Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 391-406, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.45525)
391
O misticismo na obra de Theo Angelopoulos:
um estudo de A eternidade e um dia (1998)
Mysticism in Theo Angelopoulos' Work:
A Study of Eternity and a Day (1998)
El misticismo en la obra de Theo Angelopoulos:
un estudio de La eternidad y un día (1998)
Carlos Eduardo Mendes de Araújo Couto (Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil)
*
https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.45525
RESUMO: A obra tardia do cineasta Theodoros Angelopoulos, desenvolvida na
década de 1990, possui atributos políticos e humanos percebidos e decifrados
tanto pela crítica quanto pela academia. Todavia, notamos também em seus filmes
um aspecto místico ainda não explorado em nenhum desses meios. O objetivo
desse artigo é caracterizar a experiência mística em uma determinada produção
do realizador grego. Nosso objeto de estudo será a obra A Eternidade e um dia
(Mia aioniotita kai mia mera, 1998). Usaremos como suporte teórico autores como
Robert Charles Zaehner, Steven Katz, Paul Schrader e Frederico Pieper.
PALAVRAS-CHAVE: cinema; misticismo; Angelopoulos
*
Carlos Eduardo Mendes de Araújo Couto é mestre e doutorando em Artes, Cultura em Linguagens na Universidade Federal de Juiz de
Fora. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4843-3548. E-mail: cadumendescouto001@gmail.com.
Carlos Eduardo Mendes de Araújo Couto, O misticismo na obra de Theo Angelopoulos...
392
ABSTRACT: Theodoros Angelopoulos' late work, developed in the 1990s, has po-
litical and human attributes already perceived and deciphered by critics and aca-
demia. However, we also notice in his films a mystical aspect that has not yet
been explored in any of these media. The purpose of this article is to characterize
the mystical experience in a particular production by the Greek director. Our ob-
ject of study will be the work Eternity and a day (Mia aioniotita kai mia mera,
1998). We will use as theoretical support authors like Robert Charles Zaehner,
Steven Katz, Paul Schrader and Frederico Pieper.
KEYWORDS: cinema; mysticism; Angelopoulos
RESUMEN: La obra tardía del cineasta Theodoros Angelopoulos, que se desarrolló
en la cada de 1990, posee atributos políticos y humanos así que los percibieron y
los descifraron la crítica y también la academia. Sin embargo, hemos observado
tambn que sus películas presentan un algo de místico que el director no lo ha ex-
plorado en ninn de estos medios aún. El objetivo de este artículo es hacer una ca-
racterización de la experiencia mística en una determinada produccn del director
greco. Nuestro objeto de estudio es la obra La eternidad y un día (Mia aioniotita kai
mia mera, 1998). Utilizaremos en el aporte teórico algunos autores como Robert
Charles Zaehner, Steven Katz, Paul Schrader y Frederico Pieper.
PALABRAS CLAVE: cine; misticismo; Angelopoulos
Recebido: 24/8/2020; Aprovado: 7/12/2020; Publicado: 2/1/2021.
Citação recomendada:
COUTO, Carlos Eduardo Mendes de Araújo. O misticismo na obra de Theo Angelopoulos:
um estudo de A eternidade e um dia (1998). Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 391-406,
jan./jun. 2021. [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.45525]
Este documento é distribuído nos termos da licença Creative Commons Atri-
buição-NãoComercial 4.0 Internacional (CC-BY-NC) © 2021 Carlos Eduardo M. A. Couto
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 391-406, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.45525)
393
O misticismo na obra de Theo Angelopoulos:
um estudo de A eternidade e um dia (1998)
Introdução
As representações imagéticas tornaram-se,
ao longo do tempo, instrumentos da varie-
dade de experiências, sentimentos e inte-
resses religiosos dos indivíduos e institui-
ções. Desde o paleolítico, os antigos caça-
dores esboçaram as mais primitivas formas
de arte como expressão religiosa, visando
o controle da natureza e dos espíritos dos
animais, notadamente nas cavernas de Al-
tamira, na Espanha, e em Lascaux, na
França. No medievo, a arte gótica, surgida
no norte da França, possuía um caráter di-
dático: ajudava os cristãos a entender e,
principalmente, a temer os ensinamentos
da Igreja Católica. As pinturas de Giotto di
Bondonne (1267-1337) e Giovanni del Bio-
ndo (1356-1399) traziam as premissas re-
ligiosas da época. Já no século XIX, era da
Revolução Industrial, da proliferação das
ciências e das técnicas, a arte cinematográ-
fica despontou e se tornou expressão artís-
tica típica do século XX, refletindo também
essa busca do homem pelo sagrado, pelo
transcendente, pelo místico e pelo inefável.
