Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 301-330, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.44530)
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Entre a Terra e o corpo: a experiência da natureza
na obra de Giuseppe Penone
Between Earth and the Body: The Experience of Nature
in the Work of Giuseppe Penone
Entre la Tierra y el cuerpo: la experiencia de la naturaleza
en el trabajo de Giuseppe Penone
Arthur Simões Caetano Cabral (Universidade Federal de Goiás, Brasil)
*
https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.44530
RESUMO: O presente artigo procura discutir as possibilidades de experiência sen-
sível da natureza suscitadas pelas obras de Giuseppe Penone. Entendida enquanto
fenômeno estético, tal experiência pressupõe um contato direto entre o homem e
a Terra. O espaço produzido nas obras de Penone, no qual torna-se possível esse
contato, é aqui entendido como uma realidade sempre compartilhada, na qual su-
jeito e objeto confundem-se mutuamente. Nesse sentido, a produção de Penone
situa-se a meio caminho entre a Terra cuja materialidade é, a um tempo,
tema e suporte de expressões artísticas e o corpo que a esculpe, a decalca, a
imagina, a sonha, a experimenta.
PALAVRAS-CHAVE: arte e natureza; experiência sensível; imaginação da matéria;
Giuseppe Penone
*
Arthur Simões Caetano Cabral é doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo e professor do curso de Arquite-
tura e Urbanismo da Universidade Federal de Goiás. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2921-4374. E-mail: arthur.cabral@ufg.br.
Arthur Simões Caetano Cabral, Entre a Terra e o corpo: a experiência da natureza na obra de Giuseppe Penone.
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ABSTRACT: This paper discusses the possibilities of sensitive experience of na-
ture raised by the works of Giuseppe Penone. Understood as an aesthetic phe-
nomenon, such experience presupposes a direct contact between the man and the
Earth. The space produced in Penone's works, in which this contact is possible, is
here understood as a reality that is always shared, in which subject and object are
mutually confused. In this sense, Penone's production is located halfway between
the Earth - whose materiality is, at the same time, the theme and support of ar-
tistic expressions - and the body that sculpt, decal, imagine, dream, experiment.
KEYWORDS: art and nature; sensitive experience; material imagination; Giuseppe
Penone
RESUMEN: Este artículo analiza las posibilidades de experiencia sensible de la
naturaleza planteada por las obras de Giuseppe Penone. Entendida como un fe-
nómeno estético, tal experiencia presupone el contacto directo entre el hombre y
la Tierra. El espacio producido en las obras de Penone, en el que este contacto es
posible, se entiende aquí como una realidad que siempre se comparte, en la que
sujeto y objeto se confunden mutuamente. En este sentido, la producción de Pe-
none se encuentra a medio camino entre la Tierra, cuya materialidad es, al mismo
tiempo, el tema y el soporte de expresiones artísticas, y el cuerpo que esculpe,
calcomanía, imagina, sueña y experimenta.
PALABRAS CLAVE: arte y naturaleza; experiencia sensible; imaginación de la mate-
ria; Giuseppe Penone
Recebido: 11/8/2020; Aprovado: 7/12/2020; Publicado: 2/1/2021.
Citação recomendada:
CABRAL, Arthur Simões Caetano. Entre a Terra e o corpo: a experiência da natureza na obra de
Giuseppe Penone. Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 301-330, jan./jun. 2021.
[https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.44530]
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Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 301-330, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.44530)
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Entre a Terra e o corpo: a experiência da natureza
na obra de Giuseppe Penone
Introdução
No fim dos anos 1960, as ações de diver-
sos artistas americanos e europeus volta-
ram-se para além do campo produtivo da
sociedade industrial e para além do espa-
ço urbano. Considerando as grandes cida-
des contemporâneas e seus mais diversos
artifícios como expressões do domínio
técnico do mundo, a land art e arte povera
procuraram remontar, em grande medida,
à ancestralidade da obra humana. A expe-
riência dos landartistas, de maneira geral,
visava restituir à arte o instante do gesto
a partir do qual ela tem origem, o evento
que assinala a passagem da matéria des-
de sua condição natural ao mundo huma-
no. Ações e ritos que remontavam a vi-
sões míticas do mundo, a contrapelo dos
processos econômicos e culturais ociden-
tais contemporâneos, constavam dos ex-
perimentos desses artistas. O modo como
o homem se reporta à natureza, perce-
bendo a si próprio como ser estranho a
ela, de maneira geral, pode ser entendido
como uma das questões centrais da pro-
dução artística desse período.
Arthur Simões Caetano Cabral, Entre a Terra e o corpo: a experiência da natureza na obra de Giuseppe Penone.
