QUESTÃO AMBIENTAL, RACISMO AMBIENTAL E COVID-19: VELHOS E NOVOS DESAFIOS*
ENVIRONMENTAL ISSUE, ENVIRONMENTAL RACISM AND COVID-19: OLD AND NEW CHALLENGES
PURL: http://purl.oclc.org/r.ml/v7n1/a10
Valéria Pereira Bastos†
Matheus Thomas da Silva‡
Resumo: O presente artigo é produto das análises apresentadas na mesa virtual: “Questão ambiental, racismo ambiental e COVID-19: velhos e novos desafios”. O debate pautou-se na contextualização teórica a respeito da questão ambiental: trouxe a epistemologia ambiental, os epistemicídios ocorridos ao longo da história para o centro da análise, buscando fazer o recorte analítico para discutir fatores correlacionados ao campo da ecologia política e do ecologismo dos pobres. Partiu-se de dados empíricos referentes à pesquisa realizada em Jardim Gramacho, sub-bairro do município de Duque de Caxias, região metropolitana da cidade do Rio de Janeiro, que abrigou por três décadas o maior lixão da América Latina. Buscou-se articular, nesse território, evidências da expressão do racismo ambiental, agudizado diante da pandemia de Covid 19, como fator preponderante no processo de pauperização dessa população que, para além de trabalhar no local, ali reside. Apontaram-se, a partir daí, velhos e novos desafios diante das expressões da questão social.
Palavras-chave: Questão ambiental. Racismo ambiental. Covid-19.
Abstract: This article is the product of the analyzes presented on the virtual table: “Environmental issue, environmental racism and COVID-19: old and new challenges”. The debate was based on theoretical contextualization regarding the environmental issue: it brought environmental epistemology, epistemicides occurred throughout history to the center of the analysis, seeking to make the analytical cut to discuss factors related to the field of political ecology and the ecologism of the poor. Empirical data referring to research carried out in Jardim Gramacho, a sub-district of the municipality of Duque de Caxias, metropolitan region of the city of Rio de Janeiro, which housed the largest dump in Latin America for three decades, was used. An attempt was made to articulate, in this territory, evidence of the expression of environmental racism, exacerbated by the Covid 19 pandemic, as a preponderant factor in the process of impoverishment of this population that, in addition to working in the area, resides there. From then on, old and new challenges were pointed out in the face of expressions of the social issue.
Keywords: Environmental issue. Environmental racism. Covid-19.
1. Introdução
O presente artigo é produto das reflexões e análises apresentadas na mesa virtual intitulada: “Questão ambiental, racismo ambiental e COVID-19: velhos e novos desafios”. O evento realizou-se em 24 de setembro de 2020 no formato on-line, e foi organizado através pelos grupos de pesquisa GRIPES, NIJUP, NESA, NEEA da Universidade Federal – Campos dos Goytacazes – Departamento de Serviço Social – e do Departamento de Psicologia que vêm desenvolvendo um Projeto de Extensão denominado: As expressões da questão social no contexto de pandemia de COVID-19 e os desafios ao seu enfrentamento.
O texto apresentará, na primeira parte, uma reflexão teórica que toma como referência os processos de conquistas a que foram submetidos os povos latinos e africanos, e a partir desse contexto, registrando marcas que permanecem atualmente e que evidenciam velhos e novos desafios a que esses povos são submetidos diante da agudização das expressões da questão social, principalmente em momento de crise sanitária, econômica e política porque passa o país.
A reflexão será pautada tomando-se como referência o fato de a questão ambiental, em certa medida, ainda não é tratada como matéria relevante, apesar de estar inserida na pauta internacional, que por sua vez a considera da máxima importância. Sendo assim não pode mais ser identificada como externa ao processo, visto que nada está fora do ambiente, e neste sentido as consequências decorrentes dos maus-tratos a ele infligidos também se expressam como questão social.
A afirmação ganha sustentação teórica no campo do conhecimento da ecologia política, que vai buscar elementos para apresentar as ponderações analíticas necessárias e assim encontra aderência no conceito de ecologismo dos pobres, de modo a consubstanciar a crítica ao processo.
A segunda parte do artigo procura articular elementos teóricos trazidos anteriormente, com análise de dados empíricos obtidos através de pesquisa de campo realizada com a população que dependia da atividade de catação no maior lixão da América Latina, que fora encerrado em 2012, mas que ainda permanece com atividades ativas sob a sombra do estigma do lixo.
Para tanto, amplia a análise, apresentando o conceito de “zona(s) de sacrifício” para classificar o sub-bairro de Jardim Gramacho, para expor as expressões do racismo ambiental e para mostrar as consequências do fechamento do lixão para a vida dos sujeitos que sobreviviam da catação de resíduos sólidos, os catadores de materiais recicláveis. Observam-se, assim, as questões socioambientais que se expressam naquele território, sobretudo os agravantes que a pandemia de Covid 19 pode produzir no local.
2. Desenvolvimento
2.1 A questão ambiental e o ecologismo dos pobres
Para pensar a questão ambiental, tomamos como referência, inicialmente a nossa própria relação com o ambiente. O primeiro fundamento a ser considerado consiste em que não somos externos à natureza, pois a humanidade não é um dado à parte, que deve domar a natureza selvagem para construir sua sociedade. Esse fato ocorria no passado, quando se via a natureza como um elemento que precisava ser conquistado, domesticado, para que dela fossem extraídos insumos e energia para o progresso da civilização humana.
