PASSE LIVRE: POSSIBILIDADE OU DISTOPIA
FREE PASS: POSSIBILITY OR DYSTOPIA
PURL: http://purl.oclc.org/r.ml/v2n2/r1
Gabriel Guanabarã Lemos Marques†
Fernanda Pereira dos Santos‡
Em seu livro “Passe Livre: As possibilidades da tarifa zero contra a distopia da uberização”, Santini põe como reflexão central pensar a mobilidade urbana das cidades a partir do prisma da circulação, dos deslocamentos diários das pessoas em seus aspectos mais amplos, seja nas suas atividades de trabalho, estudos, compras, lazer, flane ou em qualquer outra atividade que exija o deslocamento. Nesse conjunto, os atos de deslocamento passam a opor sistemas de transportes distintos, isto é, opõem lado a lado a circulação através dos modais públicos coletivos§ com os modais individuais motorizados.
Diante disso, o autor coloca algumas reflexões. A primeira diz respeito a uma percepção comum e bem visível aos grandes e médios centros urbanos, o sistema de mobilidade que prioriza os carros não funciona bem, como indicam os engarrafamentos, no entanto, há uma predileção, beirando a insistência, por tal sistema. E por quê? As demais reflexões giram em torno da temática da mobilidade: enquanto direito ou serviço.
Ao evidenciarmos a compreensão e por não dizer a naturalização social do transporte público enquanto um serviço, nos deparamos com o Art. 176 do Código Penal, que endossa que – Tomar refeição em restaurante, alojar-se em hotel ou utilizar-se de meio de transporte sem dispor de recursos para efetuar o pagamento: Pena – detenção, de 15 (quinze) dias a 2 (dois) meses, ou multa. Nesse caso, o usuário já internalizou que o transporte é um serviço que deve ser pago, e que o seu deslocamento é, de sua responsabilidade. Tal pensamento, nos dias mais contemporâneos, recai sobre os serviços ofertados pelos aplicativos de carro, que passam a oferecer novas possibilidades de deslocamento aos usuários. Mas, tal sistema não muda o paradigma injusto e ineficiente das cidades formatadas para priorizar os veículos privados e tão pouco soluciona a crise da mobilidade urbana.
Ao destacar a mobilidade enquanto um direito, Gregori (2010) considera que o usuário ainda não entende o transporte como direito social a ser pago indiretamente, como entende a saúde pública, a segurança pública, a educação pública, pois já interiorizou. Mas, no momento em que o transporte passar a ser entendido enquanto um direito, uma nova lógica de ocupação e produção do espaço urbano se expressará, isto é, primeiramente permitirá a ampliação dos horizontes da cidade que não só o binômio casa-trabalho. E ademais, diminuição dos engarrafamentos por haver uma menor pressão sob a infraestrutura urbana e menos poluição.
As respostas a essas reflexões não são tidas como simples, pois envolve além de uma nova abordagem teórica conceitual, uma mudança econômica, política e de pensamento do eu individual para o eu coletivo e social. Mas são passíveis de serem pensadas, pautadas e sobretudo, implementadas.
No final do século XIX e início do século XX, surgia nos Estados Unidos e na Europa a indústria automobilística, que revolucionou os meios de produção, expandiu os padrões de consumo, influenciou o desenvolvimento do transporte rodoviário. Facilmente tal ideia requereu investimentos em infraestrutura, na perspectiva de aumentar a circulação de pessoas e mercadorias, sem deixar de concatenar os discursos que apontavam para os sistemas de transportes como uma forma de propagação do progresso técnico e da liberdade das pessoas.
A fim de consumar o novo moderno (modelo rodoviário) as mais diferentes cidades tiveram que reorganizar seus espaços urbanos, visto que, até um século atrás os espaços urbanos tinham outra configuração e conotação, isto é, não estavam voltados para os automóveis. Mas a predileção, incentivos (recordando a frase do ex-presidente Washington Luís – “Governar é povoar; mas, não se povoa sem se abrir estradas, e de todas as espécies; governar é, pois, fazer estradas!") e até mesmo subsídios (lembrando as reduções de IPI, durante os governos petistas) para aquisição dos transportes individuais motorizados, fizeram com que as cidades adequassem a uma nova realidade. Adequações essas que, via de regra contam com o alargamento e ampliação de ruas, construções de novas avenidas, canalizações de rios e outras obras de engenharia que buscam flexibilizar e ampliar as áreas de tráfego. Num primeiro momento, essas obras podem simbolizar e significar uma melhor circulação dos automóveis, mas invariavelmente é seguido por congestionamentos, pois a lógica vista é, abertura de novos espaços reforça a ideia de que estes novos espaços comportam mais carros, criando um ciclo vicioso negativo, que se (re)aplica nas diversas cidades brasileiras, vide, a canção
Morando em São Gonçalo você sabe como é
Hoje a tarde a ponte engarrafou
E eu fiquei a pé (SEU JORGE, 2004, grifo do autor).
