RESENHA FÍLMICA: A SOCIOLOGIA DO TRABALHO E O DOCUMENTÁRIO “INDÚSTRIA AMERICANA” *


FILM REVIEW: THE SOCIOLOGY OF WORK AND THE DOCUMENTARY “AMERICAN FACTORY”


Ana Cláudia Bessa



O documentário “Indústria Americana” da Netflix (2019) retrata o momento em que um bilionário chinês abre uma fábrica de vidros automotivos nos EUA contratando ex-funcionários de uma montadora de veículos desativada na cidade de Ohio. A montadora encerrou suas atividades deixando 10 mil pessoas desempregadas na região e uma comunidade amargurada, com milhares de pessoas na miséria e desesperadas por um emprego. Com a nova fábrica, o que se vê é a gratidão dos trabalhadores e a retomada da esperança no futuro. Ao mesmo tempo, se configurava com uma insegurança persistente diante da possibilidade de ficar desempregado novamente. Sendo assim, o documentário traz elementos importantes para o debate sobre capitalismo, industrialização, representação do trabalho, vivências dos trabalhadores e as consequências do desemprego estrutural que afetam a sociedade moderna.

A história contada pelo documentário pode ser analisada à luz do desenvolvimento da sociedade capitalista e do mundo do trabalho. Um dos conceitos sociológicos que podemos acessar é o de acumulação primitiva do capital elaborado por Marx (1968), que explica que “a existência de grandes quantidades de capital e de força de trabalho nas mãos dos produtores de mercadorias” são pressupostos da transformação da sociedade capitalista. Essa transformação, que acumula capital nas mãos de poucos, separou a grande massa de trabalhadores – do antigo regime feudal – dos meios de sua subsistência. A expropriação significou a perda das proteções que a propriedade das terras no sistema feudal garantia aos indivíduos. Isso fez nascer a estrutura econômica da sociedade capitalista que, já naquela época, trouxe decadência e pauperização para o povo. Sendo assim, o paralelo entre estes momentos históricos pode ser visto através da observação da situação vivenciada pela população de Ohio que, sem proteção social, entra em decadência e pauperização com o fechamento da fábrica.

Ao construir paralelos sociológicos com os fatos narrados no documentário, é possível analisar o que ocorre quando a sociedade passa a ser regida pelas determinações econômicas e a dispor da força de trabalho dos indivíduos que foram destituídos daquelas proteções sociais existentes no passado. O processo de transformação capitalista possui fluxo contínuo e com o passar do tempo, a economia se transforma na centralidade da vida em sociedade. Para Polanyi (2000), esse processo que se acentua continuamente, provoca uma grande alteração na mentalidade social. Em outras palavras, no passado, a vida em sociedade não era delimitada por determinações econômicas e, deste modo, não era a vida que se adaptava ao sistema econômico. Isso implicava que qualquer que fosse o arranjo social, “a presença do padrão de mercado era sempre compatível com ele” e, de forma nenhuma, esse arranjo permitia perdas de proteção básicas para a vida. Ou seja, a economia se adaptava ao arranjo social e não o contrário. Como observado através dos fatos do documentário, na sociedade moderna essas transformações econômicas afetam os arranjos sociais, produzindo mudanças significativas nos modos de vida e no mundo do trabalho. Os trabalhadores de Ohio sentiram esse impacto da determinação econômica em suas vidas: com o fechamento da fábrica, sem nenhuma proteção ou intervenção do Estado, desceram para a classe C e a falta das proteções sociais e a ausência de interferência do Estado ficam evidentes nos danos e perdas sofridos pelos trabalhadores.

Neste cenário de esperança e gratidão, também havia conflito e decepção. Os trabalhadores estadunidenses acabavam por aceitar funções subalternas com salários mais baixos (os salários na antiga montadora de automóveis eram de 29 dólares a hora e na atual fábrica de vidros automotivos caíram para 13 dólares), condições insalubres e desumanas, muitas horas de trabalho e intervalos para comer praticamente inexistentes. Os trabalhos repetitivos e sem perspectiva de crescimento dentro da empresa eram motivo de decepção e receio para estes trabalhadores. Complementando as inseguranças e insatisfações, os acidentes de trabalho durante os treinamentos, sem equipamentos de proteção, contribuíam para aumentar o constante medo de perder o emprego. Errar, mesmo que por motivos externos às competências individuais, não era uma alternativa neste cenário.

