Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 281-298, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.44461)
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Jogos-rituais na encruza: pesquisa performática entre
feminismos decoloniais e ancestralidade
Ritual Games at the Crossroads: Performance Research Between
Decolonial Feminisms and Ancestry
Juegos rituales en la encrucijada: investigación escénica entre
feminismos descoloniales y ascendencia
Mariana de Queiroz Cezar (Universidade Federal Fluminense, Brasil)
*
https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.44461
RESUMO: Este artigo trata de uma pesquisa performática em processo de criação
de jogos-rituais, entrelaçando vivências diárias com feminismos decoloniais, per-
formance ritual e simbologias do número três intrínsecas à Exu. A partir de uma
carta contínua endereçada a Gloria Anzaldúa, discorre-se como conceitos teóricos
decoloniais se conectam com ações performáticas coletivas e aos princípios do ori-
. O presente trabalho investiga a encruzilhada como expansão de possibilidades
de ser mulher, utilizando a necessidade da enunciação de si sendo tão urgente pa-
ra pensarmos arte, política e cotidiano na cena contemporânea latina.
PALAVRAS-CHAVE: ancestralidade; performance ritual; feminismos decoloniais
*
Mariana de Queiroz Cezar é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes da UFF. Cursou Arte
dramática na ETET Martins Penna e Relações Internacionais na UFRJ. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7386-0170. E-mail: mariquei-
rozczar@gmail.com.
Mariana de Queiroz Cezar, Jogos-rituais na encruza: pesquisa performática entre feminismos decoloniais...
282
ABSTRACT: This article deals with a performance research in the process of creat-
ing ritual games, intertwining daily experiences with decolonial feminisms, ritual
performance and symbols of the number three intrinsic to Exu. From a continuous
letter addressed to Gloria Anzaldúa, it is discussed how decolonial theoretical con-
cepts are connected with collective performance actions and the principles of the
orisha. The present work investigates the crossroads as an expansion of the possi-
bilities of being a woman, using the need for self-enunciation being so urgent to
think about art, politics and daily life in the contemporary Latin scene.
KEYWORDS: ancestry; performance ritual; decolonial feminisms
RESUMEN: Este artículo trata de una investigación de performance en el proceso
de creación de juegos rituales, entrelazando experiencias cotidianas con feminis-
mos decoloniales, performance ritual y símbolos del número tres intrínsecos al
Exu. A partir de una carta continúa dirigida a Gloria Anzaldúa, se discute cómo los
conceptos teóricos decoloniales se relacionan con las acciones de actuación colecti-
va y los principios del orixá. El presente trabajo indaga en la encrucijada como una
ampliación de las posibilidades de ser mujer, utilizando la necesidad de auto enun-
ciación tan urgente para pensar en el arte, la política y la vida cotidiana en la es-
cena latina contemporánea.
PALABRAS CLAVE: ascendência; performance ritual; feminismos descoloniales
Recebido: 31/8/2020; Aprovado: 5/12/2020; Publicado: 2/1/2021.
Citação recomendada:
CEZAR, Mariana de Queiroz. Jogos-rituais na encruza: pesquisa performática entre feminismos
decoloniais e ancestralidade. Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 281-298, jan./jun. 2021.
[https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.44461]
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Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 281-298, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.44461)
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A força da pulsação do meu coração e a
vibração da minha garganta que sinto ao
cruzar exposições de eus, firmando pontos
de conexão entre diferentes vias da minha
existência na terra, me faz agradecer ao
que me mantém em pé, viva e corajosa
para ocupar o meu propósito de existên-
cia. O que sustenta essa força vital de
realização, ação e voz no mundo é o axé,
“força que assegura a existência dinâmica,
que permite o acontecer e o devir. [...] É
o princípio que torna possível o processo
vital.” (DOS SANTOS, 1997, p. 39)
Mariana de Queiroz Cezar, Jogos-rituais na encruza: pesquisa performática entre feminismos decoloniais...
284
Juana Elbein dos Santos discorre sobre o
axé em três pontos centrais: sua presença
necessária em todas as coisas; suas pos-
sibilidades de expansão ou retração; e sua
característica de poder ser transmitido en-
tre as coisas existentes. Uma das linhas
de condução dessa transmissibilidade do
axé é através da ancestralidade, como
costura entre os tempos para fortaleci-
mento das nossas potencialidades, para
sobrevivência presente e construção futu-
ra. Então, agradeço à toda nossa ances-
tralidade que nos trouxe até aqui e nos le-
vará a muitos lugares mais. s as leva-
remos conosco também. Juntas, abrimos
caminhos.
