SOCIAL WORK AT CAPS-AD: FACTORS ASSOCIATED WITH THE INTERACTION BETWEEN DRUG ADDICTION AND HOMELESSNESS
PURL: http://purl.oclc.org/r.ml/v6n2/d4
Thaís Souza Miranda Vasconcelos†
Viviane Aparecida Siqueira Lopes‡
Resumo: Este artigo visa analisar o trabalho do Serviço Social nos Centros de Atenção Psicossocial – Álcool e outras drogas (Caps-AD), destacando o atendimento aos usuários em situação de rua. Para isso, contou com pesquisa bibliográfica relacionada aos termos “situação de rua”, “Caps-AD” e “serviço social na saúde mental”. A análise expressa a complexidade do contexto de vida de pessoas em situação de rua, trazendo repercussões para o tratamento da dependência química, nos Caps-AD. Destaca os desafios do Serviço Social dos Caps-AD no processo de reinserção social dos usuários, intensificados diante de usuários que se encontram em situação de rua. Trabalho que se norteia por ações educativas e socioassistenciais, sinalizando a promoção da intersetorialidade entre políticas públicas como enfrentamento da gravidade social e sanitária apresentadas.
Palavras-chaves: Pessoa em Situação de Rua. Centros de Atenção Psicossocial - Álcool e Outras Drogas. Serviço Social.
Abstract: This article aims to analyze the work of Social Work in Psychosocial Care Centers - Alcohol and other drugs (Caps-AD), highlighting the service to street users. For that, it had bibliographic research related to the terms “homelessness”, “Caps-AD” and “social service in mental health”. Its analysis expresses the complexity of the life context of people on the street, bringing repercussions for the treatment of chemical dependence in Caps-AD. It highlights the challenges to the Social Service of the Caps-AD in the process of social reintegration of users, being intensified before users who are on the street. This work is guided by educational and socio-assistance actions, signaling the promotion of intersectoriality between public policies as a means of coping with the social and health severity presented.
Keywords: Homeless People. Psychosocial Care Centers - Alcohol and Other Drugs. Social Work.
O trabalho do Serviço Social na saúde mental, a partir do ano de 2001, desenvolveu- se, majoritariamente, nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), que foram criados como desdobramento do movimento pela Reforma Psiquiátrica no Brasil, em especial a partir da criação da Lei nº 10.216/2001 (BRASIL, 2001), que dispõe sobre a proteção e sobre os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, redirecionando o modelo assistencial em saúde mental, e possibilitando a expansão paulatina dessas unidades de saúde. O movimento pela Reforma Psiquiátrica foi iniciado com a luta antimanicomial dos trabalhadores da saúde mental, iniciada no final dos anos 1970, sendo efetivamente operacionalizado a partir da promulgação da Lei Paulo Delgado (Lei nº 10.216/2001) e da portaria GM nº 336/2002 (BRASIL, 2002), referente aos Caps e ao seu funcionamento. Esses profissionais estavam inspirados pelo movimento de Reforma Sanitária no país, que culminou na criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1990, garantindo o direito universal à saúde à população brasileira, sendo esse dever do Estado.
A Lei Orgânica da Saúde nº 8.080/90 (BRASIL, 1990), em seu artigo 5°, apresenta os principais objetivos do SUS, a partir dos incisos I, II, III, que disciplinam: a identificação e a divulgação dos fatores condicionantes e determinantes da saúde – pelos quais a visão de saúde se solidifica como ampliada, não importando apenas a dimensão clínica do paciente, mas analisando-o na sua integralidade – além da formulação da política de saúde como dever do Estado, envolvendo ações de promoção, de proteção e de recuperação da saúde.