Por outro lado, a situação dos trabalhadores chineses que vinham para treinar os estadunidenses, não era muito diferente. O documentário mostra que a situação na “América” refletiu a condição dos trabalhadores chineses em seu país de origem, como também dos funcionários chineses que estavam nos Estados Unidos. Os funcionários que vinham da China passavam a viver longe de suas famílias por dois anos, moravam em condições sem conforto, não recebiam pagamento extra, tinham somente duas folgas por mês, trabalhavam mais horas por dia, ganhavam menos e não recebiam equipamentos de proteção individual. Além disso, é digno de nota comentar que os chineses trabalhavam totalmente calados, no sentido literal da palavra. Ao observar estas realidades, considerando as condições estruturais de cada país, importa saber que na China, segundo os relatos, não havia proteção sindical e a ameaça cotidiana do desemprego era uma realidade também para estes trabalhadores. Ou seja, a empresa chinesa veio para outro continente reproduzir o modelo que trazia de seu país de origem, onde a escassez de meios de subsistência, é a condição ideal para a sujeição dos trabalhadores.

A essas situações de instabilidade no mundo do trabalho, que trazem medo aos trabalhadores, Sennett (2009) chama de estar "à deriva". Estar à deriva, sem rumo definido e sem estabilidade, faz com que o medo seja embutido nas histórias de trabalho dos indivíduos. Esse sentimento é disfuncional e afeta o caráter dos trabalhadores, gerando um comportamento de individualismo. O individualismo afeta o sentido de coletividade pois, para sobreviver, é preciso que cada indivíduo se preocupe em cuidar de si mesmo, de forma imediata e sem projeções de longo prazo. Deste modo, a desorientação causada por este ciclo de perdas e incertezas em Ohio, diante de condições desfavoráveis aos trabalhadores, fez com que os simbolismos construídos pela empresa chinesa tivessem efeito. E mesmo diante da insegurança, a empresa chinesa continuava sendo vista como uma salvadora em meio à desolação. O fato de estar empregado é uma condição que provê ao trabalhador um sentimento de maior tranquilidade e satisfação, mesmo que não haja segurança para trabalhar, condições dignas ou remuneração suficiente para resolver suas necessidades e sonhos. Sem percepções de longo prazo e com necessidades imediatas, cada indivíduo tende a se preocupar com sua situação pessoal, entendendo que é melhor ter pouco do que não ter nada.

Como dito anteriormente, acessando as teorias de Marx (1968), a história dos trabalhadores de Ohio configura, em grande medida, o desenvolvimento da acumulação capitalista das sociedades modernas. Marx não responde plenamente às questões do nosso tempo, mas contribui – com argumentos muito bem elaborados – para construir uma compreensão sobre o desenvolvimento da dominação imposta pelo capital. O que se vê com o fechamento da antiga montadora de automóveis e a abertura da nova fábrica de vidros automotivos é um movimento em que indústrias vão sendo fechadas, enquanto outras são abertas, conforme os interesses do mercado de capital. Este movimento se configura de forma que “cada empresa capitalista, elimina muitos outros capitalistas” (MARX, 1968). As empresas concorrem entre si, se destruindo e se reconstruindo, gerando maior acumulação de capital entre as empresas que vão se mantendo no mercado. Esse movimento empresarial e financeiro entrega para os – maiores – capitalistas todas as vantagens que o monopólio do capital é capaz de produzir. Em função disso, o que se tem são trabalhadores oprimidos, em condições de trabalho degradantes, mal ou pouco remunerados, orientados por uma exploração difícil de enfrentar – diante de um mercado de trabalho hostil – dominado pelas grandes corporações, sujeitados à satisfação com o pouco que recebem, e com a dádiva de, ao menos, ter algum trabalho.

