OS DESAFIOS NO ACESSO AO BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIA


THE CHALLENGES OF THE CONTINUOUS CASH BENEFIT FOR PEOPLE WITH DISABILITIES


PURL: http://purl.oclc.org/r.ml/v6n2/a7



Isabelle Silva Paravidino Cunha


Ketnen Rose Medeiros Barreto



Resumo. O presente artigo tem como objetivo discutir o Benefício de Prestação Continuada (BPC) para pessoa com deficiência. Os dados foram obtidos a partir de uma pesquisa documental que buscou entender os desafios no acesso ao BPC, que esbarra cada vez mais, na burocracia estatal. A partir desses dados, podemos verificar que a maioria das pessoas que chegavam ao setor de Serviço Social do INSS ia em busca do BPC para pessoa com deficiência. Os critérios para a concessão do BPC acabam sendo restritivos e excludentes, em favor dos interesses econômicos, principalmente no atual governo. Esse benefício não atinge totalmente seus reais objetivos, pois não é garantido a todas as pessoas com deficiência pobres e incapazes para o trabalho, mas somente aos casos mais alarmantes, não resolvendo, assim, o seu contexto de exclusão daqueles que requerem o BPC, acentuando ainda mais as desigualdades que enfrentam.

Palavras-chave: Benefício de Prestação Continuada. Pessoa com deficiência. Burocracia.



Abstract. This article discusses the Benefício de Prestação Continuada (BPC, Continuous Cash Benefit) for people with disabilities. The data were obtained from a documentary research that sought to understand the challenges in accessing the BPC, which is increasingly coming up against the state bureaucracy. From these data, we can see that most people who got the Social Service sector of the INSS went in search of BPC for people with disabilities. The criteria for granting the BPC end up being increasingly restrictive and exclusive, in favor of economic interests, especially in the current government. This benefit does not fully reach its real objectives, as it is not guaranteed to all people with disabilities and incapacitated for work, but only to the most alarming cases, thus not solving its context of specific exclusion that affected the BPC, further accentuating the inequalities they face.

Keywords: Continuous Cash Benefit. Disabled person. Bureaucracy.



1 Introdução


O artigo, ora apresentado, consiste numa reflexão crítica acerca dos dados de uma pesquisa documental realizada junto a uma agência do Instituto Nacional do Seguro Social, em Campos dos Goytacazes - RJ no ano de 2017§, cujo objetivo central foi conhecer o acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC). Na ocasião, realizou-se uma pesquisa quali-quantitativa, por meio de um formulário, com questões abertas e fechadas, sem a identificação do usuário. Esse formulário contou com a participação de 94 pessoas, que buscaram o referido setor de Serviço Social.

Este escrito faz parte, ainda, do Trabalho de Conclusão de Curso intitulado “O (não) acesso ao Benefício de Prestação Continuada para pessoa com deficiência e o trabalho do assistente social no INSS”, aprovado em 2019, no curso de Serviço Social da UFF/Campos.

A Previdência Social é uma política pública que compõe a Seguridade Social, à qual somente os contribuintes e seus dependentes têm acesso, por meio de benefícios voltados a suprir sua renda, quando esses perdem sua capacidade laborativa seja por doença, seja por invalidez ou morte.

Sob o conjunto Seguridade Social (junto a Saúde e Previdência), temos a Assistência Social, que é uma política pública, de caráter social, que não requer contribuição direta e tem, como objetivo, a garantia dos mínimos sociais, a quem dela necessitar, conforme a Lei nº 8.742/1993, denominada Lei Orgânica de Assistência Social (Loas).

Criado pela Constituição Federal de 1988, o BPC foi instituído pela Loas e, posteriormente, regulamentado como direito social, por meio do Decreto 6.214, que estabeleceu o repasse de renda de um salário mínimo para a pessoa idosa (acima de 65 anos) ou com deficiência de qualquer idade, que vive com renda inferior a ¼ de salário mínimo. Embora seja um benefício de caráter assistencial, o BPC é operacionalizado no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), a partir de leis e decretos, seguindo, portanto, regras de execução dessa autarquia federal.