Assim, com as noções de “democracia”, de “direitos” e de “equidade” em pauta, os trabalhadores da saúde mental mostraram-se incomodados com as péssimas condições de trabalho e com os tipos de intervenções direcionadas aos pacientes com sofrimento psíquico, que tinham, como opção de tratamento, apenas a internação psiquiátrica. O movimento pela Reforma Psiquiátrica incluiu trabalhadores da saúde mental, usuários dos serviços e suas famílias, que questionavam os maus tratos destinados aos “pacientes”, o modelo assistencial vigente e a falta de possibilidade de reinserção social, pois o tratamento envolvia a hospitalização em manicômios, por longos períodos de tempo, promovendo o afastamento da vida cotidiana, isolando-os. Também era comum o distanciamento da família, resultando, muitas vezes, no abandono do “paciente” no hospital, ficando esse assemelhado a um depósito de indivíduos com transtorno mental. Nesse contexto, os sujeitos com uso abusivo de drogas e vivenciando as consequências psicobiológicas desse uso, também eram tratados via hospitalização em manicômios.
Em relação ao movimento pela Reforma Psiquiátrica, Goulart e Durães (2010) afirmam:
A partir do final da década de 70, tomou forma, no Brasil, um movimento da Reforma Psiquiátrica com um questionamento incisivo das políticas públicas de saúde mental e do modelo assistencial centrado nos hospitais psiquiátricos e em estratégias de exclusão. Foi quando se falou, pela primeira vez, acerca do fim dos hospitais psiquiátricos, que atualmente identificamos no bojo dos processos de desinstitucionalização (GOULART, 2007) que vem ocorrendo no Brasil (GOULART; DURÃES, 2010, p. 112).
Com a implementação das diretrizes da Reforma Psiquiátrica, no Brasil, cujo eixo principal é a desinstitucionalização, os Caps, na condição de unidade de saúde paratratamento ambulatorial e interdisciplinar, ganham sentido. Segundo Pitta (1994):
O Centro de Atenção Psicossocial (Caps) surgiu em São Paulo, no ano de 1987. Com recursos federais e de caráter público, esse novo serviço veio atender a demanda de atendimentos em saúde mental, tendo recebido o nome, a princípio, de Centro de Atenção Psicossocial Luiz da Rocha Cerqueira, com a sigla Caps, que foi seguida, posteriormente, em todo o país pelos próprios usuários do serviço. O centro tornou-se um modelo institucional para os demais Caps brasileiros (PITTA, 1994, p. 649)
O processo de desinstitucionalização do tratamento em saúde mental, com base nos objetivos do movimento de Reforma Psiquiátrica, preza por assistência e atendimento alternativo e humanizado aos usuários. Para os defensores e participantes desse movimento, a institucionalização dos indivíduos com sofrimento psíquico traria mais danos à sua vida como um todo, impedindo seu contato com a comunidade, limitando seu convívio com os familiares, restringindo a sua autonomia e impossibilitando a sua reinserção social. Além disso, eles acreditavam que o modelo de tratamento médico deveria ser amplamente reformulado.
Os Centros de Atenção Psicossocial compõem a rede de atendimentos substitutivos à hospitalização, no âmbito da saúde mental, trabalhando com uma equipe multidisciplinar. Essa equipe é composta por médicos, enfermeiros, psicólogos, técnicos de enfermagem e assistentes sociais, que oferecem: acolhimento, atendimentos individuais ou em grupo, oficinas, trabalho com as famílias; e medicação prescrita de acordo com o plano individual elaborado para cada atendido. O dispositivo tem responsabilidade de atender pessoas com transtornos mentais severos e persistentes, trabalhando sob a lógica da territorialidade.
Segundo a portaria GM nº 336, de 19 de fevereiro de 2002, em seu art. 1º, fica estabelecido que os Centros de Atenção Psicossocial poderão se constituir nas seguintes modalidades de serviços: Caps I, Caps II, Caps III, Caps i II e Caps-AD II, definidos por ordem crescente de porte/complexidade e abrangência populacional. O Caps I é um serviço de atenção psicossocial com capacidade operacional, para atendimento, em municípios com população entre 20.000 e 70.000 habitantes; o Caps II atua em municípios com população entre 70.000 e 200.000 habitantes; já o Caps III se insere em cidades com população acima de 200.000 habitantes; o Caps i II é um serviço de atenção psicossocial para atendimentos a crianças e adolescentes, constituindo-se na referência para uma população de cerca de 200.000 habitantes, ou para outro parâmetro populacional a ser definido pelo gestor local, atendendo a critérios epidemiológicos; e o Caps-AD II é um serviço de atenção psicossocial para atendimento de pacientes com transtornos decorrentes do uso e dependência de substâncias psicoativas, com capacidade operacional para atendimento em municípios com população superior a 70.000 (BRASIL, 2002).