A realidade apresentada pelo documentário pode ser vista como um retrato da transformação social da força de trabalho em mercadoria. A partir do momento em que o trabalhador passa a vender sua força de trabalho para sobreviver, o trabalho passa a ser regulado conforme as leis de mercado e suas regras: oferta, procura e preço. É uma transformação que é inerente à economia de mercado, mas que – como mostra o documentário – traz inúmeros prejuízos à classe trabalhadora. Isso é o que Polanyi (2000) problematiza ao chamar o trabalho de “mercadoria fictícia”. O autor afirma que o trabalho não pode ser considerado uma mercadoria. A mediação das relações de trabalho pelas leis econômicas de mercado causa a transformação do trabalhador em vendedor de sua força de trabalho. Ao mesmo tempo, a transformação do trabalho em mercadoria afeta os indivíduos e a organização da vida humana. O documentário deixa evidente esse prejuízo que impacta não apenas os trabalhadores, posto que se mostra desastroso também para as empresas que são “engolidas” umas pelas outras. Trabalhadores vivem em precariedade, enquanto, de outro lado, as empresas fecham. Como se pode observar neste documentário, esse sistema predatório e economicamente orientado, concentra riqueza, ao mesmo tempo que destrói as relações humanas e de trabalho, posto que não é possível sobreviver em condições tão danosas e agressivas.

Nesse contexto de conflitos e perdas, se observa o neoliberalismo avançando na sociedade, como uma nova forma de capitalismo predatório, aumentando a concentração de poder pelas empresas, enfraquecendo os trabalhadores, exacerbando a desigualdade e o desequilíbrio entre forças. Nesse processo, a mentalidade economicamente orientada gera culpa nos trabalhadores pela sua condição desfavorável, pela exploração que não aceitaram, ou pela qualificação necessária que não obtiveram. A culpa que recai sobre o indivíduo é cuidadosamente construída pela lógica econômica e pelo capital dominante, representado pelas elites. A dimensão de políticas neoliberais produz condições sociais e de mercado que orientam os trabalhadores a se sentirem os únicos responsáveis por suas situações e essa culpa contribui para que o individualismo e o imediatismo irrefletido façam sentido para a classe trabalhadora.

A automação vertiginosa dentro da empresa chinesa exigiu novas habilidades, completamente diferentes, e postos de trabalho deixam de existir gerando mais desemprego. Em busca de enfrentar tantas situações desvantajosas, os trabalhadores se organizam coletivamente através da sindicalização para buscar melhorias nas condições de trabalho. Obviamente, diante do que já foi tratado sobre a situação dos trabalhadores na China, a reação da empresa chinesa à organização sindical dos trabalhadores estadunidenses não é bem recebida. Os funcionários que protestam – mesmo apresentando bom desempenho em seus postos de trabalho – são punidos com a demissão em função do envolvimento com o sindicato. E, uma vez que se encontram novamente desempregados, se questionam se não deveriam ter aceitado o trabalho como se apresentou – mesmo precariamente – e sem reclamar. Dardot e Laval (2016) explicam que essa é uma característica do sistema neoliberal que enfraquece as formas de mobilização e ação coletiva dos trabalhadores, uma vez que incentiva a concorrência entre os indivíduos de forma impiedosa, afetando as mentalidades e definindo a subjetivação. A história dos trabalhadores de Ohio mostra os dilemas e os paradigmas do capitalismo que se apresentam em diversos contextos dentro das situações vividas pelos moradores da cidade. A importância de debater os aspectos sociais, econômicos e políticos do trabalho através dos conceitos sociológicos é inegável.


Referências:

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal.; tradução Mariana Echalat. São Paulo: Boitempo, 2016.



INDÚSTRIA Americana. Direção: Julia Reichert, Steven Bognar. EUA: Netflix, 2019. Disponível em: https://www.netflix.com/br/title/81090071. Aceso em: 20 jan. 2020.



MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro 1, v. 2, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968. Capítulo XXIV.



POLANYI, Karl (2000). A Grande Transformação: as origens da nossa época. 2ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, p. 76-98.



SENNETT, Richard. A Corrosão do Caráter: as consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Tradução: Marcus Santarrita. 14ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2009.

* Artigo recebido em: 21 de abril de 2021. Aceito em: 22 de julho de 2021.

Graduanda em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, editora da Revista Ensaios, Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS)/ Graduações em Ciências Sociais e Sociologia da UFF), pesquisadora do grupo CNPq Subjetividade, Memória e Violência do Estado. Autora correspondente. e-mail: anabessa.uff@gmail.com.