As articulações entre religião e cinema tor-
naram-se objeto de estudo de vários crí-
Carlos Eduardo Mendes de Araújo Couto, O misticismo na obra de Theo Angelopoulos...
394
ticos e pesquisadores que buscavam um
aprofundamento teórico sobre esse imbri-
camento entre campos tão distintos. Ao
longo do tempo, construiu-se na academia
uma distinção entre os filmes no-tada-
mente religiosos e aqueles considerados
transcendentes, ou seja, de temática secu-
lar, mas que apresentam elementos espiri-
tuais em sua linguagem. De acordo com
Getlein e Gardiner (apud PIEPER 2015, p.
28), filmes religiosos seriam aqueles que
apresentam temas e símbolos explicita-
mente religiosos, como pessoas sagradas,
santos, milagres, livros religiosos, sacerdo-
tes ou fundadores de religiões. O elemento
religioso deve estar visível de modo explí-
cito, sendo representado por seus aspectos
mais perceptíveis. Apresenta-se a religião
de uma forma mais tradicional e conserva-
dora, afirmando as interpretações e posi-
ções oficiais das instituições religiosas
(PIEPER, 2015, p. 28).
Para o roteirista e também teólogo Paul
Schrader (1972), filmes considerados
transcendentes são aqueles em que o espi-
ritual e o sagrado são mais evocados do
que propriamente retratados. Não haveria
uma temática claramente religiosa ou
mesmo componentes religiosos em cena.
uma necessidade de apresentar e deba-
ter questões metafísicas, sticas e trans-
cendentes através da própria narrativa ou
de outros elementos da linguagem cinema-
tográfica, como a iluminação, a cenografia,
a montagem e a música.
Theo Angelopoulos
Um dos cineastas cuja obra se encaixa nos
atributos do cinema transcendental é o
grego Theodoros Angelopoulos. Nascido
em Atenas, em 1936, veio a falecer na ci-
dade grega de Pireu, em 2012, enquanto
realizava seu último filme. Sua obra faz
uma abordagem poética da realidade da
península balcânica ao longo do século XX,
utilizando uma variedade de alegorias e re-
ferências daquela parte do mundo, como a
mitologia helênica, a literatura épica e a
música tradicional grega.
um consenso entre os estudos acadêmi-
cos sobre a obra de Angelopoulos: esta pode
ser dividida em dois períodos. O primeiro
consiste em filmes cujos protagonistas são
coletivos, partidos ou grupos de pessoas. A
segunda fase marca um movimento em di-
reção ao indivíduo, explorando questões
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pessoais e convidando a uma maior identifi-
cação emocional. Em ambas as etapas, o
pano de fundo é o mesmo: a história dos
lcãs no século XX, o sofrimento dessa re-
gião com os conflitos mundiais, a ascensão
fascista, a guerra civil, a pobreza dos países,
as repressões sociais e morais e como todas
essas questões afetaram seus habitantes e
suas relações interpessoais.