A partir dos anos 2000, o número de Caps aumentou significativamente, pois a Lei nº 10.216 foi sancionada em 06 de abril de 2001. Essa redireciona a Atenção à Saúde Mental, ao regulamentar a não internação dos indivíduos com transtorno mental e consistir em novo modelo de atenção psiquiátrica. A implantação das Residências Terapêuticas e dos Centros de Atenção Psicossocial operacionalizam os direitos colocados pelo Estado para os indivíduos com transtorno mental. Tais residências configuram-se como para pessoas portadoras de transtornos mentais graves, localizadas em espaços urbanos, e abrigam, no máximo, oito indivíduos, contando com o respaldo do Caps mais próximo ou da equipe da Atenção Básica (BRASIL, 2004). Assim, não substituem totalmente os hospitais psiquiátricos, mas colabora, cada vez mais, com a luta antimanicomial, promovendo a redução de leitos em hospitais psiquiátricos.
O Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps-AD), em específico, de acordo com a Portaria nº 336, de 19 de fevereiro de 2002 (BRASIL, 2002), é um serviço para atendimento de pacientes com transtornos decorrentes do uso e da dependência de substâncias psicoativas, com capacidade operacional para atendimento em municípios com população superior a 70.000 habitantes, como já mencionado. Possui, como objetivos: promover a atenção integral; proporcionar espaços de acolhimento e de convivência em grupo, nas oficinas terapêuticas, nas oficinas operativas, nos grupos terapêuticos, na terapia comunitária, nos grupos de apoio, na geração de renda, nas assembleias e em outras estratégias de inclusão social; trabalhar a prevenção voltada para as questões do uso de álcool e drogas e diminuir os riscos de infecções e de outras doenças; promover e proteger a saúde de maneira integral, partindo da necessidade de uma mudança no paradigma de “doentes”, para novos cidadãos de direito, entre outros (FODRA; ROSA, 2009).
A Organização Mundial da Saúde (OMS, 2001) definiu a dependência química como uma doença crônica e progressiva, ou seja, que piora com o passar do tempo, gerando outras doenças e podendo ser fatal. Considera-se o uso de álcool e de outras drogas como abusivos, quando se compromete, de alguma forma, a saúde psíquica, biológica e social do indivíduo, por meio de uma série de sintomas que caracterizam a falta de controle do sujeito em relação ao uso, afetando diversas áreas da sua vida, envolvendo a compulsão pelo uso e as graves sensações de abstinência, como: ansiedade, insônia, tremores, alucinações.
Segundo Bucher (1992) apud Macrae (2001), o uso abusivo de drogas não implica, necessariamente, a presença de uma personalidade patogênica e possui forte determinação do contexto social no qual o indivíduo se insere. Para esse autor:
[...] uma substância química só se torna uma droga provocando dependência dentro de um determinado contexto de relações entre atividades simbólica e ambiente. A partir desse ponto de vista, no estudo da evolução da toxicomania, o efeito puramente fisiológico da droga importa pouco, já que se trata de compreender a interpretação que o indivíduo dá de sua experiência, de seu estado e da motivação que o impele a um consumo repetido da droga (BUCHER, 1992 apud MACRAE, 2001, p. 2).
Em consonância, a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2001) define a dependência química como uma doença biopsicossocial, ou seja, o indivíduo possui inúmeros motivadores de âmbito social, psicológico e biológico que contribuem ou não para o desenvolvimento de um uso repetido da substância psicoativa. Não cabe, apenas, analisar a disposição genética para o desenvolvimento da doença, mas todo o conjunto da estrutura de vida do sujeito.
Segundo Schenker e Minayo (2005), a expressão “fatores de risco” caracteriza condições relacionadas à possibilidade de ocorrência de fatos negativos para a saúde e para vivência social do ser humano. Assim, alguns fatores podem ser individuais, e outros, de meio social e de condições estruturais mais amplas. No fenômeno do uso das drogas, por exemplo, os indivíduos não são motivados, apenas, por busca de prazer, mas, sim, de aceitação social em algum grupo, de fuga de problemas familiares e financeiros. Tais aspectos compõem o cotidiano das pessoas em situação de rua, pois segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE (2008), estas encontram-se nessa situação pela associação de fatores individuais, familiares e financeiros. Portanto, a situação de rua e a dependência química confluem, sendo comum a presença concomitante dos dois fenômenos.
