POVOAMENTO PRÉ-COLONIAL DE XAXIM, O JÊ MERIDIONAL E A FASE XAXIM: ENTREVISTA COM MIRIAN CARBONERA1


PRE-COLONIAL SETTLEMENT OF XAXIM, THE SOUTHERN JÊ AND THE XAXIM PHASE: INTERVIEW WITH MIRIAN CARBONERA


PURL: http://purl.oclc.org/r.ml/v6n1/e1


Valdirene Chitolina2



Mirian Carbonera é doutora em Arqueologia Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e atualmente responsável pelo Centro de Memória do Oeste de Santa Catarina/Universidade Comunitária da Região de Chapecó (CEOM/UNOCHAPECÓ). Como pesquisadora do CEOM e da UNOCHAPECÓ, tem desenvolvido estudos arqueológicos no alto rio Uruguai e em partes da província de Misiones (ARG), bem como atividades de gestão e comunicação do patrimônio arqueológico. Em 14 de abril de 2015, nas dependências do CEOM, anexo ao prédio da Rodoviária de Chapecó, Mirian Carbonera concedeu uma entrevista para Valdirene Chitolina, a qual foi revisada em março de 2020. Na ocasião, muitos foram os temas abordados, porém o foco principal foi à contextualização da fase Xaxim, vinculada à unidade arqueológica Taquara-Itararé. A seguir o registro da entrevista.


Mirian, você poderia discorrer sobre o grupo Jê Meridional, no qual a ocupação indígena de Xaxim esteve inserida?

Esse grupo ocupava tanto a costa atlântica quanto o planalto catarinense, até a província de Misiones, na Argentina, mas eles estavam também em todo o sul do Brasil (no Rio Grande do Sul e no Paraná). Um dado interessante é que, quando os arqueólogos fazem pesquisas sobre os antepassados dos grupos Jê, os sítios são encontrados em terrenos mais altos – em geral, acima dos 400 m de altitude – e, na maioria dos casos, relacionados à Floresta de Araucária. As pesquisas do padre Pedro Ignácio Schmitz, em São José do Cerrito, mostram isso. A concentração de casas subterrâneas e de estruturas anelares, que estão escavando, está em áreas de concentração de araucária […] então, o elemento que eles mais utilizavam para a alimentação era o fruto da araucária, que é o pinhão [...]. Tem-se conseguido dados, com estudos que estamos fazendo em parceria com o Ministério da Cultura da Argentina, onde pegamos amostras ósseas de indivíduos tanto aqui do sul do Brasil quanto da Argentina, tanto de grupos Guarani como Itararé-Taquara. Aqui no sul do Brasil, a gente só conseguiu uma amostra Itararé-Taquara e deu justamente uma dieta mais mista, com grande presença do pinhão. Vamos mandar processar outras amostras para ver se encontramos outros tipos de vestígios de alimentação. Porque, como eles acabavam, em geral, cremando os mortos, que eram enterrados nas estruturas anelares, sobram poucos vestígios para se entender a alimentação deles. Sabe-se que, além da coleta do pinhão, eles também caçavam muito, pescavam, também produziam alimento através da agricultura. Você pode procurar um grupo que tem pesquisado os Jê e sua relação com a Floresta de Araucária; um dos coordenadores é o Rafael Corteletti. Ele também foi aluno do padre Schmitz e defendeu a tese dele faz uns dois anos, e inclusive ele também, numa parte da tese, fez amostras de resíduos na Inglaterra. Ele pegou nos vasilhames cerâmicos pequenas amostras de carvão depositadas no interior que davam indícios de que era resto de alimento, processou na Inglaterra e conseguiu notar a presença de feijão, abóbora – produtos que os grupos antigos estavam cultivando. Então, basicamente era isso: era a caça, a pesca, a coleta do pinhão e de outras frutas, além do mel e a produção de alguns alimentos através da agricultura, como a abóbora, o milho e o feijão.