Para David Bordwell (apud HORTON,
1997), a diferença entre os dois períodos é
evidente. A primeira etapa vai de Reconsti-
tuição (Anaparastasi, 1970) a Alexandre, o
Grande (Megaleksandros, 1980). A se-
gunda se inicia com Viagem à Citera (Taxidi
sta Kythira, 1983) e termina com A poeira
do tempo (The Dust of Time, 2008). En-
quanto que nos primeiros anos as obras
têm fins claramente políticos e os filmes
são ideologicamente comprometidos, nos
anos seguintes “delineiam crises individu-
ais e pessoais" (apud HORTON, 1997, p.
24). Contudo, Bordwell considera a dife-
rença apenas uma questão de mudança de
ênfase, pois até mesmo os filmes recentes
abordam questões políticas concretas: a
morte do marxismo, o fluxo desesperado
de populações europeias através das fron-
teiras, a possibilidade de políticas nacionais
baseadas na honra. Como ele sugere em
sua conclusão, “na carreira de Angelopou-
los, o peso da ênfase mudou, mas ele sem-
pre combinou a crítica política com um tom
pessimista”. (apud HORTON, 1997, p. 24,
tradução nossa)
Fredric Jameson também percebe a mesma
distinção entre os dois períodos (apud
HORTON, 1997). O autor enfatiza que, em
seus primeiros filmes, Angelopoulos inova
ao desenvolver narrativas coletivas e ao
projetar os destinos de um grupo de perso-
nagens. Salienta ainda a singularidade do
estilo de Angelopoulos, que consegue "dar
destaque a algo irrepresentável, o coletivo”
(apud HORTON, 1997, p. 86). Para Jame-
son, o início da “nova” ou “tardia” fase de
Angelopoulos, voltada ao indivíduo e seus
dilemas, se inicia com Viagem à Citera (Ta-
xidi sta Kythira, 1983) e termina com A po-
eira do tempo (The dust of time, 2008). To-
davia, ele considera o período posterior, di-
recionado à experiência de um protago-
nista e suas questões pessoais, formal-
mente regressivo, com a preponde-rância
do tradicional individualismo burguês na
arte cinematográfica.
Carlos Eduardo Mendes de Araújo Couto, O misticismo na obra de Theo Angelopoulos...
396
Todavia, sob outro olhar, notamos que de-
terminados trabalhos realizados na última
década de 1990 não se restringem apenas
aos dilemas humanos em um contexto só-
cio-político extremamente problemático,
apresentando um caráter que entendemos
como místico, mas um misticismo seculari-
zado, longe das práticas e interpretações
religiosas tradicionais. Ora, em sua narra-
tiva principal, seus protagonistas empreen-
dem jornadas pelos Balcãs, uma região
com problemas políticos e humanitários.
Devido às dificuldades enfrentadas na via-
gem, os indivíduos passam por experiên-
cias místicas relacionadas à transitoriedade
de suas vidas e à descoberta de uma di-
mensão atemporal. Através de uma rup-
tura espaço-temporal acessam seus afetos
e eventos do passado, que são conectados,
sobrepostos e ligados às imagens e aos
sons da atualidade de forma lírica, ressig-
nificando seu presente.
A partir da constatação desse misticismo
secularizado em determinados filmes da
fase tardia de Angelopoulos, buscaremos
neste artigo caracterizar a experiência mís-
tica nos trabalhos do cineasta grego. Os fe-
nômenos apresentados nesses filmes se
encaixam em uma epistemologia contem-
porânea da stica, principalmente a do
pós-guerra, próximos das ideias de Robert
Charles Zaehner e Steven Katz. Como
amostra, escolhemos Eternidade e um dia
(Mia aioniotita kai mia mera, 1998), justa-
mente por ser a obra que melhor demons-
tra esse lado místico da obra tardia de An-
gelopoulos.
R. C. Zaehner e a experiência mística
natural
Robert Charles Zaehner defendeu a tese da
“experiência stica natural que pode ocor-
rer a qualquer pessoa, seja qual for a sua
religiosa ou a falta dela e qualquer que
seja a vida moral, imoral ou amoral ele
possa estar vivendo na época” (1961, p.
