Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 353-372, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.45633)
353
As ruínas do tempo: memória e levantes
The Ruins of Time: Memory and Uprisings
Las ruinas del tempo: memoria e insurrecciones
Nathalia Lambert (Universidade Federal Fluminense, Brasil)
*
https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.45633
RESUMO: Nosso século é marcado por inúmeras crises e levantes. Uma das mar-
cas dos levantes é a urgência por novos signos e símbolos que deem conta de re-
presentar novas narrativas, marcadas pela diferença e pela postura crítica diante
do instituído. Nessa seara, o espaço blico é palco privilegiado para tal disputa.
A derrubada das estátuas reacendeu o debate acerca da memória coletiva. O que
está em jogo na construção e na derrubada de monumentos? Os símbolos que
estão ali representados ainda fazem sentido? As propostas artísticas de Rosangela
Rennó e do coletivo 3Nós3 tocam essa questão e nos guiam na busca por explici-
tar suas imbricações nos campos da arte e da política. É sobre a perspectiva dos
afetos e da análise micropolítica que vai se montando a relação com os símbolos e
as narrativas contemporâneas.
PALAVRAS-CHAVE: monumento; memória; levantes; micropolítica; representação
*
Nathalia Lambert é pesquisadora e mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense. Orcid:
https://orcid.org/0000-0003-1693-4927. E-mail: nathalialambert@gmail.com.
Nathalia Lambert, As ruínas do tempo: memória e levantes.
354
ABSTRACT: Our century is marked by countless crises and upheavals. One of the
hallmarks of the uprisings is the urgency for new signs and symbols that are ca-
pable of representing new narratives, marked by difference and by the critical
stance towards the instituted. In this area, public space is the privileged stage for
such a dispute. The overthrow of the statues rekindled the debate about collective
memory. What is at stake in the construction and demolition of monuments? Do
the symbols represented there still make sense? The artistic proposals of Rosan-
gela Rennó and the collective 3Nós3 touch on this issue and guide us in the
search for making explicit its implications in the fields of art and politics. It is on
the perspective of affections and micropolitical analysis that the relationship with
contemporary symbols and narratives is being built.
KEYWORDS: monument; memory; uprisings; micropolitics; representation
RESUMEN: Nuestro siglo está marcado por innumerables crisis y insurrecciones. Una
de las señas de identidad de insurrecciones es la urgencia de nuevos signos y símbo-
los que sean capaces de representar nuevas narrativas, marcadas por la diferencia y
por la postura crítica hacia lo instituido. En este ámbito, el espacio público es el esce-
nario privilegiado para tal disputa. El derrocamiento de las estatuas reavivó el debate
sobre la memoria colectiva. ¿Q es en juego en la construccn y demolición de
monumentos? ¿Los mbolos representados allí todavía tienen sentido? Las propues-
tas artísticas de Rosangela Rennó y el colectivo 3Nós3 tocan este tema y nos orientan
en la búsqueda de hacer explícitas sus implicaciones en los campos del arte y la poti-
ca. Es desde la perspectiva de los afectos y el análisis micropolítico que se construye
la relación con los símbolos y narrativas contemponeas.
PALABRAS CLAVE: monumento; memoria; insurrecciones; micropotica; representación
Recebido: 30/8/2020; Aprovado: 7/12/2020; Publicado: 2/1/2021.
Citação recomendada:
LAMBERT, Nathalia. As ruínas do tempo: memória e levantes. Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n.
37, p. 353-372, jan./jun. 2021. [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.45633]
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355
As ruínas do tempo: memória e levantes
A rua é um espaço que frequentemente é
remontado por ações disruptivas de dispu-
tas sociais. nos últimos dez anos po-
demos nos lembrar de algumas reocupa-
ções desse espaço, como a da praça Ta-
hrir no Cairo, a da Catalunha em Barcelo-
na e a da praça Baquedano, em Santiago.