Desse modo, este artigo se propõe a discutir a Assistência Social, na condição de um direito garantido pela Constituição Federal de 1988, pelo art. 203 “A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social [...]” (BRASIL, 1988). A partir dessa análise, discutiremos sobre o Benefício de Prestação Continuada (BPC) para pessoas com deficiência, cuja concessão está sujeita à avaliação do grau de incapacidade laborativa do requerente, segundo os princípios da Classificação Internacional de Funcionalidades, Incapacidade e Saúde (CIF) e da avaliação médica e social que são realizadas, respectivamente, pela perícia médica e pelo Serviço Social do INSS (BRASIL, 2007).

A questão é que o padrão da avaliação técnica para averiguar se o indivíduo e se sua família se encontram em extrema pobreza não faz como que haja o acesso do requerente ao BPC, mas cumpre a regra dos critérios exigidos para que se consiga ter o benefício, ou seja, há uma focalização que restringe o direito, mesmo para aqueles que o têm garantido.

A burocracia expressa, pelos critérios de elegibilidade, acaba sendo um dos elementos de materialidade do controle do Estado, buscando atender às pressões daqueles que não detêm o poder e, ao mesmo tempo, tem que responder aos interesses daqueles que o dominam.

O BPC é para aqueles que estão em extrema pobreza e que, mesmo sendo pessoa com deficiência, não conseguem acessar os mínimos sociais, que garantem uma vida digna, diante do enxugamento do Estado e do desmonte das políticas públicas, em especial, da Seguridade Social por meio da imposição de uma agenda neoliberal, que pretende, em curto tempo, alterar as conquistas sociais presentes na Constituição Federal de 1988.


2 A Loas como um direito social


De acordo com a Constituição Federal de 1988, a Seguridade Social é atribuição do poder público e iniciativa da sociedade; são políticas de proteção social, produto histórico das lutas dos trabalhadores. As políticas públicas de Saúde, de Previdência Social e de Assistência Social são assumidas como dever do Estado e como direito do cidadão, no entanto somente a política de Saúde se tornou universal (SPOSATI; FALCÃO; TEIXEIRA, 1995).

A Assistência Social regulamentada pela Lei no 8.742/1993, denominada Loas, trata-se de um ordenamento jurídico que afirma mudanças e possibilidades. A Loas inaugura um novo patamar para a Assistência Social brasileira, agora como uma política pública. Sendo assim, suas diretrizes vão em direção do atendimento aos cidadãos em situação de vulnerabilidade e de pobreza, tendo, como intuito, romper com a tradição cultural e política de assistencialismo clientelista e emergencial, sem enfrentamento das questões sociais, proveniente das desigualdades (BRASIL, 1993).


A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas (BRASIL, 1993).


Assim, a Assistência Social tornou-se política pública, regulamentada por meio da Loas, a qual funciona como uma “ferramenta a serviço dos interesses das classes dominantes, ou, melhor dizendo, do sistema capitalista” (BRETTAS, 2017, p. 55), ao mesmo tempo que expressa seu caráter contraditório, atendendo aos requisitos da classe trabalhadora.

Apesar das legislações e da conquista dos direitos, no âmbito da Assistência Social, o Estado brasileiro, em sua economia dependente, acaba tendo sua autonomia limitada, funcionando como uma “ferramenta” à serviço dos interesses econômicos dos países avançados, ao mesmo tempo em que expressa as necessidades da classe dominante local, nas suas relações de contradição e de subordinação com aquelas (BRETTAS, 2017).

De acordo com Mota (2010, p. 25), “o modo de produção capitalista, ao mesmo tempo em que institui o trabalhador assalariado e o patronato, também produz o fenômeno do pauperismo, responsável pelo surgimento da pobreza como questão social”. Então se fez necessária a intervenção do Estado, no que diz respeito às expressões da “questão social”, isto é, das problemáticas sociais advindas do sistema capitalista, no qual os trabalhadores passaram a demandar suas necessidades, exigindo seus direitos como classe trabalhadora, geradora da riqueza socialmente produzida.

