordem escravista,
na monopolização das terras e, principalmente, na questão do controle dos cargos
administrativos para essa elite, com bases no princípio do que eles consideravam ser em prol
do progresso e da civilização. Isto é, a restauração da ordem e da segurança blica para
legitimar a autoridade do Estado. Para nós, o que mais interessa nesse contexto, é a
construção desse ordenamento pelo judiciário porque tem reflexos diretos na interpretação e
tratamento dado ao crime analisado neste artigo.
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4. Crime de estupro, defloramento e imprensa na cidade de Campos dos Goytacazes
De acordo com a Lei de 16 de dezembro de 1830 do Código Criminal, o crime de
estupro estava previsto e descrito no capítulo 2, “dos crimes contra a segurança da honra”. O
artigo 222 descrevia a cópula carnal por meio de violência ou ameaças a qualquer mulher
honesta. Veja que o termo mulher honesta é colocado para empregar a segregação no
tratamento judicial entre a mulher da “boa sociedade”, com formação para o casamento e
para a maternidade, e a que não era prostituta, especificamente. Nesse sentido, o crime
deveria ser julgado e interpretado, pelos homens de lei, de forma diferente. O artigo 224,
seção I, também previa o tratamento como crime de estupro para o homem que seduzia a
mulher “honesta”, menor de dezessete anos, com, através de exame de corpo de delito,
comprovada cópula carnal dessa relação
8
.
O artigo 219 tratava como estupro o defloramento da mulher virgem menor de 17
anos. Nesse aspecto, podemos perceber que é este crime o mais semelhante ao que hoje
conhecemos como pedofilia, mas que nesse tempo não se tratava dessa forma. Tanto a justiça,
por meio da legislação, e a sociedade, pelo viés da moralidade, julgavam essas mulheres.
9
No caso aqui estudado, a “mulher” estuprada era uma menina, que tinha, segundo o processo
estudado, de quatro a cinco anos. Uma sociedade composta por homens, dirigida por homens
e que possuía como maior preocupação a sexualidade feminina. Embora saibamos da
importância dessas discussões e de suas relações com a estruturação da boa sociedade
imperial, optamos por analisar, ainda que brevemente devido a estrutura do trabalho, as
conexões entre a judicialização da sociedade oitocentista, possíveis redes de sociabilidades
locais e o processo crime estudado.
A reforma do Processo do Código Criminal de 1841 não muda a redação desses
artigos do capítulo dois, seção I, que designa sobre os crimes de estupro e defloramento do
Código Criminal de 1830. Entretanto, como aqui explicado, muda-se a interpretação da
hierarquia das disposições policiais, mas a forma como o crime de estupro é entendido em
1832, ainda é o mesmo da reforma de 1841.
A denúncia aqui a ser descrita foi conhecida primeiramente pelo jornal Monitor
Campista
10
nos primeiros dias de setembro do ano de 1879 na cidade de Campos dos
Goytacazes. Tal artigo chocou a sociedade campista com termos para descrever o crime como
8
Lei de 16 de dezembro de 1830, Cap. 2, seção I, Art. 222/224.
9
Lei de 16 de dezembro de 1830, Cap. 2, seção I, Art 219.
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Jornal Monitor Campista, setembro de 1879/ Arquivo Público Municipal de Campos dos Goytacazes.
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brutal e tratando o estuprador como pior que a besta do campo”. O crime ocorreu em
Cachoeiras de Muriahé em dez de setembro de 1879, segundo o jornal, uma localidade da
Freguesia de Santo Antonio de Guarulhos em que Manoel Rodrigues de Almeida estupra
Francisca Lourenço Rosas, uma menina parda de cinco anos de idade.
O processo criminal é composto por um corpo de delito realizado dia vinte e cinco
de setembro do mesmo ano, como também o auto de perguntas ao pai da deflorada que
descreve como encontrou sua filha após o crime, que, de acordo com ele, foi ocorrido em
meados de agosto de 1879. Ele cita que sua filha “possuía sangue nas partes intimas”. Ainda
declara que “a própria filha que falou sobre Manoel ter sido quem a causou aquilo logo após
ele ter a chamado para comer pão em sua casa”, identificando o padeiro como criminoso
11
.
