PEDAGOGIA DA “QUALICIDADE”: IMERSÃO NA METODOLOGIA ATIVA SOB A PERSPECTIVA DA CLASSE TRABALHADORA


PEDAGOGY OF “QUALITYHAPPINESS”: IMMERSION IN ACTIVE METHODOLOGY FROM THE PERSPECTIVE OF THE WORKING CLASS


PURL: http://purl.oclc.org/r.ml/v6n2/a5


Cláudio Adão Moraes Andrade


Resumo: Este trabalho é uma interlocução entre ensino fundamental e ensino médio integrado. Foi desenvolvido a partir da percepção da necessidade de construir uma perspectiva territorial em que cada segmento assuma a responsabilidade de preparar os estudantes para operar no nível de complexidade que a etapa seguinte demanda. O presente artigo aborda um projeto piloto em que foi aplicada metodologia ativa durante dois anos acompanhando a mesma turma no 4° e 5° anos do ensino fundamental da rede pública municipal de São João da Barra/RJ. Os pressupostos epistemológicos diferenciados permitiram ressignificar o espaço e a relação formativa proporcionando enraizamento, identificação, desenvolvimento de competências e volição. Partindo do lugar da prole da classe trabalhadora, a experiência comprovou que é possível atuar no sistema de educação formal sem reproduzir o modelo de desigualdades condicionadas por estruturas pedagógicas que marginalizam exigindo que o estudante se adapte a ela ao invés dela retratar a singularidade dos contextos. Sintetizado pelo neologismo, “qualicidade”, a experiência demonstrou ser viável a gênese de uma escola em que a formação de qualidade, por ser integral, configura um processo de cultivo de felicidade individual e coletiva.

Palavras-chave: Metodologia ativa. Complexidade. Integral.


Abstract: This work is a dialog between elementary school and integrated high school. It was developed from the perception of the need to build a territorial perspective in which each segment takes on the responsibility of preparing students to operate at the level of complexity required by the next stage. This article examines a pilot project in which the active methodology was applied for two years, accompanying the same class of the 4th and 5th years of elementary education in the municipal public system. The different epistemological assumptions allowed to redefine the space and the formative relationship, providing roots, identification, development of skills and will. Starting from the place of the working class offspring, experience has shown that it is possible to act in the formal education system without reproducing the model of inequalities conditioned by the pedagogical structures that marginalize it, requiring the student to adapt to it instead of portraying the singularity of the contexts. Synthesized by neologism, "qualityhappiness", the experience proved to be viable the genesis of a school in which quality training, as an integral part, constitutes a process of cultivating individual and collective happiness.

Keywords: Active methodology, Complexity. Integral.


1 Introdução

A ineficiência do sistema tradicional é evidenciada pelos baixos índices de rendimento e altos índices de evasão verificados, como apontam as avaliações institucionais. Esse fenômeno é generalizado, a despeito de investimentos e/ou da qualidade profissional dos envolvidos na elaboração e implementação das políticas públicas educacionais (GALVÃO, 2019).

Um indicador carece de visão sistêmica ao mensurar a qualidade. Além do desempenho, o contexto econômico e social em que a escola está inserida são categorias fundamentais na análise, sem mencionar as singularidades dos sujeitos de direito. Neste sentido, o Plano Nacional de Educação (PNE, lei 13005/2014), mesmo tendo questões controversas, foi um avanço, pois fez a previsão de: acesso, permanência, qualidade, formação docente, recursos, inclusão, reconhecimento salarial e gestão democrática, dentre outros. A lei 13005 não transferiu para o docente toda a responsabilidade dos resultados. Sem ignorar as disputas coletivas, mas, em consonância com elas, nos voltamos para o “chão da escola” como estratégia de enfrentamento das desigualdades. Como diria Dias e Bonotto (2014, p. 707), “pensar e agir local e globalmente”.