Para estar onde estamos, quantas mulhe-
res transbordaram fronteiras? Abrir cami-
nhos para quem vem é transmissão de
axé. Quantas mulheres dedicaram suas
vidas à transformação e à construção co-
letiva de futuros que hoje estamos viven-
do? O que continuamos hoje? Para embar-
car no tempo histórico da resistência é
preciso pressa, porque estar nele é intrin-
secamente ligado aos nossos viveres, sa-
beres e memórias.
Escrevo hoje, em agosto de 2020, esta
carta contínua para Glória Anzaldúa, bus-
cando comunicação mais direta com essa
costura do tempo como mais uma chance
e tentativa de agradecimento, pertenci-
mento e fortalecimento. Anzaldúa foi uma
chicana entre-fronteiras (PALMEIRA, 2020)
que mergulhou na escrita como forma de
resistência, desenvolvendo uma teoria de
existência nas fronteiras. Em maio de
1980, com Falando em línguas: uma carta
para as mulheres escritoras do terceiro
mundo, ela coloca suas tripas no papel e
nos convida a formas de fazer com que
esse ato de potência possa se entrelaçar
ao cotidiano de sobrevivência e violência
das mulheres latinas. Sua obra tem pers-
pectiva mestiça, recebendo influência das
fronteiras entre México e EUA, desdobran-
do questionamentos de como esse não-
lugar se estende aos múltiplos aspectos de
raça, gênero e até de nação. Anzaldúa en-
trega toda angústia e potência de olhar
para si e ver tantas; em sentir um turbi-
lhão de possibilidades que não tem onde
escoar; de poder aterrar vivências e co-
lher multiplicidades.
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Nossa estrutura político-econômico-socio-
cultural é feita de obstáculos, feridas e
opressões profundas que operam ativa-
mente a cada movimento nosso. Abraçar o
impulso permanente de transformação,
que é próprio da vida, é contra hegemôni-
co, que o padrão é o da rigidez e en-
gessamento das possibilidades, hierarqui-
zando e silenciando existências através do
sexismo e do racismo, bases do capitalis-
mo. Sentimos sintomas dessa dinâmica
perversa a todo tempo e cada passo que
damos em direção a nós mesmas é uma
ruptura com esse sistema. O caminho de
volta é grande, mas a dor de não o refazer
maior ainda.
São de vidas que me preencho a cada
respiro nessa terra de certezas intranspo-
níveis e excludentes. Dou-me chances de
observar, criticar e transformar a cada de-
talhe cotidiano, pois são nas frestas que
potencializamos nossa autonomia. Senão,
quem sucumbe somos nós. Desacreditan-
do na mudança e nos invisibilizando, em-
barcamos na falácia de uma universalida-
de do sujeito que tem como objetivo
nos inferiorizar. Anzaldúa conta-nos na
carta detalhes do cotidiano que nos afas-
tam de escrever para assim nos desnudar,
para expandir, para existir para nós e para
o mundo. Porque quando não somos visí-
veis no mundo, temos que nos esforçar
mais para podermos enxergarmo-nos e
para confiar na importância do que temos
em nossos corpos para estarmos aqui.
As palavras não saem de mim, escritas
nem faladas, senão muito pensadas, mas
por que não dizer, um tanto medidas com
medidores externos que encurtam minhas
linhas/línguas pela metade e meu pensa-
mento parece sem qualidade. É de início
que logo uso meus subterfúgios: falar do
macro e, agora, rimar. Fujo das sensações
paradoxais que me apresentar me causam
ou corro de encarar as vulnerabilidades
Mariana de Queiroz Cezar, Jogos-rituais na encruza: pesquisa performática entre feminismos decoloniais...
286
que queimam quando chego mais perto. O
que eu proponho pesquisar é diretamente
ligado ao cerne de tudo que me move, no
íntimo e no público. E, ainda agora, não
consigo fugir da sensação de falta. Falta
minha de desempenho, de valorização, de
confiança. Escrevo como se tivesse me
esquivando de uma bola em um jogo de
queimado, ou como se estivesse em um
labirinto no qual ando nas bordas
quando a saída está no meio.