12). Rejeitou repetidamente a ideia da uma
unidade mística de todas as religiões. O au-
tor recusa a ideia à qual as vivências místi-
cas de diferentes religiões, as experiências
místicas naturais, o uso de drogas psicodé-
licas e distúrbios como a esquizofrenia se-
jam essencialmente o mesmo fenômeno.
Zaehner distingue então duas categorias de
experiência mística. Uma delas é a sagrada
ou religiosa, que pode ser teísta ou seja,
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 391-406, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.45525)
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a crença na existência de um ou mais deu-
ses. Essa categoria teísta inclui a maioria
das formas de misticismo judaico, cristão e
islâmico e exemplos hindus ocasionais ou
monista quando a alma universal e alma
individual são uma e a mesma coisa. O
autor sugere que um exemplo de teísmo
seria o de São João da Cruz, enquanto o
monismo pode ser visto no não-dualismo
do Vedanta
1
.
A outra experiência mística seria a profana
ou natural, que pode acontecer através do
uso de drogas, devido a patologias ou
mesmo subitamente, sem qualquer prepa-
ração de ordem ascética e independente de
formação religiosa. uma identificação do
sujeito “com a totalidade da natureza”, na
qual o indivíduo acessa outros espaços em
tempos distintos e singulares. Nas palavras
do próprio Zaehner:
Outra forma de experiência natural é
aquela encontrada nas obras de Marcel
Proust, Arthur Rimbaud e John Custance.
Todavia, para nosso artigo, iremos nos ater
à obra máxima de Proust, uma vez que as
experiências ocorridas no texto proustiano
se aproximam daquelas encenadas no filme
de Angelopoulos.
A extensa novela de Proust Em busca do
tempo perdido retrata a sociedade francesa
do fin-de-siècle até o início da I Guerra
Mundial. O protagonista Marcel narra sua
vida na alta sociedade francesa, seu desejo
em tornar-se escritor, a luta pelo reconhe-
cimento social e a busca pela realização
amorosa. O que mais chama atenção no li-
vro são as viagens do personagem principal
ao passado através de sua memória invo-
luntária, ativada graças a pequenas distra-
ções, como um pequeno doce, a made-
leine
2
, um guardanapo ou uma pedra no
chão.
Segundo Zaehner, a experiência mística
chega para o protagonista sem qualquer
Carlos Eduardo Mendes de Araújo Couto, O misticismo na obra de Theo Angelopoulos...
398
exercício ou conexão religiosa prévia. São
elementos simples do cotidiano, já aponta-
dos no parágrafo acima, que forneceram ao
personagem a visão de um mundo atempo-
ral, para além da transitoriedade da vida e
da realidade concreta. Ora, Marcel percebe
que sua essência não está limitada às ma-
zelas da vida normal e cronológica.
Na obra proustiana a distinção de dois
selfs. Um deles conectado ao cotidiano, que
sofre melancolicamente a impermanência
de todas as coisas. Outro, que atua em sua
própria memória, reatualizando o próprio
passado que parece disputar com o pre-
sente um dentro da alma. No entanto,
como sugere Zaehner (1961, p. 93), isso
claramente não significava qualquer ex-
pansão do ego, mas sim uma supressão da-
quela entidade cansada.
Zaehner (1961, p. 93-94) salienta então
que na experiência proustiana, os elemen-
tos comuns do passado e do presente se
fundem em um lugar que parece estar fora
do tempo e que participa da natureza da
eternidade. Proust comunica a fluidez da
realidade em constante mudança. O prota-
gonista dos romances experimenta uma
completa integração com toda a sua vida
passada, fora do espaço-tempo cotidiano.
Os momentos mágicos de integração com
o passado, ou o reencontro do tempo per-
dido, revelavam um segundo “eu dentro
dele, cuja operação estava fora do tempo
cronológico.