É crescente a percepção de que os alunos não conseguem sustentar a automotivação, pois a dinâmica escolar vigente estaria estruturada sob paradigmas educacionais incapazes de contemplar os anseios da juventude na dinâmica das relações contemporâneas modernas com as subjetividades que as mesmas demandam (SANTOS; SOARES, 2011). A transposição didática carece romper a fronteira da linguagem. Além do currículo - o conteúdo - e da forma - a metodologia-, urge a necessidade de sistematizar um modelo eficiente, eficaz, e, sobretudo, efetivo, conforme Arretche (2013, p.128) acentua que os resultados devem apontar para mudanças das relações sociais das comunidades em foco. Os postulados da psicologia do desenvolvimento (PAPALIA; FELDMAN; OLDS, 2006) enunciam que a aprendizagem significativa é prejudicada pela abordagem domesticadora que Freire (1994) denominou como bancária. As Ciências Sociais contribuem para o estranhamento das relações institucionais e seus processos reprodutivos de estruturas estratificadas (BOURDIEU; PASSERON, 1992). E a filosofia da educação nos leva a repensar o que é a escola e para quem o atual modelo está posto.

Luckesi (2011, p.68), divide filosoficamente a educação em três tendências. A redentora, otimista sob o viés político, acredita que a educação sozinha pode resolver os problemas sociais. A tendência reprodutivista é crítica, entende que sozinha, a educação pode muito pouco, no entanto ela é pessimista. E, por último, a tendência transformadora que é crítica, sem romantizar sua função, não se entrega ao otimismo ilusório e nem ao pessimismo estagnante. Porém, é possível classificar a experiência pedagógica a partir de vários parâmetros, como, por exemplo, a divisão em dois grupos totalizantes. O primeiro sendo as tendências pedagógicas tradicionais e o segundo as tendências pedagógicas progressistas (GADOTTI, 2004; SAVIANI, 2005; LIBÂNEIO, 2005). Quem não pensa a educação estruturada em bases filosóficas, o faz através do senso comum. E mesmo ele, o senso comum, está estruturado numa dessas concepções teóricas que ordenam e direcionam a prática pedagógica.

Tendo feito essas considerações, entendemos que as metodologias ativas agregam ao desenvolvimento de funções cognitivas e competências exigidas pelas novas formas de ser no mundo. No entanto, tomando cuidado para que sua defesa acrítica não contribua com a legitimação do regime de acumulação flexível que emana do capital e provoca um modus vivendi precarizado, nos apropriamos da mesma sob o viés do trabalho como princípio educativo sendo categoria constitutiva do campo epistemológico dialético (GRABOWSKI; KUENZER, 2016).


2 Pressupostos basilares – um híbrido

Esse trabalho nasceu na rede municipal de São João da Barra/RJ numa interlocução com o Instituto Federal Fluminense Campus São João da Barra, com a finalidade de enriquecer o perfil dos egressos da rede municipal e ingressantes no ensino médio integrado. Visto que, os pressupostos que regem o Ensino Médio Integrado se distanciam das subjetividades oriundas da prática educacional vigente nos segmentos anteriores.

Moura et al. (2015) afirma que a educação deve ser omnilateral, integral e politécnica. A formação humana não nasce e nem se encerra no sistema educacional formal. Ela é produto das relações sociais e de produção. Nessa dinâmica, a escola é o espaço de institucionalização onde também se realiza parte dela. Por isso, entendemos que implementar um projeto piloto que respeita a complexidade das relações modernas é um ato político.

A ciência, técnica e tecnologia caminham numa direção diametralmente oposto à neutralidade, nesse mesmo sentido, este trabalho sintetiza uma experiência de dois anos numa turma da escola pública composta por estudantes oriundos da classe trabalhadora. Ele se insere num movimento em curso que pesquisa e busca reconfigurar continuamente uma proposta pedagógica que atenda aos interesses da classe trabalhadora com suas respectivas necessidades (ARAÚJO; RODRIGUES, 2010).