Como era o aspecto religioso do grupo Jê?

É um aspecto sempre mais difícil para os arqueólogos adentrarem, porque é mais ligado ao simbólico e, em geral, sobram poucas coisas que possam mostrar isso. Eu creio que um dos elementos que está associado a isso tem a ver com a própria forma de enterrar os seus mortos, que, nesse caso, eles se diferenciavam muito dos Guarani. Em geral, nos sítios onde tem presença de cerâmica Jê, aparecem as estruturas anelares. Isso foi encontrado ainda nos anos 1950, em Misiones, por Oswald Menghin e, posteriormente, aqui no Brasil. Em geral, cremavam os mortos e faziam montículos que são de forma redonda e, no entorno, faziam outra estrutura, que podia ser cavada ou também elevada, fazendo outro círculo no entorno daquele montículo central, onde há a presença desses mortos, desses restos carbonizados.... Eu creio que, além de mostrar essa parte mais espiritual, também evidencia a demarcação de território, provavelmente esse era um diferencial perante os outros grupos. Quando outros grupos chegavam próximos a essas áreas, percebiam essas sepulturas e deviam pensar “já tem dono”. Quem aborda esse tema, a parte dos enterramentos, é a professora Silvia Copé, no planalto rio-grandense; a Letícia Müller, aqui em Santa Catarina, estudou no vale do rio Pelotas; e o Marco Aurélio Nadal de Masi, que estudou esses locais e chamou de “danceiros”. Ele encontrou, associadas às estruturas, bonecas de argila, que muito possivelmente faziam parte dos ritos funerários. Na Argentina, esse sítio que eu falei que foi escavado nos anos 1950, pelo Menghin, foi retomado depois por outro grupo, coordenado por José Iriarte; ele também fala um pouco isso: que nessas áreas de sepultamento poderiam ser feitas cerimônias para o enterramento dos mortos [...] eram ingeridas bebidas como o cauim, momento onde eram feitos os rituais para o enterro, para marcar essa passagem. Esses são alguns exemplos de pesquisas, mas há outros estudiosos que têm se dedicado ao tema, e algumas dezenas de artigos publicados.

Além dos aspectos econômicos e religiosos, em relação ao aspecto social, há mais alguma colocação?

É bem difícil contribuir sobre esses temas, porque é complicado chegar nesses aspectos por meio da cultura material, até porque a gente trabalha com sítios em geral sempre muito perturbados, onde as características originais já foram alteradas.

Em relação ao município de Xaxim, com base na expressão de Walter Piazza “são sítios de pequena durabilidade”, você poderia explicar um pouco mais sobre esse tipo de sítio? Sendo que há registros de estruturas subterrâneas em Passos Maia e São Domingos e trata-se do mesmo grupo?

Justamente, eis a questão! Em Itá, eu também notei que há sítios desse grupo, sem, até o momento, serem encontradas casas subterrâneas.

A ocupação indígena de Itá é idêntica aos sítios de Xaxim?

É parecida. Em Itá, é um sítio a céu aberto, sem a presença de casas subterrâneas. Com base na minha tese, que defendi em março passado [2015], foi possível perceber que nessa região há diferentes tipos de sítios. Nem sempre, quando aparecem casas subterrâneas, por exemplo, você vai encontrar estruturas anelares, que é onde eles enterravam seus mortos. Então, onde eles enterravam, se é o mesmo grupo? Em outras regiões, no Rio Grande do Sul, com auxílio do pessoal do Instituto Anchietano de Pesquisas, conseguimos uma amostra óssea do sítio Abrigo do Matemático; mandamos para análise fora do Brasil, como acabei de comentar, para entender um pouco sobre a alimentação. No sítio Abrigo do Matemático, as pessoas eram depositadas, não eram cremadas, e não eram feitas as estruturas anelares. Então, se percebe que não é uma questão cultural rígida. Não é porque todos nós somos do mesmo grupo cultural que vamos fazer as mesas coisas, nos mesmos lugares. Então, isso tem relação com a identidade de cada grupo e talvez com algumas limitações do ambiente, ou porque não necessitavam dessas construções. Aqui, no oeste catarinense, há poucas casas subterrâneas registradas, mas também há pouquíssimos estudos. Não sei se aqui ainda não foram localizados os sítios com estruturas ou se realmente há muito poucos. Trabalhos do Walter Piazza... depois da Maria José Reis, que na década de 1970 fez levantamento, mapeou um número significativo de estruturas subterrâneas – registrou em Pinhalzinho, por exemplo, além de outros municípios. O trabalho foi publicado recentemente em forma de livro. Talvez, ao passo que eles vinham migrando do planalto para cá, houve essa diminuição das casas, ou havia grupos menores... são questões a serem detalhadas em futuras pesquisas.