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A concretização e a atribuição de formas
sensíveis às categorias do espaço e do
tempo, segundo Gilles Tiberghien (2005),
são colocadas em jogo pela land art. A
partir do reconhecimento de certos territó-
rios, muitas vezes inóspitos ou apartados
de quaisquer assentamentos humanos, di-
ferentes procedimentos eram adotados
para que se imprimissem marcas sobre
eles. Seja em manifestações totêmicas,
mediante a colocação de grandes rochas
ou de movimentações colossais de terra,
seja com a demarcação sutil de linhas
efêmeras sobre certo campo, entre tantas
outras abordagens, muitas das experi-
mentações artísticas dos anos 1960 se
voltavam à paisagem. Na condição de
marcas inscritas sobre o terreno, essas
obras eram deixadas ao tempo, podendo
fundir-se a elementos naturais preexisten-
tes, modificar-se ou até mesmo desapare-
cer com o passar dos anos. Trata-se de
uma produção artística que considera o
tempo tanto em seus ritmos proporcionais
à condição humana o tempo do processo
de elaboração e o tempo de experiência
sensível das obras como também o
tempo incomensurável da natureza, as-
pecto pelo qual é possível reafirmar o for-
te parentesco entre a land art e a paisa-
gem
1
.
Considerando os nexos estabelecidos en-
tre as noções de paisagem e arte, este ar-
tigo propõe a análise de obras do artista
italiano Giuseppe Penone, realizadas no
decorrer das últimas décadas do século
XX, com vistas à detecção dos modos pe-
los quais a poética dessas obras permite
que venham à tona experiências sensíveis
da natureza. As obras de Penone, de ma-
neira geral, remontam à ancestralidade da
relação entre o homem e a Terra, na me-
dida em que, mediante gestos escultóricos
muito simples (tais como segurar com a
mão o ramo de uma árvore, como se fos-
se possível interferir em seu crescimento,
ou fechar a mandíbula para que se molde,
com o negativo da boca, uma porção de
massa plástica), correspondem à inaugu-
ração de um mundo humano a partir da
interação com uma natureza que sempre
se fecha, que nunca se revela por comple-
to. Com efeito, Penone (2012) afirma que
um dos interesses centrais de sua arte é
estabelecer equivalências entre a força de
seu gesto e as forças da natureza.
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É possível depreender, a partir de uma vi-
são geral de sua obra, que a natureza
comparece para Penone não apenas como
uma força de resistência, como uma ma-
téria dura ou mole cujo embate com suas
mãos origem à obra, mas também co-
mo uma força criadora, uma potência pre-
gnante de espaços, de formas, de escultu-
ras. Como será visto adiante, o modo co-
mo Penone aborda a relação entre seu
corpo e a Terra, descobrindo na natureza
a medida de suas próprias forças, anima
um conjunto de imagens poéticas (BA-
CHELARD, 2008) referentes ao espaço, à
vontade de manuseio da matéria, ao dei-
xar-se levar pelas águas cristalinas de um
pequeno riacho, aos sonhos de repouso
nos abrigos mais ancestrais. A imaginação
material fortemente trabalhada nas obras
de Penone é aqui entendida como uma
condição fundamental do contato entre o
homem e a Terra no mesmo instante em
que apreendemos algo, esteticamente
começamos a imaginar, produzimos ima-
gens e que em muito contribui, assim,
para a experiência sensível da natureza.
Afinidades possíveis entre natureza, arte
e paisagem
Antes de prosseguirmos com a análise das
obras de Giuseppe Penone, cabe tecermos
breves considerações acerca dos modos
pelos quais nos relacionamos com a natu-
reza. Segundo reflexões do poeta Rainer
Maria Rilke, a relação que estabelecemos
com a Terra desde o princípio de nossa
existência é sempre unilateral: a natureza
nada sabe de nós, de nada interessa a ela
se a cultivamos ou se nos servimos de
parte de suas forças e de maneira alguma
ela compartilha dos sentimentos huma-
nos. um enorme estranhamento senti-
do pelo homem diante da natureza, o que
permite ao poeta afirmar que “sozinhos,
na companhia de um cadáver, não estarí-
amos tão abandonados como quando so-
zinhos no meio das árvores” (RILKE,
2009, p. 60). Diante disso, Rilke compre-
ende a resignação de alguns homens que
passam a dividir, em sociedade, o mesmo
trabalho e o mesmo destino, “enquanto
outros, aqueles que não querem deixar a
natureza perdida, seguem suas pegadas
buscando, agora conscientemente e com
vontade determinada, aproximar-se no-
vamente dela do modo como, sem que
Arthur Simões Caetano Cabral, Entre a Terra e o corpo: a experiência da natureza na obra de Giuseppe Penone.
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soubessem, dela eram próximos na infân-
cia” (RILKE, 2009, p. 62). O poeta alemão
esclarece que esses últimos são os artistas
poetas ou pintores, compositores ou ar-
quitetos que, em sua profunda solidão,
preferem o eterno da natureza ao efêmero
da humanidade.
Ao se voltarem à natureza, esses homens,
os artistas, voltam-se àquilo que é gover-
nado por leis profundas, abdicando dos fa-
tos que ocorrem casualmente. Rilke pon-
dera que, na impossibilidade de convencer
a natureza a participar de sua dor ou de
compartilhar com ela sua alegria, esses
homens “reconhecem como seu dever
compreendê-la, de modo a poder encon-
trar, em alguma parte da sua ordem
grandiosa, um lugar seu (RILKE, 2009, p.
62). É graças a esses indivíduos solitários
que toda a existência humana se aproxi-
ma da natureza. Vale considerar, assim, a
imaginação poeticamente trabalhada da
natureza para que nos reaproximemos de
sua existência sempre misteriosa, sempre
estranha para nós.