É producente compreender que a sociedade do conhecimento não se contenta com a transmissão de conteúdo e postura passiva, logo, a retórica professoral, tradicional, não dá conta de estimular o desenvolvimento das competências cognitivas, pessoais e sociais que dialogam com a proatividade, com o espírito de pesquisa e com a autogestão dos processos que apontam para resolução de problemas nas complexas sociedades altamente conectadas na era planetária (MORIN, 2013).

Entendemos que, se essas premissas são abordadas metodologicamente de forma precoce, a probabilidade de desenvolver competências capazes de otimizar a passagem pelo ensino médio integrado é maior. Esse processo pode ser materializado em consonância com a formação crítica combatendo o pragmatismo alienante camuflado sob discursos neotecnicistas alinhados à teoria do capital humano que reduz a educação a um bem de produção indispensável ao desenvolvimento econômico, ignorando a integralidade de seus múltiplos aspectos (SILVA, 2016).

A experiência piloto durou dois anos em duas turmas de 4° e 5° anos do ensino fundamental I. O lócus do trabalho foi a aplicação de metodologia ativa estruturada em pressupostos capazes de ressignificar o ambiente formativo tomando o estudante como protagonista crítico do próprio processo, respeitando o tempo de aprendizagem e as competências já desenvolvidas por cada indivíduo. Por metodologia ativa tomamos a classificação de Camargo e Daros (2018) afirmando que ela se caracteriza por um conjunto de atividades organizadas, de cunho explicitamente pedagógico, tornando o estudante protagonista do processo, rompendo com a postura passiva reprodutivista. De forma que o sujeito da aprendizagem deixa de ser meramente um ouvinte e assume uma postura ativa no processo formativo através de estratégias pedagógicas que estimulam a apropriação e produção do conhecimento, seja por meio de formulação de projetos, pesquisa, ou buscando solucionar problemas de forma crítica e reflexiva.

Este artigo relata a aplicação de uma metodologia diferenciada, que resgatou o caráter ontológico do espaço formativo como laboratório pedagógico orientado pela abertura à visão dialógica que ousa reinventar-se continuamente a partir da análise da própria prática e de seus resultados. A metodologia tradicional, utilizada até aquele momento, não contribuía para promoção da autonomia e do protagonismo discente, constatara a equipe. Muito pelo contrário, o mecanicismo implícito legitimava um currículo oculto que produzia passividade e marginalizava. Aqueles que não possuíam um repertório de habilidades e conhecimentos prévios inerente a condições econômicas que permitiam apropriação cultural relevante, eram prejudicados. Neste sentido as teorias reprodutivistas (BOURDIEU, 2011; ALTHUSSER, 2003), foram um importante instrumento inicial para problematizar as estruturas e as estratificações que delas emanam.

Nessa perspectiva, a maioria dos alunos queria, tentava, fazia de tudo para aprender, mas algo estava errado. Mesmo estudando em casa, tendo aula de reforço, perdendo finais de semanas tentando decorar fórmulas, conceitos e datas, a aprendizagem significativa parecia distante. Aquele processo penoso inviabilizava a volição, os avanços modestos não vinham acompanhados pelo prazer e nem pela satisfação. Quando os resultados eram satisfatórios, o que existia era a sensação de ter conseguido se livrar de um peso. Os ditos, “melhores alunos”, eram assim classificados por uma meritocracia que camuflava múltiplos elementos e desconsiderava a noção de que a aprendizagem é sistêmica e envolve aspectos sociais, culturais e cognitivos. A sala de aula, tomada pelo determinismo, parecia uma máquina de moer autoestima e estigmatizar os sujeitos tachando-os de fracos, incapazes e incompetentes (GOFFMAN, 1988).

