Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 331-352, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.45691)
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A língua, o chapéu, o elefante e a caixa do carneiro:
a nova imaginação em Duchamp e Saint-Exupéry
The Tongue, the Hat, the Elephant and the Ram's Box:
The New Imagination in Duchamp and Saint-Exupéry
La lengua, el sombrero, el elefante y la caja del carnero:
la nueva imaginación en Duchamp y Saint-Exupéry
Ricardo Maurício Gonzaga (Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil)
*
https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.45691
RESUMO: O artigo aproxima duas produções de campos diferentes, o livro O pe-
queno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, e a obra de Marcel Duchamp, em
especial Com a minha língua na minha bochecha, para tratá-las como pontas do
mesmo iceberg, a saber a mudança do regime sígnico paradigmático histórico re-
ferenciado no símbolo para o s-histórico, que tem como referência o índice, se-
gundo as definições da semiótica de Charles Sanders Peirce, assim como a in-
fluência das imagens técnicas neste processo, com base na análise de Vilém Flus-
ser que incide sobre a dinâmica cultural do Ocidente, e a retomada da hegemonia
da imaginação inerente ao domínio da lógica produtora de sentido por aparelhos.
PALAVRAS-CHAVE: pintura; fotografia; imaginação; escrita; semiótica
*
Ricardo Maurício Gonzaga é doutor em Artes Visuais pela UFRJ e professor associado do Departamento de Artes Visuais e do Progra-
ma de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-6112-0124.
E-mail: ricmauz@gmail.com.
Ricardo Maurício Gonzaga, A língua, o chapéu, o elefante e a caixa do carneiro...
332
ABSTRACT: The article brings together two productions from different fields, the
book The Little Prince, by Antoine de Saint-Exupéry, and the work of Marcel Du-
champ, especially With My Tongue on My Cheek, to treat them as tips of the
same iceberg, namely the change of the historical paradigmatic sign regime ref-
erenced in the symbol for the post-historic, which has the index as reference,
according to the definitions of Charles Sanders Peirce's semiotics, as well as the
influence of technical images in this process, based on the analysis of Vilém
Flusser, which focuses on the cultural dynamics of the West, and the resumption
of the hegemony of imagination inherent in the domain of logic that produces
meaning by devices.
KEYWORDS: painting; photography; imagination; writing; semiotics
RESUMEN: El artículo reúne dos producciones de diferentes campos, el libro El
Principito, de Antoine de Saint-Exupéry, y la obra de Marcel Duchamp, espe-
cialmente Con la lengua en la mejilla, para tratarlos como puntas de un mismo
iceberg, a saber, el cambio de el gimen histórico paradigmático del signo refe-
renciado en el mbolo de lo poshistórico, que tiene como referencia el índice,
según las definiciones de la semiótica de CS Peirce, así como la influencia de las
imágenes cnicas en este proceso, a partir del análisis de Vim Flusser que se
centra en las dinámicas culturales de Occidente, y la reanudación de la hegemo-
a de la imaginación inherente al dominio de la lógica que produce significado
por dispositivos.
PALABRAS CLAVE: pintura; fotografía; imaginación; escritura; semiótica
Recebido: 1/9/2020; Aprovado: 7/12/2020; Publicado: 2/1/2021.
Citação recomendada:
GONZAGA, Ricardo Maurício. A língua, o chapéu, o elefante e a caixa do carneiro: a nova ima-
ginação em Duchamp e Saint-Exupéry. Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 331-352,
jan./jun. 2021. [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.45691]
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Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 331-352, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.45691)
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A língua, o chapéu, o elefante e a caixa do carneiro:
a nova imaginação em Duchamp e Saint-Exupéry
1. “Isto não é um chapéu”. Assim, magrit-
teanamente, poderia ter respondido, quan-
do criança, o narrador ofendido aos adul-
tos que insistiam em ler seu desenho
(adiante, Fig. 3) daquela maneira, nas pá-
ginas iniciais de O pequeno príncipe de
Antoine de Saint-Exupéry.