Manoel era cozinheiro da estrada de Ferro de Carangola, uma estrada ferroviária nas
redondezas da Freguesia Santo Antonio de Guarulhos. Pela inquirição das testemunhas, todas
afirmam que foi Manoel quem estuprou a menina. Afirmaram também que “três dias depois
do crime, o réu é encontrado morto no rio em frente à fazenda de José Gonçalves Monção”
e assim, o processo criminal é arquivado em 23 de outubro de 1879
12
.
Interessante neste crime é o papel exercido pelo jornal local na denúncia e
popularização do crime. O estupro é divulgado a população campista através do Monitor
Campista. Marco Morel teoriza sobre a historiografia da imprensa periódica. De acordo com
ele, os jornais eram manuscritos para uma transmissão oral para a sociedade daquela época,
isto é, a imperial. Morel salienta que os jornais não eram instrumentos exclusivos da elite,
pois já estavam disseminados na dinâmica da sociedade, apesar dos diferentes públicos que
cada periódico pretendia alcançar. Ele cita que os periódicos são complexos agentes
históricos. Por esse motivo que é usado também como fonte neste artigo. O crime de estupro
aqui estudado, ao sair no periódico citado, que possuía uma imensa circulação na região, logo
um jornal popular, transmite uma publicidade do crime, como tamm outras notícias de
semelhante gênero. (MOREL, 2005)
Os jornais no século XIX são uma importante ferramenta de circulação de
informações. Para as pessoas saberem sobre as notícias e situações de sua localidade, elas
tinham somente os jornais como forma de informação. Por isso, evidencia-se que, quando a
notícia totalmente descritiva do crime chega ao alcance da redação do Monitor Campista,
nota-se como este instrumento periódico tem sua relevância potica. Tal processo
11
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configurou-se na forma mais acertada, acreditava o pai da menina violentada, para que o
crime em questão fosse de conhecimento público, já que as investigações pelo inspetor de
quarteirão o iniciavam.
Marco Morel evidencia a perspectiva do uso da imprensa para a obtenção de
verdadeiras informações. E dessa maneira percebe-se o prestígio da imprensa durante o
oitocentos. Da mesma forma, podemos perceber que a notícia do crime de estupro, ao sair no
periódico, teve sua publicidade da causa muito mais disseminada. (MOREL, 2005). Ainda
de se acrescentar que o crime foi cometido no interior da Freguesia Santo Antônio de
Guarulhos, uma Freguesia periférica. Sua localização ficava do lado oposto a Freguesia de
São Salvador, que é a central e cabeça de comarca. As duas regiões estavam divididas pelo
rio Parba do Sul. Aqui, a distância também causaria o desconhecimento do crime, que
veio a ganhar publicidade e comoção popular ao sair no periódico.