Ante todo o estranhamento que sentimos,
em nossa condição humana, diante da na-
tureza, diante de sua dimensão temporal
incomensurável, diante de sua aparente
indiferença em relação aos nossos senti-
mentos, a arte permite restabelecer a uni-
dade entre o homem e a Terra. Para que
se possa abrir na natureza o espaço da
paisagem, ou seja, para que se estabeleça
pela arte um sentimento estético em rela-
ção à natureza, o filósofo Gianni Carchia
afirma que caberá ao artista “aprender a
falar a ngua da natureza, e a aula na
qual ele deverá receber tal ensinamento
não poderá ser senão a própria natureza
livre: bosques, [...], montanhas, rios, va-
les, cuja forma e cujas cores ele deverá
estudar incessantemente, por toda a vida”
(CARCHIA, 2009, p. 211).
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A propósito da representação da paisagem
na arte, sobretudo no tocante à pintura de
paisagem, Carchia afirma que o artista de-
ve proteger no espetáculo da natureza seu
enigma, que deverá transformar em admi-
ração seu próprio estupor ante a natureza
(CARCHIA, 2009, p. 212). A paisagem,
para ele, não é uma projeção da subjetivi-
dade de quem a admira ou a representa,
nem tampouco o retorno, em imagem, de
uma natureza definitivamente desencan-
tada. Para os grandes artistas que se vol-
tam à natureza, diz Carchia, a paisagem
se coloca como a revelação de uma di-
mensão invisível através do aprofunda-
mento de sua visibilidade (CARCHIA,
2009, p. 211). Para que a arte consiga es-
se aprofundamento, para que o artista se-
ja, de fato, íntimo da linguagem da natu-
reza, é preciso preservar
É da intimidade entre o artista e a nature-
za, justamente, que se origina a obra de
Giuseppe Penone. Sua arte é, ao mesmo
tempo, telúrica e etérea; firmemente en-
raizada e, ao mesmo tempo, suscetível ao
mais leve sopro. Trabalhando em um con-
texto em que os limites do campo da es-
cultura expandiam-se (KRAUSS, 1978),
Penone intervém no espaço a partir da es-
sencialidade da capacidade sensorial hu-
mana: a visão, o tato, a audição confun-
dem-se em um sentir que integra todo o
corpo. Nas obras de Penone, os aromas
pertencem tanto aos materiais que os
exalam quanto ao olfato de quem os sente
(MARANIELLO, 2009, p. 8), as superfícies
moldadas, amassadas, desbastadas per-
tencem tanto à matéria trabalhada como à
pele das mãos que tomam para si tal ma-
téria. Sua arte coloca-se como a linha tê-
nue onde se dá o encontro do homem com
a Terra, onde se origina, a partir desse
encontro, o mundo humano. Penone opera
no horizonte de um agir que assume para
si a impossibilidade de originar obras úni-
cas e eternas. Pelo contrário, o interesse
do artista se volta ao gesto primitivo do
Arthur Simões Caetano Cabral, Entre a Terra e o corpo: a experiência da natureza na obra de Giuseppe Penone.
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escultor que permite aderir a matéria ao
corpo. Enquanto processo de uma arte
que ganha autonomia pelo trabalho, pela
energia despendida tanto pela matéria
quanto por quem a trabalha, o fazer do
escultor significa, para Penone, uma pos-
sibilidade de aproximação a um modo de
agir potencialmente infinito, contínuo, re-
plicado.
Dissoluções mútuas de sujeito e objeto
A partir da década de 1960, momento de
redefinição de diversos paradigmas artísti-
cos com a arte povera e a land art, Giu-
seppe Penone abandona a ideia de escul-
tura em seu significado tradicional. Sua
obra não consiste na elaboração de obje-
tos passíveis de instalação sobre pedes-
tais, por exemplo. A relação objetiva da
escultura, isto é, a perspectiva convencio-
nal segundo a qual o fazer do escultor re-
sultaria em um objeto tridimensional au-
tônomo e independente de qualquer rela-
ção contextual, corpórea, espacial ou in-
tersubjetiva, é deixada de lado na medida
em que Penone utiliza gestos escultóricos
quase atávicos para intervir no espaço,
para experimentar o que decorre no espa-
ço do contato entre seu corpo e elementos
diversos da natureza. Trata-se de um tra-
balho fortemente ancorado no espaço, que
assume como questões, justamente, os
aspectos sensíveis do espaço, e que se
sucede no decorrer do tempo. Suas obras
têm uma duração própria, sendo mais ou
menos efêmeras, e se desenvolvem ao
longo do tempo. A ideia de tempo, contu-
do, parece sempre associar-se para Peno-
ne ao instante presente, seja no processo
de elaboração das obras, seja em seu re-
gistro fotográfico ou em sua experiência
direta: ao remeter a gestos humanos mui-
to primitivos relacionados a um fazer es-
cultórico, Penone não opera em uma di-
mensão de memória, e sim em uma di-
mensão arquetípica. Ele traz à tona, em
um tempo que é sempre presente, a per-
manência de certos movimentos do corpo
que são inerentes à condição humana
desde o primeiro e imemorial contato do
homem com a natureza.
