RESISTIR PARA EXISTIR: A LUTA DA POPULAÇÃO NEGRA BRASILEIRA CONTRA A COVID-19*


RESIST TO EXIST: THE FIGHT OF THE BLACK BRAZILIAN POPULATION AGAINST COVID-19


PURL: http://purl.oclc.org/r.ml/v7n1/a11


Ana Cláudia de Jesus Barreto


Resumo: Este artigo propõe uma discussão sobre os processos de resistência da população negra no Brasil no contexto da pandemia da COVID-19. Entretanto, as comunidades através da organização do coletivo vêm lutando pela sobrevivência dos seus moradores e para evitar o aumento dos números de contaminação e mortes dentro das favelas. A metodologia adotada foi a qualitativa, realizada através de pesquisa bibliográfica, documental e de reportagens online. Concluindo que a população negra vem resistindo pela vida e pelo básico através da solidariedade ativa, frente a omissão e o negacionismo científico do governo federal.

Palavras-chave: Pandemia. População negra. Resistencia.


Abstract: This article proposes a discussion about the resistance processes of the black population in Brazil in the context of the COVID-19 pandemic. However, communities through the organization of the collective have been fighting for the survival of their residents and to avoid increasing the numbers of contamination and deaths within the favelas. The methodology adopted was qualitative, carried out through bibliographic, documentary research and online reporting. In conclusion, the black population has been resisting for life and the basics through active solidarity, in the face of the omission and scientific negationism of the federal government.

Keywords: Pandemic. Black people. Resistance.



1.Introdução

A pandemia da COVID-19 é resultado da superexploração da acumulação capitalista. A crise sanitária que estamos vivendo em 2020 não pode ser discutida sem analisar sua ligação com os desequilíbrios socioambientais produzidos pelo capitalismo devido à necessidade da realização do lucro. O capital invade todos os espaços possíveis com sua peculiar característica destruidora e violenta. Sendo que desta vez a crise sanitária atingiu o circuito de produção e circulação das mercadorias, em decorrência da necessidade de distanciamento e isolamento social.

As informações na grande imprensa deram conta de que o vírus chegou de avião no Brasil trazido por turistas da classe média e alta onde deu início a disseminação. O contágio da COVID-19 independe de classe, raça e gênero. Porém, a capacidade de resposta é diferenciada. Uma das primeiras vítimas da pandemia no Rio de Janeiro foi uma empregada doméstica e um porteiro.

Os efeitos da pandemia atingiram de formas diferentes as classes sociais. O isolamento só foi possível para uma parcela reduzida de trabalhadores, enquanto aqueles da informalidade, a pandemia virou um pandemônio. Da noite para o dia se viram sem recursos para sua sobrevivência e foi preciso romper o isolamento social para buscar o alimento e o sustento da família.

A maioria dos trabalhadores da informalidade são moradores de comunidades, são pessoas negras e que vivem diariamente as expressões da questão social, como a violência doméstica, policial, o subemprego, o desemprego, o não acesso aos serviços públicos. Em verdade a pandemia agravou o quadro de exclusão social e vulnerabilidade que atinge a população negra e periférica.

Em meio à pandemia da COVID-19 começou a se desenhar quais os grupos da população mais atingidos e os dados estatísticos demonstraram um crescimento dos casos de hospitalizações e óbitos da população negra enquanto os números dos brancos decresciam (Ministério da Saúde, 2020). Em decorrência das vulnerabilidades sociais que a população negra está exposta cotidianamente, os colocam na mira fatal da COVID-19.

Em defesa da vida os coletivos e as favelas se reuniram para enfrentar um governo negacionista de Jair Messias Bolsonaro, que estimulou a aglomeração, contrário ao isolamento social, minimizou a COVID-19 chamando-a de uma “gripezinha” ou “resfriadinho” (BBC, 2020).

A atuação das mulheres negras na resistência a pandemia também precisa ser destacada. Além das opressões que as mulheres negras sofrem como o machismo, o sexismo, o racismo, a tripla jornada que vivenciam para dar conta do lugar que o patriarcado definiu, que é a reprodução da força de trabalho, tiveram que enfrentar a pandemia demonstrando historicamente a resistência que surgiu desde as relações escravistas. Desta forma são os trabalhadores, em especial as mulheres, que estão pagando a conta, sendo utilizadas como molas para amortecer as crises do capital.

É sobre os efeitos das estruturas de opressão social que de maneira violenta tem sido infligida à população negra e reduzido a sua capacidade de resposta ao governo genocida que se pretende discutir. O que entra em jogo é a luta pela vida em meio a uma estrutura de desigualdades sociais e econômicas pensadas para produzir a morte de pessoas negras no país. O percurso da discussão foi realizado através de pesquisa bibliográfica e documental, além de dados quantitativos oficiais que versam sobre homens e mulheres negros, a pandemia, a condição socioeconômica precária da população negra nas cidades e as formas de enfrentamento da pandemia no interior das comunidades, a respeito do que escreveram Mbembe (2014), Munanga (2013), Quijano (2009) e Werneck (2016).


2. O ser negro

A resistência contra a violência sob seus corpos faz parte da vida das pessoas de origem africana desde a escravidão, instituída a partir do século XVI com a acumulação primitiva, conceito utilizado por Karl Marx para explicar o processo de enriquecimento da elite e expropriação das massas populares. O aparecimento da escravidão africana foi um episódio na história humana arquitetado pelos europeus com vistas a obter grandes lucros através da extração das riquezas naturais dos territórios virgens americanos. Para tanto foi necessário criar um arcabouço ideológico racial que classificou os seres humanos em superiores e inferiores a partir de critérios como o tamanho do crânio e do fenótipo, com a participação da Igreja Católica, que endossou o vilipêndio da África e dos seus habitantes com o mito da praga de Caim (CHIAVENATO, 2012).