Sinto palpitar descompassado o coração,
encontrar um certo bambear nas pernas e
me sinto enjoada, com uma bola de ener-
gia peluda e cinza acoplada no centro do
meu peito. Minha garganta se estreita. Es-
crevo e tenho medo das palavras, corro
por entre neblinas de metáforas. Me as-
susta pesquisar o movimento cíclico de vi-
da e morte, destruição e criação, luz e es-
curidão. Mais ainda me assusta transitar
através do entre nessas dimensões. Sentir
meu cotidiano embalado e afetado por
opostos me faz pesar para alguns lados,
às vezes forte, grande e, outras vezes, um
quase vazio. A dor de ter consciência dos
apagamentos de partes de si mesma se
faz presente no momento quando mate-
rializamos nossa expressão, desenhando a
faca de dois gumes que é o exercício de
escrever, criar e transformar a partir de
quem somos. Hoje, a imagem que eu te-
nho de mim é: a minha mão sempre pres-
tes a pegar um chicote/caneta. Eu, na
iminência do passo para o abismo, preciso
afiar minhas intuições frente aos medos
diários de confiar e seguir minhas apostas,
caminhos e sentidos.
Feminismos decoloniais
As maneiras pelas quais as teorias femi-
nistas decoloniais podem provocar, invo-
car, fortalecer um processo artístico
transdisciplinar se estabelece como uma
das questões centrais. Quais caminhos
podemos percorrer através das diferenças
decoloniais para resgatar partes nossas si-
lenciadas/apagadas e, assim, buscar me-
lhor compreender nossos contextos com-
plexos de mulheres latino-americanas pa-
ra traçar futuros? Utilizar-se da decolonia-
lidade como impulso para narrativas ex-
pandidas que multipliquem nossas possibi-
lidades de ser mulher, que nos conecte
com imagens e forças que também nos
pertencem, mas que, ao longo de uma
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construção colonizadora de gênero e raça,
nos foi negada.
Pensando, então, um recorte na pesquisa
decolonial: para se revelar o escondido é
necessário olhar para trás, é necessário
resgatar memórias e vivências que no
processo de colonização foram subjuga-
das, silenciadas e oprimidas, de muitas
formas e em muitas camadas. Através
desse movimento, experimentar na cria-
ção artística simbologias, elementos e sa-
beres que resistem muitas gerações,
atravessando nossas ancestralidades.
Feminismos decoloniais o nomeclaturas
para a crescente lista de feminismos s-
colonialistas desde 1980 que, buscando
frentes práticas e tricas, foram impul-
sionados a criticar duramente as ondas
do feminismo hegemônico apoiado em
um recorte branco, localizado no norte do
globo, ocidental, elitista e heterossexual
como sendo pautado universal. Logo de
cara deve-se colocar a importância da
enunciação de si mesma como sujeito, li-
gando diretamente a vivência diária com
a escrita e a produção de conhecimento
acamico. É necessário sair da redoma
sufocante de uma universalidade eu-
rocêntrica para cair no abismo das fratu-
ras coloniais que recaem sobre cada
uma, costurando nossas próprias suturas
entre cotidiano e pensamento.
Um dos motores centrais para autoras ne-
gras, latino-americanas, LGBTQAI+, indí-
genas, asiáticas, queer; mulheres subal-
ternizadas pela hierarquia geopolítica é a
questão: qual sujeito mulher? As condici-
onalidades e consequentes pautas apre-
sentadas pelo feminismo branco permiti-
am a manutenção do status quo construí-
do pela dominação e imposição da visão
de mundo sustentada pela colonialidade
do poder (QUIJANO, 2005). Um imaginário
e um real estreitos em imagens que só re-
fletiam uma pequena parcela de mulheres,
corroborando em apagamentos e silenci-
amentos violentos de existências, histórias
e pautas urgentes. Assim, é possível per-
ceber como é necessária a valorização de
saberes e vivências outras, fora da hierar-
quia dicotômica produzida pela coloniza-
ção e, consequentemente, da situação co-
lonial gerada pelos ramos de controle da
colonialidade, quanto à economia; autori-
dade, natureza e recursos, gênero e sexu-
alidade; subjetividade e conhecimento.
(GROSFOGUEL, 2007)
Mariana de Queiroz Cezar, Jogos-rituais na encruza: pesquisa performática entre feminismos decoloniais...