Se a obra de Penone nasce do desejo de
um contato paritário entre sua existência
e as coisas do mundo, o simples fato de
existirmos, de nos deslocarmos e de ma-
nusearmos a materialidade da Terra, alte-
rando suas características, é entendido
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pelo artista como um modo de intervenção
no espaço. É interessante observar nas
obras e nos escritos de Penone, contudo,
que não apenas a matéria manuseada se
altera mediante o contato com as mãos,
como também estas se alteram, receben-
do para si as formas modeladas. Penone
remonta, assim, às formas mais primitivas
pelas quais o homem trabalha a Terra.
Sua familiaridade e seu interesse em lidar
com essas questões relacionam-se, em
grande medida, com a experiência de sua
juventude, vivida junto a bosques, ria-
chos, afloramentos rochosos. Desde suas
primeiras experimentações com as árvo-
res, nas quais sua mão esculpida era pos-
ta agarrando partes de troncos, até suas
obras mais recentes, conforme será apre-
sentado a seguir, Penone parece levar aos
limites sua intimidade com a natureza.
Essa intimidade pode ser vista em um tra-
balho de 1968, ocasião em que Giuseppe
Penone elabora os primeiros esboços para
uma espécie de banheira a ser imersa nas
águas de um pequeno curso d’água (Fig.
1). Na margem dos croquis, o artista res-
saltava entre suas anotações as dimen-
sões que deveriam apresentar tal objeto e
o local onde ele seria instalado: “A minha
altura, o comprimento dos meus braços, a
minha espessura em um riacho (PENONE,
2009, p. 158, tradução nossa). Penone
põe à disposição do escoar das águas
aquilo que talvez seja o mais primitivo de
sua existência, a materialidade de seu
próprio corpo. O movimento do qual nasce
o gesto escultórico é dado pelo fluxo do
pequeno rio, ao passo em que a presença
do artista, cujas dimensões são empresta-
das ao recipiente submerso, permanece
estática, submetida ao escoar do riacho.
Em uma situação em que o artista e a ma-
téria trabalhada parecem assumir a posi-
ção um do outro, são as águas correntes
que, atritando o corpo de Penone, dão
forma à escultura.
Fig. 1 - Giuseppe Penone, Projeto para banheira em riacho, 1968. Croqui
(Fonte: MARANIELLO; WATKINS, 2009)
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Penone explora, nesse trabalho, o registro
pela escultura de movimentos sempre flu-
ídos, inextinguíveis. Em um gesto que re-
mete à fossilização de fluxos contínuos
(PENONE, 2012), ele propõe a adesão de
seu corpo, cujo volume ocupa um espaço
mensurável, à dimensão imensurável da
natureza. Ao criar Alpes marítimos (1968),
Penone intervém no leito do pequeno cór-
rego: com as formas de seu corpo sub-
merso, altera a batimetria, insere altos re-
levos, fornece um conjunto de ondulações
submersas que se assemelham a monta-
nhas subaquáticas. O corpo do artista, tal
qual as pedras e os pequenos bancos de
areia existentes no leito, é metaforica-
mente colocado sob a ação transformativa
incessante do riacho (Fig. 2).
Imersas no pequeno rio, as pedras, muito
possivelmente, se tornarão grãos de areia
e estes serão cada vez menores à medida
que desbastados pelo fluxo contínuo
d’água. O limite que permite a diferencia-
ção entre os elementos, portanto, é incer-
to. Se Penone, em Alpes marítimos, os re-
úne de maneira paritária à sua própria
materialidade sob as águas seu corpo,
aparentemente, não apresenta qualquer
protagonismo em relação aos seixos e
demais elementos materiais erodidos pelo
riacho , no pequeno texto que o artista
escreve a propósito dessa experiência, por
sua vez, a equivalência entre as matérias
é fortemente ressaltada. Embora o artista
não esteja, naturalmente, no recipiente
submerso, sua presença sob as águas é
intuída em comum existência junto às pe-
quenas pedras e grãos de areia (Fig. 3). A
possibilidade de revisitação de tempos em
tempos do leito do riacho pode ser com-
preendida como um desejo de aproximar a
ordem temporal humana à temporalidade
inestimável da natureza.
Fig. 2 - Giuseppe Penone, Alpes marítimos - a minha altura, o comprimento de meus braços, a minha
espessura em um riacho, 1968. Registro fotográfico de execução da obra
(Fonte: MARANIELLO; WATKINS, 2009)
Fig. 3 - Giuseppe Penone, Alpes marítimos - a minha altura, o comprimento de meus braços, a minha
espessura em um riacho, 1968. Registro fotográfico da obra
(Fonte: MARANIELLO; WATKINS, 2009)
Arthur Simões Caetano Cabral, Entre a Terra e o corpo: a experiência da natureza na obra de Giuseppe Penone.