A raça não existe! Segundo Mbembe (2014, p. 26) “a raça não passa de uma ficção útil, de uma construção fantasista ou de uma projeção ideológica [...]”. O mundo europeu criou mitos para fundamentar seu poderio, considerando-se o centro da razão e da verdade, criou um mundo à parte, com uma ideia de ser humano portador de direitos políticos e civis, culturais e valores morais aceitáveis. Tudo que fosse a parte desse universo seria considerado como inferior, o dissemelhante, o negativo. E que por isso “A África de um modo geral, e o Negro, em particular, eram apresentados como os símbolos acabados desta vida vegetal e limitada.” (MBEMBE, 2014, p. 28).

O ser-outro era o negro, que foi construído a partir do vazio, do negativo da “obra civilizadora e humanitária” da empresa colonial. O negro “nasce” justamente com o capitalismo, quando o Atlântico se tornou o centro do poder, da riqueza e da exploração (MBEMBE, 2014).

No final do século XV um comércio triangular foi estabelecido no Atlântico, entre a África, as Américas e a Europa, tornando o propulsor das transformações mundiais e as pessoas africanas estavam no centro da nova dinâmica econômica.


A transnacionalização da condição negra é, portanto, um momento constitutivo da modernidade, sendo o Atlântico o seu lugar de incubação. Esta condição contém em si toda uma panóplia de situações muito contrastantes, que vão do escravo traficado, tornando objecto de venda, ao escravo condenado, ao escravo de subsistência (doméstico para toda vida), ao escravo rural, ao de câmara, ao alforriado, ou ainda ao escravo liberto ou ao escravo de nascença. (MBEMBE, 2014, p. 34).


Era mais lucrativo escravizar os africanos. As experiências anteriores de recrutamento da mão de obra não foram satisfatórias, além do mais o contingente populacional europeu não era suficiente para resolver a demanda. Era preciso uma mão de obra com baixo custo e por isso a empreitada do tráfico humano no desenvolvimento do capitalismo implicou numa construção do ser negro, como um ser a parte da humanidade, chegando a ser considerado a um objeto ou vegetal, a um ser primitivo.

Paralelamente com o processo de implantação do sistema econômico capitalista surgiram, não por acaso, teorias raciais, a partir do século XVIII que contribuíram para justificar o domínio europeu sobre o mundo, sobre a vida humana e especificamente a africana.

Schwarcz (1993) analisa que a percepção da “diferença” entre os seres humanos é antiga, porém a sua naturalização ocorreu no século XIX, momento que as teorias raciais se tornaram um “projeto teórico de pretensão universal e globalizante” (p. 64). E essa naturalização das diferenças estabeleceu uma correlação entre características físicas e morais.

Munanga (2013) faz uma discussão muito pertinente sobre a construção do conceito de raça e sua aplicação em seres humanos. O seu uso dentro das ciências naturais servia para classificar as espécies animais e vegetais. Em 1684 o francês François Bernier utiliza o termo para classificar a diversidade humana. Neste momento a raça já era um conceito que designava a descendência e a linhagem de grupos com uma ancestralidade comum.

Entre os séculos XVI-XVII o conceito de raça passa a ser utilizado nas relações sociais francesas para hierarquizar os grupos populacionais divididos entre Francos e Gauleses. Os primeiros tinham a simpatia da nobreza e eram considerados os mais fortes e inteligentes capazes de dominar e administrar e, os segundos na concepção deles podiam ser escravizados. Isto posto, o que ocorreu neste momento foi a transferência do conceito de raça aplicada na zoologia e na botânica para “legitimar as relações de dominação e sujeição entre classes sociais [...].” (MUNANGA, 2013, s/p).

Para Munanga (2013) os conceitos e classificações são úteis para operacionalizar o pensamento, até esse ponto como algo até necessário para o conhecimento e entendimento do que é diverso na natureza de uma forma genérica e somente neste sentido, diz o autor, tem servido para classificar a diversidade humana em raças. O problema nasce quando o conceito de raça é usado para hierarquizar os seres humanos e daí surge o racialismo.


No século XVIII, a cor da pele foi considerada como um critério fundamental e divisor d´água entre as chamadas raças. Por isso, que a espécie humana ficou dividida em três raças estancas que resistem até hoje no imaginário coletivo e na terminologia científica: raça branca, negra e amarela (MUNANGA, 2013, s/p).


No século XIX além do critério da cor foram acrescidas outras características morfológicas (nariz, boca, crânio), com a finalidade de “aprimorar” a classificação. Contudo, foi percebido que algumas características como o tamanho do crânio de um certo grupo branco era relativa, sendo identificada a mesma forma em grupo não brancos, indicando deste modo que fatores externos têm influências a mais que o fator racial em certas circunstâncias. Mas, com o avanço da ciência genética foi possível constatar desencontros como o sangue que tem determinantes que definem a humanidade em raças, incidência de certas doenças em algumas raças, chamados de marcadores genéticos.


As pesquisas comparativas levaram também à conclusão de que os patrimônios genéticos de dois indivíduos pertencentes à uma mesma raça pode ser mais distante que os pertencentes às raças diferentes; um marcador genético característico de uma raça, pode, embora com menos incidência ser encontrado em outra raça. Assim, um senegalês pode, geneticamente, ser mais próximo de um norueguês e mais distante de um congolês, da mesma maneira que raros casos de anemia falciforme podem ser encontrados na Europa, etc. (MUNANGA, 2013, s/p).