Steven Katz e o “contextualismo”
De acordo com abordagem contextual de-
fendida por Steven Katz, as experiências
são eventos particulares, predeterminadas
por práticas religiosas específicas. Diferen-
tes contextos religiosos produzem, assim,
diferentes tipos de experiências que não
podem ser equiparadas umas às outras.
Assim, o indivíduo tende a experimentar as
vivências propostas por sua tradição. Katz
insiste que os místicos cristãos experimen-
tam um Jesus cristão; os sufis, um Alá mu-
çulmano e os místicos budistas, um Buda.
A análise desse aspecto “mediado” é neces-
ria na investigação do misticismo. De fato,
para compreendermos a experiência mística
não devemos apenas estudar os relatórios
do místico após o fenômeno, mas reconhe-
cer e estudar os conceitos que o sujeito traz
e que moldam toda sua experiência.
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De acordo com Katz (1978), as descrições
da experiência stica com frases escolhi-
das, termos e adjetivos de significado va-
zio, fora de seu contexto histórico, social e
religioso, não fornecem meios para sua
comparação, mas expõem os fundamentos
de inteligibilidade. Toda essa semântica
torna-se um problema que aflige as tenta-
tivas que vários estudiosos fazem para for-
necer uma descrição comum da experiência
mística. O fato é que essas listas de pala-
vras e elementos supostamente comuns
não reduzem a variedade de experiências
tão spares a um fenômeno específico e
são de pouca ajuda na compreensão do fe-
nômeno, pois são tão amplos que cabem
em qualquer descrição fenomenológica do
evento místico.
De fato, uma diversidade de experiên-
cias que podem ser consideradas como
místicas, algumas conectadas com um as-
pecto religioso, com o sagrado, deuses e
santos; outras não, de natureza profana,
causadas pelo uso de drogas alucinógenas
ou ocasionadas por algum tipo de emoção,
que ocorrem naturalmente e vivenciadas
em um espaço-tempo distinto.
Além de tratar da questão do fenômeno
propriamente dito, Katz entra no âmbito do
relato e da expressividade da experiência
mística (1992). Para o intelectual, o indiví-
duo descreve sua experiência com o mes-
mo conteúdo intelectual e estrutura linguís-
tica que o fez experimentar o fenômeno.
Há, de acordo com Katz, uma relação direta
entre a experiência e o relato da vivência,
isto é, os místicos descrevem exatamente
aquilo que experimentam, o que nega a na-
tureza inefável do fenômeno. O fenômeno
pode então ser descrito racionalmente. A
esse respeito, Katz observa que
Katz afirma a importância da linguagem
para a experiência mística (1992). O autor
Carlos Eduardo Mendes de Araújo Couto, O misticismo na obra de Theo Angelopoulos...
400
analisa práticas de diferentes tradições
místicas, como a Cabala, Sufismo e Budis-
mo, para demonstrar a relevância da lin-
guagem para o fenômeno místico. A expe-
riência é condicionada por influências lin-
guísticas anteriores e está em conformi-
dade com um padrão cognitivo preexis-
tente. Para Katz, a linguagem serve para
induzir avanços da consciência, sendo fun-
damental para a travessia do caminho do
místico, para o movimento da consciência
A para a consciência B. Ao analisar deter-
minadas tradições sticas e relacioná-las
com suas respectivas linguagens cabala
com hebraico e hindu-ísmo com sânscrito
, Katz aponta como estas grandes tradições
encontram maneiras ricas e sutis de trans-
mitir aspectos primordiais de sua verdade
através da linguagem e como esse léxico
está frequentemente ligado ao divino.
Acreditamos, todavia, que a linguagem ex-
trapole apenas o contexto religioso e possa
ser utilizada de forma secularizada, em
nossa realidade concreta, ou em formas ar-
tísticas como a poesia. As palavras podem
funcionar como condutores a fim de alcan-
çar determinados estados místicos. Nesse
caso, as palavras têm poder locomotor,
transportam o indivíduo de uma
determinada realidade cotidiana e concreta
a outra, atemporal e elevada.