5. Campos dos Goytacazes oitocentista e suas redes de sociabilidade na resolução do
crime de estupro
A cidade de Campos dos Goytacazes, antes capitania da Paraíba do Sul, foi doada
pela coroa portuguesa a Salvador Correia de e Benevides, por seus serviços prestados a
coroa portuguesa. Em 1754, após décadas de conflitos entre os donatários e os moradores da
região, integrou-se novamente a coroa portuguesa, e posteriormente tornou-se a Vila de São
Salvador, sendo localizada ao norte do estado do Rio de Janeiro. Somente no ano de 1834 foi
criada a Comarca de Campos, e em março de 1835 a então Vila de São Salvador é elevada à
categoria de cidade na Província do Rio de Janeiro, sendo denominada Campos dos
Goytacazes. (TEIXEIRA, 1975)
Essa sociedade criou normas e padrões familiares, regras de conduta, como também
se protegia potica e socialmente. E aqui nota-se como a cultura potica da sociedade
oitocentista propiciava a identidade da sociedade campista nesse período, que era uma
sociedade de indivíduos que buscavam alianças proveitosas para si. Campos dos Goytacazes
era uma sociedade senhorial e escravista. Os esforços em identificar algumas redes de
sociabilidade nos fornecerá uma importante dimensão na perspectiva dessas associações, no
que tange aqui a se destacar a visibilidade e poder desses indivíduos da boa sociedade”
campista. Essas redes influenciaram a dinâmica interna de poder entre os indivíduos no
império. Dessa maneira, destaca-se aqui como essas redes de sociabilidade campistas
influenciaram na defesa do réu no que se refere a abertura e andamento do processo crime
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aqui analisado. Como citado no jornal Monitor Campista, de agosto de 1879
13
. (MOREL,
2001)
O jornal, em sua reportagem, buscou retratar como o inspetor do quarteirão da
Freguesia de Santo Antônio de Guarulhos não deu início imediato a investigação, quando o
pai da violada o procurou. O inspetor em questão é a primeira testemunha do processo,
Domingos José Lage. O mesmo fala que "no dia treze de agosto, quando se tomou ciência do
crime por Manoel Lourenço, ele imediatamente vai à casa de Manoel para fazer uma
inspeção", segundo consta no processo crime. Entretanto, ele relata em seus autos de
testemunho que "não encontra nenhum indício de estupro na criança
14
".
Os autos do inspetor Domingos diziam que o pai da criança "não possuía
testemunhas de vista, e que isso também dificultava a investigação". Porém, "aconselhou o
pai da menina a levá-la ao subdelegado da Freguesia para se prosseguir com a justiça
15
". O
Monitor Campista, por sua vez, afirmava que Domingos "aconselha o réu a fugir da Freguesia
de Guarulhos”, ele diz que essa acusação descrita no jornal é falsa em seu testemunho que
consta no processo crime
16
.
No próximo relato da segunda testemunha do crime, Eugenio JoLouvem, é citado
que "foi chamado pelo inspetor Domingos logo quando o inspetor sabe do suposto crime pelo
pai da ofendida para testemunhar a inspeção na menina”. Contudo, Eugenio diz em seu
testemunho que “no momento da convocação informou ao inspetor que estava ocupado em
seu ocio de padeiro, e pede dispensa, e por isso não acompanha o inspetor". Ao ser
perguntado sobre o crime, Eugenio diz que "ouviu de algumas pessoas que a menina foi
ofendida por Manoel Rodrigues", que na data dos autos de testemunhas já estava falecido. E
que "ele não sabe mais nada a respeito sobre isso, nem a data e hora do crime, só lembra que
o crime ocorreu em agosto
17
".
A terceira testemunha dos autos é Miguel Pereira da Silva. Ele relata que "foi
chamado pelo inspetor dois dias depois do crime ser de ciência de Domingos para irem ver a
ofendida e ele atende ao chamado do inspetor e o acompanha para a casa do pai de Francisca".
Diz que, "ao chegar ao local e começar a revista a menina, ainda encontrava sangue nas
13
“Não era possível a pobre criancinha ocultar seus ferimentos e seu estado, de sorte que imediatamente o pai
[da menina Francisca] dirigiu-se ao inspetor de seu quarteirão pedindo-lhe providências da sua parte, mas
segundo nos dizem esta autoridade não deu a menor importância ao fato e até aconselhou ao autor do crime que
se retirasse do lugar” (Jornal “Monitor Campista, setembro de 1879.)
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roupas e as partes intimas inflamadas e ele ao se deparar com esses fatos, diz que está
convencido que a menina tivesse sofrido a violência". Ele relata também em seu testemunho
que "ao perguntar sobre o autor do crime, o pai e a menina dizem que seria Manoel
Rodrigues
18
".
Miguel ainda fala que "viu algumas vezes a menina em companhia de Manoel
Rodrigues". Sobre a morte de Manoel, a testemunha afirma que
soube dias depois do acontecimento do crime, e ele acredita que Manoel foi
assassinado por um dos trabalhadores da estrada de ferro do Carangola, Pedro
Baptista, que logo depois desapareceu do lugar
19
.