Apropriadas de maneira que traziam à vis-
ta sua dimensão essencialmente pública,
as ruas foram palcos privilegiados para
reivindicações, denúncias e ações coleti-
vas. No dia 7 de junho deste ano (2020),
em uma praça em Bristol, no Reino Unido,
a estátua de um famoso traficante de es-
cravos, Edward Colston, foi retirada de
seu pedestal por ativistas do movimento
black lives matter
1
e lançada ao rio. O
homenageado ali representado era um dos
principais membros da Royal African Com-
pany, empresa que no século XVII comer-
cializava mercadorias como ouro e marfim
e, principalmente, lucrava com o comércio
de africanos escravizados. Na Royal Afri-
can Corporation, Edward Colston partici-
pou de um mercado genocida que tomou
cerca de 84 mil africanos de seus países,
negociando-os como mercadoria na Amé-
rica. O que soaria absurdo e incompreen-
Nathalia Lambert, As ruínas do tempo: memória e levantes.
356
sível, o fato de ser este o homenageado,
imortalizado em seu país, nomeando esco-
las, hospitais e ruas. O que acontece, no
entanto, é que, personalidades como a do
sir Edward Colston recheiam o hall de
homenageados pelas cidades do mundo a
fora. Isto porque o que foi convencionado
como filantropia, doação para fins públicos
de grandes milionários, proprietários e
herdeiros, foi muitas vezes realizada com
capital oriundo da exploração da mão de
obra escrava. A associação entre filantro-
pia e escravidão é recorrente em nossa
história e os monumentos acabam por
descrever mais acerca do tempo em que
foram construídas do que sobre os perso-
nagens que homenageiam. A concepção
de monumento tem sua raiz, segundo
Jacques Le Goff, remetida a memem, pre-
fixo grego que designa a noção de memó-
ria. A memória é constituinte do monu-
mento, mas o monumento também preci-
sa do sujeito “que teça, a partir dele, seus
significados”. (LE GOFF, 1990, p. 485) Se-
gundo o mesmo autor, a ação do tempo
sobre a história precisa ser pensada como
a ação dos agentes de seu tempo, de ma-
neira que a história está para ser relida,
reescrita, desmontada; está para ser de-
molida como construção e disposta, sem
gessos, em participação com o seu tempo
presente, suas narrativas, ões e agentes.
Pensemos no caráter “provisório” das in-
venções formais; esta transitoriedade é
índice das transformações no terreno da
história, no qual os eixos das transforma-
ções históricas se desdobram uns sobre os
outros em um esquema de urgência pelo
novo e pela ruptura, o que aparenta ser
um reflexo da tentativa de reconstrução
de uma representatividade pelos indiví-
duos e pela sociedade vigente. O gesto de
derrubar estátuas acendeu questionamen-
tos variados, opiniões que passavam por
críticas à ação, julgada como apagamento
da história ou simples depredação do es-
paço público, até àquelas que pensam a
persistência de tais estátuas como uma
afronta à sociedade, na qual os ícones re-
presentam um passado genocida que deve
ser criticado, reavaliado e, com isso, mo-
dificados. Derrubar uma estátua é reacen-
der o debate sobre ela. A estátua é revivi-
da, subtraída de sua imobilidade e concre-
tude; onde antes um bloco de cimento fi-
gurativo, muitas vezes invisível ao espaço
público, vai emergir uma história, que se
faz urgente em ser reapropriada e recon-
tada. Esse ressurgimento parte do inda-
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gar-se sobre quem são as figuras repre-
sentadas ali. Porque elas foram considera-
das importantes a ponto de serem imorta-
lizadas em monumentos. Qual o projeto
de sociedade que elas ilustram? Qual o
pacto civilizatório que está subscrito a es-
se monumento? O monumento como índi-
ce do passado deve ser relido no presente.
A história é contada a partir do tempo
presente.
A substituição ou derrubada de uma está-
tua não vai apagar sua história; no entan-
to, se apropriar de sua narrativa enquanto
sociedade é também fazer história. O fa-
zer da história através da iconoclastia fez
parte de diversos momentos das civiliza-
ções, por exemplo, a queda da Bastilha
durante a revolução francesa, permeada
de incêndios, destruições, derrubada da
estátua do monarca, fatos que compõem a
cena e perduram na história enquanto
partes fundamentais da narrativa. A histó-
ria da destruição é também história. Se-
gundo a historiadora Keila Grinberg, a His-
tória é o método cientifico de análise e in-
terpretação do que passou, das transfor-
mações em narrativas e, com isso, propõe
interpretações. As estátuas, como exem-
plo, vão se remeter ao momento do qual o
homenageado fez parte, ao momento de
construção do monumento e, por último,
ao tempo presente. Nesse caso, o monu-
mento está em interação e diálogo com a
sociedade atual. Se nesse presente a ima-
gem se torna anacrônica, precisamos
questioná-la e adequá-la ao nosso próprio
tempo. Neste sentido, a história está sen-
do feita não destruída, já que o gesto de a
arrancar ou de nela intervir pode sacudir
os restos de um passado que ainda ecoa.