Aqui como no chapéu e no cachimbo
de A traição das imagens, de René Magrit-
te (Fig. 1) estaríamos talvez circunscritos
a um problema simples de leitura relacio-
nado à crise da representação mimética
moderna ocidental: tanto a representação
desenhada de um chapéu, ainda que tos-
ca, quanto a imagem quase pictogramati-
camente simplificada de um cachimbo po-
dem ser imediatamente vinculadas a seus
respectivos referentes por olhares mui-
to afeitos ao funcionamento da represen-
tação mimética do real visível.
Fig. 1 - René Magritte, A traição das imagens, 1929, óleo sobre tela, 63,5 x 93,98 cm, Museu de Arte
do Condado de Los Angeles (LACMA).
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 331-352, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.45691)
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Não por acaso, intuitivamente, se não ex-
plicitamente consciente do problema,
Saint-Exupéry inicia seu texto apresen-
tando sua versão “de uma imponente gra-
vura” que o narrador teria visto, aos seis
anos, “num livro sobre a Floresta Virgem,
Histórias Vividas, e que representava
“uma jiboia que engolia uma fera”. Em
seguida, o narrador nos apresenta “a có-
pia do desenho”, feita por ele:
1
Ricardo Maurício Gonzaga, A língua, o chapéu, o elefante e a caixa do carneiro...
336
Neste ponto, é fundamental rememorar ao
leitor que provavelmente terá lido O pe-
queno príncipe , que não o narrador-
aviador da história se apresenta inicial-
mente como desenhista, ainda que, se-
gundo ele próprio, frustrado, que, de-
cepcionado com o “insucesso” de seus
dois primeiros desenhos, por assim dizer,
“autorais”, tinha abandonado “aos seis
anos, uma esplêndida carreira de pintor”,
como é o próprio Saint-Exupéry o autor
das ilustrações de seu livro.
Pois bem, na sequência da apresentação
do desenho da jiboia, o narrador apresen-
ta seu primeiro desenho autoral, o dese-
nho mero 1 (Fig. 3), feito com lápis de
cor:
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Em seguida, mostra “às pessoas grandes”
sua “obra-prima” e pergunta se o desenho
lhes faz medo. A resposta é decepcionan-
te: “por que é que um chapéu faria me-
do?”. Então, para esclarecer o equívoco da
leitura dos adultos de seu desenho, que
“não representava um chapéu”, mas uma
“jiboia digerindo um elefante”, ele realiza
seu “desenho número 2” (Fig. 4), que
mostrava o “interior da jiboia, a fim de
que as pessoas grandes pudessem com-
preender”, que, segundo ele, “elas m
sempre necessidade de explicações”.
Ricardo Maurício Gonzaga, A língua, o chapéu, o elefante e a caixa do carneiro...
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Estas, então, frente a este segundo dese-
nho, aconselham-no a “deixar de lado os
desenhos de jiboias abertas ou fechadas”,
e dedicar-se “de preferência à geografia, à
história, ao cálculo, à gramática”.
Na sequência da história, o narrador se
torna piloto de aviões e sempre que en-
contrava uma “pessoa grande” que lhe pa-
recia um pouco lúcida, “fazia com ela a
experiência” do desenho número 1, que
conservara consigo. A resposta invaria-
velmente decepcionante era sempre: “é
um chapéu”, e ele então evitava falar-lhes
de jiboias, florestas virgens ou estrelas.
Vivia então “sem amigo com quem pudes-
se realmente conversar” até que, um dia,
o avião que pilotava sofreu “uma pane no
deserto do Saara”. Na primeira noite no
deserto, ele é acordado por uma criança
que lhe pede: “por favor... desenha-me
um carneiro...”. Enfrentando o absurdo da
situação, ele tira “do bolso uma folha de
papel e uma caneta”, mas imediatamente
se conta de que não sabe desenhar e
diz isto ao menino. Não tem importância,
retruca ele, desenha-me um carneiro”.
