Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 373-390, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.45639)
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Texto-Livro, Texto-Filme: Aparições de Macunaíma
inspiradas na poética de Mário de Andrade
Text-Book, Text-Film: Macunaíma's Appearances
Inspired by Mário de Andrade's Poetics
Texto-Libro, Texto-Película: Las apariciones de Macunaíma
inspiradas en la poética de Mário de Andrade
Luciano Tasso Filho
*
, Aparecido José Cirillo
**
, Stela Maris Sanmartin
***
(Brasil)
https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.45639
RESUMO: Em 1928, o escritor Mario de Andrade apresentava à conservadora so-
ciedade brasileira as páginas de Macunaíma, um herói sem nenhum caráter. Qua-
tro décadas depois, Joaquim Pedro de Andrade levava às telas o filme Macunaíma,
inspirado no livro. Duas aparições criativas sobre o mesmo personagem em dife-
rentes linguagens, que se tornaram símbolos de movimentos artísticos: o Moder-
nismo e o Cinema Novo. Este trabalho propõe analisar as tensões intersemióticas
criadas a partir de signos escritos que identificam o herói Macunaíma e sua trans-
posição para a dia audiovisual, levando em conta os limites de cada suporte e
as influências sócio-políticas de cada época.
PALAVRAS-CHAVE: Macunaíma; intersemiótica; Mário de Andrade; Joaquim Pedro
de Andrade; texto-filme
*
Luciano Tasso Filho é mestrando do PPG em Artes da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Orcid: https://orcid.org/0000-
0003-1796-0481. E-mail: lucianotasso@ltasso.com.br.
** Aparecido José Cirillo é doutor com pós-doutorado realizado na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. É professor do
Centro de Artes da UFES. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6864-3553. E-mail: josecirillo @hotmail.com.
*** Stela Maris Sanmartin é doutora em Educação pela USP e professora do Centro de Artes UFES. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-
7276-0584. E-mail: stelasanmartin@yahoo.com.br.
Luciano Tasso Filho; Aparecido José Cirillo; Stela Maris Sanmartin, Texto-Livro, Texto-Filme: Aparições de Macunaíma...
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ABSTRACT: In 1928, writer Mario de Andrade presented to the conservative Bra-
zilian society the pages of Macunaíma. Four decades later, film director Joaquim
Pedro de Andrade, inspired on the book, brought Macunaíma to the film screens.
Two creative appearances about the same character, in different languages, which
have become symbols of artistic movements: “Modernismo” and “Cinema Novo”.
This work aims to analyze the intersemiotic tensions created from the written
signs that identify the hero Macunaíma, and its transposition to the audiovisual
media, taking into account the limits of each medium and how social and political
context influenced these artists.
KEYWORDS: Macunaíma; intersemiotic; Mário de Andrade; Joaquim Pedro de An-
drade; text-film
RESUMEN: En 1928, el escritor Mario de Andrade presen a la sociedad brasileña
conservadora las páginas de Macunaíma. Cuatro décadas después, el director de cine
Joaquim Pedro de Andrade lle a la pantalla la película Macunma, basada en el li-
bro. Dos apariciones creativas sobre un mismo personaje en diferentes lenguajes, que
se han convertido en mbolos de los movimientos artísticos: el “Modernismo” y el
Cinema Novo”. Este trabajo se propone analizar las tensiones intersemioticas crea-
das a partir de signos escritos que identifican al héroe Macunaíma, y su transposicn
al medio audiovisual, teniendo en cuenta los límites de cada medio y las influencias
del contexto sociopolítico.
PALABRAS CLAVE: Macunaíma; intersemtica; Mário de Andrade; Joaquim Pedro de
Andrade; texto-pecula
Recebido: 30/8/2020; Aprovado: 7/12/2020; Publicado: 2/1/2021.
Citação recomendada:
TASSO FILHO, Luciano; CIRILLO, Aparecido José; SANMARTIN, Stela Maris. Texto-Livro, Texto-
Filme: Aparições de Macunaíma inspiradas na poética de Mário de Andrade. Revista Poiésis, Niterói,
v. 22, n. 37, p. 373-390, jan./jun. 2021. [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.45639]
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Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 373-390, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.45639)
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Texto-Livro, Texto-Filme: Aparições de Macunaíma
inspiradas na poética de Mário de Andrade
Autor-texto
Mário Raul Morais de Andrade (1893-
1945) tinha uma paixão visceral pelo seu
país. Intelectual múltiplo, professor de
música, escritor e poeta, compilador de
lendas, melodias, mitos e contos popula-
res, este modernista “de primeira hora”
1
tinha na palavra escrita sua interlocução
com o mundo. Correspondente assíduo,
produziu cartas de valor inestimável que
ainda hoje são publicadas em livros, den-
tre elas as que trocava com o folclorista
potiguar Luís da Câmara Cascudo (1898-
1986), por quem não escondia seu apreço.