A partir de meados do século XX, alguns sinais de alerta foram dados em relação às possibilidades de esgotamento dos “recursos naturais”. Em razão disso, a questão ambiental emergia no debate da sociedade como um tema que deveria ser pensado para o próprio desenvolvimento do Capitalismo. E o ano de 1968 foi um marco para esse processo, tanto em relação ao capital, quanto em relação aos movimentos sociais enquanto questão social. Foi o ano em que emergiram os novos movimentos sociais com características mais amplas, incluindo-se aí as pautas ambientais.
Nesse mesmo ano, fundou-se o Clube de Roma, uma agremiação de ilustres e milionários, que em 1972 apresentou o relatório “Os Limites do Crescimento”, em que destaca que os recursos naturais são limitados, e que os limites do desenvolvimento estão nas proporções entre população e alimentos, recuperando teses malthusianas.
Enfocamos, no entanto, que a trajetória proposta neste artigo parte da lógica de que a questão ambiental deve ser observada, não nos marcos que se estabeleceram a partir do processo desencadeado pelo relatório “Os limites do crescimento”, mas no que vai sendo desenhado através das Conferências de Meio Ambiente organizadas pela Organização das Nações Unidas – ONU e efetivadas pelas inúmeras resoluções, tratados e agendas acordados pelos países signatários.
A proposta que se quer delinear aqui é a de que a análise leve em consideração outros aspectos históricos de lutas sociais em que os sujeitos não se reconhecem como ambientalistas, embora vivenciem processos extremamente sensíveis à questão ambiental. Nesse caso se inscreve a luta dos catadores e catadoras de materiais recicláveis, que há anos desenvolvem o trabalho de garimpo de lixo sem que gozem, entretanto, de reconhecimento quanto à cultura construída pela referência laboral, que é invisibilizada e estigmatizada, revelando-se como uma das faces do racismo ambiental.
O percurso analítico desenhado aqui pretende perpassar as consequências da colonização na América Latina, apontando como esse processo deixou marcas raciais de exclusão e contribuiu para a formação de “zonas de sacrifício”.
Assim, serão brevemente apresentadas algumas formulações que descrevem a colonialidade, suas relações com a modernidade e as sequelas desse processo, como a eliminação dos povos originais e a desqualificação de seus conhecimentos e culturas. Do mesmo modo, terão espaço aqui os sujeitos dessas lutas, que em suas “zonas de sacrifício” representam as desigualdades ambientais, que se mostram agudas, embora muitas vezes essas lutas não sejam vistas como ambientais, nem os sujeitos nelas envolvidos as reconheçam assim. Esse movimento resulta na prática de um ecologismo diferenciado, um ecologismo dos pobres. A essa maneira de construir a crítica chamaremos de olhar decolonial, e por essa lente se aspira a decolonizar as considerações e leituras analíticas.
Nesse sentido, a questão ambiental se apresenta como uma expressão da questão social, é necessário observar que não há nada fora do ambiente – a sociedade humana está na natureza. A questão ambiental perpassa a totalidade das relações sociais.
Aspecto importante de se relacionar para a construção dos argumentos pertinentes a essas discussões no âmbito do Brasil é o fato de o país ter sido colonizado a partir de mão de obra escravizada. O racismo é uma das grandes heranças desse processo, marcas coloniais que persistem até os dias de hoje; essa herança é um elemento da estrutura de nossa sociedade, conforme destaca Silvio Almeida (2019):
A tese central é a de que o racismo é sempre estrutural, ou seja, de que ele integra a organização econômica e política da sociedade. [...] O racismo fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução das formas de desigualdades e violência que moldam a vida social contemporânea. (ALMEIDA, 2019, p. 15).
O racismo é uma questão que se estabelece em conjunto com a colonização, e esse processo tem reflexo inclusive na própria construção do conhecimento; sendo assim, é necessário construir análises cujos olhares levem em consideração esses elementos e apontem para uma descolonização desse contexto.
Pensar nessa perspectiva na América Latina é considerar como ponto de partida fundamental o processo de conquista, submissão dos povos originais e colonização das Américas. Isso se faz necessário em razão de que o advento da modernidade ocorre de modo concomitante com o processo de colonização, conforme destaca Quijano (2005), quando enfoca que não há modernidade sem colonialidade.
A globalização em curso é, em primeiro lugar, a culminância de um processo iniciado com a constituição da América e o estabelecimento do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um novo padrão de poder mundial. Um dos eixos fundamentais desse padrão de poder é a classificação social da população a partir da ideia de raça. (QUIJANO, 2005, p. 35).
Sob outro enfoque, mas no mesmo sentido de Quijano (2005), encontramos Grofosguel (2016), o qual evidencia que o marco da modernidade com a conquista das Américas, assim como a submissão dos povos latinos, tiveram como ponto de partida a colonialidade. Segundo o autor, a tese é centrada no penso, logo existo; portanto, toma como base a nossa racionalidade. No entanto, elucida que não é possível pensar esse processo sem duas consignas antes, a saber: “penso, logo conquisto” e “penso, logo extermino” (GROFOSGUEL, 2016).