A quarta testemunha, Manoel Simões Maia, fala que
ao ir trabalhar na estrada de ferro do Carangola, deixava a menina Francisca na
companhia de Manoel Rodrigues, o cozinheiro da companhia. Dois dias depois ele
é chamado por Manoel Lourenço para ir a sua casa ver o estado em que se
encontrava Francisca e que estaria estuprada pelo seu rancheiro. Sendo assim ao
voltar ao seu rancho, Manoel Simões confronta Manoel Rodrigues, mas ele nada
respondeu
20
.
Dessa forma, ele reporta essas informações a seu patrão Carlos Lourenço. O então
patrão coloca Manoel Rodrigues em outra turma de trabalhadores, já que de acordo com o
testemunho de Manoel Simões, "o pai de Francisca ameaçou Manoel Rodrigues com uma
arma"
21
.
Ao ser perguntado sobre a morte de Manoel Rodrigues, ele relata que
ouviu dizer que na véspera do desaparecimento de Manoel Rodrigues, ele andava
acompanhado de Pedro Baptista, ambos em estado de embriaguez, e que passado
dias soube que andaram brigando perto do rio e que apareceu um corpo, mas não
soube como se deu aquela morte, se foi acidente ou assassinato
22
.
E ainda, perguntado sobre por onde andava Pedro Baptista, Manoel Simões
respondeu que "desde a morte de Manoel Rodrigues, ele não tem mais notícias sobre Pedro
Baptista
23
". Dessa forma, no dia trinta de setembro de 1879 chegam ao fim os autos de
testemunho do processo crime. Com bases nas inquirições e sob uma forte pressão popular,
após os noticiários no Monitor Campista, concluiu-se que, em Cachoeiros de Muriahé, nos
terrenos da estrada de ferro do Carangola, Manoel Rodrigues cometeu o crime de estupro na
menina de quatro anos de nome Francisca, filha Manoel Lourenço
24
. A base para a conclusão
18
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pelo crime estava também no exame de corpo de delito, além dos relatos das testemunhas.
fora constatado que houve cópula carnal com violência, resultando na condenação de
Manoel Rodrigues. Todavia, como o autor do crime dias depois é encontrado morto no rio
em frente à fazenda de José Gonçalves Monção, o processo crime é arquivado em vinte e três
de outubro por parte da justiça.
Importante notar que o local em que o crime foi cometido parte da fazenda de um
indivíduo da boa sociedade campista, JoGonçalves Monção. E, quando o inspetor da
Freguesia toma ciência do crime e do local, tenta a todo custo retardar as investigações, como
podemos concluir após a analise dos autos de testemunha do processo criminal, como
também o artigo sobre o crime no jornal Monitor Campista. De acordo com o jornal, o pai
de Francisca teria sido ignorado ao procurar o referido inspetor para denunciar o crime contra
a sua filha. Da mesma forma, as testemunhas citam em seus relatos o fato de que o inspetor
do quarteirão responsável pelo caso era amigo de José Gonçalves Monção.
Ainda sobre o periódico, as notícias divulgadas davam a entender a existência de
relações comprometedoras entre o inspetor Domingos e José Monção. É importante ressaltar
que José Monção ao ser citado pelas testemunhas no processo, e como ele era um integrante
da Boa Sociedade seria desabonador para ele. Por isso esta tentativa de proteção a ele pelo
subdelegado, e assim percebe-se como a rede clientelar inflncia nessa parte do processo.
Como o crime de estupro, e o assassinato do criminoso Manoel Rodrigues ocorreram
na propriedade de José Monção, os indícios documentais nos sugerem que o inspetor tentou
o colocar o seu amigo da boa sociedade campista como culpado, ou seja, buscou não
envolvê-lo nas investigações. Aqui é perceptível como a rede de sociabilidade é posta em
prática para a defesa de sua imagem. Por isso que as testemunhas citam essa relação de
amizade entre Domingos e José Monção, e percebemos que esse deve ser o motivo de tempo
de um mês desde que o crime foi cometido, até sua investigação, e a realização do corpo e
delito.
