Poiésis
, Niterói, v. 21, n. 35, p. 11-16, jan./jun. 2020.
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O que pode uma curadoria descolonial?
Manoel Silvestre Friques (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil)
*
Ricardo Basbaum (Universidade Federal Fluminense, Brasil)
**
https://doi.org/10.22409/poiesis.v21i35.40530
O dossiê temático da Revista Poiésis 35 traz a público uma constelação de
artistxs e autorxs que discutem, em entrevistas, textos e ensaios visuais, uma
série de questões relacionadas ao exercício e à prática descolonial da arte con-
temporânea brasileira e global. Parte-se aqui da constatação de que, al-
gumas décadas, as exposições de arte têm sido locais para o exercício do pen-
samento descolonial
1
, por meio de obras e práticas que privilegiam os processos
de subjetivação, de simbolização e de representação subalternizados, bem como
a performatização de histórias e culturas não-hegemônicas.
*
Manoel Silvestre Friques é Professor Adjunto do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro (UNIRIO) e do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena (UFRJ). Atualmente realiza pós-doutorado no Programa
de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes (UFF). E-mail: manoel.friques@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-
0002-0106-2006
**
Ricardo Basbaum é artista, curador e Professor Titular Livre do Departamento de Arte do Instituto de Arte e Comunicação Social da
Universidade Federal Fluminense, com atuação como Professor Permanente no Programa de Pós-Graduação em Estudos Contempo-
râneos das Artes. E-mail: ricardobasbaum@gmail.com
Manoel Silvestre Friques; Ricardo Basbaum. O que pode uma curadoria descolonial?
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Em um dado momento, estas práticas eram
reunidas em torno de uma perspectiva cu-
ratorial euro-americana através do olhar
ambivalente da figura do curador (particu-
larmente inserido nos circuitos institucionais
e econômicos privilegiados), que, por meio
de um gesto condescendente às alterida-
des, se dispunha a inseri-las em um enqua-
dramento hegemônico, delineado sob nar-
rativas e fluxos históricos dominantes. Con-
tudo, atualmente, não apenas as obras e os
processos artísticos, mas, notadamente, as
práticas curatoriais, estão sendo apropria-
das por povos subalternizados, fazendo
com que o espaço expositivo que inclui o
espaço das obras, mas não se limita a elas,
envolvendo também novas institucionalida-
des e a produção de outros públicos e co-
munidades seja um campo de experimen-
tação de olhares, sentidos e saberes deixa-
dos à margem pela historiografia tradicional
da arte. Museus indígenas, práticas cuir e
contrassexuais, performances feministas,
afro-brasileiras e ameríndias nos fazem
constatar a fertilidade de perspectivas artís-
ticas e curatoriais descolonizantes que se
propõem a redistribuir as cartas do jogo
histórico, reconhecendo a importância de
uma intervenção também na economia do
discurso. Tais práticas revelam narrativas e
posicionamentos que questionam os regi-
mes de inteligibilidade, visibilidade e senso-
rialidade herdados do modernismo estadu-
nidense e das tradições artísticas do velho
continente.
O esforço deste dossiê temático não foi,
portanto, o de reunir um conjunto de con-
tribuições em uma experiência de arquivo
taxonômica ou classificatória que objetifica-
ria cada uma delas em seus grilhões identi-
tários e guetos essencializantes. Se concor-
damos com Grada Kilomba (2019, p. 28)
quando afirma que “a passagem de objeto
a sujeito é o que marca a escrita [e, para
nós, a produção artística contemporânea]
como um ato político”, por outro lado, não
compreendemos este sujeito como alguém
encarcerado em identidades fixas. Em ou-
tras palavras, se este dossiê agrupa contri-
buições autorais de curadorxs e artistxs ne-
grxs, indígenas, bixas, trans e mulheres,
não o faz, evidentemente, para reforçar fi-
guras exóticas e objetificadas por um olhar
heteronormativo, colonial e fetichista. Pois,
como a leitora poderá facilmente constatar,
cada uma das contribuições põe em mar-
cha, por distintos meios e modos, processos
de desidentificação (MUÑOZ, 2016; PRECI-
ADO, 2011; BUTLER, 2017) que problema-
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, Niterói, v. 21, n. 35, p. 11-16, jan./jun. 2020.