A partir dessa discussão, Matheus Silva retoma Grofosguel, quando este aponta) que no desenvolvimento histórico da humanidade ocorreram então alguns epistemicídios, que são outras marcas da colonização.
Grofosguel (2016), destaca o racismo como elemento central da dominação colonial. Outros elementos que marcam colonialidade, segundo referido autor, são: a organização patriarcal da sociedade, a natureza é vista como fonte infinita de recursos para as atividades extrativistas e a destruição do conhecimento dos povos originais e escravizados. O Autor afirma que a modernidade se funda na exploração colonial e se estabelece a partir do que ele chama de epistemicídios, que foram praticados com os negros, indígenas, mulheres e mulçumanos. (SILVA; LEAL, 2020, p.330).
Esse extermínio será sustentado por quatro epistemicídios ao longo do século XVI: contra os judeus e mulçumanos em Al-Andalus em nome da “pureza de sangue”; contra os povos indígenas das Américas; contra os africanos sequestrados em seu território para serem escravizados e, finalmente, contra as mulheres que praticavam e transmitiam conhecimentos na Europa, onde foram queimadas, acusadas de serem bruxas. Esses quatro genocídios, para Grofosguel, são os alicerces que constituem o privilégio da supremacia dos homens brancos ocidentais. De acordo com o autor, todo esse processo foi absorvido pela universidade ocidentalizada, que internalizou esse racismo/sexismo, excluindo esses saberes do processo de produção do conhecimento.
Grosfoguel (2016) constrói sua argumentação pensando na forma como a hegemonia do pensamento ocidental se funda, qual seja, tornando inferiores os conhecimentos produzidos pela humanidade, excetuando-se os cinco países centrais, a saber: França, Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos e Itália. As referências que o autor utiliza têm relação com à crítica de Dussel à filosofia cartesiana, no que diz respeito a conquista e genocídio do continente americano a partir do século XVI, e na crítica de Boaventura de Sousa Santos sobre às estruturas do conhecimento que excluem as epistemologias do sul, conceito que vai ser abordado mais à frente.
Esses epistemicídios ao longo da história deixaram marcas profundas nos povos que foram submetidos, marginalizaram sua cultura e promoveram a conquista de seus territórios para fins da colonização. Quando se pensa nos catadores de materiais recicláveis como sujeitos históricos, depreende-se que são os seus ancestrais as vítimas das conquistas e da colonização; assim, carregam o peso histórico dessa marginalização e apagamento histórico de suas raízes. Decorre daí a opção de relacionar a análise sobre as condições desse segmento social com base em outros conhecimentos, que têm sido chamados pelos movimentos latinos de epistemologias do sul. Para esse estudo, entretanto, trazemos o conceito de epistemologia ambiental de Enrique Leff (2012):
O ambiente não é a ecologia, mas a complexidade do mundo. [...] A epistemologia ambiental conduz este caminho exploratório, para além dos limites da racionalidade que sustenta a ciência normal para apreender o ambiente, para ir construindo o conceito próprio de ambiente e configurando o saber que lhe corresponde na perspectiva da racionalidade ambiental. [...] Nesse percurso vai desenvolvendo uma epistemologia ambiental, que parte do esforço de se pensar a articulação de ciências capazes de gerar um princípio geral, um pensamento global e um método integrador do conhecimento disciplinar, para desembocar num saber que ultrapassa o campo das ciências e questiona a racionalidade da modernidade. (LEFF, 2012, p. 17).
Para observar sujeitos de direitos e esses sujeitos com movimentos sociais e ambientais, considerando o recorte que propomos aqui, é preciso trazer um pouco do debate acerca das epistemologias ambientais do sul. Ou seja: O fazer científico dentro dos métodos, mas sob outras perspectivas, que se tornam centrais, uma vez que se pretende usar essas epistemologias como referências; cabe perceber se os movimentos ambientais expressam, essas referências no conhecimento que produzem.
A razão crítica dessa perspectiva, conforme descrito aqui, se apresenta no campo da ecologia política. Nesse sentido, se faz necessário reencontrar, no pensamento crítico, formulações que recuperem esses processos no sentido de descolonizar a produção do conhecimento e pensar a questão social em uma perspectiva da ecologia política.
A ecologia política estuda os conflitos ecológicos distributivos. Por distribuição ecológica são entendidos os padrões sociais, espaciais e temporais de acesso aos benefícios obtidos dos recursos naturais e aos serviços proporcionados pelo ambiente como um suporte da vida. Os determinantes de distribuição ecológica são em alguns casos naturais, como o clima, topografia, padrões pluviométricos, jazidas de minerais e a qualidade do solo. No entanto, também são claramente sociais, culturais, econômicos e tecnológicos. Em parte, a ecologia política se superpõe à economia política, que tradição clássica (deem uma olhada no original, parece que falta algo aqui.) corresponde ao estudo dos conflitos relacionados à distribuição econômica. (ALIER, 2017, p. 113).
Já na perspectiva latina, o campo crítico da ecologia política se apresenta como um processo de resistência do conhecimento à colonização imposta na América Latina e emerge uma nova perspectiva epistêmica, crítica, não só como um espaço de investigação, mas também como uma prática pedagógica de transformação social, a saber:
Es, como tal uma pedagogia crítico-política que nacela consciência política de la vida amenazada y que hacedel conflito contra lo que laamenaza y destruye, su lugar de enunciación, elsuelo epistémico político de producción de saberes/haceresotros. (ARÁOZ, 2017, p.213).