Então, no oeste catarinense, havia “força física” reduzida?

Para saber a resposta – se havia um grupo reduzido de indivíduos –, são necessárias mais pesquisas. O fato é que realmente a gente tem artefato de cerâmica Itararé-Taquara em Itapiranga, mas sem a presença de estruturas subterrâneas, que é o caso também de Xaxim e de Itá. Em Xaxim, o sítio é superficial; essa característica pode indicar que não teve uma ocupação de longa duração ali. Pode ter durado um ano, mais ou menos, mas foi o período suficiente para deixar vestígios; mas uma ocupação não tão longa a ponto de criar um “pacote” – quanto mais tempo se ocupa um lugar, mais vestígios você encontra e com um pacote maior em espessura. É muito provável que cada sítio estaria relacionado a funções diferenciadas, como é o caso das próprias estruturas subterrâneas. Até pouco tempo se dizia que eram casas subterrâneas, ou seja, eram feitas para morar. Hoje, com o aumento das pesquisas, já se usa o termo “estruturas subterrâneas”, porque se identificou que não eram só para morar, elas tinham outras funções, como, por exemplo, para armazenar alimentos. Então, cada sítio é um sítio, é uma realidade diferente e tem a ver com a dinâmica cultural. Não podemos mais dizer que os indígenas são todos iguais, porque sabemos da diversidade de famílias e grupos. Para a pré-história, embora todos eles estejam dentro desse grande grupo Jê, também a gente consegue perceber a partir da cerâmica as diferenças regionais.

Você poderia falar sobre os sítios de Ipuaçu, de Passos Maia e de São Domingos?

Primeiro, essa questão dos municípios atuais, a gente tem que pensar na pré-história, isso não existia, como também não existia as divisões internacionais. Por exemplo, hoje a gente trabalha Misiones, que faz parte da Argentina, o oeste de Santa Catarina e partes do Rio Grande do Sul de uma forma unificada. Porque para eles isso não existia. Nesse projeto em parceria com a Argentina, sabe-se, até o momento, que o limite foi Misiones, foi o rio Paraná para o grupo Jê. Não é improvável a presença desse grupo no Paraguai, mas esse país ainda é praticamente desconhecido em termos de arqueologia pré-histórica. Nessa parceria entre CEOM/UNOCHAPECÓ e o Ministério da Cultura da Argentina, estamos tentando abrir uma frente de pesquisa no Paraguai. Em Passos Maia, em São Domingos, teve a escavação de algumas casas subterrâneas. A Empresa de Arqueologia Scientia Consultoria Científica, no início dos anos 2000, pesquisou a área da Usina Hidrelétrica Quebra-Queixo; foi em São Domingos, mas não lembro o total de casas que foram escavadas. Dessa pesquisa, saíram artigos e relatórios; através deles é possível saber que a cerâmica encontrada é bem típica da que estamos falando até agora: em geral é lisa, por isso foi associada à cerâmica Itararé, alguns poucos fragmentos apresentaram decoração ponteada, incisa, ungulada. A data dessa casa, se não me engano, deu princípios do século XIX, ou seja, 200 anos atrás. Então, mostra o quê? Que o contato com o homem branco se deu em momentos muito distintos. Revela que em princípios do século XIX ainda havia grupos que (não sei se eles tinham construído a estrutura subterrânea nesse período) estavam produzindo cerâmica nesse período. E, nos arredores de Ipuaçu, foram encontrados sítios, mas também mais superficiais; não me lembro da ocorrência de estruturas subterrâneas. Sim, tinha cerâmica Jê em alguns dos sítios, mas muita pouca cerâmica, isso porque provavelmente não eram sítios de assentamentos. Já em Itá analisei dois sítios principais localizados na Volta do Uvá: o sítio Otto Aigner e o sítio Armando Wortmann – eles são assentamentos. Por quê? Porque a gente encontrava vestígios com uma espessura razoável de terra preta, que mostra um longo período de ocupação, e ocorrência de muita cerâmica. Já no caso de Xaxim, que são sítios mais isolados, não foi descrito terra preta; foram encontrados fragmentos de cerâmica, alguns objetos lascados... que indicam que provavelmente se trata de acampamentos mais temporários ou ocupações muito mais rápidas, e não de longa duração.