A partir do exposto, este artigo analisa o trabalho do Serviço Social nos Centros de Atenção Psicossocial – Álcool e Outras Drogas (Caps-AD), enfatizando o atendimento aos usuários em situação de rua. Para isso, apresenta os determinantes sociais relacionados à situação de rua, associando-a ao uso abusivo de substâncias psicoativas, tendo em vista a composição da análise sobre a complexificação do processo de controle do uso de álcool e de outras drogas. Destaca as características e os desafios do Serviço Social nos Caps-AD, em especial, diante dos referidos usuários em situação de rua.
A utilização dos logradouros públicos como lugar para permanência de pessoas que se dizem sem residência, realizando, nesses espaços, suas atividades diárias, é fenômeno social antigo, constituindo uma síntese de múltiplas determinações, cujas características, mesmo com variações históricas, tornam esses elementos de extraordinária relevância na composição da pobreza. O aumento do número de pessoas em situação de rua, no Brasil, possui relação direta com a ampliação da pobreza, pois a falta de emprego, de qualidade de vida e de inserção social condizem com cenário social favorável à presença de outros fatores, como uso de drogas e de relacionamentos conflituosos, que promovem, em conjunto, a decisão de ir para as ruas (IBGE, 2008).
Desde as últimas décadas do século XX, as relações sociais complexificaram-se a partir do processo de globalização e de mudanças no mundo do trabalho, com consequências perversas, como alto índice de desemprego, de violência, de falta de moradia, de redução na proteção social, entre outros.
As pessoas em situação de rua são reflexo dessa dinâmica, caracterizando-se, muitas vezes, como migrantes que chegaram à determinada cidade, visando conseguir trabalho e não o obtiveram e/ou saíram de suas casas por conflitos familiares, em decorrência de desemprego e do uso de drogas. Essas pessoas são alvos de preconceito e de estigma, sendo consideradas “vagabundos” ou “incapazes” para o trabalho e não possuidores de direitos sociais e de respeito humano. Assim, sobrevivem às margens do desenvolvimento urbano, social e econômico, cujas condições de vida e de segregação urbana vivenciadas expressam faceta relevante da desigualdade social (MARICATO, 2003).
Nessa perspectiva, Yazbek (2012) apresenta a pobreza
como uma das manifestações da questão social, e dessa forma como expressão direta das relações vigentes na sociedade, localizando a questão no âmbito de relações constitutivas de um padrão de desenvolvimento capitalista, extremamente desigual, em que convivem acumulação e miséria (YAZBEK, 2012, p. 289).
Considera-se, como pobreza, a constância de grande parcela da população mundial privada de acesso às necessidades humanas mais essenciais, podendo ser absoluta ou relativa. A primeira diz respeito ao não atendimento das necessidades referentes ao mínimo vital para a sobrevivência, sendo o caso das pessoas em situação de rua. A segunda, ao não alcance da satisfação das necessidades segundo o modo de vida predominante, em uma determinada sociedade (ROCHA, 2006).
Segundo o Censo Nacional sobre a População em Situação de Rua, a dependência química é o principal motivo para o estabelecimento dessa condição, sendo identificadas 31.922 pessoas em situação de rua, distribuídas nas 71 cidades nas quais o levantamento foi realizado (IBGE, 2008).
Os três principais motivos apontados como razão para que os indivíduos estivessem nas ruas foram: alcoolismo/drogas (35,5%); desemprego (29,8%); problemas com pai/mãe/irmãos (29,1%) (IBGE, 2008). Esses dados confirmam a inter-relação entre a situação de rua, a dependência química e os conflitos familiares, categorias que expõem a vulnerabilidade social desses indivíduos.