Como “jamais houvesse desenhado um
carneiro”, ele resolve apelar “para um dos
dois únicos desenhos” que conhecia: “o da
jiboia fechada”. Para espanto do leitor, o
garoto replica “não! Não! Eu não quero
um elefante numa jiboia”. Alega que a co-
bra é perigosa, o elefante toma muito es-
paço e é muito pequeno o lugar em que
ele mora, portanto, insiste: “desenha-me
um carneiro”. Então o aviador desenha o
primeiro carneiro. Neste ponto vamos
abandonar por hora este desenho do car-
neiro e os seguintes. Retornaremos a eles.
A natureza da licença poética, óbvia como
tal, surpreendente e curiosa, da coinci-
dência, naturalmente inverossímil, da lei-
tura do principezinho que “vê” imedia-
tamente, no desenho igual ao de número
1, “um elefante numa jiboia”, com a in-
tenção do desenhista, torna desnecessário
explicar que a figura de linguagem visa
apontar o lugar de encontro entre dois
olhares inocentes afins e, portanto, tam-
bém nos deter sobre este aspecto da nar-
rativa (de Saint-Exupéry).
Fundamental, no entanto, é que nos dete-
nhamos aqui sobre outro aspecto que se
manifesta na complexidade desta situa-
ção, a circular na economia simbólica dos
seguintes elementos: o primeiro, o dese-
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nho da cobra engolindo a fera, “cópia” da
gravura do livro, como nos informa o au-
tor; o segundo, o desenho número 1, cha-
péu/jiboia fechada; o terceiro, o desenho
número 2, jiboia aberta com elefante, e,
finalmente, as respectivas leituras: a pri-
meira, do olhar das “pessoas grandes”,
cujo hábito conduz a leitura que decifra
imediatamente o primeiro desenho (da
cobra engolindo a fera) de acordo com os
códigos da representação mimética oci-
dental, e o desenho número 1, da jiboia
fechada, como chapéu; e, finalmente, a
intenção do pequeno príncipe, que espera
que se imagine naquilo que se oculta, o
indício da presença de um elefante. Pois é
exatamente na distância do percurso da
diferença entre estes dois olhares que po-
demos detectar uma mudança de para-
digma sobre a qual discorreremos a se-
guir.
Antes, no entanto, vamos a Marcel Du-
champ.
2. “Isto não é uma língua”. Mesmo ao ní-
vel da representação, cabe a pergunta: o
volume protuberante da massa de gesso
adicionada ao desenho da face do próprio
Marcel Duchamp, em seu trabalho de
1959 Com a minha língua na minha bo-
checha, ocultará a língua do artista? Por
que não uma bala? Ou uma pedra? Cer-
tamente não um elefante... a não ser que
esculpido em marfim ou madeira, por
exemplo.
A referência ao elefante, evidentemente,
não é arbitrária: aqui (em Duchamp) co-
mo (no desenho da jiboia fechada de
Saint-Exupéry), estamos em presença de
superfícies que indicam presenças que se
ocultam, a serem decifradas ou melhor,
interpretadas pelo receptor de tais ima-
gens.
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Em seu artigo intitulado Notes on the In-
dex, que tem a obra de Duchamp como
principal referência, Rosalind Krauss (1986)
aponta a predominância na arte contem-
porânea de trabalhos que revelam, quanto
à sua natureza sígnica, características
fundamentalmente ligadas ao índice, con-
forme a conceituação da semiótica de
Charles Sanders Peirce. Peirce, em sua
segunda tricotomia, propõe a divisão dos
signos de acordo com suas “relações (di-
tas semânticas)” com seus objetos (COE-
LHO, 1980, p. 58). Sob este aspecto, os
signos podem ser divididos em símbolo,
ícone e índice.
Ainda segundo Peirce, símbolos são signos
que dependem de um consenso sobre a
propriedade da ligação do veículo do signo
com seu referente, ou seja, aquilo que ele
designa, seu designatum. Um símbolo, de-
fine Peirce, é um signo que depende de
um hábito nato ou adquirido” (PEIRCE apud
SANTAELLA NÖTH, 1999, p. 63). O símbolo
define-se, portanto, por seu “caráter con-
vencional, arbitrário”. Charles Morris lem-
bra que Peirce “chegou à conclusão de que,
no fim, o interpretante
2
de um símbolo de-
ve residir num hábito e não na reação psi-
cológica imediata que o veículo do signo
evocou ou nas imagens ou emoções pre-
sentes (MORRIS, 1976, p. 52).