O misticismo em Theo Angelopoulos:
a análise de Eternidade e um dia (Mia ai-
oniotita kai mia mera, 1998)
Eternidade e um dia conta a história de Ale-
xander, interpretado pelo ator alemão
Bruno Ganz, um consagrado escritor e tra-
dutor grego, que está doente e perto da
morte. Após se despedir da filha, ajuda um
menino albanês, o jovem Ahilleas Skevis, a
fugir de traficantes de crianças. Alexander
decide então levar o menino até sua aldeia
na Albânia. Durante a viagem passa por
uma série de experiências místicas que o
levam à sua antiga residência e ao contato
com sua falecida esposa Anna, a atriz fran-
cesa Isabelle Renauld.
As primeiras imagens do filme apresentam
uma mansão. Corte para o interior do
quarto. Um longo plano sequência acompa-
nha Alexander, ainda criança, saindo de
sua casa correndo para dentro do mar com
seus jovens amigos, enquanto as palavras
do poeta e filósofo Heráclito de Éfeso, nar-
radas em off, anunciam a importância da
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 391-406, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.45525)
401
cultura, da mitologia e da língua grega para
Angelopoulos e um tema constante nesse
filme, o tempo com suas transições, memó-
rias e ausências: “O tempo é uma criança
que brinca com pedras na praia”. O tempo
é filho do deus Cronos e, como uma enti-
dade alegórica pode ser entendida como o
tempo linear ou o tempo eterno e uma cri-
ança, com sua inocência e ingenuidade,
pode brincar com o tempo, retornando ao
passado, avançando ao futuro, criando
atemporalidades. Alexander, o protago-
nista, também modificará o tempo e ressig-
nificará seu presente.
Uma sobreposição de imagens do mar traz
a sequência de volta para a Grécia de 1998.
Alexander sentado em sua cadeira, visivel-
mente doente, acompanhado de uma en-
fermeira que lhe informa que precisa ir ao
hospital se internar. “Ainda sinto o gosto do
sal”, anuncia nosso protagonista, uma me-
táfora, anunciando intenção de fugir da
linearidade do tempo histórico, relem-
brando sua infância, um tempo seguro e
inocente quando nadava no mar com seus
amigos e sua família.
No caminho para o hospital, Alexander vi-
sita sua filha e conversam sobre sua mãe.
A filha então lhe entrega cartas deixadas
por Anna, esposa e mãe. Alexander começa
a leitura e, emocionado, se dirige à va-
randa. As cartas são apelos à atenção do
esposo, sempre tão distante dela e de to-
dos. Ao atravessar as cortinas, tem sua pri-
meira experiência mística. uma rup-tura
espaço-temporal e Alexander é deslocado
para sua antiga casa, com sua falecida es-
posa. Conversam sobre o vestido, as visitas
e a gravidez. Um corte seco. Carros antigos
denotam o tempo passado. Os convidados
chegam e adentram a casa. A voz em off
de sua esposa trata do amor entre eles e
se alterna com as conversas de teor político
dos personagens.
Foram as palavras de Anna que ocasiona-
ram o fenômeno místico, que está longe de
ser apenas uma lembrança, uma vez que é
o Alexander de hoje, velho e doente, que
interage com sua esposa. Não há qualquer
referência religiosa, nenhuma ascese pré-
via, o evento simplesmente acontece, uma
típica experiência mística natural, como
descrita como R. C. Zaehner. O conteúdo
da experiência é moldado pela memória e
pela cultura pessoal de Alexander, sua vida
com Anne, suas amizades, o contexto polí-
tico e social.
Carlos Eduardo Mendes de Araújo Couto, O misticismo na obra de Theo Angelopoulos...