Para Monteiro (2011, p. 35):
A vulnerabilidade social, assim compreendida, pressupõe um conjunto de características, de recursos materiais ou simbólicos e de habilidades inerentes a indivíduos ou grupos, que podem ser insuficientes ou inadequados para o aproveitamento das oportunidades disponíveis na sociedade. Assim, essa relação irá determinar maior ou menor grau de deterioração de qualidade vida dos sujeitos.
Problematizando o fator “desemprego”, Sarti (1994) analisa que a expectativa social pelo sustento da família ainda recai sobre o homem e, quando esse não consegue provê-lo integralmente, é penalizado, vivenciando um ambiente de críticas e de cobranças. O uso de drogas, em contexto de desemprego, torna-se comum, em especial de bebidas alcoólicas, que, ao se associarem ao desemprego, incrementam os conflitos familiares. Portanto, não é ocasional a predominância do gênero masculino sobrevivendo nas ruas (82%) (IBGE, 2008).
Segundo Sarti (1994, p. 76):
As dificuldades encontradas para manter o padrão de desempenho que se espera do homem na família pobre, por sua condição de trabalhador e pobre, faz com que a dimensão da pobreza no contexto familiar apareça mais explicitamente no discurso masculino, já que os homens se sentem os responsáveis pelos rendimentos familiares. É sobre ele que recai mais forte o peso do fracasso. É o homem quem falta com sua obrigação quando o dinheiro não dá.
Do homem também é cobrada a “moral” além do sustento financeiro. Para constituir a "boa" autoridade, digna da obediência que lhe corresponde, não basta a ele, apenas, efetivar a manutenção da família. É preciso ter caráter e moral reconhecidos, mas, para a autora supracitada, o homem, quando bebe, perde-a dentro de casa, não conseguindo mais dar ordens. Portanto a questão do uso de substâncias psicoativas também agrava os conflitos familiares, intensificando a fragilidade dos vínculos.
Os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps-AD) visam propiciar assistência integral ao usuário de álcool e de outras drogas, sendo porta de entrada para o processo de controle da dependência química. Nessas unidades, as ações são executadas por equipe profissional a partir de relações horizontais e democráticas, entre seus integrantes e em perspectiva interdisciplinar. Assim, o diálogo entre os profissionais é constante, sendo realizadas reuniões semanais, nas quais abordam a situação de cada usuário e/ou família, buscando o melhor plano terapêutico.
De acordo com Vasconcellos (2010, p. 2):
O termo interdisciplinaridade não tem sentido único, mas, em geral, versa sobre a intensidade das trocas entre os especialistas e sobre o grau de integração das disciplinas em um projeto profissional, de ensino ou de pesquisa. (...) assume-se a interdisciplinaridade como estratégia que envolve troca real de conhecimentos e uma integração mais profunda e coordenada entre disciplinas.
No que diz respeito à saúde mental, acrescenta:
A defesa da interdisciplinaridade e a exigência das equipes multiprofissionais nas políticas públicas transformam-se em estratégia de superação do modelo manicomial, posto que a exclusividade da narrativa biomédica sobre a loucura e a noção de doença mental, enquanto categoria tão somente médico-científica, foram problematizadas (VASCONCELLOS, 2010, p. 4).
O assistente social integra a equipe profissional, reconhecendo os indivíduos em sua integralidade, inserido em seu contexto de vida, visando ao resgate das características dos territórios nos quais vivem e à realização dos objetivos propostos pela Política de Saúde Mental, que condizem com a meta de reinserção social. De acordo com a Lei de Regulamentação da profissão de Serviço Social – n° 8.662, de 7 de junho de 1993 (BRASIL, 1993), art. 4°, números V e XI – uma das competências do assistente social é: orientar indivíduos e grupos de diferentes segmentos sociais no sentido de identificar recursos e de fazer uso desses no atendimento e na defesa de seus direitos, além de realizar estudos socioeconômicos com os usuários, para fins de benefícios e de serviços sociais, junto a órgãos da administração pública direta e indireta, a empresas privadas e a outras entidades.