Conclusão, a raça não pode ser aplicada a espécie humana. Nenhum ser humano possui cem por cento os genes de sua raça, que o conceito é “cientificamente inoperante para explicar a diversidade humana e dividi-la em raças estancas” (MUNANGA, 2013, s/p).

A questão reside no uso ideológico do conceito de raça aplicada em seres humanos, tornando-se uma estratégia de hierarquização e de escalas de valores entre as ditas raças e associando a cor da pele com a capacidade humana, com as qualidades morais, a cultura e os valores. Sendo assim, a raça branca foi determinada como superior a negra e a amarela. O que está por detrás da ideologia das raças é a relação de poder e dominação, tão necessárias no estágio da acumulação primitiva.

Segundo Quijano (2009) existe uma relação entre dominação e exploração, mas nem toda dominação implica uma exploração, mas toda exploração só é possível através da dominação, ou seja, a dominação é condição de poder. A colonialidade do poder foi naturalizada e por isso os fenômenos da realidade são impregnados de mitos e de mistificação.

A naturalização das categorias dominação/exploração é um instrumento poderoso e para exemplificar como essa naturalização funciona, utiliza o gênero e a cor. O gênero é confundido com o sexo e a cor semelhante à raça. Sendo que não tem nada de biológico. A cor é uma invenção eurocêntrica que faz referência biológica a raça (QUIJANO, 2009). Por isso o autor faz uma indagação importante sobre a raça, que é uma categoria intersubjetiva: por que está presente na sociedade moderna e permaneceu introjetada como se fosse algo natural e material?

Para este autor, o que está implicado nesse processo é o controle sobre o corpo e o que naturaliza a relação de poder sobre o corpo é o dualismo eurocêntrico judaico-cristão (alma-corpo, psique-corpo). É o corpo que produz, que é castigado, que é consumido. O capitalismo capturou corpos que foram mistificados de “negros” com vistas à produção de riquezas e sob o acoite do chicote poder controlar estes corpos. Os corpos negros foram definidos como aqueles que iriam ser massacrados pelo bem do capital e por isso o ser negro na estrutura estabelecida pela colonialidade do poder é travar uma luta diária contra o racismo e a destruição desse eixo que articula o capitalismo.


3. A cor escravejada no Brasil: trajetória de espoliação

Começo essa seção com a fala do Seu Julião, um descendente de pessoas que foram escravizadas e que participou da pesquisa sobre “Memórias de cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição” (RIOS, MATTOS, 2005). A sua narrativa traz a contradição vivida pelo povo preto no pós-abolição e apesar do seu Julião usar o verbo no tempo passado, a estrutura social não foi alterada e por essa razão até o momento atual, a cor preta sofre preconceito, perseguição e violência que se expressam de diversas maneiras, demonstrando que a liberdade foi apenas formal.


O preto era o mais sacrificado do mundo, a cor preta era escravejada, ninguém gostava, tinha racismo, o preto não tinha valor pra nada [...] Depois que acabou o cativeiro ficou uns quarenta, cinquenta anos naquela escravidão ainda, que nem onça [...] mas ainda batiam em algum, até matavam mesmo [...] Eu com idade de 14 anos estava capinando [...] trabalhando pros outros, passando mal, dormindo mal dormido, comendo mal comido [...] eu fui escravo do mundo [...] meu pai foi escravo de fazendeiro, eu fui escravo do mundo, sofri muito. (RIOS; MATTOS, 2005 apud BARRETO, 2013, p.32).


O seu Julião tem toda razão, porque falou do que estava vivendo na “pele”. O processo da abolição não foi um episódio de benesse das forças políticas e monárquicas existentes no Brasil naquele contexto. Pressionado pelo país da revolução industrial, no ultimato cedeu às forças externas contrariando as internas, a do grupo oligopolista que estava muito preocupado, na verdade, com a manutenção dos seus privilégios e do lucro. Muito antes da abolição, aqueles ex-escravizados que conseguiram comprar sua alforria, viviam numa condição bastante precária, principalmente os idosos, vistos como aqueles que não mais serviam para produzir absolutamente nada.

As elites agrária e política não tiveram nenhum interesse em adaptar as pessoas negras e livres ao mundo do trabalho e tão pouco desenvolveram uma política de assistência a essa população que, saída das fazendas sem nenhum recurso, foi lançada a vida livre. Alguns ex-escravizados resolveram continuar no trabalho rural e outros tentando sua sobrevivência, migraram para as cidades na esperança de recomeçar suas vidas e criar outros laços ou até mesmo reencontrar os afetos.

Após a abolição a resistência passou a ser pela sobrevivência no mundo do trabalho, que de antemão já estava vedado, pois a preferência dos empregadores era pelos imigrantes.

A inserção dos trabalhadores negros no mercado formal de trabalho se deu a partir de 1930 na era de Getúlio Vargas, que assumiu o poder e implantou a política da indústria de base, alargando a entrada do capitalismo no Brasil. Possivelmente a necessidade de mão de obra para trabalhar nas indústrias e ao mesmo tempo criar uma imagem de governo popular para atender aos interesses do capital, a burguesia industrial absorveu essa mão de obra disponível.

Isso significa que 42 anos após-abolição, os negros ainda eram impedidos de ter acesso às condições materiais que promoveriam uma mobilidade social e a narrativa de D. Nitinha, descreve o bloqueio determinado pela lógica perversa dos grupos dominantes que sempre comandaram o país e cuja intenção foi de exterminar de alguma forma os negros.