Aqui, portanto, temos uma exemplificação de uma rede de sociabilidade
25
na fonte
analisada neste artigo, de acordo com Marco Morel. (MOREL, 2001). A influência de um
membro da boa sociedade existe propriamente para evidenciar sua importância
26
potica
perante os outros e a densidade de sua existência (MOREL, p.5). Por isso, se nota a proteção
25
De acordo com Marco Morel (2001), sociabilidade seria um movimento associativo multifuncionais com
suas mudanças no tempo e espaço entre determinados indivíduos. (MOREL: 5).
26
Os grupos políticos, por sua vez, podem ser definidos como os que se constituem com o objetivo explícito
de pressão direta ou de intervenção na cena pública.
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a esse membro frente à cena pública. Essa é uma das distinções e fuões da boa sociedade
nesse período.
Por isso, é importante aqui salientar o papel dos indivíduos dessa boa sociedade e
das relações que estabeleciam entre si. É possível perceber a influência potica em seu
ambiente e nas relações sociais, assim como sua inflncia sobre a investigação policial e na
esfera jurídica. A partir disso, as redes de sociabilidade sugerem também relações de poder.
Segundo o autor Ilmar Rholoff Mattos, buscava-se exatamente fortalecer essas alianças
estratégicas, como nos foi possível analisar brevemente aqui, para alicerçar esse poder das
elites da sociedade oitocentista. Aqui a sociabilidade é uma importante dimensão para o
âmbito potico e social desses considerados cidadãos.
6. Considerações Finais
Diante do exposto, foi possível identificar e compreender a vastidão das redes de
sociabilidade para a época estudada, como aqui foi explicitado, em Campos dos
Goytacazes. É importante colocar em evidência nessa narrativa histórica a condição social
dos atores na fonte primária deste trabalho.
A partir dessa perspectiva, compreendeu-se como o Código Criminal de 1830 tem
uma função primordial para se compreender como o crime de estupro era interpretado no
Brasil do século XIX. E que como uma cidade rural e interiorana da Província do Rio de
Janeiro estabelecia suas relações sociais em justificativa a seu conservadorismo dessas
relações e na ruralidade.
Ao analisar o Código Criminal de 1830, também foi possível constatar que a
construção das leis também respondiam a uma moralidade cristã ocidental, principalmente
ao se referir as mulheres, e como deveria ser sua conduta. Porém, neste artigo centrou-se
majoritariamente na descrição e identificação das redes de sociabilidade e sua influência
política nas relações em que se analisou e identificou no processo crime usado como fonte.
As esta parte, estabeleceu-se uma narrativa histórica sobre a cidade de Campos
dos Goytacazes que é onde o crime ocorreu e foi necessário buscar esse histórico para que
fosse possível compreender as características da cidade, assim como também a maneira em
que as relações de poder se estabeleciam. O objetivo foi traçar uma interpretação de onde os
agentes sociais aqui analisados estavam inseridos e como suas redes de sociabilidades se
estabeleciam.
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Dessa maneira, pretendeu-se estabelecer uma relação entre o Código Criminal de
1830 (e o Processo do Código Criminal de 1832 e sua reforma em 1841), analisado desde o
histórico da positivação das leis no século XVIII, e as relações sociais no Brasil Império,
bem como a aplicabilidade da justa na época.
Conferimos destaque também à importância dos periódicos para aquela sociedade.
A circulação regional do Monitor Campista, bem como sua visibilidade, foram responveis
por uma popularização do crime analisado, da mesma forma que influenciou definitivamente
a conclusão do processo criminal. Um dos mais norios meios de comunicação da época, os
jornais foram responsáveis por transformações determinantes na esfera pública, que eram
canais de circulação de ideias e de opiniões e possuíam um alcance grandioso para a época,
conforme Marco Morel teoriza em seus trabalhos.
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Arquivo Público Municipal Waldir Pinto de Carvalho: Jornal "O Monitor Campista" de
setembro de 1879.