(Fig. 1)
Contudo, observamos na história recente
outro exemplo de destruição de monu-
mentos que parece importante tensionar:
o caso das estátuas dos Budas de Bami-
yan, implodidas no Afeganistão pelo grupo
fundamentalista islâmico do talibã. As gi-
gantes esculturas de arenito foram cons-
truídas entre os séculos IV e V, quando a
região afegã era um local sagrado para o
Budismo. No momento em que os talibãs
assumiram o poder político e militar da
região, no final dos anos 90 do século XX,
qualquer traço de cultura, economia ou
religião que não a talibã foi sendo destruí-
do. Toda cultura, arte, religião e as de-
mais temáticas ligadas às liberdades indi-
viduais eram proibidas pelo regime.
Fig. 1 - Manifestantes jogam estátua do traficante de escravos Edward Colston no porto de Bristol,
durante manifestação Black Lives Matter, em Bristol, na Inglaterra.
(Fotografia: Ben Birchall/PA via Associated Press, 7/6/2020)
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359
As estátuas dos Budas eram sacramenta-
das como patrimônio da humanidade pela
Unesco. Diferente das estátuas dos escra-
vocratas que foram retiradas por forças
sociais presentes naquela sociedade, as do
Budas foram dinamitadas a mando do po-
der vigente e não simbolizavam direta-
mente nenhuma tensão ao grupo talibã. É
narrado que o líder talibã Mullah Moham-
med Omar, quando ordenou a destruição,
disse: são pedras. O que parece refor-
çar a tese de que o símbolo de buda e seu
significado enquanto monumento não res-
soavam ou causavam atualização da me-
mória talibã. Some-se a isso o fato de que
o Budismo não é religião oficial no Afega-
nistão e as estátuas eram tidas como um
potencial fonte de renda, via turismo, pela
população da cidade.
Por outro lado, um monumento que ho-
menageia um comerciante de escravos
simboliza exatamente certa narrativa que
está vigente em nossa sociedade, e que
forja muitas de suas bases formadoras.
Tais monumentos são símbolos pronta-
mente decodificáveis pela comunidade na
qual eles se inserem, que facilmente tra-
duzem sua significação. Quando a comu-
nidade investe contra tais monumentos,
está investindo contra os discursos e os
sujeitos que os ergueram e os consolida-
ram. Os ecos da escravidão estão presen-
tes em nossa cultura, estando atrelados a
todos os discursos que nos construem e
estão, de fato, vivos. Segundo Jacques Le
Goff: “A memória, onde cresce a história,
que por sua vez a alimenta, procura salvar
o passado para servir o presente e o futu-
ro. Devemos trabalhar de forma a que a
memória coletiva sirva para a libertação e
não para a servidão dos homens. (LE
GOFF, 1990, p. 411) O que o regime talibã
propõe é uma não existência de uma me-
mória coletiva, é uma única narrativa que
partiria de antemão da negação de qual-
quer possibilidade de liberdade distintiva.
A instalação Good Apple / Bad Apple, um
documento monumento (2019) de Rosân-
gela Rennó, se compõe de diversas foto-
grafias de estátuas de Vladimir Lênin. As
imagens, fotografias de diferentes tempos,
se dividem basicamente em registros das
estátuas ainda expostas e daqueles em
que estátuas estão sendo destruídas ou
retiradas de seus pedestais. As fotografias
recolhidas em diversos sites da internet
foram selecionadas, organizadas e recebe-
ram molduras, legendas e intervenções da
Nathalia Lambert, As ruínas do tempo: memória e levantes.