Ih [...] era difícil. Não dava serviço não. Eu mesmo ia pra porta da fábrica todo dia [...] olhava pra uns, olhava pra outros e escolhia só os branco mesmo. Era todo dia. Eu ia assim mesmo. Os negro não entrava não. Isso era lá pra os idos de 30. Eu era mocinha. Queria trabalhá e ia mesmo. Naquele tempo já tinha discriminação. (BATISTA, 2006 apud BARRETO, 2013, p.37).


Hoje em pleno século XXI ao analisar a condição social e econômica da população negra vemos que ela é a soma das iniquidades produzidas ao longo dos séculos. Essa sociedade não foi capaz de alterar as relações sociais hierarquizadas, onde o negro se encontra na condição de subalternidade devido ao racismo estrutural. A sociedade modernizou-se no seu aspecto tecnológico, industrial, porém manteve as estruturas sociais que produzem opressão e negação do acesso a população negra aos direitos sociais e políticos, mesmo constitucionalmente previstos, existem barreiras como o racismo, que impedem e que dificultam a mobilidade social.

Irei trabalhar algumas categorias como emprego, renda, habitação e saúde para demonstrar a desigualdade estrutural entre pessoas negras e brancas e que o discurso de meritocracia não passa de uma justificativa da elite para manter seus privilégios e relações sociais subalternizadas, onde a intenção é impedir a mobilidade social do negro. A ordem é fazer pequenas reformas, porém mexer nas estruturas que causam a injustiça social, nunca.

Ao discutir a desigualdade social no Brasil é imprescindível acrescentar o componente racial a fim de correlacionar os determinantes das injustiças sociais e a questão racial. Haja vista que o mito da democracia racial homogeniza a população com o discurso que não há distinção entre negros e brancos “e o problema racial brasileiro está diluído no oceano das desigualdades sociais em geral.” (PAIXÃO, 2003, p.75).

Contudo, os organismos de pesquisas revelam uma diferenciação nos indicadores sociais entre negros e brancos. Demonstrando desta forma que o componente racial é um dos fatores de desigualdade social, segundo Paixão (2003). Os dados abaixo servem de exemplos de diferenciação racial e confirmam empiricamente a tese de Paixão (2013).


Figura 1 ‐ Rendimento médio real habitual do trabalho principal das pessoas ocupadas, segundo cor/raça (R$)

Fonte: IBGE (2018).



Figura 2 ‐ População na força de trabalho, desocupada e subutilizada, pessoas de 14 anos ou mais de idade, segundo cor/raça (%)

Fonte: IBGE (2018).



Segundo a Figura 1 o rendimento mensal das pessoas ocupadas brancas (R$ 2.796) foi 73,9% superior ao das pretas ou pardas (R$ 1.688). Nota-se que mesmo numa ocupação informal, sem carteira assinada e a cobertura dos direitos do trabalho, ainda assim a população branca possui um rendimento acima ao das pessoas pretas ou pardas.

O Figura 2 informa, assim como no total da população brasileira, que as pessoas pretas ou pardas constituem, também, a maior parte da força de trabalho no país. Em 2018, correspondeu a 57,7 milhões de pessoas, 25,2% a mais do que a população branca, que totalizava 46,1 milhões. Contudo, na categoria desocupada e subutilizada a população preta ou parda está substancialmente mais representada. Apesar de serem mais da metade da força de trabalho (54,9%), 2/3 dela encontra-se desocupada (64,2%) e das subutilizadas (66,1%) na força de trabalho em 2018.

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), por meio da publicação do “Retrato das desigualdades de gênero e raça” (2011), produz um diagnóstico das condições de vida das mulheres e negros no Brasil e os dados demonstrados apenas ratificam a desigualdade estrutural entre brancos e negros, onde os primeiros sempre estão numa condição melhor ou menos opressiva, neste caso me refiro às pessoas brancas suscetíveis à vulnerabilidade social.

Os dados sobre o domicílio revelaram que 39,4% dos domicílios são chefiados por homens negros; 12,8% por homens brancos; 26,8% por mulheres negras e enquanto 21,0% por brancas.

Enquanto os dados sobre o esgotamento sanitário demonstram que 77,1% dos domicílios da população branca contam com esse serviço; a população negra conta com 60,0% dos seus domicílios. Entretanto, ocorreu uma disparidade entre os domicílios das mulheres, pois 78,4% dos domicílios das mulheres brancas tem esgotamento enquanto apenas 61,8% dos domicílios das mulheres negras possuem esgotamento.

Sobre o assentamento precário, que são áreas de alta concentração de extrema pobreza, normalmente nas áreas urbanas. Em geral, os domicílios combinam privações como: acesso inadequado à água potável, acesso inapropriado ao saneamento, baixa qualidade estrutural das moradias, alta densidade populacional e ausência de proteção do Estado (QUEIROZ FILHO, 2015). O IBGE (2019) registrou que 33,9% da população branca ocupa os assentamentos precários, enquanto o dobro 66,0% é ocupado por negros.

O Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) divulgou em 2020 os dados sobre a oferta de serviços básicos de água e esgoto no país, referente a 2018. Os dados indicam que quase metade da população permanece sem o sistema de esgotamento sanitário, ou seja, quase 100 milhões de pessoas que representam 47% dos brasileiros utilizam outras formas de descartar os dejetos, seja através de fossa séptica ou lançando-os diretamente nos leitos fluviais. Os dados indicam também que 16% da população ou quase 35 milhões de pessoas não têm acesso a água tratada e apenas 46% dos esgotos são tratados. (G1, 2020).

Se os dados anteriores demonstrados revelam que a população negra é aquela que mais ocupa os assentamentos precários no Brasil e a ausência ou precariedade na oferta desses serviços majoritariamente ocorrem nas favelas, que é um tipo de assentamento precário. Fazendo um recorte racial fica muito explícito qual é o grupo racial que está alijado do acesso a esses serviços e o que implica numa péssima qualidade de vida e exposição a doenças.