402
Alexander sai da casa de sua filha e se di-
rige ao hospital. No caminho, pelas ruas de
uma Tessalonika caótica e cinzenta, ajuda
uma criança que limpa seu carro no sinal
de trânsito a fugir de seus perseguidores.
Alexander segue o menino e percebe que
ele volta a cair prisioneiro dos criminosos
que o levam, dentro de um pequeno cami-
nhão, para um local onde adoções ile-
gais e tráfico de crianças. Alexander res-
gata o jovem e decide levá-lo de volta à sua
aldeia na Albânia.
Em estado terminal e responsável por uma
criança, a jornada de Alexandre ao interior
do país torna-se a metáfora de uma viagem
interior. Alexander realiza uma análise de
si mesmo, confrontado seus infernos pes-
soais, suas dores e medos, à procura de um
passado, conectando-se com os espíritos
que povoaram sua vida, como se buscasse
o contato com familiares com quem irá se
encontrar em um tempo próximo.
Alexander leva seu pequeno amigo de volta
à Albânia, mas param diante da fronteira
congelada, uma cerca que parece cheia de
corpos, como espantalhos pendurados do
arame farpado. Os dois se olham por segun-
dos. Um guarda se aproxima e eles fogem.
A partir deste momento, seus destinos se
unem: não mais retorno possível. O filme
conta agora a história de dois heróis solitá-
rios, arrancados de sua família, de seu con-
texto social e amesmo geográfico.
Na jornada pelo interior da Grécia, Alexan-
der transita livremente entre diferentes
momentos de sua história pessoal, interca-
lando-a com a exuberante cultura grega.
Chama a nossa atenção outra quebra do
espaço-tempo no qual os protagonistas ob-
servam o poeta grego do século XIX, Dyo-
nisios Solomos (Fabrizio Bentivoglio), ves-
tido com trajes da era romântica em uma
antiga ruína grega.
De fato, a experncia stica é condicionada
por influências linguísticas e tamm esem
conformidade com determinados pades
culturais anteriores. A rica cultura grega, re-
presentada nessa sequência por Solomos,
fornece o contexto cultural e cognitivo para o
evento místico de Alexander e do menino. As
ruínas da construção representam as ruínas
de nosso interior, nosso castelo despedaçado
e as palavras de uma poesia podem funcionar
como um fluxo, um mantra, a fim de conduzir
os indiduos a determinados estados de con-
templação ou místicos.
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403
De volta a Tessalonika, na larga avenida
que beira o mar, Alexander encontra com
seu médico e conversam sobre o estado de
saúde terminal do protagonista. uma
dose de melancolia na sequência. O menino
sai de cena e Alexander se dirige em dire-
ção ao mar, sussurrando palavras em des-
vario, chamando por sua esposa Anna. Ou-
tra ruptura acontece, certamente causada
pelo excesso de emoções, e Alexander se
encontra em um barco, com pessoas can-
tando e dançando. Ele se dirige ao final da
embarcação onde estão Anna e sua mãe.
Alexander beija carinhosamente sua mãe e
conversa com Anna, que reclama sua au-
sência em todos os anos do casamento.
Corte. Todos agora se encontram em uma
ilha grega, vestidos com roupas claras, com
exceção de Alexander que ainda veste suas
roupas pretas e puídas de sua própria rea-
lidade. Como um ato contínuo, repetição de
toda uma vida, Alexander se dirige para o
lado oposto de Anna que parece desistir do
relacionamento e se di-rige ao mar. Do alto
de um penhasco, Alexander acena para um
barco, como se estivesse se despedindo da
própria vida. Alexander, agora sozinho,
após deixar seu jovem amigo no porto onde
embarcaria em um navio para a Itália, se
dirige ao centro de Tessalonika.