314
O recipiente proposto por Penone certa-
mente não corresponde, pois, a uma caixa
de inspeção objetivamente colocada para
aferições periódicas das condições d’água
ou dos minerais. Trata-se de assumir a
erosão enquanto ato fundamental de uma
escultura telúrica, o qual não prea con-
clusão, em objeto escultórico, da matéria
esculpida. Na realidade sempre inconclusa
da Terra, não observamos senão as mani-
festações sensíveis dos elementos da na-
tureza em sua constante interação. Vai d
o interesse de Penone em estar dentro do
riacho, participando dele para registrar-lhe
as mudanças decorrentes das chuvas, do
gelo.
uma dimensão imaginativa associada
às águas correntes que vem à tona em Al-
pes Marítimos. Com efeito, trata-se de
uma escultura metafórica cuja existência é
intuída sob as águas. Talvez apenas a ma-
terialidade do recipiente, cujo processo de
construção fora também registrado em fo-
tografia, seja um dado plenamente conhe-
cido. No mais, a escultura apenas insinua-
se, em condições imaginárias, sob o brilho
da superfície d’água. Sem recorrer à lite-
ralidade da forma escultórica tradicional,
Penone a subverte poeticamente, tornan-
do visíveis as formas inerentemente invi-
síveis do leito do córrego. Por elaborar,
nessa obra, uma imagem poética forte-
mente associada às águas correntes, cabe
recorrer aos seguintes dizeres do filósofo
Gaston Bachelard a propósito da imagina-
ção material dos rios:
Os rios remontam, para quem se permite
imaginar sua existência sempre fluída,
sempre corrente, às condições mais primi-
tivas da natureza. Ao contrário das águas
calmas, que refletem na Terra as formas
do céu, quando cristalinas, ou que levam
ao mais profundo torpor quando turvas,
barrentas, segundo Bachelard, as águas
correntes, por sua vez, atualizam inces-
santemente a jovialidade da natureza. São
elas que esculpiram e continuam a escul-
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pir, em seu fluxo contínuo, as formas da
Terra. Os pequenos regatos, em seu curso
tortuoso, mantêm na natureza o frescor
do início de sua existência; o escoar ale-
gre das águas preserva sempre vigente às
suas margens o instante inaugural de suas
formas. É nesse fluxo sempre inaugural
que Penone imerge em Alpes Marítimos. O
espaço, nessa obra, é abordado pelo artis-
ta enquanto a dimensão em que se o
modo mais ancestral de escultura o em-
bate entre a água e a rocha, o atrito entre
as matérias pelo qual são esculpidas as
formas da natureza.
Se em Alpes marítimos, Penone abordou a
relação entre seu corpo e a natureza, tra-
balhando, entre outros aspectos, a imagi-
nação das águas correntes, dez anos mais
tarde o interesse central de outra obra do
artista se voltaria ao fluxo do ar, à ocor-
rência de um sopro enquanto potência es-
cultórica. Em Sopro de folhas (1979), Pe-
none reúne uma quantidade razoável de
folhas secas, as quais ele organiza em
uma grande pilha. Deixando que seu cor-
po caia sobre as folhas, ele deforma a pi-
lha anterior, imprimindo nela suas pró-
prias formas. Por fim, com o corpo deitado
de bruços e o rosto repousado sobre as
folhas, Penone expira pela boca, emitindo
um leve sopro (Fig. 4).
Ao organizar as folhas secas na forma de
uma pilha, Penone prepara a matéria que
será por ele modelada. Trata-se de uma
matéria maleável: se, quando isoladas, as
folhas secas se quebram facilmente,
quando dispostas aos montes, por outro
lado, conservam com as ínfimas porções
de ar presentes entre elas a capacidade
plástica de amoldar-se quando comprimi-
das. Ao proceder desse modo, Penone re-
força o interesse de sua arte pelas forças
segundo as quais se arranjam as formas
da natureza forças sempre misteriosas,
sempre estranhas à condição humana. Tal
interesse pode ser confirmado pelos se-
guintes versos de Penone a propósito de
Sopro de folhas:
Fig. 4 - Giuseppe Penone, Sopro de folhas, 1979. Registro fotográfico da obra
(Fonte: MARANIELLO; WATKINS, 2009)
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O artista remonta às origens da relação
entre o homem e a natureza, a momentos
que precederam o cultivo da Terra. O tex-
to supracitado, muito imagético do ponto
de vista espacial, evoca uma selva escura,
na qual o homem está sujeito às implica-
ções das forças veladas da natureza.
certa tensão que faz com que o desloca-
mento do corpo deva ser rasteiro e silen-
cioso. O sopro que flui pela selva, sob a
lógica indecifrável do vento, parece pre-
mer o homem a encontrar um pequeno ni-
cho onde possa acolher-se. A imagem do
abrigo pode ser depreendida da referência
ao “antigo leito”, que nada mais é que a
concavidade privilegiada pela ação repeti-
tiva do peso do corpo sobre as folhas.
Uma vez abrigado da hostilidade do vento,
e ainda imerso na natureza, o corpo todo
repousa, o homem inaugura sua morada
no abrigo de folhas moldado a partir de
suas próprias formas. O negativo do corpo
sobre as folhas, evocando a noção de
abrigo, de acolhimento, em muito se as-
semelha à imagem do ninho que, nos di-
zeres de Gaston Bachelard, “é precário e,
no entanto, desencadeia em nós um de-
vaneio de segurança. [...] Assim, contem-
plando o ninho, estamos na origem de
uma confiança no mundo, recebemos um
aceno de confiança, um apelo à confiança
cósmica” (BACHELARD, 2008, p. 115).