Santini (2019) aponta que parte dos problemas relacionados a mobilidade urbana são elucidados com o processo de uberização da mobilidade. Este modelo de negócio baseado na precarização de trabalhadores e que se estrutura a partir da falta de regulamentações, restrições, taxações e regras, vem sendo apresentado como a luz no fim do túnel e a popularização dos aplicativos seria a maneira viável (menos onerosa) de sugerir uma equidade a um sistema historicamente desigual, ofertando a preços acessíveis um translado, pontual, vazio, confortável e todas as outras benécias que o transporte público coletivo não oferece. Isso tudo fez com que muitos acreditassem que finalmente teriam acesso à infraestrutura viária que sempre beneficiou proprietários dos transportes individuais motorizados.
Mas via de regra, os aplicativos não mudam o problema, o paradigma injusto e ineficiente das cidades formatadas para priorizar a locomoção de veículos privados continua, soluções milagrosas via apps não solucionarão a crise de mobilidade. Pelo contrário, notamos a cada dia que, tais mecanismos mais reforçam o entendimento de que a mobilidade é algo comercializável, tornando a população refém de variações de preço conforme a oferta e demanda.
Como então solucionar, os engarrafamentos, os inchaços urbanos, as precarizações do transporte público coletivo e escape da uberização da mobilidade? O autor aponta na direção da adoção de um modelo que privilegie o transporte público coletivo universal em detrimento do transporte individualizado motorizado.
Ao centrar o debate em torno do transporte enquanto um direito social, Santini (2019) destaca que desde setembro de 2015 alterou-se o Art. 6º da Constituição Federal, incrementando neste artigo o transporte enquanto um direito social, que a partir deste momento deve ser assegurado, enquanto um direito básico, a todos os seus cidadãos pelo Estado brasileiro.
Visando a aplicabilidade do Art. 6º da Constituição, o autor destaca que é necessário subvertemos a lógica capitalista de visão e gerenciamento do transporte, pois seguindo a estrutura já criada e implementada, o passageiro é visto enquanto um consumidor, ou seja, tem acesso ao transporte aquele que faz o pagamento, caso contrário o seu acesso é negado e com isso há um impedimento no seu deslocamento, reforçando desse jeito, a máxima do privilégio exclusivo e da liberdade individual.
Pensar na mobilidade enquanto um direito e não um serviço, requer pensar em novas formas de uso e apropriação dos espaços urbanos da cidade a partir do transporte público coletivo, isto significa pensar então em um serviço que privilegie o ganho coletivo com uma rede de transporte público eficiente e acessível. A proposta apresentada por Santini (2019) é do passe livre ou tarifa zero, como sendo o instrumento que prevê o uso do transporte coletivo sem a cobrança direta, isto é, não se trata de um transporte público gratuito, porque apesar de não haver cobranças diretas, há custos, pois, o transporte é pago indiretamente pelo conjunto da sociedade segundo regras de pagamento e captação de recursos, que são revertidos para custear.
Dessa forma, o transporte público coletivo por passe livre, deve ser entendido como um bem coletivo, que beneficiará as pessoas que farão uso direto e aquelas que não, pois a lógica que visa a ser construída é que com um transporte público coletivo eficiente, articulado, integrado com outros modais de transporte, consiga primeiro democratizar o acesso, os espaços da cidade e consequentemente diminuir o número de carros nas vias.
A base para adoção deste modelo encontra-se em viabilizar propostas concretas, pois um dos argumentos mais utilizados pelos opositores é que este sistema não é eficaz e sustentável financeiramente no tempo e nas grandes cidades.