A ele, dirigia-se por “Cascudinho” e para
ele, revelava sua voracidade quanto à cul-
tura brasileira:
Em 1927, aos 34 anos de idade, intencio-
nado a saciar seu apetite por tudo o que
pudesse configurar a alma nacional, reali-
zou uma viagem “do Rio de Janeiro até a
Bolívia e o Peru, navegando por toda a
costa brasileira até Belém e depois por
Luciano Tasso Filho; Aparecido José Cirillo; Stela Maris Sanmartin, Texto-Livro, Texto-Filme: Aparições de Macunaíma...
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rios da região, entre eles, Amazonas, Ne-
gro, Solimões e Madeira”. (LOPEZ; FI-
GUEIREDO, 2015, p. 11) Levava na baga-
gem, as inspirações colhidas no livro Mitos
e Lendas dos índios Taulipangue e Areku-
, escrito pelo explorador etnólogo Theo-
dor Koch-Grünberg, no qual, provavel-
mente pela primeira vez, o paulistano da
rua Aurora teve contato com o semideus
Makunaíma.
Mário de Andrade meteu a cara na mata
virgem, olhou para dentro do Brasil e bati-
zou sua erudição nas águas sticas do
Amazonas. Uiaras, Curupiras, Matintas,
Piaimãs tomaram forma na fumaça das
fogueiras que iluminavam as noites das
aldeias e em suas veias corriam as vozes
dos índios nativos ecoando gerações ime-
moriais. Dali, o bico de pena do escritor se
encarregaria de transcrevê-las para o ca-
derno de anotações, compilando toda a
cosmogonia que, em poucos dias de ela-
boração, seria apresentada à sociedade li-
terária em vestes textuais.
Autoproclamada rapsódia, a partir da edi-
ção de 1937, a obra Macunaíma, o herói
sem nenhum caráter eleva-se ao patamar
das Odisséias, Héracléias e Argonáuticas;
aventuras que, ao longo de gerações, coli-
giram narrativas de grandes feitos, even-
tos marcantes e cataclismos naturais que
costurados pela linha da fantasia contribu-
íram para a formação do tecido mental
pelo qual homens comuns imaginavam, si-
tuavam e pensavam o divino. Saborosas
histórias reverberadas nas melódicas vo-
zes dos poetas transitavam pelas comuni-
dades compondo o ethos de uma distante
Grécia:
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 373-390, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.45639)
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Entretanto, saído das matas tropicais, Ma-
cunaíma, um herói sem nenhum caráter
estaria longe de representar o passado
edificante, capaz de justificar a nobreza
ascendente da conservadora oligarquia ca-
feeira que ditava aos rumos da política
brasileira. Preguiçoso, mentiroso e decla-
radamente abjeto ao “trabalho que dignifi-
ca o homem”; seu semideus dava um re-
flexo nada agradável para Narcisos inca-
pazes de aceitar sua realidade com fran-
queza. “O brasileiro não tem caráter por-
que não possui nem civilização própria
nem consciência tradicional” (ANDRADE,
2019, p. 185), diria o autor em seu pri-
meiro prefácio do livro. Não seria então o
“filho do medo da noite” um instrumento
revolucionário capaz de afinar esta tragé-
dia ancestral sob um novo diapasão? A
correspondência com Carlos Drummond
de Andrade nos revela seus sentimentos:
O personagem Macunaíma encerra este
desejo como um avatar encarnado em pa-
lavras de forte expressividade musical.
Reproduzindo a oralidade do nativo, con-
fronta o português castiço para o arrepio
das sensibilidades parnasianas vigentes à
época: “Um médico fez um discurso pe-
dindo para escrever com muita elegância
a fala portuguesa e Exu não consentiu”
(ANDRADE, 2019, p. 73). No livro, reali-
dade se mistura com fantasia, relatos de
costumes locais e estrangeiros abraçam
personalidades conhecidas, e as múltiplas
religiões, desde o sul ao norte do país,
submetem-se à magia e aos mistérios da
natureza pulsante, em busca da essência
ancestral do brasileiro.