Quanto ao ícone, segundo Teixeira Coelho,
este seria “um signo que tem alguma se-
melhança com o objeto representado”
(COELHO,1980, p. 58). Na definição origi-
nária de Peirce, “um ícone é um signo que
remete ao objeto que ele denota simples-
mente em virtude das características que
ele possui, quer esse objeto exista real-
mente, quer não (PEIRCE apud DUBOIS,
1993, p. 63).
Finalmente, Peirce define o índice como
sendo “o signo que significa seu objeto
somente em virtude do fato de que está
realmente em conexão com ele [;] é um
signo que remete ao objeto que denota
porque é realmente afetado por esse obje-
to [; e sua] relação com seu objeto con-
siste numa correspondência de fato
(PEIRCE apud DUBOIS, 1993, p. 62).
Ora, retornando então à língua na boche-
cha de Duchamp, vamos ao trecho em que
Krauss comenta este trabalho:
Ricardo Maurício Gonzaga, A língua, o chapéu, o elefante e a caixa do carneiro...
342
Para Krauss, o trabalho de Duchamp ma-
nifesta um tipo de trauma da significação,
situada por ele em dois eventos: o desen-
volvimento, no início dos anos 1910, de
uma linguagem pictórica abstrata (ou abs-
tratizante); e a ascensão da fotografia”
(KRAUSS, 1986). Ela sugere que a arte
dele envolve uma fuga da primeira e uma
análise peculiarmente eficaz da segunda.
O que teria produzido este trauma? Para
facilitar o enfrentamento desta questão,
vale introduzir aqui mais algumas noções
da Semiótica peirceana. De acordo com as
definições de Peirce, Morris (1976, p. 13)
explica que a semiose, o processo pelo
qual algo funciona como signo, envolve
três componentes: “o veículo do signo, o
designatum e o interpretante”, aos quais
poderia se juntar um quarto, o intérprete.
Morris observa também que a semiose
compreende “um certo número de rela-
ções diáticas”, podendo-se estudar, “as
relações dos signos com os objetos aos
quais eles são aplicáveis [...], a dimensão
semântica da semiose [...]; a relação dos
signos com os intérpretes [...], a dimen-
são pragmática da semiose [...]; a relação
formal dos signos entre si [...], a dimen-
são sintática da semiose (p. 17). É im-
portante sublinhar, com Morris, que as
três dimensões da semiose estarão sem-
pre presentes em todos os processos se-
mióticos.
Por outro lado, Morris (p. 68) sugere que
se evite o termo significado nas discus-
sões sobre os signos. Ele argumenta que
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Ele atribui a generalização do uso desse
termo ao fato de que, nos limites da “lin-
guagem cotidiana não foi necessário deno-
tar com precisão os vários fatores na se-
miose”, bastando referir-se “ao processo
simplesmente, de maneira vaga” (p. 69).
Entretanto, aqui, será de importância fun-
damental definir com nitidez o que se
denotado por “significado” a cada momen-
to, ou seja, sua posição específica no pro-
cesso de semiose dos trabalhos analisados.
Isto por ser exatamente do deslocamento,
se não de posição, ao menos de ênfase, de
uma acepção da palavra à outra, que trata-
a hipótese de passagem de um regime
sígnico paradigmático a outro, conforme
mencionado, e que formulo a seguir: tanto
a arte quanto a literatura ocidentais, em
seus processos semióticos, ainda que guar-
dadas suas especificidades, passaram por
um processo geral em que ocorrem duas
grandes inflexões paradigmáticas, de modo
que se pode estabelecer sua divisão em
três períodos distintos, a saber; um primei-
ro em que haveria um predomínio da lógica
do símbolo e ao qual corresponderia uma
ênfase na dimensão semântica da semiose;
um segundo em que predominaria a lógica
do ícone e no qual a ênfase se deslocaria
para a dimensão sintática da semiose; e
um terceiro, marcado pela hegemonia da
lógica do índice, que privilegiaria os aspec-
tos referentes à dimensão pragmática de
sua semiose.