O espaço criado por Penone em Sopro de
folhas, assim, evoca a imagem arquetípica
do abrigo ancestral, permitindo à obra
lançar-se às formas originárias pelas quais
o homem habita a Terra. A dimensão
cósmica que nesse trabalho, na conca-
vidade decorrente do peso e das formas
do corpo do artista, coloca em jogo, a um
tempo, a lógica do vento que espalha
as folhas secas e o leve sopro da boca de
quem se deita sobre elas. Se, segundo
Arthur Simões Caetano Cabral, Entre a Terra e o corpo: a experiência da natureza na obra de Giuseppe Penone.
318
Penone (2012), ao respirarmos, lançamos
no espaço um volume de ar que consti-
tui, em si, uma forma de escultura, o so-
pro, tanto quanto o vento que derrubou as
folhas ou o peso do corpo que as compac-
tou, deve ser considerado, em sua obra,
como um procedimento escultórico. A essa
altura, cabe recorrer a outro fragmento do
poema de Penone a propósito do Sopro de
folhas, no qual ele caracteriza as folhas
como
Com efeito, o sopro coloca em atrito a
existência invisível do ar à das outras ma-
térias que nos cercam. Trata-se de um
fluxo, é matéria em deslocamento que,
embora não possamos ver, nos chega aos
ouvidos enquanto som ou sentimos na pe-
le enquanto arrepio. Enquanto procedi-
mento escultórico, o sopro é trabalhado
por Penone como uma das possibilidades
de troca entre o interno e o externo do
corpo. Essa mesma troca está presente,
em Sopro de folhas, também, na relação
entre o cheio do corpo e o vazio decalcado
por ele sobre as folhas secas. Em outras
palavras, o peso do corpo e o sopro que
ele emite, enquanto forças interiores que
se lançam para o exterior, são ações ine-
rentes a um modo atávico de se fazer es-
culturas.
A investigação de Penone a respeito dos
diferentes materiais e das inúmeras possi-
bilidades de, a partir do contato direto
com seu corpo, trabalhá-los em obras de
caráter espacial, permanece reconhecível
após a finalização do processo de criação.
Com efeito, a experiência do espaço trans-
formado a partir de suas obras correspon-
de à revelação das investigações pelas
quais elas foram concebidas. Na obra Bi-
furcação (1987), Penone comprime sua
mão espalmada contra uma camada de
argila aplicada nas reentrâncias de um
tronco de árvore previamente escavado. O
encaixe preciso entre as formas de sua
mão e o tronco é mediado, justamente,
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 301-330, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.44530)
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pela plasticidade da argila, receptiva tanto
às formas da força manual que a compri-
me quanto à rugosidade da casca do tron-
co sobre o qual fora aplicada (Fig. 5).
Ao imprimir baixos relevos no tronco aber-
to, Giuseppe Penone cria nervuras que
remontam, a um tempo, à rede de va-
sos condutores de seiva da árvore, a um
conjunto de pequenos cursos d’água con-
vergentes em um rio principal e ao nega-
tivo de sua mão. Associados a essa mes-
ma forma esculpida, o fluxo d’água pela
terra, a verticalidade da árvore e as bifur-
cações dos dedos humanos compartilham
do espaço aberto por Penone na madeira
do tronco. Mais do que isso, no espaço
criado em Bifurcação, esses diversos ele-
mentos circulam em um único fluxo, con-
fundindo-se mutuamente. Após concluir a
modelagem do baixo relevo sobre a argila,
Penone registra em fotografia o escoar
d’água pelos canais esculpidos (Fig. 6).
A forma obtida por Penone em Bifurcação
é antes apreendida como espaço do que
como objeto formal. Trata-se, afinal, das
concavidades decorrentes das formas cur-
vas de sua mão. Como quem cria um
molde em massa ou argila, Giuseppe Pe-
none faz uma obra que parece convocar a
presença de outras matérias em seu inte-
rior. Os vales configurados pelos dedos e
a planura da mão espalmada permitem
que se intua seu preenchimento pelas
substâncias mais diversas. Afora as ima-
gens do fluxo aquoso pela obra, registra-
das em fotografia, o artista exprime, em
versos, os pequenos espaços de Bifurca-
ção como uma rede de vasos condutores
que tendem à verticalidade, evocada tanto
pela imagem da árvore quanto pelo corpo
humano, permitindo que assomem em di-
reção ao céu as substâncias que emergem
das profundidades da Terra.
Fig. 5 - Giuseppe Penone, Biforcazione, 1987. Registro fotográfico de execução da obra
(Fonte: MARANIELLO; WATKINS, 2009)
Fig. 6 - Giuseppe Penone, Biforcazione, 1987. Registro fotográfico da obra
(Fonte: MARANIELLO; WATKINS, 2009)
Arthur Simões Caetano Cabral, Entre a Terra e o corpo: a experiência da natureza na obra de Giuseppe Penone.
322
Ao afundar sua mão contra a argila, como
quem, pela primeira vez, afirma os pés ao
caminhar por um bosque, Penone deixa
uma pegada, uma marca de sua presença
sobre a Terra. Esse gesto ancestral, em
torno do qual orbita a poética da obra,
comparece de modo integral no espaço es-
culpido. Com isso, no momento em que se
a experiência da obra, é sempre atuali-
zado o instante de sua elaboração, o mo-
mento exato em que os dedos do artista,
ao serem calcados na argila, dão forma aos
os que há entre eles. A partir desse ges-
to, cujo movimento origem às estrutu-
ras de uma árvore, Penone remonta a um
dos mais fortes arquétipos do crescimento,
da estabilidade, da verticalidade. Ao mes-
mo tempo em que se enterra, procurando
as profundezas mais escuras, a árvore lan-
ça seus ramos mais etéreos aos céus. Todo
o sonho de fluxos, de circulação de líqui-
dos, encontra na árvore uma imagem mui-
to potente: as raízes, como rios subterrâ-
neos, bebem a água que na Terra para
lançá-la em um movimento de ascensão
em direção aos seus ramos mais etéreos.