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tizam as premissas puristas bem como as
verdades aparentes que governam o pen-
samento hegemônico sobre tais identidades
e as questões daí derivadas e correlatas.
Sendo assim, concordamos tanto com Stu-
art Hall (2013, p. 382) quanto com Gayatri
Spivak a respeito da necessidade, mas in-
suficiência, de um “essencialismo estratégi-
co” em relação às lutas identitárias, tendo
em vista o perigo recorrente de natura-
lização de diferenças historicamente cons-
truídas. As contribuições provêm de corpos
falantes (PRECIADO, 2017) e de sujeitos fa-
lantes (KILOMBA, 2019, p. 74), enquanto
processos de subjetivação que, se por um
lado lançam mão de essencialismos estra-
tégicos (a bixa, a mulher, o indígena etc.)
tão somente para questionar os rótulos
identitários a eles atribuídos por processos
de subalternização, por outro reconhecem
sua singularidade e força políticas na pro-
dução de novas formas de vida e formas de
existência.
Estes movimentos de desidentificação de
corpos e sujeitos falantes são inseparáveis,
por sua vez, de processos de descoloniza-
ção do conhecimento e do inconsciente.
(ROLNIK, 2019, p. 29) Quanto a isso, refe-
rimos aqui ao título deste dossiê, qual seja,
à pergunta o que pode uma curadoria des-
colonial?”. Nela, o verbo cumpre uma fun-
ção decisiva, na medida em que entende-
mos, a partir de Foucault, que os jogos e as
relações de poder são jogos e relações de
saber e de produção de subjetividade.
Quando propomos tal pergunta, estamos
aqui abrindo mão do pensamento abissal
responsável pelo estabelecimento de fron-
teiras coloniais que demarcam os territórios
respectivos a brancos e não brancos; ho-
mens e mulheres; heterossexuais e não-
bináries; cis e trans; normal e abjeto ru-
mo a uma ecologia de saberes (SANTOS,
2007), que considera a inesgotável diver-
sidade epistemológica do mundo” e aponta
para uma radicalização democrática não-
essencialista” (MOUFFE, 2019).
Sendo assim, podemos dizer que todas as
contribuições se traduzem em respostas
afirmativas é bell hooks quem lembra que
“a teoria” é “um local para cura” (hooks,
2017). Uma curadoria descolonial pode, co-
mo discutem Mariah Rafaela da Silva, Ema-
nuel de Almeida e Lorena de Paula Perasoli
em “Cura-dor: sobre contágios, fissuras e
práticas anticoloniais”, expor as premissas
hegemônicas que governam os dispositivos
universitários (Departamentos, ementas,
Manoel Silvestre Friques; Ricardo Basbaum. O que pode uma curadoria descolonial?
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políticas expositivas etc.) no mesmo com-
passo em que propõem processos de cura
das feridas e traumas coloniais. Mas uma
curadoria descolonial pode recusar a cura e
problematizar a assimilação mesma de des-
colonialidade, sugerindo uma compreensão
deste ofício enquanto exercício coreográfico
que mobiliza corpos, sujeitos, meios ex-
pressivos e movimentos, conforme propõe
Keyna Eleison em um ensaio que replica,
tão somente para produzir cortes e inci-
sões, a pergunta que batiza este dossiê. A
partir do ensaio de Keyna, tomamos conhe-
cimento do Manifesto “O homem adora o
que é doce e óbvio”, elaborado pela artista
nigeriana Colette Omogbai em 1965, no
qual a autora expõe a docilidade de um sis-
tema de arte fundado na fragilidade de um
realismo naturalizante perpetrado pelo ho-
mem colonial. O manifesto ganha aqui tradução
de Keyna Eleison e de Aline Leal.