A Loas não se tornou universal e vem preservando critérios de focalização, tendo acesso a quem está em extrema pobreza. Além disso, ao longo de seu processo histórico, essa política vem na tentativa de se afastar da condição de assistencialismo e de clientelismo, no campo da política pública.

Assim, aqueles que não contribuem para a Previdência Social, como também os que não possuem renda, acabam recorrendo à Política de Assistência Social, sendo esses grandes demandantes do BPC e de programas de transferência de renda, dada a sua situação de pobreza e de extrema pobreza. Essa política pública busca garantir a segurança e a dignidade de todos os cidadãos, não devendo ser executada sob ações pontuais e emergenciais.

O caráter focalista estabelecido por meio dos critérios de acesso ao benefício aumenta a exclusão daqueles que requerem o BPC por deficiência, acentuando, ainda mais, as desigualdades as quais buscam enfrentar, ao mesmo tempo que reafirma o preconceito da sociedade em relação ao benefício, não o reconhecendo como direito e, sim, como um favor.


3 O BPC para a pessoa com deficiência


Dentro do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), é operacionalizado o BPC. Esse é o único benefício da Política Nacional de Assistência Social (Pnas), garantido pela Constituição Federal de 1988, e atende a dois grupos sociais específicos: o primeiro diz respeito à pessoa idosa, acima de 65 anos. O segundo, ao qual nós iremos deter ao longo deste artigo, visa a atender a pessoa com deficiência de qualquer idade, cujo critério básico para o acesso é a condição socioeconômica de renda familiar inferior a ¼ de salário mínimo.

O Benefício de Prestação Continuada foi regulamentado, em 1993, pela Loas e passou a ser concedido a partir de 1996, sendo o INSS o órgão operacionalizador do BPC. Conforme a Lei nº 8.742:


Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.


O BPC é equiparado ao salário mínimo vigente e deve ser revisto a cada dois anos, no intuito de verificar se o beneficiário ainda possui as mesmas condições que o levaram a conseguir benefício, cessando, imediatamente, em caso de morte ou em caso do não cumprimento da lei vigente. Lembrando que o BPC é um benefício individual, portanto não gera pensão para os dependentes, no caso de falecimento do seu beneficiário.

O BPC para pessoa com deficiência é concedido a todas as pessoas com deficiência incapacitadas para a atividade laborativa, que comprovem não possuir meios de prover a sua manutenção e seus custos de vida e, até mesmo, quando família que mora na mesma residência não detém essa condição. Instituído pelo Decreto nº 6.214/2007, a pessoa com deficiência ficará sujeita à avaliação do grau de incapacidade, com base nos princípios da Classificação Internacional de Funcionalidades, Incapacidade e Saúde (CIF). A avaliação médica e social é realizada, respectivamente, pela perícia médica e pelo Serviço Social do INSS (BRASIL, 2007).

A CIF baseia-se numa abordagem biopsicossocial que introduz os componentes de saúde nos níveis corporais e sociais, sendo eles: as funções e estruturas do corpo; a atividade social; a participação social; os fatores ambientais e os fatores pessoais (WHO, 2001).

Por determinação do Decreto nº 6.214, em seu Art. 9o, para fazer jus ao Benefício de Prestação Continuada, a pessoa com deficiência deverá comprovar:


I - a existência de impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, obstruam sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas, na forma prevista neste Regulamento; II - renda mensal bruta familiar do requerente, dividida pelo número de seus integrantes, inferior a um quarto do salário mínimo; e III - por meio de declaração, que não recebe outro benefício no âmbito da Seguridade Social ou de outro regime, inclusive o seguro-desemprego, exceto o de assistência médica e a pensão especial de natureza indenizatória (BRASIL, 2007).


As regras para a concessão do BPC estão, cada vez mais, rigorosas e fazem com que as particularidades dos seus requerentes não sejam levadas em conta, deixando à margem muitos que precisam desse benefício para sobreviver, sobretudo pelo fato de a dificuldade na comprovação da incapacidade para o trabalho ser cada vez mais severa nas perícias médicas do INSS.