Sob a batuta do professor do Conservató-
rio Dramático e Musical de São Paulo
Luciano Tasso Filho; Aparecido José Cirillo; Stela Maris Sanmartin, Texto-Livro, Texto-Filme: Aparições de Macunaíma...
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(LOPEZ; FIGUEIREDO, 2015, p. 19), a
obra intimidaria por sua inventividade.
Despreocupado com o encadeamento lógi-
co da narrativa, o autor apropria-se de re-
cursos musicais, acelera ou reduz o ritmo
de leitura e interpola, aparentemente de
forma casual, suas infindáveis anotações
agrupando as palavras para causar um
efeito sonoro:
Desta forma, fauna e flora, modinhas,
canções de roda, provérbios, frases feitas,
frases rimadas e outras lendas coletadas
parecem reger a melodia estrutural do
romance:
Estas “significações autônomas”, que nos
traz Gilda de Mello e Souza, viabilizam a
construção do Brasil mítico imaginado por
Mário de Andrade. Nele, três etnias se
fundem em um projeto de país multicultu-
ral, multilinguístico, “desregionalizado”.
Vejamos o que nos esclarece Proença,
acerca desta preocupação do autor, quan-
do aponta a originalidade do texto:
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Esta forma inusitada de escrever dificulta
a identificação de um gênero literário para
o livro e causa incômodo aos críticos lite-
rários. Pouco antes, o mesmo Proença re-
vela que Alceu Amoroso Lima, em defesa
do autor, registra seus argumentos contra
os leitores inclinados a pensar a obra co-
mo plágio: “não é um romance, nem um
poema, nem numa epopeia. Eu diria an-
tes, um coquetel. Um sacolejado de quan-
ta coisa há por de elementos básicos da
nossa psichê, como dizem os sociólogos”.
(PROENÇA, 1969, p. 7)
Foi em busca desta psichê que Mário de
Andrade regurgitou seu Macunaíma, trans-
formando contos e cantos orais em orali-
dade escrita, afinal, tudo o que está no li-
vro proveio da voz de um papagaio:
Assim, como concluiu Mário de Andrade
(2019) em seu livro: “Tem mais não”.
Personagem-texto
A palavra inglesa trikcster encontra-se
traduzida como herói trapaceiro, um anti-
herói. Macunaíma pode ser considerado
um trickster. Renato Amado vai além: ele
seria um trikcster “em fase de treinamen-
to”. Agrupando conceitos deste arquétipo
mitológico em Lévi-Strauss, Haroldo de
Campos e Mircéa Eliade, Amado conclui:
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380
Raul Bopp o classifica como “pertencente
ao ciclo brasileiro do tipo Pedro Malasarte,
astuto, incoerente e sem caráter” (BOPP,
2012, p. 59). E para não faltar à justifica-
tiva do termo anti-herói, recorreremos à
descrição de Ricardo Freitas e Lucineide
Matos:
Estes seriam, portanto, alguns dos aspec-
tos psicológicos que contribuem para a
construção do personagem, previamente
denunciados no próprio subtítulo do livro,
quando o autor flagra a inexistência do
“caráter” de Macunaíma.
Encontramos outros elementos nos bor-
dões empregados em discurso direto: -
POUCA SAÚDE E MUITA SAÚVA, OS
MALES DO BRASIL SÃO! Quando critica a
política sanitária do país, e - Ai que pre-
guiça, quando resiste em fazer algo que
lhe é imposto. Temos também em discur-
so indireto o misticismo ancestral do per-
sonagem quando se refere aos animais: -
[tal bicho] já foi gente que nem nós...
(ANDRADE, 2019, p. 137)
Herói, ou anti-herói, Macunaíma também
gosta de dinheiro, embora renegue o tra-
balho assalariado. Conhecedor de magia,
poderia facilmente transformar qualquer
coisa nas “pequeninas e voláteis folhas de
papel” (ANDRADE, 2019, p. 84), mas pre-
fere, por galhardia, imaginar tesouros en-
terrados ou outras formas de obtê-lo. Na
apresentação que faz à edição digital do
livro, Miguel Sanchez Neto considera que:
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 373-390, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.45639)
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Malandragem e preguiça são, desta forma,
depreciações totalmente exógenas ao
“homem natural”, conceito imposto por
imigrantes que carregavam consigo os re-
síduos de uma longínqua revolução indus-
trial, na qual o trabalho árduo representa
as ilusões de dignidade sob um viés eco-
nômico.