A violência simbólica se naturalizava, traumas eram produzidos e se agigantavam na prática cotidiana de uma pedagogia classificatória. Nesta epistemologia, o estudante deveria se adaptar à instituição e não o oposto. O enquadramento padronizador exigia que, estrategicamente, o docente elegesse um nível de complexidade para trabalhar. Nem baixo, nem alto demais. De qualquer forma, a regra era a mediocridade como tentativa frustrada de envolver um maior percentual da turma. “A mediocracia estabelece uma ordem na qual a média deixa de ser uma síntese abstrata que nos permite entender o estado das coisas e se torna o padrão imposto que somos obrigados a acatar” (DENEAULT, 2019).

O drama supracitado motivou a formação de um núcleo de estudos, e, como resultado do labor científico, o grupo iniciou uma experiência pedagógica inspirada em pressupostos: “racionais-tecnológicos, neocognitivistas, sociocríticos, holístico (teoria da complexidade, ecopedagogia, conhecimento em rede, holismo...) e pós-modernos” (LIBÂNEO, 2005, p. 11), sob a égide do trabalho como princípio educativo. A experiência partiu da hipótese de que todo aluno tem o potencial e a plasticidade propícia à aprendizagem, mas, as singularidades são comprometidas pela padronização do sistema e seu caráter tendencioso.

3 O caminho se faz no processo

O trabalho foi uma pesquisa-ação com o objetivo de testar e aprimorar metodologias ativas, consoante as demandas específicas do contexto em questão e seus respectivos desafios. Sendo assim, seguiu os critérios elencados por Tripp (2005, p. 447), foi: inovadora, contínua, proativa estrategicamente, participativa, intervencionista, problematizada, deliberada, documentada, comprometida e agora, nessa fase, disseminada. Essa pesquisa, que versa sobre a experiência pedagógica, é um estudo de caso com viés qualitativo. Yin (2015) afirma que o estudo de caso é uma estratégia para testar hipóteses ou teorias que já existem quando os fenômenos estão em fase exploratória, ou são projetos pilotos, como é o caso do trabalho.

O presente trabalho foi planejado em 2016 e implantado em 2017, numa turma de 4° ano, composta por 28 alunos entre 09 e 10 anos. Em 2018, a experiência exitosa acompanhou os mesmos alunos com a mesma metodologia no 5° ano e foi inaugurada em mais uma turma, também de 5° ano, na mesma unidade escolar. Visando o desenvolvimento de subjetividades potencializadoras da dinâmica do ensino médio integrado, a metodologia foi elaborada tendo como estrutura central cadernos individualizados denominados, “roteiros de aprendizagem”. Sua construção permitiu o avanço personalizado numa dinâmica capaz de contemplar ao mesmo tempo o aspecto individual e o coletivo.

O trabalho como princípio educativo (PISTRAK, 2011) foi considerado por meio da experiência da Escola da Ponte (PACHECO, 2014). A mesma foi utilizada como pilar central e inspiração. Bem como a pedagogia de projetos (FLECK, 2017), pedagogia de resolução de problemas (ARRUDA; MORETTI, 2019), junto ao postulado da sala de aula invertida (BERGMANN, 2016). As estratégias de ensino seguiram a perspectiva da educação integral (PARO et al. 1988) dialogando com os postulados da Inteligência Emocional (GOLEMAN, 2015) e das múltiplas inteligências (GARDNER, 1995).

Alinhadas a BNCC (2017), as atividades tiveram como ponto de partida, a dimensão concreta. A mobilização de conhecimentos sintetizados via conceitos e procedimentos, contribuiu com o desenvolvimento de habilidades práticas, cognitivas e socioemocionais voltadas, com ética, às demandas complexas do cotidiano. Dessa forma, o viés pedagógico rompeu com a prática tradicional padronizadora que culpabiliza o aluno pela inefetividade dos resultados.