É um campo do conhecimento que se nutre a partir das próprias lutas dos povos latinos. A ecologia política del sur se mostra como uma práxis. Em todo esse contexto de desigualdade no qual o Brasil se insere, refletindo em si toda essa desigualdade, observar a situação dos catadores de materiais recicláveis e das possibilidades de suas conquistas remete a um conceito de uma prática ambientalista apresentada por Alier (2017) como ecologismo dos pobres. Essa corrente ambientalista, de acordo com o autor, tem como fonte a profunda desigualdade social provocada pelo crescimento/desenvolvimento sem limites.
Para Alier (2017), o ecologismo dos pobres existe mais como uma necessidade de sobrevivência dos sujeitos do que como uma pauta ambiental com ações midiáticas e globais, como as que realizam a World Wide Fund (WWF) ou o Greenpeace, organizações ligadas à preservação do meio ambiente. Trata-se de sujeitos que muitas vezes estão entre as camadas mais miseráveis e que encampam lutas que estariam no campo ambiental.
No caso em questão, são os catadores de materiais recicláveis, sujeitos invisibilizados, apesar de a realização da tarefa de catação de resíduos se constituir como atividade secular, responsável pela sobrevivência de muitas gerações e que na atualidade encontra chancela ambiental, sem, entretanto, que se promova a valorização de quem a exerce.
Com origem e base social nos lixões do Brasil, retirando dali materiais que pudessem vender para garantir um mínimo de sobrevivência, os catadores, sujeitos observados neste artigo, a partir de suas mobilizações, impulsionaram a formalização da Política Nacional de Resíduos Sólidos, que tramitou por duas décadas no Congresso Nacional. Esse movimento permitiu a produção de novos saberes, a partir da participação de sujeitos que muitas vezes estão, e ainda continuam, à margem da sociedade.
O eixo central dessa corrente não é uma reverência sagrada à natureza, mas antes disso, um interesse material pelo meio ambiente como fonte de condição para subsistência; não em razão de uma preocupação relacionada com os direitos das demais espécies e das futuras gerações de humanos, mas, sim, pelos humanos pobres de hoje. Essa corrente não compartilha os mesmos fundamentos éticos (nem estéticos) do culto ao Silvestre. Sua ética nasce de uma demanda por justiça social contemporânea entre os humanos. (ALIER, 2017, p. 34).
Esses sujeitos tiveram o seu reconhecimento a partir da Política Nacional de Resíduos Sólidos – Lei 12.305/2010; mesmo assim, o processo ainda se dá por meio da mobilização, e suas lutas são uma expressão do ecologismo dos pobres, reflexos da resistência de povos que sofreram com epistemicídios no passado; assim, a posição social em que se encontram também reflete todos os saberes apagados de seus antepassados ao longo da história.
Não há dúvida de que a questão dos resíduos sólidos é uma pauta que remete às lutas ambientais – o excesso de lixo produzido, combinado com descartes inadequados, traz consequências para a humanidade, sendo que a camada mais sensível a esses impactos é aquela que está na ponta mais pobre da sociedade. Ambientes insalubres, degradação ambiental e miséria se combinam em territórios que vamos classificar como “zonas de sacrifício” no sentido que apontou Acselrad (2004), quando evidencia que são: locais escolhidos, propositalmente, para a realização de práticas ambientais inadequadas que prejudicam não só o meio ambiente, mas também as pessoas que com ele convivem.
É na combinação de múltiplas determinações que podemos observar características que fazem com que a luta dos catadores de materiais recicláveis como um todo, como também a luta por sua sobrevivência nessas “zonas de sacrifício”, se constitua em expressões da questão social, mas são lutas cujas pautas e resultados implicam também em ganhos ambientais, mesmo que esses sujeitos nunca tenham se apresentado como ambientalistas. É nesses moldes que Alier destaca o ecologismo dos pobres.
Há muitos casos de conflito social que apoia a tese da existência de um ecologismo dos pobres, isto é, o ativismo de mulheres e de homens pobres ameaçados pela perda dos recursos naturais e dos serviços ambientais de que necessitam para sobreviver. Os discursos que usam podem ser, por exemplo, dos direitos humanos, o dos direitos territoriais indígenas ou dos valores sagrados, mesmo não sendo eles da confraria da ecologia “profunda”. (ALIER, 2017, p. 170).
Quando observamos que Alier cita como elementos do discurso da luta os direitos territoriais indígenas ou dos valores sagrados, temos uma relação com as sequelas da colonização, do silenciamento de povos, conhecimentos e culturas. Nesse sentido, a voz de resistência desses sujeitos é um enfrentamento à colonialidade que toma o poder, incluindo-se as questões que envolvem o racismo. Desse modo, passaremos a seguir a apresentar, a partir de dados empíricos, alguns aspectos da realidade do sub-bairro de Jardim Gramacho, que são a expressão da questão socioambiental, da injustiça e do racismo ambiental.
2.2 Jardim Gramacho: lugar marcado pelo racismo ambiental
Jardim Gramacho abrigou por mais de três décadas o maior lixão da América Latina. Desde 2012, entretanto, as atividades foram encerradas, em cumprimento ao art. 54 da Política Nacional de Resíduos Sólidos – Lei 12.305/2010, deixando a maioria da população residente sem seu único meio de sobrevivência, sobretudo em tempos de pandemia.