Assim, nos Caps-AD, os assistentes sociais buscam conhecer a realidade social, econômica e familiar dos usuários e/ou familiares, no sentido de levantar demandas e de reconhecer os determinantes sociais relacionados à promoção do uso de drogas, que,
possivelmente, irão limitar o tratamento proposto, intervindo sobre eles. Essa intervenção adota, como instrumentos e técnicas, entrevistas, reuniões, visitas domiciliares, encaminhamentos e contatos com outras instituições vinculadas à própria política de saúde e/ou a outras políticas sociais, como a assistência social e a previdência social.
Nessa perspectiva, Mioto e Nogueira (2009, p.221-222) ressaltam:
O modelo de atenção à saúde, construído pelo movimento sanitário, especialmente na década de 1980, pautado na concepção ampliada de saúde e postulando o paradigma da determinação social como estruturantes do processo saúde-doença, constituiu-se num terreno extremamente fértil para o Serviço Social.
De acordo com as autoras supracitadas, além de ampliar o espaço sócio-ocupacional dos profissionais de Serviço Social, a concepção de saúde baseada, também, nos determinantes sociais e econômicos dos indivíduos possibilita aos profissionais maiores articulações e tensionamentos para com as políticas vigentes, indo para além de um trabalho burocrático e rotineiro de acolhimento e de encaminhamentos aos serviços.
Portanto, o trabalho do Serviço Social inserido em dispositivo de saúde mental requer criatividade, competência e comprometimento ético-político, no sentido de intervir de modo qualificado, diante das demandas de seus usuários, no entanto é preciso cautela para não realizar um serviço terapêutico, pois tal atribuição não condiz com as competências e atribuições do serviço social na atualidade (CFESS, 2010a).
As particularidades e as demandas apresentadas pelos seguimentos em situação de rua com dependência química compõem o público-alvo da intervenção do Serviço Social ao se inserirem nos Caps-AD, sendo enfatizada a dependência química, mas com o processo de tratamento e de reinserção social condicionado pelas características do estar em situação de rua.
Desse modo, o trabalho do Serviço Social inserido em Caps com atendimento a dependentes químicos, quando associado à situação de rua, possui, como principal estratégia, a intermediação entre os setores públicos e suas políticas, promovendo uma intersetorialidade inexistente na formulação das políticas públicas.
Além dessa estratégia, o referido trabalho dos assistentes sociais, nos Caps-AD, desdobra-se em frentes de intervenção, tais como: a) orientar sobre o acesso aos direitos sociais, elaborando encaminhamentos aos serviços quando necessário; b) incentivar o fortalecimento de vínculos familiares como forma de proteção social; c) aprimorar o trabalho em equipe; d) promover, junto aos indivíduos, momentos de reflexão sobre suas potencialidades, entre outras ações.
O profissional de Serviço Social também se mostra politicamente comprometido com a classe trabalhadora, promovendo a viabilização da participação efetiva dos usuários nas decisões institucionais; a garantia da plena informação sobre suas possibilidades, consequências e direitos; e a criação de mecanismos que venham desburocratizar a relação profissional/usuário, no sentido de agilizar e de melhorar os serviços prestados etc. (CFESS, 2010b).
Nessa perspectiva, de acordo com Silva (2008) apud Moura, Farias e Silva (2015, p. 7), os profissionais de Serviço Social devem agir:
Fazendo com que esse indivíduo se reconheça como incluso na sociedade, partícipe da democracia e capaz de produzir riqueza social; potencializando a autonomia dos usuários fazendo com que esse seja capaz de desempenhar seus papéis sociais; na formulação de estratégias de ação visando contribuir com o processo de “desalienação”; desconstruindo visões autoritárias e preconceituosas em relação ao doente mental, incentivando ações fundadas na democracia; na consolidação da cidadania, melhores condições de vida, garantia dos direitos sociais com vista na construção de um novo projeto societário que preconize o fim de todo tipo de exploração; na articulação com os movimentos sociais, na luta das classes subalternas contra a barbárie e a desumanização
Segundo Machado (2009), apesar de a proposta da Reforma Psiquiátrica tornar todos os profissionais que trabalham no âmbito da saúde mental mais “sensíveis” ao lado social do indivíduo, somente o assistente social tem bagagem teórico-metodológica e técnico-operativa que lhe permite intervir, de maneira adequada, frente à questão social vivenciada pelos usuários dos dispositivos.