A professora atuou como mediadora da aprendizagem, retirando a aula expositiva do centro do processo. Instaurou-se uma rotina capaz de promover autonomia, proatividade, superação e solidariedade. Ninguém ficava à margem, pois, o ritmo de aprendizagem individual era respeitado. Os conteúdos foram trabalhados conectando-se ao repertório de experiências e conhecimentos dos alunos, seguindo o conceito de subsunção de Ausubel (2003).

Os conteúdos curriculares foram abordados privilegiando a pesquisa, incentivando a criação de método e autogestão, de forma que o estudante foi estimulado a desenvolver autonomia e se tornar agente da construção dos próprios saberes, por meio da curiosidade e do interesse orientado, como aponta Bedin e Pino (2019). A sala de aula funcionou como oficina transcendendo a dicotomia teoria x prática (FREIRE, 1994). Outros ambientes, fora dos muros da unidade, foram utilizados consoante a natureza de cada temática.

A produção textual foi uma importante estratégia. Todos os dias, os alunos registravam as experiências, fazendo uma síntese descritiva das oficinas/atividades sem esquecer-se de mensurar, emitindo sua opinião, apontando aspectos positivos e fazendo críticas. No final, todos faziam a leitura oral de seus relatos. Além da escrita individual, foi explorada a estratégia de Escrita Colaborativa que, consoante Felipeto (2019, p. 134), “é uma situação na qual dois ou mais participantes assumem a tarefa de escrever um único texto conjuntamente através do diálogo”.

Outra importante característica da experiência foi a celebração de parcerias com a comunidade. A casa virou uma extensão da escola e consequentemente a escola uma extensão do lar. Sobre esta parceria, Paro (1999) defende que:


Entretanto, não se trata, nem dos pais prestarem uma ajuda unilateral à escola, nem de a escola repassar parte do seu trabalho para os pais. O que se pretende é uma extensão da função educativa (mas não doutrinária) da escola para os pais e adultos responsáveis pelos estudantes. É claro que a realização desse trabalho deverá implicar a ida dos pais à escola e seu envolvimento em atividades com as quais ele não está costumeiramente comprometido. (PARO, 1999, p.4).


A sala de aula acolheu membros da comunidade escolar que conduziram oficinas. Algumas duraram até um mês, com cerca de duas ações semanais. Tatuadores coordenaram oficina de desenho, cozinheiras profissionais, oficina de gastronomia, profissionais do ramo de produtos químicos, oficina de produção de sabão e detergente, professores de dança coordenaram ensaios, pedreiros, oficina de construção civil e assim sucessivamente.


3.1 Sala de aula como ambiente propício

As relações em sala de aula foram ressignificadas pautadas na proatividade, resiliência solidariedade, criatividade e conduta democrática. O autoritarismo implícito em práticas domesticadoras que silenciam e constrangem a partir da estrutura, da violência simbólica (BOURDIEU, 2011) e dos currículos ocultos (SILVA, 2016), não foram naturalizadas nem reproduzidas. Disciplina passou a ser reflexo de rigor metódico construído em consenso e não de coerção punitiva, classificatória e marginalizadora. Foi internalizada a compreensão de que o ambiente formativo pode e deve ser um lugar agradável de: diálogo, abertura, ordem e prazer comprometido com a formação biopsicossocial.

A organização privilegiou os arranjos grupais, com exceção de momentos em que a tipologia da atividade não permitia. A inclusão não era apenas uma temática transversal, mas uma realidade considerada até na logística dos espaços, na gestão dos recursos e na adesão/implementação dos procedimentos. Quando as cadeiras não estavam dispostas em círculos, formando grupos, eram organizadas em semicírculo, a perspectiva do trabalho em equipe foi priorizada (PERRENOUD, 2000).