Uma curadoria descolonial pode expandir, pro-
blematizando os regimes de expressões e frui-
ções arsticas, o circuito artístico vigente por
meio da inauguração de um equipamento cul-
tural em uma zona periférica da cidade, como
ocorre com o Galpão Bela Maré, localizado em
Nova Holanda, na Favela da Maré, no Rio de
Janeiro, conforme registram Isabela Souza da
Silva e Jean Carlos de Souza dos Santos em
Galo Bela Maré: sentidos e práticas curato-
riais urgentes”. Ou ainda, definindo-se en-
quanto uma tomada de posição a partir de
agenciamentos coletivos, uma curadoria des-
colonial pode mobilizar um grupo de artistes
para, através de pticas insurgentes, promo-
ver abalos tanto no sistema cisheteronormati-
vo quanto no sistema das artes, tal como re-
gistra Guilherme Altmayer em Notas para
uma curadoria transviada. Uma curadoria
descolonial pode tamm, a partir das feno-
menologias amendias, r em movimento
um processo de indigenização de currículos e
espos expositivos, tal como negrita o profes-
sor universirio e curador indígena canadense
Gerald McMaster em sua entrevista ao antro-
pólogo Idjahure Kadiwel.
Fundamentalmente, uma curadoria desco-
lonial pode pôr em diálogo sujeitos, proces-
sos e criações comprometidos com novos
regimes de inteligibilidade e de visibilidade,
tais como os ensaios visuais de Ícaro Lira,
Yhuri Cruz, Edgar Calel e Luanda (Patrícia
Francisco). Em “Lições da Pedra” título re-
tirado de sua exposição em Paris em 2019-
20 , Lira reúne trabalhos que, a partir da
combinação de objetos e elementos heteró-
clitos, performatizam, por assim dizer, os
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, Niterói, v. 21, n. 35, p. 11-16, jan./jun. 2020.
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silenciamentos e deslocamentos dos regi-
mes históricos. Assim como faz, de modo
distinto, Edgar Calel, em registros de ações
e exposição que dão a ver, em “Memoria
del Movimiento”, uma estética da diáspora
ameríndia. Em “Eixos”, Cruz propõe um
exercício gráfico-arquitetônico das páginas,
reforçando os questionamentos afrodiaspó-
ricos recorrentes em obras que consideram
a história enquanto uma produção ficcional
de visibilidades e apagamentos calcada
na construção de monumentos. Por sua
vez, Patrícia Francisco, em “Série Mesa de
Griot”, delineia aspectos politizantes das
práticas religiosas de matriz africana, des-
dobrando vivências advindas da experiência
espiritualizada em terreiros de Umbanda
através do nome Luanda, apresenta práti-
cas coautorais, decorrentes de suas rela-
ções com entidades afro-brasileiras.
Heterotopias, pontes, desidentificações, des-
territorializações, rotas, fissuras, hibrida-
ções, indigenizações, insurgências, latinoa-
mefricanizações, transviamentos, descen-
tralizações, agenciamentos, rituais, espiri-
tualidade: tudo nos leva a crer, a partir da
constelação de contribuições desta edição
da Revista Poiésis, que uma curadoria des-
colonial pode, e muito urgentemente.
Notas
1
Utilizamos o termo descolonial aqui por dois motivos.
Em primeiro lugar, por achar que de-colonial se traduz
em um anglicismo. De fato, a tradução em português
para o termo seria descolonial. Além disso, considera-
mos o pensamento descolonial como aquele produzido
sob a perspectiva do Sul Global, tendo em mente o si-
lêncio ou a “obliteração da teoria pós-colonial às con-
tribuições de intelectuais da América Latina”, confor-
mem esclarecem Bernardino-Costa & Grosfoguel (2016,
p. 16). Não se trata, por outro lado, de descartar os
teóricos do pós-colonialismo, a exemplo de Stuart Hall,
referido neste texto. A questão aqui diz mais respeito a
compreender o risco também partilhado pelos estudos
descoloniais do pós-colonialismo ser menos um con-
ceito crítico do que cúmplice de uma nova ordem capi-
talista global. Ou seja, o risco de uma “repetição des-
sa episteme colonial na pós-colonialidade”. (SPIVAK,
2019, p. 256)
Referências
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Manoel Silvestre Friques; Ricardo Basbaum. O que pode uma curadoria descolonial?
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16
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que (Org.). Quem reivindica a alteridade?
Pensamento Feminista: conceitos funda-
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2019.
Citação recomendada:
FRIQUES, Manoel Silvestre; BASBAUM, Ricardo.
O que pode uma curadoria descolonial? Poiésis,
Niterói, v. 21, n. 35, p. 11-16, jan./jun. 2020.
[https://doi.org/10.22409/poiesis.v21i35.40530]