Cabe registrar que Duque de Caxias é o terceiro município mais populoso do Estado do Rio de Janeiro – seu contingente populacional, segundo o IBGE, em 2018, era estimado em 914.383 munícipes, em uma área territorial de 465 Km².
A cidade ocupa o segundo lugar em arrecadação de ICMS do Estado, perdendo somente para a capital, mas, em termos de qualidade de vida, a população caxiense enfrenta um cenário de extrema desigualdade social, o que se comprova por sua posição de 1574° lugar no Índice de Desenvolvimento Humano entre as cidades no Brasil e o 18º lugar no ranking nacional de Produto Interno Bruto.
Em relação ao Índice de Desenvolvimento Humano, Duque de Caxias, segundo o IBGE, está entre os mais baixos do Estado do Rio de Janeiro, perdendo apenas para os municípios de Magé e Belford Roxo. No tocante ao saneamento básico, segundo o Instituto Trata Brasil (2019)§, a cidade aparece em 91º lugar dentre as 100 maiores cidades brasileiras pesquisadas, mais um dado que demonstra que a divisão dos bens produzidos pelo município é extremamente desigual.
Os índices apresentados sobre o município de Duque de Caxias permitem identificar a realidade vivenciada pelos moradores do sub-bairro de Jardim Gramacho, que experimentam em maior proporção os efeitos da desigualdade social e da negligência pública identificadas no município.
O processo de encerramento do lixão, por sua vez, contribuiu para evidenciar o abandono promovido pelo poder público em relação ao atendimento às demandas da população residente, o que traduz o quanto a conjugação entre pobreza, questão ambiental e racismo ambiental, e no momento atual a pandemia, se manifestam em áreas ambientalmente atingidas por instalações de lixões, barragens, desastres ambientais, despejos de resíduos tóxicos, entre outras ações inadequadas que comprometem o solo, mas sobretudo a vida das pessoas, bem como o seu desenvolvimento. A consequência de tudo isso se configura na transformação desses locais em áreas caracterizadas como “zonas de sacrifício” (ACSERALD, 2004), onde a pobreza e os processos excludentes são eminentemente visibilizados, e normalmente, naturalizados, sem a proposição de rupturas necessárias para a efetivação de políticas públicas eficazes.
Para pensar sob essa lógica, buscamos o conceito de racismo ambiental, cunhado a partir da discussão estadunidense, conforme aponta Herculano (2006):
Racismo ambiental é o conjunto de ideias e práticas das sociedades e seus governos, que aceitam a degradação ambiental e humana, com a justificativa da busca do desenvolvimento e com a naturalização implícita da inferioridade de determinados segmentos da população afetados – negros, índios, migrantes, extrativistas, pescadores, trabalhadores pobres, que sofrem os impactos negativos do crescimento económico e a quem é imputado o sacrifício em prol de um benefício para os demais. (HERCULANO, 2006, s/p).
O espelhamento dessa manifestação de racismo ambiental se revela em expressões da questão social, representada por paraísos de poluição e/ou “zonas de sacrifício”. Esses espaços são traduzidos por Acselrad, que assim os descreve:
Certas localidades [...] destacam-se por serem objeto de uma concentração de práticas ambientalmente agressivas, atingindo populações de baixa renda. Os moradores dessas áreas convivem com a poluição industrial do ar e da água, depósitos de resíduos tóxicos, solos contaminados, ausência de abastecimento de água, baixos índices de arborização, riscos associados a enchentes, lixões e pedreiras. Nestes locais, além da presença de fontes de risco ambiental, verifica-se também uma tendência a sua escolha como sede da implantação de novos empreendimentos de alto potencial poluidor. Tais localidades são chamadas, pelos estudiosos da desigualdade ambiental, de “zonas de sacrifício” ou “paraísos de poluição”, onde a desregulação ambiental favorece os interesses econômicos predatórios, assim como as isenções tributárias o fazem nos chamados “paraísos fiscais”.
Nestes locais, observa-se a conjunção das decisões de localização de instalações ambientalmente danosas com a presença de agentes políticose econômicos empenhados em atrair para o local investimentos de todo tipo, qualquer que seja seu custo social e ambiental. Estes dois processos tendem a prevalecer em áreas de concentração de moradores de menor renda e menos capazes de se fazerem ouvir nos meios de comunicação e nas esferas de decisão. (ACSELRAD, 2004, p. 12-13).
Corroborando com a fala acima, encontramos em Viégas (s/d) a seguinte afirmação, que cada vez mais ratifica o descaso público, que ficou efetivamente evidenciado a partir da pandemia de Covid 19 em 2020:
Na perspectiva dos estudiosos da desigualdade ambiental, o termo “zona de sacrifício” passou a designar locais onde há ocorrência de múltiplas práticas ambientalmente agressivas atingindo populações de baixa renda ou minorias étnicas. Tais populações são vítimas de impactos indesejáveis de grandes investimentos que se apropriam dos recursos existentes nos territórios, concentram renda e poder, ao mesmo tempo em que atingem a saúde de trabalhadores e a integridade de ecossistemas de que dependem. Como agravante, esses mesmos grupos, submetidos aos mais variados riscos ambientais, são aqueles que dispõem de menos condições de se fazerem ouvir no espaço público, não tendo oportunidade de colocar em questão os efeitos da desigual distribuição da poluição e da proteção ambiental. (VIEGAS, s/d, p. 20).