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Frestas para escapar da dicotomia de ser
ou não ser. Estar entre um e outro é uma
terceira via que dá na encruzilhada de múl-
tiplas possibilidades de existir. Entre um e
outro, ficamos com o entre. Porque é ele
quem abre para a chance do constante
movimento, da permanente mudança, que
é tão intrínseco aos ciclos de vida-morte-
vida. Sentir-se mudança e acompanhar
como se fosse uma dança não é tão fácil
quanto na rima. A conexão com as poten-
cialidades particulares de se sentir mulhe-
res é desprezada por dominações coloniais
que enrijecem e delimitam as experiências
com nosso autoconhecimento.
Aníbal Quijano denominou colonialidade a
lógica do poder colonial que segue ope-
rando e produzindo segmentações raciais,
sociais e de gênero. A matriz de análise
para o autor peruano é o conceito de Wal-
lerstein de sistema-mundo, apontando a
existência de fenômenos de dominação
das forças de trabalho ligado à segmenta-
ção racial do mundo, gerando precariza-
ção da vida e hierarquias geopolíticas a
partir das diferenças coloniais. É central
entender a coetanidade entre modernida-
de e colonialidade, isto é, de que maneira
esses dois fenômenos são simultâneos e
interdependentes, estando seus surgimen-
tos e suas temporalidades diretamente
entrelaçados.
É necessário buscar o conceito de “colonia-
lidade do poderde Aníbal Quijano redese-
nhando assim as relações intersubjetivas e
culturais entre a Europa Ocidental e o resto
do mundo atras de codificações em cate-
gorias bipolares: Oriente-Ocidente, primiti-
vo-civilizado, mágico/mí-tico-científico, ir-
racional-racional, tradicional-moderno. O
autor aponta o evolucionismo e o dualismo
como elementos focais do eurocentrismo,
logo, parte do movimento de colonizão
da Europa e da Não-Europa. Se constituin-
do como uma forma de classificação de
formas de existências, de culturas, de pes-
soas e hierarquizando as dicotomias para
manter o próprio status quo com a inferio-
ridade dos colonizados.
Dessa maneira, Quijano coloca à luz quan-
tas camadas culturais, políticas e sociais
foram abafadas por uma perspectiva he-
gemônica europeia, o eurocentrismo. Qui-
jano discorre sobre como o atual padrão
de poder é composto e, por isso, de que
maneiras se forma um sistema articulado
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no âmbito da existência social. Apontando,
assim, três elementos centrais que afetam
a vida cotidiana da maior parte da popula-
ção mundial: a colonialidade do poder, o
capitalismo e o eurocentrismo. O autor
apresenta entendimento histórico da inse-
parabilidade dos processos de racialização
e de exploração capitalista, enraizada na
colonização das Américas. Maria Lugones
utiliza seu termo e dá continuidade.
Lugones usa o termo colonialidade para
pensar o processo ativo de redução de
pessoas, desumanização pela classifica-
ção, o processo de subjetivação. A coloni-
zação deixou conosco o que a autora
chama de colonialidade dos gêneros, atra-
vés da intersecção raça/classe/gênero
como instrumento central do sistema
mundial capitalista de poder. Nessa pes-
quisa artística buscamos o olhar da autora
para as “diferenças coloniais” e deslocar
nossas percepções às ltiplas subjetivi-
dades possíveis. Podemos identificar o lu-
gar do lócus fraturado como o entre que
destacamos também nas obras de Judith
Butler e Luiz Rufino. Apontamos a presen-
ça das potências e das simbologias do
número “3” como possível passo para sair
das dicotomias hierarquizadas e para nos-
sa expansão de possibilidades e olhares
da existência social.
Mariana de Queiroz Cezar, Jogos-rituais na encruza: pesquisa performática entre feminismos decoloniais...
290
Para Lugones, os movimentos de resistên-
cia à colonialidade são feitos de forma co-
letiva. Esses conceitos impulsionaram a
criação do dispositivo performático de jo-
gos-rituais como uma vivência comparti-
lhada com amplitudes particulares, um
convite provocação para a observação de
nossas próprias ações no mundo e o reco-
nhecimento de possibilidades de expansão
de potencialidades do ser. A importância
dos caminhos abertos por Audre Lorde é
central para a pesquisa no que se refere à
necessidade de se conectar consigo para
potencializar nossas forças vitais e alcan-
çar possibilidades de fortalecimento coleti-
vo, cultivando multiplicidades de ser, estar
e viver. Além de colocar a ancestralidade
como chave nesse processo. O pensamen-
to poético da autora caribenha-americana,
assim como a premissa principal dos jo-
gos-rituais, propõem a experimentação
como maneira de percepção e dinâmica
cotidiana em relação à vida como um to-
do, vivenciando uma busca de mais possi-
bilidades e de menos certezas. Como ato
performático, buscamos inserir esse as-
pecto na imprevisibilidade do momento
frente à criação de espaços singulares, de
observação particular de si.