360
artista, antes de serem dispostas de certa
maneira no ambiente da instalação
2
. No
período da existência da ex-URSS (entre
1922 e 1991), inúmeros monumentos em
homenagem a Lênin foram espalhados por
todo o espaço blico do vasto território
que compunham a URSS. Na organização
das fotografias, Rennó vai marcar com o
símbolo de Bad Apple as estátuas que fo-
ram destruídas ou retiradas dos pedestais,
e com o símbolo de Good Apple aquelas
que permanecem, ou por terem sido es-
quecidas ou por estarem expostas em paí-
ses que ainda mantém alguma afinidade
com o sistema comunista e com a figura
de Lênin. As fotografias são ferramentas
das quais a artista se apropria e reconfi-
gura para tensionar questões como a da
relação entre memória e esquecimento.
Uma espécie de arqueologia do monumen-
to que deixa evidenciar a relação do sim-
bólico com o político, aludindo também a
uma certa ação da memória que seleciona
e tenta apagar determinados símbolos, o
que pode se associar a uma tentativa de
afirmação dos indivíduos e das sociedades
presentes em resposta ao passado. Isso
nos faz pensar sobre os eixos de poder
que incidem sobre a permanência de de-
terminados símbolos ou sobre sua aniqui-
lação. Existiria a possibilidade de apaga-
mento de um signo como este monumen-
tal? No mundo contemporâneo, o que per-
cebemos é uma permanência das ima-
gens, compartilhadas em profusão nos
meios digitais, o que, mesmo ante sua
destruição, tem a permanência garantida
pelo ambiente digital. A relação entre mo-
numento e documento ganha um ar de
aparente imaterialidade ou, antes, de outra
materialidade, outra significação. (Fig. 2)
Fig. 2 - Rosângela Rennó, Good Apples | Bad Apples. Fotografia da instalação em MUNTREF,
Hotel dos Imigrantes. (Fotografia Alejandra Villasmil. Buenos Aires, Argentina. 2019.)
Nathalia Lambert, As ruínas do tempo: memória e levantes.
362
Outro trabalho que nos remete ao debate
acerca dos monumentos públicos é a ão
do coletivo 3nós3, o Ensacamento. O cole-
tivo, formado na cidade de São Paulo no
final dos anos 1970 pelos artistas Hudinil-
son Júnior, Rafael França e Mario Ramiro,
ficou bastante conhecido por sua ação de
intervenção pública, em vinte e sete está-
tuas na capital paulista em 1979. A ação
Ensacamento consistia em cobrir com sa-
cos pretos, como os de lixo, diversos mo-
numentos espalhados pela cidade, em alu-
são à prática de tortura comum ao regime
ditatorial. A prática consistia em cobrir a
cabeça dos presos políticos para que, além
de não verem seus algozes, sofressem a
dificuldade de respirar. O percurso adota-
do foi previamente demarcado em um
mapa da cidade. A proposta invocou a
atenção dos transeuntes que passavam
cotidianamente pelas estátuas sem sequer
notar a existência das esculturas e muito
menos sabiam a quem elas se remetiam.
Sobre a interferência na cidade, diz Mario
Ramiro: “Além de sua presença física na
malha urbana, as intervenções passaram
a existir também como intervenções nos
meios de comunicação”.
O grupo, afora a intervenção, tratou de
produzir uma matéria jornalística sobre o
acontecimento, além de contactar anoni-
mamente outros veículos de imprensa. A
ação, mesmo que efêmera, passível de ser
rapidamente desfeita, ganhava propaga-
ção midiática de forma que forçava uma
inserção nos meios de circulação oficial. A
ação ganhava outras camadas e trouxe à
tona debates acerca da ocupação do espa-
ço público e o direito a essa ocupação. A
cidade mais uma vez como palco, mar-
cando seu lugar privilegiado no que tange
às questões de visibilidade, de transitorie-
dade e de transformações. As estátuas e
esculturas, enquanto obras presentes nes-
te espaço, hesitam entre a permanência e
o desaparecimento. A memória coletiva
está sempre em disputa ativa na possibili-
dade de ressignificação desses monumen-
tos. A ação Ensacamento se insere como
proposta de atualização dos traços da
memória, que vai ressaltar um deter-
minado momento histórico e político atra-
vés de um ato que se apresenta entre per-
formance e ato político, entre arte e vida.
(Fig. 3)
Fig. 3 - Coletivo 3nós3, Ensacamento, São Paulo, Brasil, 1979.
