Revista Mundo Livre, Campos dos Goytacazes, v.5, n.2, p. 148-151, ago/dez 2019
148
O CULTO AOS SANTOS NO OCIDENTE MEDIEVAL
*
EL CULTO A LOS SANTOS EN EL OCCIDENTE
Henrique de Melo Kort Kamp
https://orcid.org/0000-0002-5205-9173
SILVA, Andréia C. L. F.; SILVA, Leila R. da. Mártires, confessores e virgens: o culto aos
santos no Ocidente Medieval. Série “A Igreja na História”. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.
Desde meados do século XX, há um interesse crescente por temas e objetos de análise
que introduziram os historiadores em um campo anteriormente quase exclusivo de áreas como
a Antropologia, a Sociologia, a Literatura e a Filologia. A historiografia brasileira, não
dissonante, tem partilhado desse avanço desde as últimas décadas do século passado, quando
começou a ser introduzido, em trabalhos tupiniquins, esse novo olhar concedido a fontes
históricas, assuntos e debates antes marginalizados.
É nesse contexto que se insere a coleção A Igreja na História, publicada pela Editora
Vozes. Coordenado pelos professores JoD’Assunção Barros, Andréia Cristina Lopes Frazão
da Silva e Leila Rodrigues da Silva, o projeto se propõe a publicar obras de autores brasileiros
que se dedicam ao estudo da História da Igreja e do Cristianismo a partir de olhares transversais
aos múltiplos agentes históricos. O conjunto conta atualmente com três publicações: Papas,
imperadores e hereges na Idade dia (2012), Mitos papais Potica e imaginação na
história (2015) e “Mártires, confessores e virgens O culto aos santos no Ocidente Medieval”
(2016). É a essa última a qual dedicamos nossa atenção.
Organizada pelas professoras Andréia Frazão da Silva e Leila Rodrigues, a obra conta
com contribuições valiosas de historiadores como Valtair Afonso Miranda, Paulo Duarte Silva
e Carolina Coelho Fortes além das próprias organizadoras, é claro. Em seu prefácio, o
professor Ronaldo Amaral deixa explícito o ponto forte dessa publicação: erudição sem
complexidade. Não que as discussões travadas pelos autores ao longo dos textos não sejam
*
Resenha recebido em: 11 de junho de 2019. Aceito em: 10 de dezembro de 2019.
Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil. Doutorando em História pela Universidade Federal
Fluminense. Autor correspondente. E-mail: hmkort_kamp@hotmail.com
Revista Mundo Livre, Campos dos Goytacazes, v.5, n.2, p. 149-151, ago/dez 2019
149
importantes, cuidadosas e até mesmo complexas. O ápice do livro é justamente apresentar
debates de alto nível com uma linguagem simples, acessível. Cumpre, assim, o papel anunciado
na apresentação da coleção, quando JoD’Assunção Barros destaca que ela é dedicada não
apenas a um múltiplo blico acadêmico que engloba historiadores, teólogos, sociólogos e
antropólogos à medida em que os temas discutidos lhes interessem , como também ao público
o-acadêmico. No livro, entretanto, não se banaliza a produção do conhecimento histórico,
como em muitos “manuais” presentes no mercado editorial.
O primeiro capítulo do volume, nesse sentido, apresenta uma discussão sobre o
martírio na perspectiva da longa duração. Sob o tulo Mártires na Antiguidade e na Idade
Média”, Valtair Afonso Miranda leva a uma leitura multidisciplinar do tema na Antiguidade e
no Medievo. Isso se deve principalmente a vastidão de sua formão, já que sendo teólogo,
historiador e estudioso das Ciências da Religião, ele fornece uma sólida discussão do fenômeno
do martírio a partir de suas práticas e representações milenaristas. Após a sua análise sobre a
história de Bernardo e dos missionários franciscanos, Miranda consegue deixar tido como a
construção do estereótipo do herói a partir da característica de mártir é um exercício de poder
e, principalmente, como refletir sobre o fenômeno do martírio auxilia a compreender as formas
e dinâmicas de poder dentro da sociedade medieval.
no segundo capítulo, intitulado “Monges e literatura hagiográfica no início da Idade
Média”, Leia Rodrigues da Silva faz uma análise da vida e religiosidade monástica durante a
Antiguidade Tardia e Alta Idade dia. A autora divide o texto em duas partes: primeiro,
analisa a trajetória do fenômeno monástico desde as suas raízes eremíticas até os movimentos
que consolidam o monacato na Península Itálica, na Península Ibérica e nas Gálias; em seguida,
aborda o que ela chama de “bem-sucedida relação entre monacato e hagiografiaa partir da
análise das vidas de São Bento, São Frutuoso e Santo Amando. O que Silva conclui após a sua
argumentação é que o monasticismo no Ocidente não constituiu um movimento de contestação
à organização eclesiástica, mas sim que suas características dentre elas a produção
hagiográfica inseriam-se no contexto da cristianização dos reinos romano-germânicos.