A ideia de deficiência é frequentemente relacionada a limitações naquilo que se considera como habilidades básicas para a vida social. Não é fácil determinar quais são essas habilidades, muito embora grande parte do debate as relacione à mobilidade, ao uso dos sentidos, à comunicação, à interação social e à cognição (DINIZ; SQUINCA; MEDEIROS, 2007, p. 2591).


Além de ter de comprovar a condição de extrema pobreza, o BPC para pessoas com deficiência somente é concedido a partir do grau da deficiência estabelecido e pela sua incapacidade no desenvolvimento de atividades laborais, ou seja, não é só comprovar baixa renda ou a falta dessa e ter alguma deficiência que prive o requerente de inserção no mercado de trabalho.


A avaliação médica leva em consideração as deficiências nas funções e nas estruturas do corpo, e a avaliação social leva em conta os fatores ambientais, sociais e pessoais. As duas avaliações consideram a limitação do desempenho de atividades e a restrição da participação social. Quando comprovada a impossibilidade de deslocamento da pessoa com deficiência até o local de realização das avaliações social e médica, estas serão realizadas em seu domicílio ou na instituição em que estiver internada (BRASIL, 2018, p. 33).


A avaliação dos médicos acaba tendo um caráter seletivo, pois uma mesma situação pode ser avaliada de forma diferente; o olhar técnico do perito é que vai definir se a pessoa é elegível ou não para a concessão do benefício. Os mecanismos para o acesso ao BPC são extremamente excludentes pois geram consequências para aqueles que necessitam do benefício.

Os efeitos dessa burocracia deixam à margem indivíduos que, por conta da sua deficiência, não se irão conseguir inserir no mercado de trabalho, nem acessar o BPC, caso não estejam de acordo com as regras e condicionalidades. Sua família também sofrerá as consequências do não acesso ao benefício, já que o familiar da pessoa com deficiência, muitas vezes, deixará de trabalhar para a prestação de cuidados.

Diante dessa realidade, vê-se que a burocracia acaba sendo um dos elementos de materialidade do Estado, onde se institui o capitalismo, buscando atender às pressões daqueles que não detêm o poder, e. ao mesmo tempo, tendo que responder aos interesses daqueles que dominam o poder, sendo essas contradições presentes no Estado, como aborda Rodrigo de Souza Filho:


A burocracia, por um lado, é a responsável por viabilizar, manter, conservar a ordem social capitalista e, dessa forma, garantir os interesses da classe dominante. Por outro lado, ela também implementa as ações do Estado destinadas ao atendimento de interesses das classes dominadas, na perspectiva de manter a ordem da propriedade privada/liberdade, garantindo, porém, o bem. Por isso, a aparência de classe universal (SOUZA FILHO, 2006, p. 152).


Sendo assim, segundo Souza Filho (2006, p.153), “a burocracia responde a uma dada organização social que supõe a existência de dominados e dominantes, social e economicamente falando”. Nesse processo, favorece o enxugamento do Estado, tendo que responder aos interesses daqueles que dominam o poder econômico, mais especificamente, aos interesses do capital financeiro, predominante no contexto atual.

A reforma do Estado é parte de um processo global de reestruturação produtiva, iniciada com a crise do capital, nos anos 1970. Ergueu-se, com toda força, o projeto neoliberal, consistindo na redução do papel do Estado, principalmente no que diz respeito às políticas públicas; e na ampliação da esfera do mercado econômico (OLIVEIRA, 2011).


A crise dos anos 1970 assumiu uma roupagem econômica – haja vista a estagnação do modo de produção capitalista –, social e política, uma vez que teve rebatimentos sobre o projeto de classe hegemônico, o da burguesia, e a legitimidade política e cultural do sistema capitalista (OLIVEIRA, 2011, p. 134).