Somadas todas essas condições precárias de vida ao evento da pandemia da COVID-19, o resultado é o genocídio dos negros no Brasil. No início da pandemia foram os brancos que estavam no ranking das hospitalizações e mortes por COVID-19, por serem os primeiros infectados em decorrência das suas viagens internacionais e acabaram trazendo o vírus de avião, conforme demonstram os dados no início da pandemia no país.

Contudo esses dados foram sendo alterados à medida que o vírus foi avançando nas periferias e infectando a população mais vulnerável. Até onde foi possível coletar os dados sobre as hospitalizações e óbitos por COVID-19, no site do Ministério da Saúde através dos Boletins Epidemiológicos, estava havendo um declínio de casos do grupo branco e aumento para os casos do grupo não-branco. O último Boletim Epidemiológico que constava o recorte racial por hospitalizações e óbitos de COVID-19 foi o de No. 17 de 25/05/2020, conforme pode ser constatado nas Tabelas 1 e 2.



Tabela 1 ‐ Hospitalização por SRAG por COVID-19, por raça/cor

Raça/cor

Dias



11/04

16/04

17/04

20/04

26/04

08/05

18/05

25/05

Branca

73,0%

67,3%

66,6%

65,1%

60,3%

54,7%

51,4%

49,0%

Parda

19,7%

25,1%

25,6%

26,9%

31,5%

36,6%

39,7%

42,0%

Preta

4,2%

4,9%

5,1%

5,4%

5,9%

6,8%

7,0%

7,1%

Amarela

2,9%

2,4%

2,3%

2,3%

2,0%

1,9%

1,7%

1,6%

Indígena

0,2%

0,3%

0,3%

0,3%

0,2%

0,3%

0,3%

0,3%

Fonte: Ministério da Saúde (2020).


Tabela 2 ‐ Óbitos por SRAG por COVID-19, por raça/cor

Raça/cor

Dias



11/04

16/04

17/04

20/04

26/04

08/05

18/05

25/05

Branca

73,0%

59,5%

59,1%

56,6%

52,3%

47,7%

43,1%

41,0%

Parda

19,7%

32,5%

32.6%

34,6%

38,8%

42,7%

47,3%

49,6%

Preta

4,2%

4,8%

5,2%

5,8%

6,4%

7,4%

7,5%

7,4%

Amarela

2,4%

2,6%

2,7%

2,6%

2,2%

1,9%

1,7%

1,6%

Indígena

0,4%

0,5%

0,5%

0,4%

0,3%

0,3%

0,5%

0,5%

Fonte: Ministério da Saúde (202).


O recorte raça/cor foi retirado dos Boletins Epidemiológicos a partir desta data, sem qualquer justificativa pelo Governo Federal. O que inclusive contraria a Portaria No. 344, de 1º de fevereiro de 2017, que dispõe sobre o preenchimento do quesito raça/cor nos formulários dos sistemas de informação em saúde e que conforme o Art. 1:


A coleta do quesito cor e o preenchimento do campo denominado raça/cor serão obrigatórios aos profissionais atuantes nos serviços de saúde, de forma a respeitar o critério de autodeclaração do usuário de saúde, dentro dos padrões utilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e que constam nos formulários dos sistemas de informações da saúde como branca, preta, amarela, parda ou indígena. (POLÍTICA NACIONAL DE SAÚDE INTEGRAL DA POPULAÇÃO NEGRA, 2017, p. 39).


Vale ressaltar que os dados por raça/cor é um quesito necessário para a formulação de políticas públicas e ao mesmo tempo a desagregação desses dados são relevantes para atender o princípio da equidade do SUS “que norteia a política de saúde reconhecendo as demandas de grupos específicos e atuando para reduzir o impacto dos determinantes sociais da saúde aos quais estão submetidos.” (POLÍTICA NACIONAL DE SAUDE INTEGRAL DA POPULAÇÃO NEGRA, 2017, p. 9).

No dia 21/06/2020 o consórcio de veículos de imprensa publicou que apenas oito estados divulgam os dados por raça/cor das vítimas da COVID-19 e são eles: Alagoas, Amazonas, Ceará, Espírito Santo, Paraná, Rio Grande do Norte, Rondônia e Rio Grande do Sul. (G1, 2020).

Para a pesquisadora Emanuelle Góes, do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para a Saúde (Cidacs) da Fiocruz Bahia, a ausência dos dados por raça/cor dificulta avaliar uma política específica que surtiu efeito nos atendimentos prestados ou determinar quais devem sem implementadas, além do mais não possibilita o acompanhamento do acesso ao serviço de saúde pelos diferentes grupos raciais e muito menos a doença e as mortes.

É a correlação entre racismo e vulnerabilidades em saúde. O racismo é um dos fatores centrais determinantes da produção das iniquidades em saúde que atinge mulheres e homens negros no país (WERNECK, 2016). Segundo Werneck (2016), em 2005, a Organização Mundial de Saúde (OMS) apresentou o conceito de determinantes sociais de saúde e entre os fatores estruturais que participam da produção das iniquidades estão o racismo e o sexismo e para enfrentá-las é necessário um conjunto de programas destinados às populações vulneráveis e de ações em saúde para reduzir as desigualdades entre os grupos.

Diante do contexto pandêmico nos resta perguntar qual o motivo da omissão dos dados por raça/cor das vítimas da COVID-19? Esse fato por si só já demonstra a falta de compromisso com os direitos humanos e sociais dos gestores públicos diante da população vulnerável que tem raça/cor que é a população negra. Mas parece um propósito cruel que é o de matar o excedente de mão de obra que não tem nenhuma utilidade para o capital, os chamados “sobrantes”, demonstrando assim que vidas negras não importam.