O capítulo seguinte, de autoria de Paulo Duarte Silva, traz uma reflexão sobre “Santos
e Episcopado na Península Ibérica”. O autor discorre sobre a trajetória da santidade desde a
Alta Idade Média até a Idade Média Central, mostrando como ao longo desse período o
fenômeno da santidade caminhou ao lado e até confundiu-se com a própria estrutura da
instituição eclesiástica. A partir de oito casos (Martinho de Braga, Isidoro de Sevilha, Rosendo
de Celanova, Ato de Oda, Olegário de Tarragona, Bernardo Calvo de Vic, Agno de Saragoça e
Berengário de Peralta), Silva apresenta uma série de elementos comuns e também novidades
Revista Mundo Livre, Campos dos Goytacazes, v.5, n.2, p. 149-151, ago/dez 2019
150
nas histórias e aspectos da santidade desses personagens que viveram entre os séculos VI e XIII.
O que se conclui ao final da leitura é que a santidade é um fenômeno construído social e
historicamente, associado às formas e regimes de poder que se sobrepuseram ao longo do
período medieval.
No quarto capítulo, dedicado a uma reflexão sobre “As ordens mendicantes e a
santidade na Idade Média”, Carolina Coelho Fortes discute o novo modelo de santidade: o
mendicante. Para isso, a autora pontua que esse novo modelo está atrelado às transformações
que aquela sociedade vem sofrendo: tornando-se essencialmente urbana desde o século XII,
havia a necessidade de que o clero dialogasse diretamente com esse novo modus vivendi. Quem
atende a essa necessidade são as ordens mendicantes, que adotam um estilo de vida totalmente
oposto ao do monasticismo tradicional. Nesse sentido, Fortes disserta sobre a própria instituição
da santidade medieval, abordando o surgimento das ordens mendicantes e a canonização de
seus maiores expoentes (Domingos de Gusmão e Francisco de Assis).
No capítulo final, Andréia Cristina Frazão Lopes da Silva traz um olhar sobre a
santidade sob o viés das discussões de gênero, dissertando sobre as “Mulheres e Santidade na
Idade Média”. A autora inicia seu texto fazendo ressalvas a duas interpretações comuns ao
estudo da santidade feminina no medievo: a de que esse fenômeno cresceu exponencialmente
a partir do século XII e a de que esse é um feito quase exclusivo desse período. Em seguida, ela
seleciona personagens de diferentes séculos e lugares do Ocidente Medieval para fazer uma
abordagem histórico-biográfica do fenômeno da santidade feminina e de seu papel na memória
e religiosidade daquela sociedade. São elas: Santa Escolástica, Santa Radegunda, Santa
Valpurga, Santa Oria, Santa Hildegarda de Bingen, Santa Clara de Assis e Santa Guglielma.
As a exposição, Silva finaliza destacando que embora não seja possível traçar um perfil único
de santidade feminina e que a mulher continue a ser vista como mais fraca que os homens, é
perceptível que um número crescente de mulheres passaram a ser admiradas por suas qualidades
cristãs e a serem reconhecidas publicamente pela Igreja como santas. Isso reforça, segundo a
autora, o aspecto socio-histórico da santidade, uma vez que o reconhecimento e culto a figuras
femininas estava “em profunda coneo com diferentes conjunturas, anseios sociais e relações
de poder”.
Podemos concluir, portanto, que os artigos que dão forma ao livro levam a uma leitura
sensível e profunda sobre a dinâmica histórica do fenômeno da santidade no Ocidente Medieval,
como já havia destacado Ronaldo Amaral no prefácio da obra. Ao final da leitura, é possível
ter ao norte o conjunto de questões que cercam a santidade medieval, desconstruindo a noção
de este seja um fenômeno natural. Todos os autores, a partir de seus objetos, caminham no
Revista Mundo Livre, Campos dos Goytacazes, v.5, n.2, p. 149-151, ago/dez 2019
151
sentido de mostrar como o processo de santificação de mártires, confessores e virgens na Idade
Média faz parte de um projeto institucional que abarcou um movimento de massa: a adoração
aos santos e às suas relíquias.