Passemos à análise das descrições imagé-
ticas do personagem colhidas em quatro
passagens do texto: a) O nascimento; b)
A primeira transformação, c) A segun-
da transformação, d) A terceira transfor-
mação, e) Sua morte. Destacados os tre-
chos e em itálico as palavras-chave:
a) Era preto retinto e filho do medo da
noite;
b) Nem bem o menino tocou no folhi-
ço e virou num príncipe fogoso;
c) Macunaíma fastou sarapantado
mas conseguiu livrar a cabeça,
todo o resto do corpo se molhou. O
herói deu um espirro e botou corpo.
Foi desempenando crescendo fortifi-
cando e ficou do tamanho dum ho-
mem taludo. Porém a cabeça não
molhada ficou pra sempre rombuda
e com carinha enjoativa de piá;
d) Quando o herói saiu do banho es-
tava branco louro e de olhos azuizi-
nhos, água lavara o pretume dele. E
ninguém não seria capaz mais de
indicar nele um filho da tribo retinta
dos Tapanhumas;
e) Vira constelação Ursa Maior
Destacamos os adjetivos preto e pretume,
seguidos por filho do medo da noite, nos
quais podemos identificar uma conotação
objetiva sobre o tom de sua pele que é re-
forçada por retinto (que recebeu nova ca-
mada de tinta) e poética, sobre uma filia-
ção mística do desconhecido. O substanti-
vo príncipe, e os adjetivos branco louro e
olhos azuizinhos evocam estereótipos de
beleza importada, muito presente nos
contos de fada europeus, contrastando
com fogoso (que tem fogo), que metafori-
camente indica o ardor sexual dos trópi-
cos. Taludo é uma derivação de talo (bo-
tânica) com o sufixo udo (abundância),
geralmente usado para designar criança
crescida. E por fim, constelação Ursa Maior,
Luciano Tasso Filho; Aparecido José Cirillo; Stela Maris Sanmartin, Texto-Livro, Texto-Filme: Aparições de Macunaíma...
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que se refere ao conjunto de estrela avis-
tada no Hemisfério Norte.
Acerca desta última descrição, lembramos
que a constelação Ursa Maior é comumen-
te associada a deuses em diferentes mito-
logias no fabulário brasileiro, atesta Câ-
mara Cascudo (2015), identifica-se dire-
tamente com o Saci-Pererê.
Texto-filme
Cerca de quatro décadas depois da primei-
ra publicação do livro, em 1969, Macuna-
íma foi adaptado para o cinema sob a di-
reção de Joaquim Pedro de Andrade.
Na transcrição das passagens que à frente
destacaremos, percebe-se a preocupação
do diretor em manter-se fiel aos elemen-
tos simbólicos presentes no texto. Em en-
trevista cedida à revista Filme Cultura, de
janeiro a abril no ano de 1984, o diretor
revela sua relação criativa com os livros:
Desta forma, alguns personagens míticos,
como o caipora, são identificados pelo fi-
gurino característico, outros são acompa-
nhados por metáforas visuais, como a
deusa Sol; ou ainda, identificados apenas
pela locução, dispensando uma descrição
visual.
As identificações vão além dos persona-
gens. Assim como Mário de Andrade de-
nuncia um país dissidente, “cujas reina-
ções cortam os mais diferentes rincões da
pátria, mostrando como estes estão infes-
tados de saúvas, doenças e miséria”
(LAJOLO; ZILBERMAN, 2007, p. 55), Joa-
quim de Andrade realiza um salto histórico
e apresenta um Brasil dilacerado por bru-
tal ditadura militar. No filme, Macunaíma
caminha pelas ruas da cidade assustado
em meio a policiais fardados; Ci, a Mãe do
Mato, ganha contornos de guerrilheira ur-
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bana, sempre acompanhada pela trilha É
papo firme, na voz de Roberto Carlos e,
ao invés de virar uma estrela, desaparece
ao som de uma explosão; o gigante engo-
lidor de gente, Venceslau Pietro Pietra, vi-
ra um industrial italiano inescrupuloso,
fruto do acelerado processo capitalista. Se
o humor reina tanto no texto como na pe-
lícula, ele ajuda a amenizar nossa tragédia
social.