Durante o processo de estágio em Serviço Social, em um Caps-AD, foi registrado o atendimento pela equipe profissional a três indivíduos em situação de rua, com dificuldades relacionadas ao uso descontrolado de álcool e de outras drogas. Entre esses, um senhor encontrava-se habitando na Casa de Passagem e, devido ao constante contato e articulação das equipes das duas instituições (Caps-AD e Casa de Passagem), fazia tratamento no Caps- AD, tendo atendimento individualizado e frequentando as oficinas de geração de renda. Os outros dois usuários foram encaminhados do Centro de Referência para Pessoa em Situação de Rua (Centropop) para o Caps-AD. Um deles era um homem que estava sem família e moradia, ficando no Caps por quinze dias para o processo de desintoxicação da substância. O outro era uma mulher, atendida por estar passando mal na rua, mas que não retornou à instituição, após o primeiro atendimento.
Em todos esses casos, a assistente social tentou entrar em contato com a família dos usuários, procurou pelos documentos de identificação, realizou telefonemas, fez buscas e encaminhamentos, tentou incluí-los nos grupos de conversa e nas oficinas com outros usuários, visando a ampliação de possibilidades de tratamento. Portanto o acolhimento, a humanização da atenção à saúde, a escuta qualificada e o diálogo com a equipe profissional mostraram-se de suma importância para que cada usuário, na sua particularidade, fosse atendido de maneira integral.
Entretanto a associação do uso de substâncias psicoativas à situação de rua traz limites à intervenção profissional. A compulsão pela droga, a fragilidade dos vínculos familiares e sociais, o prazer na ausência de limites etc. geram dificuldades para a ultrapassagem do uso das drogas e, por conseguinte, mais desafios para o alcance de objetivos traçados pelo Serviço Social. Segundo Penso e Sudbrack (2009, p. 10), “o envolvimento com drogas surge como possibilidade de espaços de pertença e afiliação a um grupo de pares, bem como de afirmação e de confirmação da sua existência, conferindo-lhe um senso de identidade”, sendo um fator limitante a mais.
Contudo a promoção da intersetorialidade, a partir dos encaminhamentos e do contato realizados com as instituições, constitui aspecto relevante do trabalho profissional diante do público dos Caps-AD - em geral e, ainda mais, quando associado à situação de rua – pois, diante dessa última, a gravidade das expressões da questão social vivenciada é intensificada.
Fazenda (2017) apud Santos (2018) ressalta a importância da intervenção do assistente social na área da saúde mental, afirmando:
[...] o emprego e o desemprego, o acesso à educação, a pobreza, a habitação, a urbanização, a discriminação e a violência de gênero, produzem impactos sobre a saúde mental dos indivíduos, evidenciando a importância do âmbito social e econômico e a relevância da intervenção do assistente social na área da saúde mental, pois é uma profissão que atua com os sujeitos sociais e suas condições materiais de vida (FAZENDA, 2017 apud SANTOS 2018, p. 54).
No entanto Robaina (2010) destaca o cuidado com as famílias entre os aspectos pertinentes e desafiantes do Serviço Social, frente à Reforma Psiquiátrica, o que requer a desconstrução do conceito tradicional de família segundo a composição nuclear e a observação de suas necessidades materiais e relacionais. Também envolverá a articulação entre os Caps/Caps-AD e outros equipamentos e grupos do mesmo território do Caps, desmistificando o conceito de “loucura”, também associado, em alguns casos, às consequências do uso abusivo de álcool e de outras drogas, presentes no imaginário social.
No que diz respeito à geração de renda e trabalho, a autora supracitada afirma que
“há enormes espaços para a discussão das relações de trabalho, das potencialidades e limitações da legislação, do uso do dinheiro, do valor de uso e de troca do produto das oficinas, dos nichos de mercado, da capacitação, e de mais um sem-número de questões correlatas” (ROBAINA, 2010, p. 347).
Outro aspecto que se agrega é o trabalho com indivíduos com diversas particularidades e subjetividades, desejosos e/ou impondo sua autonomia. Assim, o trabalho do assistente social, nos Caps-AD, associado a usuários que estejam, também, em situação de rua possui possibilidades, mas, também, limites institucionais e na relação com os próprios atendidos. O assistente social apresenta, em conjunto com a equipe profissional, alternativas de tratamento, incentivando o indivíduo a se inserir em uma delas, mas respeitando, sempre, sua decisão final, independentemente de qual seja.