Retornemos agora à menção que Krauss
faz ao papel fundamental do advento da
pintura abstrata na arte do século XX na
obra de Duchamp, para situá-lo no quadro
geral destas transformações. Vejamos
também a possível conexão deste evento
com o outro aspecto apontado por Krauss,
ou seja, a influência progressiva das carac-
terísticas do índice na arte pós-moder-na e
sua relação com a fotografia. Veremos
também como estes dois aspectos encon-
tram-se inapelavelmente imbricados.
Trata-se a esta altura de dado pacifica-
mente aceito que na história da arte oci-
dental ocorreu um momento na pintura
na órbita do Impressionismo de desvalo-
rização radical do tema em favor da pura
visualidade da imagem pintada. O elemen-
to figurativo, que ocupava até então posi-
ção central na pintura, iria progressiva-
mente ceder importância a outras possibi-
Ricardo Maurício Gonzaga, A língua, o chapéu, o elefante e a caixa do carneiro...
344
lidades de significação latentes, evi-
dentemente por meio das quais aquela
buscava afirmar e definir seu campo de
autonomia. Parece também ponto pacífico
que este movimento ocorreu em função
da emulação da fotografia em relação à
pintura no que diz respeito aos processos
de captação da imagem do real. Sob este
aspecto, a trajetória da pintura, após a in-
venção da fotografia, poderia então ser
descrita como um processo de lenta po-
rém inexorável “desindicialização”, por as-
sim dizer, da imagem do real. No curso
desse processo, em que foi se tornando
mais e mais abstrata e encontrando na
própria concretude a carga de realidade
necessária e suficiente para se constituir
no campo da autonomia pretendida, a pin-
tura, tendencialmente, passava a privile-
giar o modo como se realizava, em de-
trimento do quê se representava, isto é,
do tema, que tendia, portanto, a perder
progressivamente importância e, mesmo
que isso não se impusesse de um modo
muito evidente em um primeiro momento,
a crítica se encarregaria em sucessivas lei-
turas de pôr os pingos nos devidos is. Se-
gundo Georges Bataille:
No limite, tanto fazia pintar aspargos ou
fuzilamentos: “antes de tudo, Manet tinha
nivelado a imagem do homem ao nível das
da rosa ou dos brioches”. (BATAILLE,
1955, p. 48)
É emblemática a frase de Maurice Dennis
sobre esse momento do processo: “um
quadro antes de ser um cavalo de guer-
ra, uma mulher nua ou uma anedota qual-
quer é essencialmente uma superfície
plana recoberta de cores combinadas nu-
ma dada ordem” (DENIS apud CHIPP, p.
90). Verificava-se então um deslocamento
de ênfase dos aspectos semânticos para
os sintáticos na semiose da obra de arte.
Grosso modo, este movimento na direção
do quadro abstrato, paradigmático do mo-
dernismo, iria predominar até meados do
século XX, encontrando seu limite histó-
rico, ao menos na pintura dos expressi-
onistas-abstratos.
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345
A fotografia, por outro lado, dependera,
como também se sabe, da rival e irmã
mais velha, se não mãe a própria pintu-
ra, para constituir sua própria realidade.
Realidade que, no entanto, introduzia,
com força igualmente paradigmática, o
regime sígnico seguinte, definido por aqui-
lo que lhe era essencialmente característi-
co: sua indicialidade fundamental.