Foi utilizada a música instrumental com a finalidade de regular o som ambiente, estimular o diálogo e ao mesmo tempo, desenvolver a compreensão de que não é lícito prejudicar o colega. Segundo Valim et al. (2002), esse tipo de música possui características, lenta, ritmada, suave, fluente, provoca a diminuição da frequência cardíaca e dos hormônios estressores do organismo. O que teria como resultado um acentuado estado de relaxamento e concentração. Na mesma linha, Smirmaul et al. (2011) diz que canções suaves onde a melodia tem a supremacia sobre o ritmo, como é o exemplo das músicas instrumentais, facilita o relaxamento corporal.

Dessa forma, a música foi um recurso explorado duplamente, tanto em sentido social como no neurológico. Ou seja, os grupos deviam conversar num tom abaixo da música. Sendo assim, mesmo dividindo a turma em 7 grupos compostos por 4 integrantes, ou 14 duplas, era possível manter o clima propício à aprendizagem sem desperdiçar tempo com indisciplina e conversas paralelas alheias às atividades.

Como a sala de aula funcionava reproduzindo uma oficina, os alunos tinham à disposição, variados livros didáticos e literários, jornais e revistas para pesquisa. Jogos pedagógicos estavam à disposição e o aparelho celular era usado como instrumento complementador de pesquisa.


3.2 Roteiro

O roteiro, de cunho interdisciplinar, foi a estratégia centralizadora das atividades responsáveis por englobar as áreas curriculares. A equipe elaborou um roteiro para cada estudante, respeitando os conhecimentos prévios e inserindo temáticas de preferência individual e/ou grupal, de forma que os grupos (heterogêneos) podiam se dedicar a pesquisar questões diferentes. Nos momentos integradores, as descobertas específicas eram compartilhadas coletivamente.

Foi possível mesclar etapas individuais, grupais e coletivas, contemplando-as no planejamento. Dessa forma, respeitou-se o ritmo de aprendizagem de cada aluno, no entanto, os prazos eram estipulados. O roteiro continha as atividades bimestrais e podia ser trilhado de forma autônoma. Se o estudante tinha facilidade, podia adiantar as atividades. Quando um discente concluía antes do tempo, recebia atividades alternativas dentro das mesmas temáticas, porém, num nível de complexidade maior. Estimulando a solidariedade, quem aprendia, ou tinha mais facilidade, era incentivado a ajudar os colegas. O que foi uma formidável estratégia de fixação.

O roteiro trabalhava com os conteúdos priorizando a interdisciplinaridade e a integração entre teoria e prática através de projetos como:

As temáticas não contempladas pelos projetos foram desenvolvidas majoritariamente por meio de dinâmicas, jogos formativos, construção de maquete, confecção de materiais e etc.

Todo dia, no início da aula, a mediadora anotava o percurso diário que perpassava:

O roteiro continha instruções para a realização das atividades com as etapas a serem cumpridas em casa, na escola, individual, em grupo e coletivamente. A mediadora acompanhava atentamente o percurso, sanava as dúvidas, orientava a realização e incentivava a interação entre os grupos. No final, se fazia uma retrospectiva para diagnosticar os erros cometidos e medidas metodológicas para suplantá-los, bem como os acertos e seus diversos caminhos.

O planejamento semanal tinha a seguinte logística com atividades interdisciplinares:

Lembrando que existia uma flexibilidade no planejamento que era enriquecido à medida que surgiam temáticas relevantes. O diário da turma foi utilizado para registrar deliberações oriundas das assembleias estudantis. Nessas assembleias, eram determinados assuntos pertinentes ao contexto escolar como, por exemplo, normas coercitivas, sansões, direitos e deveres da comunidade escolar.


3.3 Avaliação

Como aponta Luckesi (2013), a avaliação não pode ser uma barreira à aprendizagem do estudante. Seguindo essa lógica, o trabalho se pautou na perspectiva da avaliação formativa. Perrenoud (2000, p.81) diz que, “o principal instrumento de toda avaliação formativa é e continuará sendo o professor comprometido em uma interação com aluno”. Nesse sentido, Boas (2008) apud Santos e Gutierrez (2019, p. 977) afirma que, “a avaliação formal (provas, relatórios, exercícios diversos, produção de textos etc.) costuma ocupar muito menos tempo de trabalho escolar do que avaliação informal”.