A combinação destes ingredientes, junta-
mente com a genialidade criativa dos au-
tores, transformou suas obras em repre-
sentantes seminais dos movimentos artís-
ticos surgidos à época: o Modernismo dos
anos 20 e o Cinema Novo da década de
60. Wolney Vianna Malafaia resume:
Em Ismail Xavier podemos encontrar uma
objetiva contextualização da época:
E dirigindo-se especificamente ao filme,
encontramos:
Para concluir, Macunaíma classifica-se no
gênero comédia e fantasia. Em novembro
de 2015, o filme entrou na lista feita pela
Associação Brasileira de Críticos de Cine-
ma (Abraccine)
1
dos 100 melhores filmes
brasileiros de todos os tempos. Passare-
mos, em seguida, à apresentação dos
frames colhidos a partir das cenas do filme
que fazem referência às descrições narra-
tivas do livro.
Luciano Tasso Filho; Aparecido José Cirillo; Stela Maris Sanmartin, Texto-Livro, Texto-Filme: Aparições de Macunaíma...
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Personagem-filme
a) O nascimento
Pinçado dentre os atores que alçaram fa-
ma nas conhecidas chanchadas da Atlânti-
da
2,
Grande Otelo galvanizou sua carreira
na antológica cena do nascimento de Ma-
cunaíma:
Baixinho, cabelo arrepiado, quase sempre
seminu, olhar matreiro e voz estridente,
este mineiro de Uberlândia tornou-se o si-
nônimo multimidiático do herói de Mário
de Andrade.
É desta forma que é apresentada à plateia
das salas de cinema a infância do ser mi-
tológico trazido do imaginário dos Tauli-
pangue e Arekuná: um adulto preto, de
chupeta na mão, coberto por uma bata
simples e desarranjada sobre a pele nua.
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 373-390, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.45639)
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b) A primeira transformação
No livro, a primeira transformação de Ma-
cunaíma acontece no momento em que
Sofará deitou “...o curumim nas tiriricas,
tajás e trapoerabas da serrapilheira, [e]
ele botou corpo num átimo e ficou um
príncipe lindo” (ANDRADE, 2019, p. 22).
Como percebemos, Mário de Andrade o
faz nenhuma referência à mudança da cor
de pele. No entanto, com a aparente in-
tenção de preparar o público para a tercei-
ra e definitiva transformação do herói, Jo-
aquim de Andrade, substitui Grande Otelo
num corte dentro do plano, por Paulo Jo-
sé: ator branco, de olhos castanhos, que
usa uma peruca loura e trajes típicos do
teatro burlesco uma alusão aos perso-
nagens extraídos dos contos de fada.
c) A segunda transformação
Sua segunda transformação acontece
quando Cotia joga sobre ele um caldo en-
venenado de aipim:
Ao invés de um homem taludo “com cari-
nha enjoativa de piá”, Grande Otelo retor-
na trajando camisa e calça sociais uma
Luciano Tasso Filho; Aparecido José Cirillo; Stela Maris Sanmartin, Texto-Livro, Texto-Filme: Aparições de Macunaíma...
386
solução mais prática devido aos recursos
limitados. Com o auxílio da locução (em
off), Joaquim Pedro de Andrade identifica
o ser fantástico: “A velhinha, que se cha-
mava Cotia”; e no diálogo da personagem,
reforça o amadurecimento físico súbito do
herói: “Tu não é mais criança não, rapaz.
É criança que faz isso. Vou te arranjar
uma roupa de adulto”.
d) A terceira transformação
Ao banhar-se numa “cova cheia d´água”
encantada, o personagem, que era “preto
retinto” sai “louro” e de “olhos azuizi-
nhos”. Mais uma vez, Paulo José de peru-
ca substitui Grande Otelo em corte dentro
do plano, enquanto o buraco, que “era
marca do pezão do Sumé” (abreviação de
São Tomé), lugar, no filme, a uma bica
que esguicha no meio do cerrado. A paró-
dia vai além da figura jocosa do príncipe e
é reforçada por elementos que se diluem
nas referências do público geral:
Em consonância com Mário de Andrade,
cuja pena dispara contra os estrangeiris-
mos europeus, Joaquim de Andrade am-
plia sua objetiva para também atingir,
ainda que subliminarmente o ideário colo-
nizador norte-americano.