O trabalho do Serviço Social com pessoas portadores de dependência química que estão em situação de rua requer posicionamento político contra a redução de direitos sociais, considerando a perspectiva do projeto ético-político da sua profissão, além do trabalho de base – de escuta e troca de informações – orientando-os sobre suas condições e perspectivas de vida. Nesse sentido, Coutinho (1979,p. 44) expõe:
A progressiva conquista de posições firmes, no seio da sociedade civil, é a base não só para novos avanços, que gradativamente tornarão realista a questão da conquista democrática do poder de Estado pelas classes trabalhadoras, mas é, sobretudo, o meio de evitar precipitações que levem a recuos desastrosos.
Por fim, considerando a importância da participação da sociedade civil no exercício da democracia, os Conselhos de Saúde e de Assistência Social, por exemplo, devem ser ocupados por assistentes sociais e usuários das referidas políticas, pois tal articulação promoverá a apresentação de demandas de modo claro e adequado com vistas ao desenvolvimento de programas e de projetos sociais que os atendam. Corroborando, Coutinho (1979), sinaliza a necessidade da unificação dos diversos sujeitos sociais em prol dos objetivos da classe trabalhadora, mantendo a sua autonomia e respeitando sua diversidade.
A partir do olhar do assistente social para os determinantes e condicionantes socioeconômicos da saúde, de seu posicionamento político a favor dos direitos, de seu comprometimento ético e político com a profissão, de sua dedicação e da vontade dos usuários propõe-se um trabalho mais efetivo no que diz respeito ao atendimento do usuário portador da dependência química e em situação de rua, que apresenta, a partir das próprias condições, múltiplas demandas para as políticas públicas e sociais.
Este artigo analisa o trabalho do Serviço Social nos Centros de Atenção Psicossocial – Álcool e outras drogas (Caps-AD), destacando o atendimento aos usuários em situação de rua. Problematiza limites e possibilidades desse trabalho em meio às características de usuários com necessidade de controle do uso compulsivo de substâncias psicoativas e que se encontram em situação de rua. Questões subjetivas, como a identidade de grupo e o desejo de total autonomia, associam-se à ausência de referência familiar, ao desemprego e à pouca perspectiva de emprego, entre outros, compondo um cenário social de múltiplas demandas e de grande complexidade.
Contudo, nesse contexto, o trabalho do Serviço Social vem traçando estratégias com vistas à inclusão dos usuários no tratamento e na reinserção social, inclusive os indivíduos em situação de rua. Tais caminhos se expressam, em especial, pelas ações educativas e socioassistenciais, com a promoção da intersetorialidade, que constitui perspectiva relevante diante das múltiplas expressões da questão social apresentadas.
BRASIL. Lei n° 8.080/90, de 19 de setembro de 1980. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial, Brasília, 1990.
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Artigo recebido em: 18 de outubro de 2020. Aceito em: 27 de outubro de 2020
*Este artigo baseia-se no Trabalho Final de Conclusão do curso de serviço social do Departamento de Serviço Social de Campos da Universidade Federal Fluminense, intitulado “A pessoa em situação de rua e o atendimento no CAPS AD: demandas ao serviço social”, apresentado em 2019.
† Assistente social no projeto da Terceira Idade, da Universidade Estadual Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), em Campos dos Goytacazes, Brasil. Pós-graduanda em Serviço Social, pela Faculdade Ensine, Juiz de Fora, MG, Brasil. Bacharel em Serviço Social, Departamento de Ciências Sociais de Campos, Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional, Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor correspondente. E-mail: thaissmvasconcelos22@gmail.com.
‡Professora do Departamento de Serviço Social de Campos, da Universidade Federal Fluminense, Brasil. Doutora e Mestre em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública/ Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ). Especialista em Serviço Social Contemporâneo e Barachel em Serviço Social, pela Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: vivianeviviane@uol.com.br
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Revista Mundo Livre, Campos dos Goytacazes, v. 6, n.2, p._-__, jul./dez. 2020 |
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