É possível conectar as sensações ambí-
guas presentes no resistir apresentado por
Maria Lugones às de Lorde acerca da im-
portância da transformação dos silêncios
em ação. É forte a maneira como Lorde
afirma a faca de dois gumes, que é ter
medo, mas precisar operar dessa forma
por sua própria existência no mundo. Fe-
minismos decolonais são construídos, e
estão em construção, através do entrela-
çamento da escrita com a vivência, da
prática com a teoria. São costuras entre
fraturas coloniais que expõem a intenção
de vazio da multiplicidade de existências.
São entres como esse que são motores
para a investigação performática da pes-
quisa, buscando nas brechas para nossa
autorrevelação o fortalecimento das nos-
sas potências singulares dentro de tantas
possibilidades de construções coletivas.
Práticas políticas feministas decolonais são
exercícios constantes que perpassam vá-
rias camadas da vida, pulsando de forma
integrada e em movimento permanente.
Lorde afirma acima esses cruzamentos
necessários para a percepção de episte-
mes outras, que não aquelas fixadas
como padrão, para a sobrevivência no pa-
triarcado branco. Ao mesmo tempo, con-
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vida para essa jornada íntima de autoco-
nhecimento e de busca ancestral para o
nascimento de futuros outros.
Pensando nesse movimento de expansão
das possibilidades de encontro e das mul-
tiplicidades da presença coletiva, através
de exercícios performáticos na criação de
jogos-rituais, investigamos os caminhos
para potencializar as singularidades na co-
letividade. intenção política de valori-
zar a multiplicidade através de dinâmicas
que abram espaço de confiar em si e nos
nossos instintos mais selvagens, genuínos.
Judith Butler aponta uma rejeição dessa
multiplicidade das interseções culturais,
sociais e políticas por uma insistência so-
bre uma coerência e unidade da categoria
“mulheres”. Em seu livro Problemas de
gênero: feminismo e subversão da identi-
dade, a autora apresenta problemáticas
da teoria feminista que se pretende única
e assim não alcança camadas de possibili-
dades. Restringir em definições unificadas
é limitador e despotencializa tanto as sin-
gularidades possíveis da expansão coletiva
quanto a luta política.
Atentando a essa questão, convocamos
aspectos do número “3” para criação de
jogos-rituais performáticos com o interes-
se de fortalecimento das potências pesso-
ais em um exercício coletivo, de conexão e
presença plural. O “3” traz a comunicação,
o desequilíbrio, as possibilidades de mo-
vimento, o não-dualismo e a incompletude
que se fazem necessários para expandir
as perspectivas e as ações de existências.
Mariana de Queiroz Cezar, Jogos-rituais na encruza: pesquisa performática entre feminismos decoloniais...
292
Conecto esse ponto diretamente ao cerne
da questão do primeiro capítulo do livro de
Butler:
O interesse de criar um ato performático
que seja uma experiência coletiva para
potencializar as diferenças, dando espaço
para variáveis de acordo com as e os par-
ticipantes é buscar, através de jogos-
rituais, envolver construções e intuições
pessoais em conexão com possibilidades
de presenças coletivas. O entrelaçamento
dos elementos no processo de criação tem
acontecido através dos estudos de simbo-
logias do número “3” e da investigação
por presenças da coletividade para provo-
car imprevisibilidades dentro da perfor-
mance. Cada etapa desse jogo-ritual so-
mente pode acontecer com um pouco de
cada um/uma dos presentes, em potência
de corpo, respiração, olhar, verbos, per-
guntas. Como experimentar o mesmo jo-
go-ritual em vários contextos, lugares,
pessoas visando múltiplas vivências é ins-
tigante para pensar a multiplicidade dos
encontros?