Neste contexto, consideramos que se torna imperativa a efetivação de políticas públicas que possibilitem à população em geral, e não somente a uma parca parcela, condições dignas de vida e de trabalho. Entendemos ser esta a única via para que esse contingente de pessoas adquira visibilidade e efetiva relevância, alcançando reconhecimento enquanto cidadãos. No caso dos catadores de materiais recicláveis, é imperativo o seu reconhecimento como trabalhadores da área ambiental, responsáveis pela atividade de coleta, triagem e semibeneficiamento de materiais potencialmente recicláveis.
Apesar das ferramentas inovadoras disponíveis na PNRS/2010 e no decreto 7404/2010 para regulamentar a política – inclusive a inclusão socioprodutiva dos catadores e catadoras como partícipes do processo de gestão de resíduos sólidos urbanos – as ações previstas em lei são ignoradas pelo poder público, principalmente ao associar a finalização dos lixões e aterros controlados à questão do desemprego e desamparo crescente da população de trabalhadores informais.
A situação não é diferente em Jardim Gramacho, pois a participação do poder público municipal é insuficiente, considerando o descaso com as reais condições de trabalho e de vida dos catadores e catadoras do antigo lixão, que também são residentes no local, tornando-se latente, a ponto de não existir investimentos em termos de instalação de infraestrutura e serviços em atenção à população, conforme previsto nos termos da compensação socioambiental e recuperação urbanística local.**
O Centro de Referência de Assistência Social localizado no próprio sub-bairro extrapola a abrangência de atendimento no território, fator que já consideramos equivocado. O quadro de agravamento dos problemas da população residente se intensificou; portanto, esse equipamento deveria ser especialmente voltado para o atendimento da população do sub-bairro, visto que não tem robustez necessária de infraestrutura e nem equipe técnica em número efetivo para acompanhar sistematicamente as demandas locais, que, efetivamente, se avolumaram após o encerramento do lixão, culminando na ausência de indicadores, bem como de programas específicos para o acompanhamento dessa população, o que em muito contribui para o estado de coisas que persiste.
Enfim, afirmamos que o encerramento do lixão de Jardim Gramacho, em vez de cumprir sua função de favorecer o meio ambiente e a população, trouxe inúmeras desvantagens para essa comunidade, provocando o caos social em uma população que perdeu seu espaço de trabalho e segue sem realocação no mercado formal. Que permanece negligenciada pelo poder público, tornando-se excluída de seus direitos fundamentais de cidadania e relegada à marginalidade refletida pela sua invisibilidade diante dos demais ocupantes do espaço urbano público.
Diante dos fatos apresentados, consideramos relevante a discussão teórica trazida pela mesa, principalmente neste momento de pandemia de Covid 19, que reacendeu as inúmeras expressões da questão social, descortinando as mazelas existentes em localidades cujo acesso a bens e serviços já eram dificultados, e que foram agudizadas com a crise sanitária, resultando em uma maior evidência dessas expressões.
2.3 Registros das expressões da questão socioambiental em Jardim Gramacho
Segundo Maria Ozanira da Silva e Silva (2010), a pobreza, (grifo nosso) deve ser entendida como:
fenômeno estrutural, complexo, de natureza multidimensional, relativo, não podendo ser considerado como mera insuficiência de renda, pois é também de desigualdade na distribuição da riqueza socialmente produzida; é não acesso a serviços básicos; à informação; ao trabalho e a uma renda digna; é não a participação social e política. (SILVA, 2010).
Na busca de articular os conceitos já trabalhados com a realidade do sub-bairro em questão, consideramos importante trabalhar também o entendimento a respeito da questão socioambiental. Isso porque, apesar de todo o estigma que o local carrega até os dias atuais – que é reconhecido como território do lixo – as atividades e a economia que circulavam na época do lixão retratavam de forma efetiva a sua essência: era constituído como um território permeado por um “conjunto de manifestações da destrutividade ambiental, resultantes da apropriação privada da natureza, mediadas pelo trabalho humano” (SILVA, 2010, p.144). Sendo assim, a autora evidencia que o socio (grifo nosso) inserido no ambiental (grifo nosso) é justificado com o sentido de evidenciar uma opção política que reforça a compreensão de que não se pode separar dessa discussão o componente social do ambiental.
Neste sentido, pensar a questão socioambiental a partir da vivência no sub-bairro de Jardim Gramacho implica considerar que os desafios que se colocam na atualidade estão longe de atingir a todos da mesma maneira. A precarização do trabalho e a financeirização do capital têm contribuído significativamente para essa dinâmica, fazendo com que as classes empobrecidas, no caso, os catadores e catadoras de materiais reutilizáveis e recicláveis, e seus territórios de vida, sejam atingidos de forma cada vez mais intensa, em um contexto de agravamento da injustiça ambiental: Acselrad aponta a necessidade de que se promova:
a busca do tratamento justo e do envolvimento significativo de todas as pessoas, independentemente de sua raça, cor, origem ou renda no que diz respeito à elaboração, desenvolvimento, implementação e reforço de políticas, leis e regulações ambientais Por tratamento justo entenda-se que nenhum grupo de pessoas, incluindo-se aí grupos étnicos, raciais ou de classe, deva suportar uma parcela desproporcional das consequências ambientais negativas resultantes de operações industriais, comerciais e municipais, da execução de políticas e programas federais, estaduais, locais ou tribais, bem como das consequências resultantes da ausência ou omissão destas políticas. (ACSERALD, 2004, p. 67).