Como isto ocorreu? Sabemos que, en-
quanto signo, a fotografia é antes de tudo
índice, podendo ser também ícone e até
mesmo mbolo. Peirce lembrava que “as
fotografias foram produzidas sob tais cir-
cunstâncias que foram fisicamente força-
das a corresponder ponto por ponto à na-
tureza” (PEIRCE apud SANTAELLA; NÖTH,
p. 122). Portanto, a iconicidade da foto,
sua semelhança com o referente, deriva
diretamente de sua indicialidade, isto é,
da “conexão física” que estabelece com
ele no momento de sua produção. Daí re-
sultava, no entanto, ainda segundo Peirce,
que “a fotografia, como índice que é, nada
afirma, apenas diz: . [O índice] se apo-
dera de nossos olhos como se assim fosse
e os dirige à força para um objeto particu-
lar e ali fica” (p. 122). É esta potência de
indicação, tão poderosa quanto maleável,
que definirá o modo como, na situação
pós-moderna, uma nova sensibilidade
que chamaremos de pós-histórica terá
sido influenciada de modo paradigmático e
inexorável pela invenção da fotografia.
Senão vejamos.
O filósofo Vilém Flusser, no Texto/imagem
enquanto dinâmica do Ocidente (1996),
apresenta a “dinâmica cultural do Ociden-
te” como uma alternância entre momentos
de hegemonia do texto e outros da ima-
gem como dispositivos de mediação do
real, apontando três fases, pré-histórica,
histórica e pós-histórica da história oci-
dental, marcadas por eventos cruciais,
que definiriam as rupturas entre tais perí-
odos. Seriam eles: as primeiras pinturas
parietais, os primeiros textos da escrita
fonética e a fotografia com a invenção
da imprensa caracterizando uma subdivi-
são do período histórico que levaria à de-
mocratização do acesso aos textos e a
consequente exigência da universalização
do ensino. Sintetizando ao máximo, a teo-
ria de Flusser define que as primeiras
imagens, os primeiros textos e as imagens
técnicas a fotografia sendo a primeira
dentre estas deveriam suas invenções à
necessidade de a humanidade representar
o real através de dispositivos de media-
ção, levando à sua compreensão coletiva e
Fig. 5 - Marcel Duchamp, Com a minha língua na minha bochecha, 1959, gesso, lápis, sobre papel
montado em madeira, 25 x 15 x 5,1 cm.
Ricardo Maurício Gonzaga, A língua, o chapéu, o elefante e a caixa do carneiro...
346
à transmissão desta. Porém, segundo ele,
em dados momentos, estes agentes medi-
adores, em processos recorrentes de
feedbacks com o real, passariam a con-
fundir-se com ele, tornando-o assim opaco
à compreensão originariamente pretendi-
da. Assim, no final da pré-história, um pe-
ríodo de idolatria teria levado à invenção
dos textos lineares, que por sua vez en-
contrariam o limite de sua hegemonia pa-
radigmática ao fim de um período de des-
vio para a textolatria.
Com a textolatria, passava a valer apenas
“o que está escrito”: os textos eleitos – que
se tornam exclusivos e excludentes pas-
savam a ser adorados, deixando de servir à
sua finalidade originária: produzir media-
ções com o real. Em O pequeno príncipe,
Saint-Exupéry nos presenteia com alusões
poéticas a este momento. Por exemplo,
quando o acendedor de lampiões diz ao
menino: não é para compreender. Regu-
lamento é regulamento” (p. 52). Qual era o
problema? O planeta tinha mudado, mas a
fidelidade ao regulamento impedia o acen-
dedor de lampiões de alterar sua rotina: a
realidade mudou, o regulamento não mu-
da. o se trata mais de usar textos para
compreender o mundo, mas de obedecer
ao que está escrito. Obediência ao escrito:
textolatria. Mais tarde, o pequeno príncipe
concluiria de forma acurada e certeira: os
homens não têm imaginação: repetem tu-
do o que a gente diz” (p. 66).
A análise teórica de Flusser concorda com
a importância do resgate da capacidade
imaginativa para a superação dessa crise
que conduzia o Ocidente a passos largos
para a paralisia de suas formas de media-
ção cultural. Para ele, tal superação viria
no bojo da invenção da fotografia, que
configurava um novo deslocamento do
texto para a imagem como forma simbóli-
ca hegemônica do Ocidente.
Flusser observa que a fotografia, como
imagem técnica a primeira delas , é
“imagem produzida por aparelhos” (FLUS-
SER, 2002, p. 13). Estes “são produtos da
técnica que, por sua vez, é texto científico
aplicado. Imagens técnicas são, portanto,
produtos indiretos de textos o que lhes
confere posição histórica e ontológica dife-
rente das imagens tradicionais (p. 13).