(Fotografia da intervenção: Acervo Mario Ramiro)
Nathalia Lambert, As ruínas do tempo: memória e levantes.
364
Em ambos os cenários apresentados aqui,
os ecos da memória se reorientam na bus-
ca por novos signos e significados. Ações
que se orientam pela memória no sentido
de atualizá-la e reposicioná-la em sua rela-
ção com o tempo presente. Sentidos que
lutam por emergir na falência de significa-
dos caducos. Nota-se que esse movimento
de reordenação é um movimento tanto na
esfera individual quanto na esfera do cole-
tivo, do corpo social, de maneira que ao,
nos debruçarmos sobre crises e sobre os
grandes distúrbios globais a partir da ótica
dos eventos radicais que atravessam a his-
tória, percebemos que estes colocam em
suspensão a realidade e podem unir com
entusiasmo milhares de pessoas. Em mui-
tos casos, um movimento espontâneo, ho-
rizontal, tentando recriar espaços, discur-
sos e gestos, que pode tomar as ruas, as
cidades, e os meios de comunicação. Na
publicação intitulada Levantes (2017), Didi-
Hüberman vai remontar, através de textos
e imagens, situações de levantes na histó-
ria da humanidade. Uma arqueologia das
imagens que toma a história não como da-
do fixo, como um saber inerte ou uma sim-
ples descrição, de modo que o passado é
mais um tema de memórias individuais e
sociais do que um fato de caráter imutável.
Dito isso, para desmontar a continuidade
das coisas propostas por certa construção
epistêmica, Didi-Hüberman propõe a al-
ternativa de assumir a “montagem” e o
“anacronismo” como métodos. Não vive-
mos em uma civilização da pura imagem,
vivemos em uma civilização dos chavões.
Portanto, a tarefa que se nos impõe é a de
apurar o olhar às imagens ou a de criar
imagens que desconstruam estes chavões.
O percurso assumido dos Levantes passa
por colocar as imagens em relação entre si
através de um recurso contínuo à ideia da
montagem. Pôr em relação as imagens,
que elas não falam de forma isolada.
Examinar as imagens, para Didi-
Huberman, é como andar sobre ruínas da
história do mundo, de imagens sobre ima-
gens ou “criar a história com os próprios
detritos da história”, como disse Benjamin.
Refletindo sobre o que es envolvido no
ato de sobrelevar-se, observa-se que ele
se remete primordialmente à esfera dos
desejos, essa que é incessantemente ali-
mentada por nossas memórias, projetan-
do-se em novas e reinventadas formas.
Levantar-se é pôr as formas em movimen-
to. Além disso, a força da ação e do gesto
do levante teria potência de ultrapassar o
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eu e tomar uma multidão inteira. Anto-
nio Negri, no artigo que compõe o livro in-
titulado O acontecimento levante”, anali-
sa as ocasiões que precedem os gestos de
levantes, distinguindo e relacionando o
que ele vai chamar de pausa/intervalo e
interrupção/ruptura, a passagem da inér-
cia indiferente ao impulso coletivo de le-
vantar-se. Fazendo a analogia com o
exercício esportivo do levantamento de
peso, Negri quer ressaltar o momento de
pausa entre o movimento de retirar o pe-
so do chão e o de erguê-lo ao alto. Um in-
tervalo de duração muito breve em que
o se tem mais o intervalo da escolha.
Da inércia para o impulso, do impulso pa-
ra ação.
Trilhando uma arqueologia social das ma-
nifestações políticas europeias, Negri ob-
serva uma matriz antropológica que reme-
te aos funerais com seus grandes cortejos.
Observando imagens e relatos dos gran-
des funerais dos séculos pregressos, como
o de Dorotéia na Espanha em 1936, o au-
tor identifica o ato de manifestar-se com a
transformação de uma perda, do luto, em
desejo de sobrelevar-se, um gesto de su-
blimação, indicando seu contato com ca-
madas mais profundas da memória e do
inconsciente. Em uma manifestação nada
está decidido antecipadamente, tudo está
em suspenso, esperando os próximos
acontecimentos. É o desejo que move a
ação. “Quando o indivíduo se manifesta,
ele quer tomar uma bastilha”, diz Didi-
Huberman citando o escritor Paul Nizan,
que em seu livro A conspiração, descreve
um funeral francês do início do século XX
que acabou por se tornar uma manifesta-
ção política. Manifestar teria como ensejo
esse reencontro com o desejo, reencontro
que transforma a imobilidade em movi-
mento, que transforma a paralisia pelo
medo em transgressão soberana. O fune-
ral de George Floyd em Mineápolis, nos
Estados Unidos, em junho deste ano, con-
gregou milhares de pessoas e se propagou
Nathalia Lambert, As ruínas do tempo: memória e levantes.