Para abordar certos aspectos da imagem
dos vegetais trabalhada por Penone, tais
como o emaranhado de raízes, a originali-
dade da árvore enquanto imagem do cres-
cimento, do movimento ascendente, vale
recorrer aos seguintes dizeres de Bachelard
a propósito da árvore:
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 301-330, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.44530)
323
A relação de estranhamento que há entre
o homem e a Terra se concentra no espa-
ço criado pela mão inscrita no tronco es-
cavado, onde coexistem o movimento
exato que deu origem à obra e sua expe-
riência sensível. Ao emprestar a organici-
dade das formas de seu corpo a um espa-
ço que é comum aos seres humanos, aos
rios, às raízes e aos ramos das árvores,
reconhecendo as formas desse espaço
como um aspecto comum à condição hu-
mana e à natureza, Penone não se con-
trapõe, contudo, à relação de alteridade
inerente à paisagem. Pelo contrário, ao
identificar, nos versos que escreve, a im-
pressão no espaço das bifurcações dos
dedos com a construção dos galhos e do
tronco de uma árvore, Penone reforça o
mistério com que a natureza se mostra
para nós. O artista coloca em jogo uma
relação ambivalente: se, por um lado,
compartilhamos em nosso corpo de muitas
das formas que vemos à nossa volta, se
“as bifurcações das árvores a nós parecem
muito intimamente humanas”, por outro
lado, sendo “a paisagem do bosque o ges-
to da escultura” (PENONE, 2009, p. 149,
tradução nossa), a natureza nunca se re-
vela por completo, permanecendo irreme-
diavelmente estranha para nós.
O percurso artístico de Giuseppe Penone o
levou, em 2003, a explorar materiais e
técnicas bastante diversos. Se em Bifurca-
ção a questão central para o artista eram
os fluxos compartilhados entre os rios, os
homens, as árvores, em Pele de mármore
(2003) é com a dimensão mineral da Ter-
ra que o corpo humano vem confundir-se.
A partir de um conjunto expressivo de
placas de mármore dispostas lado a lado
sobre o piso de um jardim, Penone escul-
pe em baixo relevo as nervuras do mate-
rial. Como procedimento, para tanto, ele
seguiu os veios existentes, examinando
atenciosamente pelo tato as regiões das
placas que deveriam ser rebaixadas e as
outras que, por serem mais resistentes,
deveriam ser mantidas em sua condição
original (Fig. 7).
Fig. 7 - Giuseppe Penone, Pele de mármore, 2003. Registro fotográfico da obra
(Fonte: MARANIELLO; WATKINS, 2009)
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 301-330, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.44530)
325
Penone descobre as formas que definirão
essa obra à medida que ele a elabora. Seu
ponto de partida não é a definição do ob-
jeto a ser esculpido mediante o desbaste
do mármore. Apenas um critério é dado a
priori: a escultura deveria ser definida pe-
la irregularidade quanto à resistência do
material. As mãos assumem um papel de
investigação, tateando a superfície de
mármore e descobrindo, desse contato, os
pontos que cederiam ao desbaste, distin-
guindo estes das regiões mais resistentes
a serem mantidas intactas. Onde o mate-
rial se mostra mais macio, a mão e o
utensílio afundam, onde ele se faz mais
resistente, surgem os altos relevos. O
gesto de esculpir é abordado em Pele de
mármore como uma resposta à investiga-
ção dada pelo tato, como procedimento
necessário para sublinhar a trama venosa
existente nas superfícies de mármore
examinadas pelas mãos do artista. No po-
ema que escreve a propósito dessa obra,
Penone evoca a relação entre a montanha
e o bloco de mármore, relação entre exte-
rior e interior cuja inversão permite reve-
lar o conjunto de veias que permite a pul-
sação da montanha.
A ideia de vitalidade da matéria é ressal-
tada já nos primeiros versos. O tecido pul-
sante do monte possui uma dimensão ex-
terna e outra interna. Penone propõe in-
vertê-las, fazer com que a interioridade do
mármore envolva o seu exterior. Como
quem procede descarnando um corpo, Pe-
none decalca as nervuras do mármore,
extraindo o interior do material sob a for-
ma de um branco. A essa altura, as
veias de sua mão, sua pele, se veem re-
cobertas pelo interior particulado do már-
more, que por sua vez fora extraído do
monte. Na experiência do espaço cujo
processo de elaboração corresponde a tão
Arthur Simões Caetano Cabral, Entre a Terra e o corpo: a experiência da natureza na obra de Giuseppe Penone.
326
forte contato entre o corpo humano e a
existência mineral da Terra reconhece-se,
pois, um emaranhado de veias, rugosida-
des, dobras e reentrâncias absolutamente
orgânicas (Fig. 8).