O ser negro no Brasil é enfrentar cotidianamente relações e estruturas sociais racionalizadas que criam vantagens e desvantagens para grupos racializados e desta forma dificultam, impedem, obstaculizam a igualdade racial e para tanto será necessário instituições que reproduzam comportamentos que naturalizam a existência de raça e de certos limites jurídicos e estatais (ALMEIDA, 2019). Desta forma as instituições de saúde reproduzem o racismo quando omitem dados raciais das vítimas da COVID-19 e estas por sua vez representam o Estado que é racista e negacionista científico, que aproveitando a pandemia está impondo seu projeto de eugenia e de limpeza dos indesejáveis. Projeto esse que nasceu nas senzalas e nas casas grandes.


4. A resistência do povo preto frente a COVID-19: a luta entre a vida e o capital

Penso ser mais do que pertinente começar essa seção com uma frase de Conceição Evaristo: “Eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer”. Essa afirmativa representa a política genocida colonialista reproduzida cotidianamente, reafirmada em um governo de extrema-direita no qual o Brasil está vivendo atualmente, aliada a um contexto pandêmico em decorrência da COVID-19. Por outro lado, o “combinar de não morrer” representa a resistência e a resiliência da população negra no enfrentamento da pandemia no cotidiano das periferias e das favelas.

Como dito, o vírus que chegou de avião no Brasil pode infectar qualquer pessoa indistintamente, porém a capacidade de resposta tanto no nível da saúde física e de recursos financeiros a contaminação é distinta. Uma das primeiras pessoas a morrer da COVID-19 no Rio de Janeiro foi uma empregada doméstica de 63 anos, moradora de Miguel Pereira, que percorria 120 Km para chegar ao trabalho no bairro do Leblon, na cidade do Rio de Janeiro. Ela contraiu o vírus da patroa que havia retornado de viagem da Itália e que mesmo apresentando sintomas não a liberou de ir para o trabalho. O seu serviço era mais importante para a patroa do que a preservação da saúde da sua funcionária. Essa senhora tinha vulnerabilidade em saúde, como diabetes e hipertensão e então a contaminação pelo vírus foi fatal (REVISTA FÓRUM, 2020).

A associação entre vulnerabilidade em saúde, desigualdade sócio territorial e a COVID-19 produz um resultado negativo para as populações periféricas. Os dados numéricos por morte demonstram que o grupo racial negro é o mais afetado pela pandemia. Os dados não podem ser naturalizados e as vulnerabilidades precisam ser olhadas como fazendo parte de um projeto de sociedade que não prevê a inclusão dos negros na categoria de cidadão, que é persistente a sua eliminação através de todas as formas de opressão e que por isso “o colonialismo é uma ferida que nunca foi tratada. Uma ferida que dói sempre, por vezes infecta. E outras vezes sangra.” (KILOMBA, 2019, s/p).

A pesquisa realizada pela “Rede Nossa São Paulo” divulgada em 22/06/2020 apontou que os bairros de alta concentração de negros apresentam altos números de mortes por COVID-19 quando comparados com os bairros que concentram a população branca e menor número de negros (G1, 2020). Em virtude dos dados de mortes por COVID-19 não apresentarem o recorte racial a Rede Nossa São Paulo, cruzou os dados divulgados pela Prefeitura de São Paulo com o Mapa da Desigualdade de 2019 e apresentou o seguinte resultado demonstrado no Figura 1:



Figura 1‐ População atingida pelo COVID- 19 na cidade de São Paulo

Fonte: Rede Nossa São Paulo (2020).


O percentual de pessoas que se infectaram pelo SARS-CoV-2 chega a ser 2,5 maior nos bairros de alta concentração de pobreza em comparação aos bairros elitizados na cidade de São Paulo, assim pontuou a pesquisa realizada pelo Grupo Fleury, Instituto Semeia, IBOPE Inteligência e Todos Pela Saúde (G1, 2020). Ratificando, deste modo os dados acima e bem como demonstrando que o efeito da pandemia territorialmente é desigual.

Os dados da COVID-19 referentes às comunidades do Rio de Janeiro são resultado da iniciativa do coletivo “Voz das Comunidades”§, pois se depender do poder público, a sociedade não terá nenhuma informação sobre o que vem ocorrendo com a população que vive nas favelas. Os dados apresentam o número de casos, de óbitos e os recuperados de 25 favelas acompanhadas pelo Voz das Comunidades. O último informativo é do dia 24 de outubro de 2020, momento em que foi divulgado 7.668 casos de contaminação e 837 mortes. Com destaque para as comunidades com maior número de casos e óbitos (Complexo da Maré, Rocinha e Morro do Alemão).

Todos os dados levantados sobre a contaminação e o óbito pelo novo coronavírus atestam qual é a população mais atingida: a negra e pobre. Contudo, essa população vem resistindo ao governo neofascista e genocida do Messias, que desde o início quando foi instituído o isolamento e distanciamento do social, negou a gravidade do SARS-CoV-2, chamando de gripezinha, como forma de minimizar os efeitos pandêmicos e passar uma ideia de segurança para não afetar a economia. Sempre que esteve com a população estimulou a aglomeração e não fazia o uso de máscara, contrariando totalmente as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS).

No tocante as medidas emergenciais para atender a população que perdeu parte da renda ou totalmente, o governo estipulou inicialmente o valor de R$ 200,00. Contudo, os partidos de oposição conseguiram aumentar o valor para R$ 600,00 e de R$ 1.200,00 para mulheres chefes de família. Assim, iniciou a saga do auxílio emergencial. Que para ter acesso o interessado deveria fazer um cadastro através de um aplicativo ou pelo site da Caixa Econômica Federal, quesito este dificultador, pois não são todas as pessoas que tem acesso à internet e ao aparelho celular no Brasil, incluindo também nesta saga a população moradora de rua, mais desprovida ainda de recursos tecnológicos.