Seguindo Hoffmann (2001), a equipe elaborou instrumentos para avaliação processual, entendendo a necessidade de avaliar o percurso e não apenas resultados recortados e fora do contexto. Os instrumentos utilizados foram construídos a partir da concepção de conteúdos procedimentais, atitudinais e conceituais apresentados por Zabala (1998) e Coll et al. (2000):

Dessa forma, a avaliação contemplou aspectos objetivos e alguns subjetivos. A criatividade, resiliência, proatividade, empatia, sensibilidade, solidariedade, autoanálise, autonomia, método, habilidades metacognitivas, dentre outras, puderam ser relativamente mensuradas considerando a especificidade de cada aluno.

Os instrumentos avaliativos, orientados pelos pressupostos educacionais aqui explícitos, permitiram a criação de uma prática avaliativa formativa voltada ao processo que envolve aluno e professor. Sendo assim, a reflexão instrumentalizou a análise crítica da própria atuação institucional.


4 Considerações finais

Alunos que ficavam à margem do processo formativo e se autodepreciavam ao perceber que não conseguiam aprender como os colegas, recuperaram o “brilho nos olhos”. A metodologia superou as expectativas, quem não conseguia aprender, submetido ao ambiente tradicional, não só aprendeu, como também, se destacou. Usando a metáfora botânica, “desabrochou”.

Alunos munidos de maior capital cultural e repertório subsunçor, que normalmente eram prejudicados pela necessidade de nivelamento pela média da turma, estavam imersos num ambiente desafiador, pois as atividades se adaptavam à complexidade que suas habilidades permitiam dominar. E essa plasticidade se dava respeitando a singularidade de todos os níveis. Nada era fácil a ponto de ser desmotivador e nem difícil a ponto de ser frustrante.

Nenhum aluno da turma ficou retido nos anos de 2017 (4° ano) e 2018 (5° ano). Além da apreensão do conteúdo, o desenvolvimento de competências foi um diferencial. Quem mal sabia ler e escrever algumas palavras, ao final do primeiro ano, imerso na proposta, tinha enriquecido o vocabulário, aprendido a fazer análises e conexões, bem como organizar o pensamento e realizar sínteses. Eles aprenderam a ouvir para além do que é dito, a ver para além das imagens, aprenderam a ler, escrever e falar melhor.

Para exemplificar, vejamos a criação de uma horta pedagógica: os discentes desenharam o projeto (arte), utilizaram ferramentas como esquadro, metro, nível e etc. Além de estudar o conteúdo matemático, manipularam a teoria de forma prática. Multiplicaram, dividiram, somaram, subtraíram. Elaboraram relatórios descritivos (língua portuguesa). Ao determinar o número de canteiros, seu tamanho, viram proporção, conjunto, estudaram geometria e etc. Mediram o espaço entre as sementeiras, a quantidade de covas por canteiro, fizeram a cobertura com material propício. Estudaram solo, água, fertilização (ciências naturais), fizeram compra de materiais (economia). Identificaram a cultura ideal para o clima e a estação (geografia), fizeram previsão. Utilizaram as ferramentas (educação física). Fizeram a manutenção, acompanharam o crescimento e colheram. E a colheita subsidiou oficinas de nutrição. Este foi apenas o exemplo de um dos projetos.

Os alunos desenvolveram autoestima, tinham prazer em realizar as atividades e apresentar os trabalhos. Integravam-se à vida escolar. Se achavam responsáveis pela escola, ali tornara-se um território pessoal repleto de sentido afetuoso. Quem dizia que detestava ir à escola, passou a dizer que, “a escola é o melhor lugar do mundo” . Os casos de indisciplina na turma desapareceram. Até mesmo o diálogo entre os estudantes ficou mais sofisticado, a ponto de alguns professores afirmarem que, “essas crianças conversando, parece criança de filme americano, daqueles que as crianças falam como se fossem adultos”.