366
como uma onda em manifestações por to-
do mundo. Floyd foi assassinado por um
policial em uma abordagem na saída de
uma loja. Sem provas ou suspeitas cabí-
veis, foi brutalmente asfixiado no meio da
rua, aos olhos de outros policiais e de
passantes desavisados. A violência durou
mais de 8 minutos, foi filmada e a imagem
circulou em profusão pela internet. O mo-
vimento black lives matter, vidas negras
importam!, apoiado por grande parte da
opinião pública, tomou voz diante da bar-
bárie do Estado, exigindo justiça e narran-
do a violência que a população negra sofre
sistematicamente por parte da polícia e do
Estado. O velório, que durou vários dias,
espraiou-se pelas ruas, tornando-se uma
grande onda de manifestações, ressoando
em confrontos com a polícia e com insur-
gências perante os edifícios e monumen-
tos símbolos do Estado racista.
As forças políticas vigentes buscam sem-
pre deslegitimar as manifestações por
confrontarem a norma e o pacto social
instituído. As insurgências investem no
espaço visível como uma recusa da repre-
sentatividade que está em vigor. No en-
tanto, o manifestar-se não se configura
prontamente em uma adoção de outra re-
presentação, mas primeiramente em uma
forma de expressão, que chega como uma
imaginação coletiva, quando os signos e
símbolos que ocupam o cenário comum
não ecoam mais em seus sujeitos, quando
os significados dos monumentos, das ima-
gens, das narrativas deixam de ter valor.
Os manifestantes, para se expressarem,
vão reinventar gestos, músicas, palavras
de ordem, imagens. Se fa imperioso
preencher o espaço com outra aparência.
Os braços se erguem, as bocas se abrem,
as línguas se liberam colocando todo o
mundo social de ponta cabeça. O que se
faz expressivo em um levante é, em certa
medida, o que vai congregar as diversas
dimensões que o povoam. No entanto, es-
ta poética do levante não está distante da
ação; pelo contrário, segundo Didi-Hüber-
man, haveria uma “inteligência particular
atenta à forma inerente aos livros de
resistência ou de levantes(2017, p. 50),
até que as próprias paredes tomem a pala-
vra e ilustrem o espaço público.
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367
Antecederia e subjazeria aos turbilhões
uma imaginação poética que os concebe e
que arquiteta suas formas, evidenciando
nas manifestações coletivas além de seu
caráter político, elementos estéticos e que
ambos aspectos possuem equivalentes po-
tências para criar rupturas no espaço em
que se inserem. Essa ruptura em potência
é examinada como resistência de forças
que são “antes de tudo desejos e imagina-
ções”. Forças que inauguram outras pos-
sibilidades para o real, como em povos
mais oprimidos, cuja trama de uma po-
tência poética pode significar um levan-
te em certas situações. Levantes que libe-
ram a imaginação em uma maquinação de
resistência e construção por parte da me-
mória, quando o poder político está fora
do alcance e não é nem mesmo desejado,
como é o caso de certas manifestações de
cantos e danças.
O desejo, em sua própria urgência, opera
os levantes. Ele nos constitui e, enquanto
força, restitui-nos a mobilidade. Didi-
Hüberman apontou a ligação desse desejo
que irrompe em levantes no gesto de de-
sobedecer: “desobedecer é tão antigo e
o urgente quanto desejar”. (2017, p.