Em meio a toda a burocracia governamental e a estratégia financeira racionalizada, para controlar o fluxo de saída de dinheiro dos caixas do banco, alguns critérios foram estabelecidos a partir de um escalonamento, tendo como referência o mês de aniversário para recebimento do benefício e em meio a essa lógica financista a fome não pode esperar. Da noite para o dia, mulheres e homens que trabalhavam na informalidade se viram sem recursos para a sua sobrevivência e dos seus familiares. O vírus começou a entrar nas favelas e periferias das cidades, estabelecendo o pandemônio na pandemia da COVID-19.

A reação das comunidades precisou ser na mesma velocidade com que o vírus atingiu o seu cotidiano. A Central Única das Favelas (CUFA) foi imprescindível na articulação entre as empresas privadas e as comunidades situadas em todo o país. A CUFA partindo do entendimento que os mais vulneráveis estão nas comunidades e dentre estes, são mães, as mais atingidas por serem aquelas que cuidam dos filhos e dos idosos e sem renda a situação se agravou. Desta forma a CUFA criou o Programa “Mães das Favelas”.

Durante dois meses a CUFA doou o que chamou de “Vales mães”, no valor R$ 120,00. Atendendo 29.575 famílias, impactando a vida de 118.300 pessoas e 1.350.189 cestas básicas. No geral foram 5.000 favelas atendidas, totalizando 1.379.764 famílias assistidas. Até o presente momento o fundo solidário COVID-19 das Mães das Favelas arrecadou R$ 169.120.680,00 (CENTRAL ÚNICA DAS FAVELAS, 2020).

O G10 que reúne as dez favelas com maior poder econômico no país, localizadas na cidade de São Paulo, elaborou um plano de contingência para controlar a disseminação da COVID-19, como parte do plano estava à contratação de profissionais de saúde e uma ambulância. A Associação de Moradores de Paraisópolis contratou esse serviço, haja vista que o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) não entra na região, então restou aos moradores cuidarem de si e uns dos outros.

As periferias situadas na Região Metropolitana do Recife, em Pernambuco também resistiram ao Coronavírus, através do “Mapa Solidário”** , que agrega os coletivos comunitários, que formaram uma rede de resistência para proteger as famílias pobres da fome e da contaminação, através de campanhas para a arrecadação de alimentos e produtos de higiene.

Apesar de não possuírem ainda dados estatísticos das doações das campanhas e as famílias atendidas, o trabalho comunitário dos coletivos em Pernambuco teve um impacto enorme para as famílias. Importante divulgar e dar visibilidades aos trabalhos comunitários no contexto da COVID-19, que lutam pela vida e contra um governo genocida, destacando sobremaneira o trabalho das mulheres negras, que são as mais afetadas e que foram o alicerce da resistência na pandemia.

As expressões da questão social se intensificaram na pandemia, como a violência doméstica, o aumento do número de feminicídios, a falta de infraestrutura e de acesso aos serviços públicos e a sobrecarga do trabalho doméstico. Acrescido a esses velhos problemas que se agravaram, as mulheres tiveram que batalhar pela vida, participando ativamente das campanhas e da distribuição dos produtos alimentícios e de higiene.

Ao mesmo tempo tiveram que cuidar de si e dos outros, numa realidade habitacional inadequada ao isolamento social, devido ao tamanho das moradias e sem falar na falta de água (situação comum nas comunidades) e de sabão para fazer a higienização. Muitas mulheres trabalham na informalidade, fazendo os chamados bicos, como vendedoras no sinal de trânsito, outras como faxineiras, manicures, vendedoras de cosméticos, que se viram sem renda com o isolamento social.


É o empoderamento um fator resultante da junção de indivíduos que se reconstroem e desconstroem em um processo contínuo que culmina em empoderamento prático da coletividade, tendo como resposta as transformações sociais que serão desfrutadas por todos e todas. (BERTH, 2020, p. 54).


Berth (2020) discute sobre o conceito de empoderamento, entendido inicialmente como sendo “dar poder”, que a palavra sem sido distorcida e incompreendida. Que tipo de poder está sendo falado? Ter o poder e a sua direção está intrinsecamente ligado ao lugar social que os indivíduos ocupam. O poder para aqueles que sempre dominaram, exploraram e aliciaram pessoas “é quase intuitivo”. Mas para aqueles que vivem a opressão e a dominação do sistema, também é intuitivo, contudo, o seu significado tem um viés negativo, como limitação a “sua mobilidade social e o jugo daqueles que não o têm.” (BERTH, 2020, p. 19).

O empoderamento passa por uma articulação e por estágios de autoaceitação, de autovalorização e autoconhecimento, no que se refere às habilidades humanas, “de sua história e, principalmente, de um entendimento quanto a sua posição social e política e, por sua vez, um estado psicológico perceptivo do que se passa ao seu redor.” (BERTH, 2020, p. 21).

As mulheres negras das comunidades assumiram uma postura de enfrentamento das opressões de gênero, classe e raça que atravessam a sua existência para eliminação da situação de injustiça social estruturada. Elas pensam caminhos para romper com o que está posto, mas neste caminho não desejam passar sozinhas e buscam suporte seja no âmbito doméstico e no público, enquanto possibilidade alternativa de sobrevivência.