Assim aconteceu no ano de 2017 e 2018. Os estudantes que iniciaram a experiência no 4° ano repetiram a metodologia no quinto e foram inseridos no 6° ano (2019) em turmas regulares com metodologia tradicional. Segundo relatos dos professores do 6° ano, os discentes oriundos dessa turma se destacaram, “são mais maduros, já têm habilidades desenvolvidas, realizam as tarefas, argumentam, são o diferencial da escola”. A inspetora de alunos disse que, “eles parecem crianças de outro mundo”, ao se referir à forma positiva como se relacionam no pátio.

A questão que sempre surge quando se fala a respeito de metodologias ativas é de cunho pragmático. As pessoas questionam se não seria apenas um modismo pedagógico incapaz de atingir índices relevantes nas avaliações institucionais. Querem saber se o estudante, egresso desse tipo de processo, seria competitivo na realização de um IDEB, ENEM, concursos públicos e similares.

Concordamos que qualquer proposta educativa precisa estar visceralmente conectada com a realidade e com o mundo do trabalho e sua complexidade. E vamos além, entendemos que as estratégias pedagógicas de cunho exclusivamente conteudista, não atendem as demandas de empregabilidade criadas pela atual subjetividade do capital. No entanto, entendemos que a pedagogia não pode se ater unicamente a esses aspectos. A metodologia aplicada trabalhou com conteúdos conceituais, atitudinais e procedimentais, considerou o QI, mas também o QE e o universo de premissas que esses pontos englobam.

Ao analisar o percentual de reprovação do 6° ano da rede municipal de São João da Barra/RJ segundo dados do Setor de Estatística da Secretaria Municipal de Educação e Cultura, em 2016 cerca de 26% dessa clientela foi retida, em 2018, cerca de 25%. Seguindo a mesma média, o natural seria a reprovação de cerca de 7 dos 28 alunos, porém, nenhum aluno egresso dessa turma foi retido, nem aqueles que apresentavam as maiores dificuldades antes de ingressar nessa experiência metodológica. Esses dados contrariam a ideia corrente de que os discentes seriam prejudicados na transição para a metodologia tradicional. Eles não só não foram prejudicados, como apresentaram um resultado inédito, em se tratando de turma.

No entanto, o resultado positivamente avassalador dessa experiência, foi a percepção de que o processo educacional não deve mirar apenas a absorção de conteúdos, ou o desenvolvimento de competências. O endereço de uma pedagogia relevante na alta modernidade não deve ser exclusivamente postos de destaque no mercado de trabalho, uma cadeira cativa na cátedra, reconhecimento público e/ou aumento do poder de consumo. A missão da educação não é servir ao mercado financeiro, não é só formar mão de obra, mas sim, contribuir com a gênese de uma civilização mais humana.


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Artigo recebido em: 19 de março de 2020. Aceito em: 24 de julho de 2020

Mestrando do Programa Profissional de Educação Profissional e Tecnológica (PROFEPT), Campus Macaé, Instituto Federal Fluminense, Macaé, Brasil. Licenciatura Plena em Pedagogia pela Universidade Veiga de Almeida (UVA), Campus Cabo Frio. Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós-graduação Lato Sensu em Psicopedagogia Clínica e Institucional e Metodologia do Ensino de Filosofia e Sociologia pela Universidade Cândido Mendes (UCAM). Coordenador do Plano Municipal de Educação de São João da Barra, Brasil. Autor correspondente. e-mail: sjbpme@gmail.com

Relato de um dos alunos da turma.

Rev. Mundo Livre, Campos dos Goytacazes, v. 6, n.2, p. 232-248, jul./dez. 2020


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