Alexander, agora sozinho após deixar seu
jovem amigo em um porto, deve escolher
entre o hospital ou sua antiga casa, aquela
que morou com Anna e sua família. A esco-
lha recai na segunda opção. A casa, vazia,
não guarda nenhum resquício do conforto e
beleza anteriores. Curiosamente, ele entra
no mesmo quarto com varanda para a praia
onde estava no início do filme, mostrando
a circularidade do tempo. A varanda se
abre: seus amigos, sua família e sua fale-
cida Anna dançam na praia. Alexander se
aproxima e dança com eles. As pessoas
abandonam a praia vagarosamente dei-
xando apenas o casal em cena. “Perguntei-
lhe um dia: quanto tempo o amanhã de-
mora para chegar? E você me respondeu:
Uma eternidade e um dia”. Anna sai de
cena. Alexander está só: “Minha passagem
para o outro lado hoje à noite, com pala-
vras, a trouxe de volta. Você está aqui. E
tudo é verdade, esperando, pela verdade”.
Alexander transcende espaço e tempo para
ficar com Anna e sua família. Todas as ex-
periências místicas anteriores, como ruptu-
ras no templo cronológico, naturais e sem
qualquer conotação religiosa, forneceram
momentos para Alexander corrigir sua au-
sência, reconstruir seus contatos e ressigni-
ficar seu presente, preparando o terreno
Carlos Eduardo Mendes de Araújo Couto, O misticismo na obra de Theo Angelopoulos...
404
para o epílogo, quando estariam todos jun-
tos. A cultura, a mitologia, a poesia grega e
a própria história pessoal do escritor forne-
ceram o suporte cognitivo para todos os fe-
nômenos espirituais ocorridos na jornada de
Alexander e as palavras funcionaram como
um mantra para a Eternidade e um dia.
Conclusão
Após apresentarmos os principais pressu-
postos das abordagens de Zaehner e Katz,
que nos fornecem o fundamento teórico,
devemos agora estabelecer os aspectos da
mística na obra tardia de Theo Angelopou-
los. De fato, a mística na obra do cineasta
grego pode ser caracterizada como uma
confluência entre determinadas ideias de
Zaehner e Katz.
As formas de experiência mística desen-
volvidas nas obras cinematográficas de An-
gelopoulos, notadamente em Eternidade e
um dia, se afastam dos fenômenos que
ocorrem no âmbito das tradições religiosas,
com suas práticas oracionais, meditativas e
teúrgicas, e se encaixam no modelo de fe-
nômeno natural, secularizado e profano,
descrito por Zaehner, nos quais os
indivíduos, em seus estados místicos,
transcendem o tempo e o espaço, mas ex-
perimentam algo próximo de sua realidade
e de sua vida concreta.
E ainda que Katz restrinja sua teoria sobre
a mediação da experiência mística apenas
às formas religiosas dos fenômenos, não
desenvolvendo um estudo pertinente sobre
as experiências naturais ou estados altera-
dos de consciência, consideramos que os
fenômenos sticos naturais e dessacrali-
zados, que ocorrem com os personagens
de Angelopoulos, são igualmente mediados
e determinados por condicionamento, por
sua condição social e histórica. Ora, de
acordo com Katz, os fenômenos são o re-
flexo das formações pessoais dos sujeitos
místicos, de suas histórias de vida e de
suas inserções em determinados contex-
tos, no caso a região balcânica com seus
problemas políticos e humanitários, o fim
do socialismo e a guerra da Bósnia, a mo-
dernidade e a globalização.
Assim como a linguagem, especialmente a
religiosa, é fundamental para o condiciona-
mento do fenômeno místico, como nos
afirma Katz, a língua grega é importante
para o desenvolvimento da experiência nos
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filmes de Angelopoulos. Ela se torna funda-
mental para a travessia do caminho do mís-
tico, para a condução de uma realidade
concreta, cronológica, para a transcendên-
cia. As expressões em grego fornecem as
pistas, dirigem a atenção dos espectadores
para o estado místico.
Notas
1 Tradição religiosa indiana.
2 Pequenos doces que molhados no chá faziam o pro-
tagonista Marcel se lembrar de seu passado.
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