Como reação burguesa à crise do capital, tivemos uma queda da taxa de lucros, que buscou reconfigurar o papel do Estado capitalista. Sobre essa reação, Alencar Junior e Salvador (2015) configuraram três movimentos: o primeiro teve como base a revolução tecnológica e organizacional da produção, de rígido processo produtivo fordista/taylorista. O segundo teve, como base, a mundialização da economia, a liberalização financeira e a desregulamentação das finanças. Já o terceiro movimento é caracterizado pelo o ajuste neoliberal do Estado.

No modelo de produção toyotista, há uma “apreensão” da subjetividade do trabalhador, iniciando, assim, uma espécie de competição de um para com os outros, para que os trabalhadores tenham iniciativas produzir para além daquilo que foram contratados, sendo considerados como trabalhadores multifuncionais e/ou polivalentes, ou seja, tendo que se submeter a diversas funções nos processos de trabalho, num contexto de substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto.

De acordo com Antunes e Alves (2004, p. 347), com a introdução das novas tecnologias, das maquinarias modernas, houve um aumento do “estranhamento do trabalho”, distanciando, ainda mais, a subjetividade do exercício de uma cotidianidade autêntica e autodeterminada.

Ao mesmo tempo que a produção se intensificou, bem como a exploração e a precarização do trabalho aumentaram, também houve a ampliação do desemprego estrutural.


A alienação/estranhamento é ainda mais intensa nos estratos precarizados da força humana de trabalho, que vivenciam as condições mais desprovidas de direitos e em condições de instabilidade cotidiana, dada pelo trabalho part-time, temporário e precarizado. Sob a condição da precarização, o estranhamento assume a forma ainda mais intensificada e, mesmo, brutalizada, pautada pela perda (quase) completa da dimensão de humanidade (ANTUNES; ALVES, 2004, p. 348).


Enquanto isso, a medida em que a produção capitalista se internalizava, aumentava, também, a concorrência de mercado, que, hoje, chamamos de neoliberalismo. De acordo com Gasparotto, Grossi e Vieira (2014, p. 07) “O neoliberalismo refere-se à retomada de forma intensa do ideário liberal, o qual apregoa a liberdade dos mercados, as liberdades individuais, a autorregulação dos mercados, ou seja, a não interferência do Estado na economia”.

Com o avanço das ideias neoliberais, tem-se uma realidade ideológica em defesa dos interesses do capital, sendo esse um novo ordenamento econômico, favorecendo grupos referente aos direitos sociais e trabalhistas monopolizados, deixando à mercê a classe trabalhadora (NETTO, 1992).


Assim, o neoliberalismo, no Brasil, consolidou-se como estratégia de dominação da classe burguesa e de seus aliados para responder à crise vivida na década de 1980, a qual propiciou um substantivo movimento pela democratização, a retomada da luta sindical e o surgimento de movimentos sociais importantes no campo e na cidade. Desse processo, resultou uma nova Constituição Federal, registrando conquistas para o desenho das políticas sociais [...] (BRETTAS, 2017, p. 61).


Como vimos, o BPC é para aqueles que estão em extrema pobreza e que, mesmo sendo pessoa com deficiência, não conseguem acessar os mínimos sociais, que garantem uma vida digna, diante do enxugamento do Estado e do desmonte das políticas públicas, em especial da Seguridade Social, por meio da imposição de uma agenda neoliberal, que pretende, em curto tempo, alterar as conquistas sociais presentes na Constituição Federal de 1988 (CASTILHO, LEMOS; GOMES, 2017).


Com as reformas, ou contrarreformas, de direção neoliberal, ocorridas nos últimos anos no Brasil, as políticas públicas de seguridade social sofreram impactos limitantes para a sua cobertura. Ainda que seja possível admitir avanços no desenho do sistema de proteção social brasileiro, há, também, que se considerar o convívio desse modelo de tendência abrangente e universal com os projetos de retração de benefícios, caracterizados por retrocessos e constantes ameaças de retirada de direitos já conquistados (CARMO; GUIZARDI, 2018, p. 02).


Assim, as políticas públicas não garantem condições para que os indivíduos saiam, minimamente, da situação de pobreza. Essas políticas acabam indo em direção aos princípios neoliberais, que, por meio da burocracia, colocam-se como inacessíveis para grande maioria dos que delas necessitam.