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e) Sua morte
No livro, páginas antes de ser transforma-
do em constelação por meio da feitiçaria
de Pauí-Pódole, Macunaíma encontra Uia-
ra, a deusa dos lagos, que destroça seu
corpo. Dentro dos limites possíveis da
transposição de uma obra literária para
uma produção audiovisual, percebe-se a
liberdade de escolha do diretor, quando
opta por uma passagem em detrimento de
outra. Com a intenção de aumentar a
dramaticidade narrativa, Joaquim de Al-
meida enquadra uma camisa verde flutu-
ando na água enquanto é tingida pelo lí-
quido vermelho que borbulha vindo do
fundo do rio uma clara alusão à violên-
cia do regime militar na ditadura. Macuna-
íma morre lembrando aqueles que perde-
ram suas vidas na luta popular contra o
regime. Para reforçar esta ironia, o áudio
retransmite a marcha ufanista Desfile aos
heróis do Brasil, de Heitor Villa-Lobos,
presente na abertura do filme:
Conclusão: Texto-fonte / inter-relações
À guisa de uma reflexão final deste texto,
podemos afirmar que, em suas pesquisas,
Mário de Andrade identifica um homem
natural, stico e sensual que entra em
conflito direto com a burguesia urbana,
afeita aos costumes estrangeiros, incapaz
de se render às próprias realidades étnico-
geográficas. Debruçado sobre este fértil
Luciano Tasso Filho; Aparecido José Cirillo; Stela Maris Sanmartin, Texto-Livro, Texto-Filme: Aparições de Macunaíma...
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repertório humano, o escritor faz brotar
uma obra original que revoluciona o ambi-
ente artístico de sua época e perdura ao
longo das gerações: Macunaíma, o herói
sem nenhum caráter.
Em seu processo de criação, identificamos
algumas etapas percorridas desde a con-
cepção até a conclusão de sua obra: as in-
tenções iniciais, a busca pelas referências
(pesquisa), a elaboração mental e a con-
sequente adequação do material para a
linguagem escrita. Em todas elas, traça-
mos evidentes relações entre autor e seu
objeto artístico, provenientes tanto de sua
formação pessoal, quanto do contexto só-
cio-político-cultural no qual estava imerso
e para o qual contribuiria. Em outras pala-
vras, uma obra torna-se a manifestação
tangível do ser criativo em seu tempo. A
obra tornou-se uma imagem geradora, um
fonte de onde partiam outras criações, o
que chamamos de texto-fonte.
Como texto-fonte de inspiração, Macuna-
íma serviu de tema para vários artistas.
Nas artes plásticas, Tarsila do Amaral,
Carybé, Pedro Nava, Cícero Dias, entre
tantos; no teatro, Antunes Filho com a pe-
ça homônima de 1978; nas Histórias em
Quadrinhos de Rodrigo Rosa, e de Ângelo
Abu em parceria com Dan X; e no cinema,
com os longas-metragens de Joaquim de
Andrade (Macunaíma, 1968) e Paulo Ve-
ríssimo (Exu-Piá Coração de Macunaíma,
1984).
Em todas as suas aparições, característi-
cas medulares do herói foram preserva-
das, enquanto cada suporte direcionava,
ampliava ou restringia suas dimensões
simbólicas. Desta forma, o personagem,
como uma fênix, surge renovado sob o
olhar de outro artista.
Ao refazer este arco intersemiótico, Joa-
quim de Andrade apropria-se do universo
sígnico presente no texto-fonte de Mário
de Andrade, elabora a história a partir de
seu filtro pessoal carregado pelo contex-
to político e conduzido pelos novos ares do
cinema nacional e cria uma obra audio-
visual capaz de trazer corpo e voz ao herói
da nossa gente. Do texto ao filme, e em
quaisquer instâncias que se apresente,
Macunaíma sempre aparecerá como fruto
destas inter-relações.
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Notas
1
Disponível no site da Abraccine: https://abraccine
.org/2016/09/04/abraccine-lanca-100-melhores-
filmes-brasileiros-no-festival-de-gramado/. Acesso
em 18/8/2020.
2
“Atlântida, produtora fundada [...] em 1941 no Rio
de Janeiro”. Seus maiores sucessos foram do gênero
chanchada, caracterizada pelo “cruzamento de regis-
tros como: musical hollywoodiano, teatro de revista,
vaudevile teatral parisiense e da commedia
dell’arte”. Disponível em https://culturaalternativa.
com.br/atlantida-e-as-chanchadas/. Último acesso
em 18/8/2020.
Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. A lição
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