Para efetivar suas ideias, Santini (2019), sumariza no capítulo onze os instrumentos que podem vir a servir de base para custear o passe livre. Entre as ideias, temos a proposta de reorganização das finalidades dos impostos, a exemplo do Imposto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA), Documento Único do Detran de Arrecadação (DUDA). Uma parcela da arrecadação destes impostos seria destinada a um fundo de reserva, que custearia as redes coletivas ou subsidiária a redução dos preços ou arcaria com a isenção de cobrança para o transporte público. Outra proposta seria as cobranças sobre imóveis e grandes empreendimentos. A cobrança sobre imóveis seria aplicada destinando uma parte do Imposto predial e territorial urbano (IPTU) ao fundo de reserva. Já sobre os grandes empreendimentos (Shopping Center) funcionaria como uma cobrança adicional, tendo em vista que são áreas com infraestrutura de transporte e congrega grandes fluxos de deslocamentos. Podemos ainda seguir com a proposta de extinção do auxílio de transporte pago diretamente aos funcionários e este mesmo valor ser pago diretamente a administração pública que gerenciaria através de um fundo e aplicaria este recurso ao setor de transporte público coletivo.
Todos esses instrumentos e todos os demais que possam vir a surgir, prezam por gerar receitas para o transporte público coletivo e servir de desestímulo ao uso do automóvel.
Dada a gravidade da crise da mobilidade urbana contemporânea, o transporte público coletivo via tarifa zero ou passe livre, é a nossa utopia mais próxima. Sua implementação resgatará os princípios defendidos por Gehl (2013), cidades para pessoas, sendo essas pessoas as protagonistas dos espaços livres urbanos, sendo elas ocupando os espaços ao invés dos carros. Caso contrário, é de uma irresponsabilidade tentar seguir com políticas que priorizam o transporte individual privado diante do colapso viário e ambiental dos espaços urbanos.
Então como apresentado, o que está em jogo não é somente a eliminação da cobrança direta nos transportes públicos coletivos, mas outro modo de vida urbana, apoiado na luta pela justiça social, pela saúde pública, pela defesa dos equilíbrios ecológicos, pela seguridade social, por equidade econômica e que essas pautas sejam reverberadas no direito à cidade. Por isso, frisamos que à adoção ou não do passe livre nos sistemas de transporte público coletivo, pouco tem a ver com a mobilidade ou questões técnicas, mas sim, com questões políticas. Exemplos de sucesso não faltam, seja no próprio Brasil ou no mundo.
Referências
GEHL, Jan. Cidade para pessoas. Tradução: Anita Di Marco. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013.
GREGORI, Lúcio. A iniquidade da tarifa. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n.1, p. 46 - 48, 2010. Disponível em: https://piseagrama.org/a-iniquidade-da-tarifa. Acesso em: 10 maio 2020
SANTINI, Daniel. Passe livre: as possibilidades da tarifa zero contra a distopia da uberização. São Paulo: Autonomia Literária, 2019.
SEU JORGE. São Gonçalo. Mercury Prod. Ed. Musicais Ltda. (4:30 min)
Artigo recebido em: 8 de setembro de 2020. Aceito em: 4 de novembro de 2020
† Professor de Geografia do Colégio Centro Escola Riachuelo e do Instituto Renne de Ensino, Campos dos Goytacazes, Brasil. Mestre em Geografia pela Universidade Federal Fluminense, Licenciado em Geografia pela Universidade Federal Fluminense e Bacharel em Geografia pela Universidade Federal Fluminense. Autor correspondente. E-mail: guanabaran@gmail.com.
‡ Professora de História do Alpha Colégio Pré-vestibular, Centro Educacional Crespo e Externato Emanuel, Campos dos Goytacazes, Brasil. Bacharel em História pela Universidade Federal Fluminense, Licenciada em História pela Universidade Federal Fluminense e Pós-graduada (lato sensu) em história e cultura pela Universidade Estácio de Sá. E-mail: fe.saantos@hotmail.com
§ Salientamos a importância de destacarmos a expressão público coletivo em detrimento da expressão coletivo. Dessa forma, a expressão coletivo dentro do sistema neoliberal de mobilidade pode assumir outras conotações que não são concebidas dentro de uma lógica de mobilidade plena, visto que, ao taxarmos apenas de transporte coletivo, poderíamos estar nos referindo ao Uber, que tem entre suas funcionalidades corridas compartilhadas / coletivas. O que automaticamente o difere de um transporte público coletivo, que é aqui pensado enquanto um direito social universal a todos os cidadãos.
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Rev. Mundo Livre, Campos dos Goytacazes, v. 6, n.2, p. 421-427, jul./dez. 2020 |
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