4 Dados que expressam a “dura” realidade dos requerentes que acessam o BPC para pessoa com deficiência


A pesquisa documental que fundamenta este artigo se deu por meio da coleta de dados, realizada no ano de 2017, para levantamento das demandas que chegavam ao setor de Serviço Social, por uma agência do INSS, por informações obtidas e armazenadas pelo referido setor.

Para chegar a esse fim, buscou-se sistematizar o perfil dos requerentes do BPC para pessoa com deficiência pelos seguintes indicadores: sexo; classificação racial; escolaridade; religião; idade; estado civil; moradia; atividade laborativa/trabalho; renda familiar; se já foi segurado do INSS; e se já possui outros benefícios previdenciários.

Os dados aqui mostrados se referem a 100% dos atendidos no setor de Serviço Social (no período de setembro a novembro). Desses, mais de 52,1% eram de requerentes para o Benefício de Prestação Continuada para pessoa com deficiência, já que, para o idoso, não é necessário passar pelo Serviço Social e nem pela perícia médica. O restante era de 27,7% de acesso e de ampliação, e 20, 2 %, para a Sessão de Saúde do Trabalhador (SST).

Os resultados mostraram, também, que a maioria das pessoas que chegava ao setor de Serviço Social era de mulheres (74,5%), sobretudo negras (45,7%), residentes em zona urbana (75,5%) e estavam desempregadas (40,4%) com ensino fundamental incompleto (45,1%). De acordo com Gasparotto e Grossi (2017), é pouco debatida a questão de as mulheres estarem mais suscetíveis a situações de vulnerabilidades sociais, assim como às discriminações e às opressões em decorrência do gênero.

A população negra, sobretudo mulheres, tem sido público majoritário no acesso a benefícios e a serviços ofertados pela Assistência Social brasileira. Cerca de 66% dessas pessoas que chegavam ao setor não tinham, sequer um benefício assistencial, como também 48,9% não possuíam benefício previdenciário.

Sendo a Assistência Social uma política pública que visa à garantia da proteção social à população de riscos e dotada de vulnerabilidades sociais, com base no enfrentamento às diversas situações de vitimização, de fragilidades e de contingências, é inegável que as desigualdades de gênero constituem demanda a ser enfrentada por essa política social (GASPAROTTO; GROSSI, 2017).

Madeira e Gomes (2018) abordam que a população negra vivencia os cenários de vulnerabilidades, de extrema pobreza, e acaba não sendo atendida com relação às políticas públicas de proteção social. O preconceito gera exclusão, negando, assim, a sua cultura, identidade, sendo que elas terão que reinventar mecanismos para sobreviver.


[...] em meio às vulnerabilidades por que passa a população negra, de cenários de extrema pobreza, demandas não atendidas por acesso às políticas públicas de proteção social, de preconceito que se transforma em ação de exclusão, de negação de identidade, de sua cultura, esta criou e vem reinventando mecanismos de resistência para garantir sua sobrevivência, ao mesmo tempo em que oferece ao Estado e à sociedade brasileira suas experiências como forma de construir coletivamente outra dinâmica de vida e ação política (MADEIRA; GOMES, 2018, p. 474).


Além disso, a questão de morar em zona urbana não significa que haverá pleno emprego. Com o desenvolvimento urbano nas cidades, cresceu, também, a falta de condições de moradia, o desemprego, o crescimento desordenado da periferia e o surgimento das favelas, sendo expressões da questão social relacionadas à habitação.

Mesmo residindo e trabalhando na zona urbana, muitos desses bairros eram periféricos, sem infraestrutura adequada. Com o aumento da população, nas cidades, a questão do desemprego agrava-se ainda mais, como expressão da questão social na atualidade. É um problema social, frente ao projeto neoliberal, que atinge muitas camadas da população, principalmente os que têm baixa escolaridade, podendo ser um impedimento para o mercado de trabalho, surgindo, assim, novas ocupações, como é o caso do trabalho informal, precarizado, temporário, dentre outros.