A forma esculpida é consequência, assim,
da leitura tátil da superfície do mármore.
O contato do corpo com a matéria tem
papel principal na obra. Segundo comen-
tário de Penone (2012), uma ideia de
reciprocidade nos confins dos corpos, onde
se dão os escambos entre eles. Entre a
pele das mãos que examinam e a pele do
mármore que é examinado, o artista ela-
bora, poeticamente, a imaginação do em-
bate, do trabalho da Terra pelas mãos
humanas. Para a abordagem dos devanei-
os da vontade do trabalho manual da ma-
téria, vale recorrer, mais uma vez, ao
pensamento de Gaston Bachelard. Em seu
ensaio sobre a imaginação das forças, no
qual um capítulo é inteiramente destinado
ao rochedo, as forças minerais confun-
dem-se aos esforços de mineração. Como
em Pele de mármore, os seguintes dizeres
demonstram a confusão de aspectos fisio-
nômicos entre o homem e o rochedo por
ele esculpido,
Fig. 8 - Giuseppe Penone, Pele de mármore, 2003. Registro fotográfico de detalhe da obra
(Fonte: MARANIELLO; WATKINS, 2009)
Arthur Simões Caetano Cabral, Entre a Terra e o corpo: a experiência da natureza na obra de Giuseppe Penone.
328
Considerações finais
Na impossibilidade de apresentar toda a
produção de Giuseppe Penone, procurou-
se neste artigo percorrer um pequeno
conjunto de suas obras com vistas a com-
preender a relação que nelas se estabele-
ce entre o homem e a natureza. Sem pro-
curar resolver o estranhamento inerente à
condição humana ante à natureza, nos di-
zeres de Rilke, e sem tornar menos miste-
riosa a natureza para nós, nos dizeres de
Carchia, Penone coloca não apenas o seu
próprio corpo, como também experimenta
suas obras em contato direto com a natu-
reza. Nesse sentido, pode-se depreender
que Penone assume a potência originária
da natureza, em constante interação com
seus gestos e com a materialidade de seu
corpo, como força artística criadora ele-
mentar. Tal interação, por sua vez, assu-
me expressão poética tanto in situ, em
trabalhos tridimensionais cuja concepção
supera e subverte os limites da relação
escultórica objetiva, como também em
verbo, em poemas que, para muito além
de descrever objetivamente os processos
e as obras escultóricas, inauguram novas
imagens poéticas à superfície das pala-
vras, valendo por si.
Além disso, é possível reconhecer a atuali-
dade de sua obra e das questões centrais
investigadas pelo artista na abordagem es-
tética de outros modos possíveis de exis-
tência do homem em sua relação inextricá-
vel com a Terra, segundo os quais, nota-
damente, a materialidade da natureza e o
fazer humano passariam a partilhar de um
protagonismo eminentemente criador, es-
tabelecido antes pela convergência harmô-
nica de suas energias do que pela simples
extração de materiais da natureza. Tais in-
terões não apenas põem em questão a
dicotomia convencionalmente estabelecida
entre natureza e cultura como também si-
nalizam modos de produção alternativos
aos modelos de exploração (e devastação)
da Terra e das tentativas de controle pleno
da natureza pelo fazer humano. Tornando-
se íntimo da existência dos mais diferen-
tes elementos naturais mediante gestos
escultóricos atávicos respirar, comprimir
com as mãos, deitar o corpo, tatear su-
perfícies , Penone investiga práticas e
procedimentos atinentes à concepção da
escultura na contemporaneidade, ao mes-
mo tempo em que aprofunda, em termos
sensíveis, o que permanece invisível na
paisagem e convida quem a experimenta
a desvelamentos futuros.
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 301-330, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.44530)
329
Notas
1
Dentre muitas acepções possíveis, a ideia de paisa-
gem é entendida pelo filósofo Rosario Assunto en-
quanto espaço finito, mas que se abre à infinitude. A
paisagem corresponde, nesses termos, à espacializa-
ção da temporalidade da natureza, ritmo incomensu-
rável ao qual se negam as grandes cidades industriais.
A megalópole industrial, para o autor, é o espaço da
não memória, dos prazos de validade constantemente
vencidos e do tempo rigorosamente quantificado e
consumido o qual o autor denomina temporaneida-
de. Esse espaço, enquanto negação do infinito, opõe-
se à temporalidade da natureza, cujo caráter é quali-
tativo: nessa temporalidade, o presente não é uma
subtração do passado nem o futuro um acréscimo ao
presente. Ao contrário do ser temporâneo, o ser tem-
poral é o passado que compreende o presente e o fu-
turo, em uma coexistência mútua e infinita das três
esferas. De modo geral, nesses termos, entende-se o
espaço da cidade industrial como o da negação de
paisagem (ASSUNTO, 2011, p. 356).
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1968-2008. Bolonha: Istituzione Galleria
d’Arte Moderna - MAMbo, 2009.
Arthur Simões Caetano Cabral, Entre a Terra e o corpo: a experiência da natureza na obra de Giuseppe Penone.
330
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della Dogana, 2012. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=wYd4
4hulEDE. Acesso em 28/5/2020.
RILKE, Rainer Maria. Del paesaggio / In-
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TIBERGHIEN, Gilles. Land Art. In:
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2005.