Mirian, se eu utilizar a cerâmica de Itá como exemplo, você considera importante para este trabalho?

Sim, porque se trata do mesmo estilo de ocupação de Xaxim. Mas, se você acessar a coleção do Walter Piazza que está no museu da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), será importante para o município de Xaxim. Há muito material da nossa região que está fora. Acho muito importante você acessar a coleção do Piazza já que é sobre isso que você trata na pesquisa.

Na sua tese, você estudou o grupo Jê ou o Guarani?

Então, na minha tese, eu trabalhei com sítios arqueológicos da Volta do Uvá, no município de Itá. Quando iniciei os estudos daquela região, a intenção era trabalhar mais com os Guarani. Mas, ao abrir a coleção que foi escavada pela arqueóloga Marilandi Goulart – faleceu faz alguns anos já... ela escavou esses sítios nos anos 1980, em decorrência da Usina Hidrelétrica de Itá –, quando fui abrir a coleção dos sítios da Volta do Uvá, eu pretendia ver cerâmica Guarani, mas eu comecei a ver cerâmica Taquara, e aquilo foi me deixando confusa. Eu pensei inicialmente “Meu Deus, o que toda essa cerâmica Jê está fazendo aqui?!” Isso foi durante a pesquisa do mestrado; nessa época, quando comecei a analisar a coleção, eu não tinha todos os dados, todos os relatórios produzidos pela Marilandi Goulart. Até hoje não consegui localizar todos; mas tinha menos do que hoje. Então, fiquei um pouco confusa, porque na minha cabeça, ainda quando eu estava começando o mestrado, para mim havia uma divisão muito severa nessa questão ambiental. Na margem do rio Uruguai, eu encontraria sítios Guarani; nas terras mais altas, eu encontraria sítios Jê. Claro, essa rigidez na ocupação dos espaços não existia, havia preferências, mas não essa rigidez. O grupo Guarani ocasionalmente também podia subir o planalto para caçar, assim como os Jê desciam até a costa do rio Uruguai. Certamente havia conflitos de territórios entre eles, estavam ali muito próximos. Os dois grupos eram guerreiros, principalmente o Guarani. Então, com o passar do tempo, acabei localizando os relatórios; para o doutorado, retomei os vestígios materiais daquela área e se confirmou, além das ocupações ceramistas, também uma ocupação mais antiga, com grupos caçadores e coletores, que eu datei, e chegou-se por volta de 8100 anos atrás para o sítio Otto Aigner. Depois, houve uma ocupação que durou provavelmente uns 200 ou 300 anos; depois, há uns 400 ou 500 anos, veio a ocupação dos Guarani. Então, na superfície, tinha a ocupação dos Guarani e, entre os 20 e 50 cm de profundidade, tinha cerâmica Jê (Taquara-Itararé), e mais em profundidade tinha os caçadores e coletores de 8000 anos. Então, imagina o que são esses sítios! Um deles tem mais de 30 mil líticos, provavelmente a maioria se refere ao grupo mais antigo de caçadores e coletores. O outro sítio também é importante porque tinha ocupação Guarani na superfície e também cerâmica Itararé-Taquara em profundidade; ainda não consegui datar o nível mais profundo para ver se tinha caçador-coletor ali também – esse é o sítio Armando Wortmann, que está bem na confluência do rio Uvá com o rio Uruguai. Bom, esse era o cenário. Eu analisei outros sítios, mas