É possível apontar uma ponte entre a vi-
são de Butler com a apresentada por Luiz
Rufino no livro Pedagogia das encruzilha-
das. Rufino afirma que o princípio de Exu
ao ser invocado, por ser uma potência in-
disciplinável e incontrolável, faz com que
seja necessário considerar outras lógicas,
sendo elas dadas pela diferença cultural.
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Butler também busca outras vias para sair
da binariedade, expressando a importân-
cia de uma coalizão aberta que permita a
expansão das possibilidades e que não de-
limite certezas, assim como Rufino falando
das potências de Exu; a autora vibra pelas
dúvidas frente às tentativas de identida-
des enrijecidas. Buscamos conexão no en-
tre das diferenças teóricas e culturais dos
dois autores para afirmar a potencialidade
existente justamente no espaço liminar da
criação de jogos-rituais coletivos na pes-
quisa performática.
A pesquisa artística sobre as simbologias
do número “3” se revelou no processo de
crião atras de intuições e de uma
crescente inquietude provocada por bibli-
ografias acerca da estrutura biria da
construção ocidental de oposição, como
corpo/mente, feminino/masculino e emo-
ção/razão. As teorias decoloniais locali-
zam camadas de construção que cada su-
jeito tem sobre si através da geopolítica,
analisando historicamente de que manei-
ra a colonização enrijeceu, oprimiu e di-
zimou possibilidades de ser, viver e cons-
truir. Segundo Maria Lugones, a dicoto-
mia hierárquica como uma marca de hu-
manidade também se tornou uma ferra-
menta normativa de condenação dos co-
lonizados.” (2019, p. 359)
As potências e simbologias do mero 3
vieram como intuição logo no início do
processo acadêmico, assim como faz Exu,
e veio se colocando na pesquisa através
de frestas, de entres, suscitando a encru-
za do autoconhecimento para fortaleci-
mento das nossas singularidades encarna-
das. Pensar o “3” como um disparador de
possibilidades, através da investigação
dos seus aspectos, simbologias e práticas,
buscando instrumentalizá-lo como resis-
tência decolonial. Maria Lugones afirma a
importância do movimento de revelar o
que está escondido, de expandir as per-
cepções das camadas culturais, sociais,
espirituais com as quais estamos envolvi-
dos e como, ao mesmo tempo, estamos
inseridos em uma construção ocidental
que para se experimentar o que se é ne-
cessita resistência.
Mariana de Queiroz Cezar, Jogos-rituais na encruza: pesquisa performática entre feminismos decoloniais...
294
Assim, a centralidade do “3” para a cria-
ção dos jogos-rituais é um exercício de
alargamento da comunicação, da expres-
são criativa e do fortalecimento da multi-
plicidade de resistências. Muito nos desa-
fia e interessa pesquisar caminhos de vi-
vências da teoria, de maneira que é insti-
gante criar dinâmicas através do motor da
ruptura com a rigidez da binariedade e a
dicotomia hierárquica dos poderes.
Performance ritual
A pesquisa busca a ampliação de singula-
ridades para fortalecimento coletivo atra-
vés da investigação performática de jo-
gos-rituais na encruza. Emaranhados para
ritualizar autonomias através de simbo-
lismos, afiando formas de se ouvir e de
potencializar nosso cotidiano. São artísti-
cos, políticos e espirituais aspectos que se
cruzam nesta experimentação coletiva,
mas singular.
As bases de criação para os jogos-rituais
entrelaçam alguns pontos referentes à
performatividade ritualística. Leda Maria
Martins, em Afrografias de memórias, in-
vestiga as camadas sobrepostas presentes
na performance através do estudo profun-
do das religiões de matriz africana Conga-
dos e Reinado.
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Com essa proposição de Martins é possível
fazer o paralelo com o conceito de limina-
ridade utilizado por Turner (1974) e Sche-
chner (2012), como é apontado na análise
comparativa de Grasielle Aires da Costa.
No ritual as fronteiras e limites do tempo
espaço se destacam do cotidiano. A de-
finição de ritual como “memórias de ação”
(SCHECHNER apud COSTA, 2013) também
inclui esse movimento gerado pelo ato ri-
tual em todos os elementos, objetos, sím-
bolos ou códigos presentes. Essa ideia de
memória viva se conecta diretamente com
a colocação de Leda Martins de que costu-
rar os fios da memória também escreve
histórias.