95) Romper a ordem quando ela não faz
mais sentido ou reproduz esquemas fali-
dos de vida é inerente ao ser humano e
essas rupturas se manifestam tanto com
relação à política e à estrutura social,
quanto em relação aos paradigmas da cul-
tura e da arte. Como, segundo o autor,
ocorreu com os levantes de maio de 1968
em Paris, uma catarse coletiva que povo-
ou as ruas de operários, intelectuais, es-
tudantes e artistas. Os jovens franceses
buscaram retomar a cidade que durante
muito tempo representou um espaço de
liberdade e que, naqueles anos, tinha se
modificado drasticamente pela apropria-
ção do capital na forma de indústrias,
marcas e publicidade.
A proposta de analisar os levantes históri-
cos, também sob a perspectiva dos dese-
jos e das subjetividades relacionadas, põe
em jogo a esfera da micropolítica. A mi-
cropolítica, como proposta por Felix Guat-
Nathalia Lambert, As ruínas do tempo: memória e levantes.
368
tari e por Suely Rolnik, surge para dar
conta das “ambiências que escaparam dos
modos de análise da subjetivação domi-
nante” e, por dar conta de esferas concer-
nentes à vida privada, foram tradicional-
mente excluídos da ação reflexiva. A esfe-
ra que a análise micropolítica resgata é
aquela que trata de temas como desejo,
sexualidade, família, afetos, corpo, cuida-
do, enfim, de tudo que é íntimo e que, por
isso mesmo, precisa ser valorado. A esfera
da macropolítica, por outro lado, sugere
uma acepção mais ampla e generalista no
campo da política, vai tratar das ações do
Estado, do capital em seus agenciamentos
e direções, em um âmbito coletivo e im-
pessoal.
Para Rolnik, não é necessário aguardar
uma “grande revolução para implicar-nos
numa multiplicidade heterogênea de pro-
cessos micropolíticos revolucionários.
(ROLNIK, 2018, p. 18) Os afetos ditos
subjetivos estão em jogo na disputa de
campo da política. Todo processo de le-
vantes, de revoluções estaria operando
uma mudança nas estruturas ditadas pela
micropolítica. Nessa esteira, a pensadora
anota que, por exemplo, a ausência de re-
presentatividade partidária é índice de
uma mudança necessária de reivindica-
ções e de estratégias que propicia a cria-
ção de novos territórios, povoados por no-
vos desejos e experiências, no que ela
chama de um deslocamento das políticas
de subjetivação dominante. É apenas
quando se leva em consideração as ur-
gências da esfera da micropolítica que a
esfera pública da macropolítica pode ser
de fato enfrentada. Iluminando essa esfe-
ra, fica ainda mais tido compreender a
legitimidade do movimento em questionar
monumentos, quando estes ferem e dis-
putam com a identidade de grande parte
da população mundial, o que se torna
mais relevante do que manter intacta uma
história de assassinato e de exploração.
Por conseguinte, não descartaríamos a
importância da luta pela resistência no
âmbito do Estado, da macropolítica, cujo
objetivo último pode ser considerado a
conquista da real democracia. Tal conquis-
ta ultrapassaria a política, se expandindo
para esfera da cultura, da economia e das
relações sociais em geral. A resistência
passa por nos deslocarmos de certa mi-
cropolítica dominante, aquela relativa ao
inconsciente colonial-capitalístico que, se-
gundo ela, comanda o sujeito moderno
ocidental encarnado em nós enquanto in-
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 353-372, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.45633)
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divíduos e sociedade. De fato, trata-se de
uma nova maneira de pensar e agir no
mundo, situando os problemas e a atua-
ção crítica a partir desses mesmos pro-
blemas, potencializando uma nova con-
cepção de política que não descarta rela-
ções simbólicas. A autora diz que o novo
ativismo, que vemos emergir no mundo e
no país, parte precisamente desse deslo-
camento das políticas de subjetivação do-
minante. Dele múltiplas formas de ação
micropolíticas são inventadas em sentido
ativo. Uma ambiência tão múltipla e diver-
sa que fala de aspectos das vidas cotidia-
nas, de modo que nenhuma micropolítica
pode ser definida em seu estado puro, co-
eso e universal. Estaríamos constante-
mente oscilando entre várias e o que fará
a diferença é a maneira como nos dispo-
mos a combater as tendências reativas
que existem nos diferentes cotidianos de
nossas vidas e em cada um de nós, em
nossas relações e ações. É esse novo ati-
vismo que conclama Suely Rolnik que,
mesmo em diálogo com as insurreições
das esferas da macropolítica, remete-se a
uma inerente força vital:
O direito à vida se impõe e vai derrubar
monumentos que simbolizam a morte. E o
que está em jogo é ideia de que o real
se constitui de um jogo de forças e não de
uma verdade estabelecida, imóvel, estáti-
ca e inabalável, o que vai nos permitir
pensá-lo como uma construção de narrati-
vas que foram construídas em consonân-
cia a uma subjetividade soberana; o en-
frentamento com novas subjetividades in-
surgentes é sempre eminente e faz parte
do movimento vital. Por essa perspectiva,
seria a força do desejo, das afecções que
atuaria nos movimentos de insurreição,
quando o desejo vai conquistando a possi-
bilidade de dizer, ativando essa possibili-
dade e desconstruindo a narrativa pela
qual o indivíduo estava estruturado e re-
duzido ao sujeito. É o coletivo em unísso-
no que, congregando desejos, toma as ru-
as e clama por rupturas. O que vemos é
Nathalia Lambert, As ruínas do tempo: memória e levantes.