esses dois são os mais importantes. O que eu quis entender na minha tese: no primeiro momento, eu não tinha essa divisão, nem as datas de ocupação; então, eu queria saber se esses grupos ceramistas (eu não analisei em detalhe a ocupação pré-ceramista, só datei) estavam convivendo, se estavam ocupando o mesmo espaço, se havia algum tipo de contato entre eles. Então, o que eu fiz? A primeira questão foi datar; foi conseguir elementos e separar a cultura material de um grupo e de outro e datar. Aí eu tive essas datas. Comparei onde estavam os materiais com as datas e aí já tive uma primeira separação, que me mostrou que eles estavam vivendo em momentos diferentes: eram contemporâneos, eles certamente se conheciam, estavam por ali, mas naquele local eles viveram em momentos diferentes. Depois, tentei fazer uma separação ente os grupos, ou seja, no sentido de ver se havia tido algum contato, ou algum tipo de troca cultural a ponto de mudar a produção da cultura material... não no material lítico, porque é muito difícil perceber isso, mas na produção da cerâmica. Aí descrevi detalhadamente todo o processo operatório de produção da cerâmica, para ver se havia tido essa troca cultural a ponto de ter uma cerâmica distinta, ou seja, que não fosse nem Guarani nem a típica Itararé-Taquara, mas uma mistura das duas. E a conclusão foi que “não”. Eles podiam estar intercambiando possivelmente vasilhames inteiros, mas isso foi difícil de observar; mas não houve uma mescla das duas culturas a ponto de juntarem suas técnicas e produções culturais na produção da cerâmica. Então se provou que havia dois tipos de cerâmicas em momentos diferentes e que cada grupo continuou produzindo a cerâmica à sua maneira. Isso eu consegui provar desde a pasta que era usada para a fabricação da cerâmica: o tipo da pasta de um grupo e de outro são completamente diferentes. Aí as outras diferenças são as mais visíveis, que os arqueólogos já descrevem há muito tempo, que é a forma dos vasos e o acabamento da superfície dos vasilhames. Então, principalmente, foram esses três elementos que eu usei. Sobre o tipo da pasta empregada, quais elementos estavam presentes nessa pasta: por exemplo, o grupo Guarani adicionava na argila um elemento chamado de “chamote”, que são fragmentos de cerâmica triturada e adicionada à pasta com o objetivo de alterar a propriedade da argila; para que ela não fosse tão plástica, que pudesse dar consistência para o vaso ser moldado. Em compensação, os grupos Jê, se usavam... eu ainda não estou bem certa, porque conseguimos identificar apenas 3% de chamote, mas isso é irrisório: quando a porcentagem é tão baixa, esse elemento pode ter sido agregado de forma acidental. Ainda tem a diferença da forma, que vai desde o tamanho até a espessura das paredes dos vasilhames. Enquanto a cerâmica Guarani geralmente tem mais de 10 milímetros, tem fragmentos com mais de 30 milímetros de espessura, a cerâmica Itararé-Taquara, ao menos nesses sítios, ela fica entre 3 e 6 milímetros de espessura das paredes, muito diferente. A minha tese é um estudo de caso, bem específico ali da Volta do Uvá, mas por meio do empírico a gente pode mostrar bem as diferenças desses dois grupos aqui da região.