Tais aspectos ganham aderência teórica quando vamos buscar no capítulo XXIII do volume I, de O Capital, obra principal de Marx,) os fundamentos do surgimento do Capitalismo, que enfocam que alguns segmentos da sociedade não fazem parte do mercado de trabalho devido à própria dinâmica societária instalada em seu modo de produção e de reprodução social. Na medida em que a composição orgânica do capital é alterada, trabalhadores são expulsos dos seus empregos e outros nem mesmo chegam a acessar a possibilidade de serem explorados. Esse traço social do modo de produção capitalista pode se modificar a depender da conjuntura política e econômica, mas jamais será superado. Esse é o estado de coisas que observamos na situação de extremo pauperismo de catadores e catadoras, bem como de outros trabalhadores residentes em Jardim Gramacho.
Já mencionamos que, conforme preceitua a Lei 12.305/2010, os catadores são reconhecidos como parceiros efetivos dos municípios – no nosso caso, o de Duque de Caxias –, podendo realizar suas atividades através da implementação da política pública de coleta seletiva dos resíduos sólidos urbanos. No entanto, essa prática não ocorre, ratificando o ecologismo dos pobres, visto que o trabalho que desenvolvem não se torna mais valorizado em razão da existência da Lei, prestando-se esta tão somente ao apelo midiático.)
Ao contrário do que está previsto, esse trabalhador, ao longo dos anos, foi e continua sendo estigmatizado em função da própria natureza do material com que lida no dia a dia – o lixo, e mesmo diante da realidade – atual e legal – que o preceitua como parceiro, continua em postos de trabalho informais, desenvolvendo atividades precarizadas e sem vínculos formais, ponto que ganha reforço a partir do que enfoca Luiz Machado Silva (2003):
Um terceiro contingente de trabalhadores – correspondente ao que poderia ser considerado o núcleo dos “informais” – passa a desenvolver atividades não assalariadas. Entretanto, também neste caso não estamos diante de um segmento homogêneo. De um lado dele fazem parte grupos sociais pauperizados que, obviamente, são majoritários. Trata-se dos segmentos menos qualificados obrigados a se reorientarem na direção das inúmeras atividades precárias – cujo exemplo clássico é o biscateiro – considerado na década de 1970 típicas dos então denominados “grupos marginais”. Aqui embora não estejamos propriamente diante do puro e simples desemprego, configura-se o nicho dos recursos de sobrevivência de um exército de reserva estagnado em expansão, com perspectivas cada vez mais reduzidas de reintegração econômica. (SILVA, 2003, p.170).
No atual cenário de pandemia da Covid 19, o processo tornou-se agudizado, evidenciando cada vez mais as manifestações da questão social expressa por milhões de trabalhadores e trabalhadoras informais no Brasil. São sujeitos desprovidos de direitos trabalhistas, cuja situação vem sendo agravada sistematicamente pelas sucessivas perdas no acesso aos direitos sociais, o que torna cada vez mais precárias as atividades desenvolvidas nos diversos setores informais, principalmente no contexto socioambiental, em especial o trabalho dos catadores e catadoras de materiais recicláveis, na atividade de coleta seletiva dos resíduos sólidos urbanos.
Neste sentido, buscou-se verificar quais ações têm sido realizadas pelo poder público no sentido de suprir as necessidades básicas de catadores e catadoras remanescentes do lixão que ainda permanecem no sub-bairro de Jardim Gramacho, ligados às cooperativas. É importante considerar que a atividade de coleta e triagem de resíduos sólidos se constitui como um risco de contágio por Coronavírus para os que participam da coleta seletiva e da cadeia da reciclagem, sobretudo na atividade de triagem – neste caso específico, a contaminação não ocorre somente pelo ar, mas também por manuseio de objetos e, principalmente de resíduos sólidos urbanos, exigindo dessa forma novas alternativas de tratamento para prevenção e cuidados necessários à saúde desses trabalhadores.
O que pudemos apurar através da abordagem realizada com as lideranças locais foi que, das 15 cooperativas existentes, 10 ficaram totalmente fechadas e 5 atuaram com muita dificuldade, ou seja, o comprometimento em termos de ganhos para a sobrevivência foi atingido quase que na sua totalidade, e que nem todos os catadores e catadoras foram contemplados com o auxílio emergencial disponibilizado pelo governo no valor de R$ 600,00, quer seja em razão do comprometimento nos documentos (inclusive de ausência de documentos de identificação), ou da dificuldade de acesso à rede de internet para cadastramento, dentre outras dificuldades.
A mobilização social, contudo, foi preponderante, ocupando um lugar de destaque, sobretudo em relação às regiões menos assistidas pelo poder público; através da doação de cestas básicas e material de higiene pessoal buscou-se atender de forma emergencial as cooperativas existentes e a população residente no sub-bairro de Jardim Gramacho.