Não podemos precisar por quanto tempo a pandemia do COVID-19 ainda impactará as nossas vidas e comunidades, mas uma coisa é certa: as mulheres negras não podem seguir sendo o alicerce de tudo ao seu redor sozinhas. Precisamos encontrar formas de redistribuir coletivamente as funções que elas exercem, além de exigir do governo a estrutura devida no que diz respeito à saúde e à assistência social a essas comunidades. Dos Governos e Empresários não esperamos nada, apenas exigimos o que é nosso. Mas é das pessoas próximas que esperamos uma mudança solidária que ande ombro a ombro com a libertação da mulher negra até atingirmos uma sociedade livre do capitalismo, do racismo e do machismo.(https://mapasolidario.riacho.info/mulheres-negras-o-alicerce-da-resistencia-a-pandemia/)



5. Considerações finais

A pandemia da COVID-19 ampliou o estado de miséria e espoliação da população negra e ao mesmo tempo veio de encontro a uma política neoliberal em contexto político sob a hegemonia da extrema-direita no Brasil, que destrói paulatinamente a democracia, a política de proteção social que garante o mínimo de sobrevivência e os direitos sociais que foram conquistados pela classe trabalhadora no enfretamento do capital. Agora mais do que antes a classe trabalhadora encontra-se fragilizada e lutando pelo básico, que é a alimentação. Para preencher esse vazio os coletivos comunitários e movimentos sociais como a CUFA vem se mobilizando através da solidariedade ativa e de parcerias com empresas para minimizar os efeitos da pandemia sobre a população periférica, resistindo desta forma a ofensiva destrutiva do capital, pois o básico da alimentação está sendo negado pelo governo negacionista. É o “nós por nós” nessa guerra neocolonialista que perversamente está dizimando os “sobrantes”, os “inválidos”, que representam o excesso de mão de obra que não será utilizada pelo capital sob a hegemonia do mercado financeiro.

Desta forma afirmar que o vírus não faz distinção de classe, cor e gênero em função de todos serem passíveis de contraí-lo, não diz muito sobre as consequências econômicas e sociais que atingem aqueles que historicamente se encontram em condição subalternizada e precária, sobre o pilar do racismo estrutural. Nesta crise, o contingente populacional mais atingido tem sido o constituído por homens e mulheres que têm cor e endereço, que são os/as negros/as moradores/as de favelas e periferias, que estão na viração de todo dia, debaixo do sol, lutando pela sobrevivência como catadores de papel, vendedores de água, salgados, balas e outros, pauta social e política, que precisa ser objeto de uma análise mais aprofundada.

Contudo, o Brasil vive um momento político muito grave em razão da extrema-direita estar na direção do governo central. A posição negacionista científica agravou mais ainda o quadro social e econômico que havia sido desenhado em outros países antes mesmo do contágio em massa no Brasil. Entretanto, a posição do governo central tem imposto um preço muito alto sobre a classe trabalhadora negra e periférica, que segundo os dados demonstrados é constituída pelas pessoas que mais morrem e adoecem na pandemia. São estas pessoas que passam dificuldades para sobreviver, pois com as medidas sanitárias de isolamento social são as que mais sofrem por não poder sair às ruas em busca do seu sustento, haja vista que a maioria da população negra vive do trabalho autônomo e informal.

Toda essa discussão passa pela existência do racismo estrutural que abrange as dimensões do Estado, do direito, da política, da economia e das subjetividades que funcionam para naturalizar o racismo enquanto forma de racionalização das relações sociais no capitalismo. Os exemplos mais próximos no contexto pandêmico que podemos utilizar para demonstrar como o racismo é estruturado e institucional, é a ocultação dos dados do quesito raça/cor dos boletins epidemiológicos, a demora na aprovação e liberação do auxílio-emergencial com prazo de validade muito curto sob a alegação da falta de recursos financeiros.

Por isso os corpos negros são os mais vulneráveis e atingidos pela pandemia em razão da sua condição socioeconômica estruturalmente desenhada e reproduzida pela lógica dominante. Contudo, a resistência contra o projeto hegemônico da morte dos corpos negros, é a tônica das comunidades e que por isso Nascimento (2018) considera as favelas com sendo quilombos e, no sentido mais amplo, os quilombos são espaços alternativos de sobrevivência, um instrumento ideológico para a luta do povo negro. A repetição da forma de resistência cultural e racial para a autora é uma possibilidade de criar uma sociedade paralela e atuante por dentro da sociedade global que tanto oprime os negros.

Referências

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* Artigo recebido em: 22 de dezembro de 2020. Aceito em: 19 de junho de 2021.

Professora Adjunta, Departamento de Serviço Social de Campos, Universidade Federal Fluminense, Brasil. Doutora em Serviço Socia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Autora correspondente. E-mail: acjbarreto@id.uff.br

Conceito criado por Karl Marx para explicar como foi o processo de enriquecimento da elite e empobrecimento da grande massa pobre. Uma série de eventos sucederam, a exemplo das grandes navegações e ocupações de territórios americanos para exploração econômica e a expropriação dos camponeses das terras, para servir de produção de lã e ao mesmo tempo para a formação do trabalhador livre. Todo o processo de acumulação primitiva ocorreu através de derramamento de sangue.

§ Trata-se de um Jornal Comunitário que divulga as notícias das favelas da cidade do Rio de Janeiro e promove discussões e informes sobre política, economia e cultura. Seu acesso se dá através da rede social instagram @vozdascomunidades.

** Trata-se de iniciativas comunitárias de solidariedade à população vulnerável da Região Metropolitana do Recife no contexto do isolamento do COVID-19, que mapeia os bairros e coletivos que estão fazendo as campanhas de alimentos e produtos de higiene. Acesso por meio do site https://mapasolidario.riacho.info/