Quando desaparece a tradição Taquara-Itararé e quando os portadores dessa tradição cerâmica são identificados pelas etnias Xokleng ou Kaingang?

No início das pesquisas arqueológicas, nos anos 1950 e 1960, eles separavam aquilo que era encontrado arqueologicamente dos grupos vivos, não havia um link. Mas, mais recentemente, nos últimos 30 anos, é que se passou a dizer “bom, eu encontro esses vasilhames que eram classificados como tradição Tupiguarani e que têm muita semelhança, no caso, com a cultura Guarani conhecida historicamente”. Então se começou a fazer esse vínculo. “Quando eles deixam de ser os arqueológicos para se tornarem os grupos históricos? ” É uma pergunta difícil de responder. Eles deixam de ter esse modo de vida que podemos entender como arqueológico quando ainda não tinham o contato com o homem branco. Então, produziam cerâmica de uma forma, mas, quando tem o contato com o homem branco, houve uma desestruturação e se deixa de fabricar, ou ocorrem muitas mudanças naquele saber-fazer. Então é o caso que gosto muito de utilizar como exemplo: um sítio que nós escavamos em Misiones, que é o sítio Corpus, ele está na margem esquerda do rio Paraná. Está localizado no município que se chama Corpus; o município tem o mesmo nome da redução jesuíta implantada há séculos. Nós escavamos esse sítio Guarani e, até o momento, não se observou nenhum contato com a redução que estava há 2 km do sítio. Como que a gente sabe que não teve contato? Porque no sítio nada daquela cerâmica que foi encontrada lá tem relação com a cerâmica da redução. Porque, a partir do momento que o indígena entra em contato de alguma forma com o homem branco, ele deixa de produzir ou muda as práticas que ele conhecia até então e passa a ter outras práticas. E isso aconteceu em momentos diferentes: às vezes, lá no litoral, o Jê deixou de fazer aquela cerâmica em 1700, mas aqui, no interior do estado, ele vai continuar a fazer isso até o século XIX, como foi o caso do sítio de São Domingos. Ali em Corpus foi bem isso: o sítio foi datado de 495 anos atrás, e a redução deve ter 400 anos, ou seja, 100 anos antes da chegada dos jesuítas os indígenas estavam fazendo cerâmica típica “pré-colonial”. Sem o contato, a cerâmica era pintada, incisa, corrugada e aí, quando chegam os jesuítas, eles ainda fazem cerâmica, mas é mais tosca, sem pintura, no máximo tem um escovado – porque foi implantado outro sistema de trabalho. Mas a questão não é fácil, precisa ter muita, muita pesquisa.

A arqueóloga Mirian Carbonera em seu depoimento se referiu a aspectos relacionados ao grupo Jê Meridional e aos Guarani. Em relação à economia dos Jê, Carbonera citou a caça, a pesca, a coleta do pinhão e outros frutos, além da agricultura, especialmente o cultivo de milho, feijão e abóbora. Sobre a religião, lembrou-se da dificuldade para os arqueólogos em adentrar tal aspecto, em virtude da face simbólica que deixa poucos vestígios materiais para serem analisados. Porém, a arqueóloga citou o enterramento dos mortos nas estruturas anelares, que, além de mostrarem a feição espiritual, também serviam para demarcar territórios em relação ao grupo Guarani. Sobre os sítios arqueológicos xaxinenses, Carbonera lembrou que são superficiais e não apresentam estruturas subterrâneas. Entretanto, essas estruturas foram localizadas em São Domingos, Ipuaçu e Passos Maia.

1Recebido em: 4 de janeiro de 2020. Aceito em: 15 de março de 2020

2Doutoranda em História pela Universidade de Passo Fundo; Mestra em História Regional pela Universidade de Passo Fundo; Graduada em História pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Palmas, UPF, Xaxim, SC, Brasil. Autor correspondente. E-mail: valdirenechitolina@yahoo.com.br