A imagem desse ir ao passado para cons-
truir futuros dentro de uma intenção colo-
cada em um determinado tempo e espaço
específico é o desenho da temporalidade
espiralada no qual os eventos desembo-
cam em transformações, que Martins de-
senvolve ao falar das possibilidades de re-
arranjos filosóficos, espirituais, sociais que
os sujeitos envolvidos podem passar atra-
vés da experiência do ritual.
Encruzilhada Laroyê!
Será que existe ainda alguma aleatorieda-
de de coincidências quando começamos a
vivenciar nossas experiências diárias e ar-
tísticas com a percepção das potentes
possibilidades da intencionalidade que
alimentar nossa intuição produz em nos-
sos caminhos? Intuição é ouvir sussurros
surpresas, é seguir impulsos profundos e é
permitir sair-se do controle racional para
receber vozes e autonomias presentes em
nosso entorno. Segundo Juana Elbein dos
Santos, na cultura Yoruba a simbologia do
número “3” pode ser apresentada como:
Mariana de Queiroz Cezar, Jogos-rituais na encruza: pesquisa performática entre feminismos decoloniais...
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A centralidade das simbologias e aspectos
do número “3” foram crescendo na pre-
sente pesquisa através da experimentação
prática de desdobramentos do número em
dinâmicas performáticas e no conceito de
pedagogia das encruzilhadas”, de Luiz
Rufino. O autor conecta diretamente o
número “3” ao ori e princípio dinâmico
da comunicação e da expansão Exu. Juana
Elbein dos Santos se dedica ao entendi-
mento de Exu como princípio dinâmico e
de existência individualizada para o Sis-
tema Nagô, especialmente na qualidade
de Exu Bara. A autora explica o aspecto
de “+1”, pois tudo que existe tem seu
próprio Exu, logo é sempre contando
com mais ele. Ela também aponta como
essa adição de mais uma unidade evoca a
continuação, o movimento constante e o
inacabamento.
A ideia de “cruza” funciona como invoca-
ção de todos os caminhos possíveis de
possibilidades, transitando pelos mundos
material, imaterial e espiritual. O intuito
principal desse processo artístico de cria-
ção de jogos-rituais é expandir espaços
para a imprevisibilidade coletiva, atentan-
do que, para funcionar, precisa de uma
multiplicidade de caminhos de fortaleci-
mento das singularidades. Experimentar
dinâmicas com elementos do jogo e do ri-
tual para investigar desdobramentos im-
previsíveis a partir de deslocamentos das
lógicas estabelecidas em relação às cama-
das de existência. No que se refere a co-
mo nos colocamos no mundo, potenciali-
zar nossa escuta conosco sobre intuições e
ações como cura às dicotomias hierarqui-
zadas que oprimem possibilidades de ser.
E assim, atingem não o singular, mas
também o funcionamento do todo.
O quanto de caminho tem custado à sola
dos nossos pés a constante busca de equi-
líbrio na corda bamba da dicotomia de vi-
ver, ser, criar em um sistema construído e
mantido pela colonialidade do poder? A
regra de dois necessária para sustentar o
jogo de poder da colonização é equação
básica para engessar possibilidades de vi-
da, pois coloca como base epistemológica
a binariedade. O eu e o outro; espírito e
corpo; feminino e masculino; branco e
não-branco; ciência e não-ciência; teoria e
prática; bem e mal; sujeito e objeto. O
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 281-298, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.44461)
.
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pensamento dicotômico nos divide, nos
torna chapados em dois lados. Encontro
na potencialidade da encruzilhada, prática
e caminho para decolonização cotidiana,
para pensar multiplicidade no uno, para o
inconformismo diante das consequências
da colonialidade, assim como também en-
contrar esperança ao combater o esque-
cimento através da ancestralidade como
possibilidade de vida.
É na encruzilhada que os jogos-rituais
acontecem, com o intuito de resgatar a
expansão de possibilidades que acompa-
nham nossa ancestralidade, no sentido de
convocar as potencialidades de encontros,
de criatividade, de comunicação que são
intrínsecos da energia dinâmica de Exu, o
dono da encruzilhada. O entendimento da
importância de investigar a multiplicidade
de saberes da encruza é central para o en-
trelaçamento com ações práticas feminis-
tas decolonais, no que se refere à expan-
são das possibilidades de existências, in-
cluindo inscrições do sujeito “mulher”.
Mariana de Queiroz Cezar, Jogos-rituais na encruza: pesquisa performática entre feminismos decoloniais...
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