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uma intervenção política na cultura, por-
que desmancha a base subjetiva do regi-
me capitalista e a da subjetividade que
acompanha esse regime.
Uma estátua que desaba é uma sociedade
que desaba, e os fundamentos que a erigi-
ram estão ruindo. A memória e os valores
que ela representa estão sendo revistos.
Eles versavam sobre poder dominante,
sobre equívocos e violências. E o que está
em pauta é o direito de existir a quem foi
tradicionalmente negado esse direito. Os
monumentos públicos estampam esse
passado que foi negado, negada a vida a
povos que agora desmobilizam estátuas.
O espaço público é o palco de tal ruptura
por ser o espaço de disputa por visibilida-
de, um espaço não hegemônico. Na pers-
pectiva do tempo histórico, observamos
um movimento constante de construção e
de desconstrução de símbolos e significa-
dos, o que repercute em todas as esferas
da vida. O que se entende como esgota-
mento parece ter alguma similaridade com
outros momentos históricos e, de maneira
análoga, podem ser percebidos como um
estado de virada. Mas, o que de fato se
esgotou? É evidente que algo se destam-
pou e agora, mais do que nunca, é preciso
trilhar o caminho, que mesmo sendo o da
ruptura, possui algum esboço. Encarar
as ruínas pode ser o primeiro passo, en-
quanto ignorá-las seria construir, sobre o
arcabouço falido, futuras ruínas. Existem
indícios de que outra subjetividade política
e coletiva esteja nascendo e, mesmo que
ainda nos faltem categorias e parâmetros
para dar conta dessa nova multiplicidade,
ela é sintomática e se manifesta no clamor
por outros movimentos e gestos, por no-
vas narrativas e sentidos.
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 353-372, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.45633)
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Notas
1
Black lives matter (vidas negras importam) é um
movimento surgido nos Estados Unidos em 2013. Se-
gundo uma de suas fundadoras, Patrisse Cullors, o
movimento é uma resposta por amor pelas pessoas
negras à forma sistematicamente excludente que o
sistema e a sociedade vigente tratam as pessoas ne-
gras há séculos. Entrevista concedida ao canal de im-
pressa alemã DW em 21/7/2020. O movimento come-
çou com uma hashtag #blacklivesmatter e se tornou
um slogan nas ruas, em evidência nos últimos meses
pelo covarde assassinato de George Floyd.
2
Em exposição, a obra foi disposta de duas formas
distintas. No primeiro formato, as imagens foram dis-
postas emolduradas em três cores preta, branca e
vermelha, respectivamente, referenciando-se às es-
tátuas derrubadas, e às que estão em exibição. Na
trama, as fotografias aparecem ainda em colunas or-
ganizadas alfabeticamente, onde cada letra vai cor-
responder à cidade do monumento e, em cada colu-
na, é possível observar estátuas que existem ou exis-
tiram nas referidas cidades. No segundo formato, as
fotografias foram encadeadas em uma espécie de ál-
bum sanfonado, como aqueles postais vendidos como
souvenirs em lugares históricos ou em museus.
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Nathalia Lambert, As ruínas do tempo: memória e levantes.
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notas para uma vida não cafetinada. São
Paulo: n-1 edições, 2018.
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