Gráfico 1 ‒ Situação de emprego dos usuários entrevistados

Fonte: elaboração própria


Gráfico 2 ‒ Escolaridade dos usuários entrevistados.

Fonte: elaboração própria

O exército de sobrantes é essencial para as atuais formas de acumulação de capital, marcadas pela produção automatizada e pela desregulamentação dos direitos da classe trabalhadora. Portanto aqueles que não conseguem acessar ao mercado de trabalho vão em busca de proteção, como é o caso da Assistência Social. O Estado passa a operar, minimamente, com programas de alívio à pobreza, como alternativa ao enfrentamento do desemprego (IAMAMOTO; CARVALHO, 1986).

Sendo assim, com o mercado de trabalho competitivo, possuir baixa escolaridade pode ser um dificultador para o acesso dessa população a um emprego, já que a escolaridade tem grande influência nas chances de um indivíduo conseguir emprego.


Gráfico 3 ‒ Renda familiar dos usuários entrevistados

Fonte: elaboração própria


Ao saber quantos BPC para pessoa com deficiência foram concedidos no período da pesquisa, a partir dos dados das Agências da Previdência, extraídos pelo Sistema Único de Informações de Benefícios (Suibe), teve-se acesso ao número de concedidos, que foi de 453 benefícios (19,68%), e ao número de indeferidos, sendo 1.849 (80,32%).

Os dados acima expressos nos revelam a necessidade do benefício na vida daqueles que o requerem. No entanto esse acaba sendo inviabilizado por critérios focalizados, seletivos, com relação à parcela da população que se encontra em extrema vulnerabilidade social.


5 Considerações finais


A Assistência Social está distante de formar um mecanismo de proteção social e se configura numa política contraditória, pois, mesmo estando em Lei que essa política pública é para quem necessitar, acaba por focalizar e por restringir ao mais pobres o seu acesso, não garantindo a emancipação desses.

No processo de regulamentação, o BPC acaba tendo, para aqueles que dele necessitam, um alcance limitado. A dificuldade fundamentada na burocracia, para conseguir acessar os seus mínimos sociais, revela a o caráter focalista com critérios excludentes, pois, se a renda per capita familiar ultrapassar ¼ do salário mínimo, o usuário não terá acesso ao benefício, mesmo sendo pessoa com deficiência incapacitante, ou seja, o requerente tem que comprovar o nível de pobreza, não podendo ultrapassar o valor expresso na Lei, como também ser pessoa com deficiência e estar inapto para o trabalho.

Nessa realidade, encontram-se milhares de beneficiários do Benefício de Prestação Continuada, que, hoje, necessitam de uma renda para sobreviver e sofrem a ameaça do desmonte da Seguridade Social nos dias atuais, sendo a pobreza a expressão da questão social, advinda do modo de produção capitalista, em que Estado vem, cada vez mais, não se responsabilizando, tendo princípios neoliberais, em nome da economia e da crise financeira.

Em meio a esse contexto, ressaltamos que esse benefício não atinge, totalmente, seus reais objetivos, já que não é garantido a todas as pessoas com deficiência pobres e incapazes para o trabalho, mas, somente, a parte dos casos mais graves daqueles que o requerem, acentuando, ainda mais, as desigualdades sociais de sujeitos que estão em um universo de desemprego, que, para os ditos “normais”, está cada vez mais difícil, quiçá para quem tem algum tipo de deficiência.


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Artigo recebido em: 4 de setembro de 2020. Aceito em: 6 de novembro de 2020

Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal Fluminense, Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil. Autor correspondente. E-mail: isabelleparavidino@gmail.com.

Universidade Federal Fluminense, Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil. Doutora em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: ketnenrose@id.uff.br.

§ Pesquisa relacionada à disciplina de Estágio Curricular em Serviço Social e à Disciplina de Pesquisa do Curso de Serviço Social de Campos (UFF/ESR).

Rev. Mundo Livre, Campos dos Goytacazes, v. 6, n.2, p.266-280, jul./dez. 2020

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