Cabe ressaltar a relevância no que diz respeito ao nível de resistência dessa população, demonstrado a partir dos movimentos populares e sociais pelo viés da solidariedade ativa que vem promovendo inúmeras ações de socorro, embora saibamos que esta não substitui a política pública, suprindo, entretanto, em parte, a necessidade daqueles que por questões alheias às suas vontades não se encontram em condições de supri-las a partir do trabalho.
Ressalta-se o processo de mobilização que vem sendo realizado para atender às demandas da população do sub-bairro de Jardim Gramacho, território estigmatizado por ter abrigado por mais de trinta anos o maior lixão da América Latina, e que até os dias atuais permanece como uma “zona de sacrifício” (ACSERALD, 2004) ou expressivo bolsão de miséria. A rede de solidariedade ativa vem ganhando dimensão expressiva e atendendo quase em sua totalidade as demandas locais através de inúmeras campanhas. Ao mesmo tempo, cabe registrar que, se por um lado há uma efetiva manifestação advinda da sociedade civil, por outro, o poder público segue alheio ao atendimento da população, pois a cada dia vem precarizando o acesso aos direitos que devem partir da ação tanto da assistência social, como das diversas outras políticas públicas.
3. Considerações Finais
O cenário de pandemia em que vivenciamos no ano inteiro de 2020, e continuamos pelo menos nos primeiros meses de 2021, nos permitiu identificar que elementos evidenciados por meio de inúmeros conceitos tratados neste artigo, temas centrais da mesa virtual realizada no segundo semestre de 2020 que nos serviram para ratificar e reconhecer o quanto ainda estão presentes no cotidiano marcas expressas pelo racismo, que se manifestam sob diversos ângulos e que, no caso em debate, trouxemos para a questão ambiental.
Dessa maneira, a ótica da ecologia política permite a observação privilegiada dessa problemática. Esse campo trabalha com a compreensão dos conflitos ecológicos distributivos, entretanto a questão ecológica no contexto dos países ao sul do Equador por muitas vezes se manifesta como uma questão de sobrevivência imediata dos sujeitos envolvidos. Nesse sentido, o caso dos catadores pode ser analisado como um processo de o reconhecimento desses sujeitos no âmbito da sociedade.
Essa lente permite uma reflexão que apresenta uma construção decolonial, que por sua vez inverte a situação e passa a considerar como sujeitos da transformação, segmentos marginalizados e invisibilizados na sociedade como sujeitos da transformação. Essa movimentação social podemos relacionar com a ideia de um ecologismo dos pobres. Ao se tornarem sujeitos, colocam seu conhecimento, por vezes desprezado, como mola propulsora da transformação. Assim, a política nacional de resíduos construída com o protagonismo dos catadores, representa avanços importantes em termos ambientais para o país.
O sub-bairro de Jardim Gramacho é o retrato de um território tradicionalmente marcado por, dentre outras questões sociais, a exploração da mão de obra em todos os sentidos. Durante o quadro instalado da pandemia, foi possível identificar que a situação que ocorria durante o funcionamento do lixão foi agravada pela necessidade de isolamento e paralisação quase que total das atividades devido à natureza do processo de contaminação e à ausência de infraestrutura para tratar os resíduos, conforme já vimos.
Neste sentido, o papel da gestão pública seria de fundamental relevância para prestar apoio necessário, na perspectiva de garantir a sobrevivência desse contingente de trabalhadores. Trata-se de homens e mulheres que, em nome da manutenção da saúde, não teve como manipular os materiais potencialmente recicláveis através de práticas sanitárias e ambientalmente adequadas no tratamento dos resíduos sólidos. Bem como também não foi apoiada em sua totalidade pelo pagamento de auxílio emergencial de R$ 600,00, conforme sinalizado, ficando à mercê da rede ativa de solidariedade, que não substitui o papel das políticas públicas.
Sendo assim, consideramos que é necessário, para a retomada das atividades, envidar esforços públicos e privados na busca de garantir que ações socioambientais corretas e seguras sejam estruturadas, com a finalidade de manter o trabalho de coleta e separação que vinha sendo promovido pelas organizações de catadores no sub-bairro. Dessa forma é que se vai promover a desconstrução, naquele espaço, não somente do conceito de “zona de sacrifício” e/ou paraíso de poluição existentes, mas rompendo, e, além disso, o rompimento com o racismo e a injustiça ambiental na perspectiva da equidade, e com isto tratando de reposicionar, com isso, esses segmentos de trabalhadores, para a construção de desafios que permitam que concorram no mesmo padrão de igualdade com todos os trabalhadores do país.
Referências
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* Artigo recebido em 5 de fevereiro de 2021. Aceito em 19 de junho de 2021.
†Professora Adjunta I, Departamento de Serviço Social/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil. Pesquisadora apoiada pela Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa. Líder do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Estudos Socioambientais e Comunitários – GRIPES. Doutora em Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil. Autora correspondente. E-mail: vpereirab@gmail.com
‡Professor assistente, Departamento de Serviço Social/Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional/Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil. Mestre em Serviço Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutorando em Ciências Ambientais e Conservação, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. E-mail:mattseso@gmail.com
** Foi pactuado pelo poder público Estadual e Municipal do Rio de Janeiro que, após o encerramento do lixão de Gramacho, o sub-bairro receberia projetos urbanísticos e de recuperação socioambiental.