Portanto, segundo ele, as imagens técni-
cas não representam o mundo, elas vão
constituir o mundo a partir de sua capaci-
dade de tornar conceitos visíveis. Essa no-
va consciência, “bidimensional, imaginati-
va, computadora” (FLUSSER, 1996, p. 67-
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68), que Flusser denomina “consciência
pós-histórica emergente”, vai substituir “a
consciência histórica, linear e calculadora”.
Se esta projetava “as regras da escrita
sobre o mundo”, que passava a adquirir
“caráter textual”, texto a ser decifrado, a
nova consciência “‘descobriu que não
nada no mundo que possa ser decifrado,
[...] que ao nascermos fomos projetados
num mundo absurdo” e “que é o homem
quem projeta significado sobre o mundo.”
Assim, se “os textos históricos são espelhos
que captam os signos do mundo para in-
terpretá-los [e, portanto,] o mundo é o seu
significado [,] as imagens técnicas são pro-
jetores que lançam signos sobre o mundo a
fim de dar-lhe sentido”, consequentemen-
te, elas são o significado do mundo”. Tra-
ta-se, então, de tornar possível “imaginar
(dar sentido a) o abismo absurdo”.
Ocorre aqui uma inversão vetorial na di-
nâmica de produção da significação: na
primeira situão, o significado vem do
mundo, é preciso extraí-lo dele, portanto,
re-presentar o mundo. Na segunda, perce-
be-se que não significado no mundo a
não ser o que projetamos nele, torna-se
preciso, portanto, por assim dizer, “pro-
presentar (GONZAGA, 2005) o mundo e,
agora, o pensamento conceitual adquire
nova função, “serve, não mais para expli-
car o mundo, mas para dar-lhe sentido”,
colaborar “com a nova imaginação na sua
tarefa de dar significado ao mundo”. Torna-
se “pré-texto” (FLUSSER, 1985, p. 18).
4
As consequências dessa inversão para-
digmática são tremendas e, como aponta
Flusser, “uma nova antropologia começa a
se cristalizar: o homem enquanto doador
de sentido a si próprio e ao mundo
(FLUSSER, 1996, p. 68).
Ora, paralela à crise do texto como para-
digma cultural, ocorrera outra, em tudo
similar: a do símbolo como signo hegemô-
nico e paradigmático dessa cultura. Simi-
lar por terem ambas uma origem comum,
enraizada no contexto histórico: a desqua-
lificação do texto escrito em sua função de
principal mediador do real, derivada do
processo paralisante da textolatria, apare-
ce como um aspecto particular dessa crise
geral: palavras também são símbolos,
signos que, como vimos, dependem de um
consenso que, uma vez estabelecido, é
preservado por convenções habituais, por
meio das “regras do uso”.
Pois não seria a crise do símbolo decor-
rência direta das transformações políticas,
Ricardo Maurício Gonzaga, A língua, o chapéu, o elefante e a caixa do carneiro...
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filosóficas e sociais, sintoma da crise do
Verbo como Verdade absoluta, de origem
divina? Crise, portanto, da noção de ante-
rioridade da voz do Outro como detentora
de verdade única e indiscutível, produtora
de ondas verticais de homogeneização das
mentalidades, e que, coerentemente, indi-
caria nova tendência à horizontalização
dos testemunhos subjetivos: não mais a
norma do Pai, mas a opinião dos iguais?
Como dizia René Magritte, “as palavras
o palavras de ordem que nos obrigam a
pensar em uma determinada ordem esta-
belecida anteriormente” (MAGRITTE apud
VIRILIO, p. 34). E, para Paul Virilio, “no
Ocidente, a morte de Deus e a morte da
arte são indissociáveis” (VIRILIO, p. 35).
Em seu percurso, o pequeno príncipe en-
contra vários destes fantasmas do antigo
regime, por assim dizer, habitantes da
lógica paralítica e paralisante da quantifi-
cação, descrição e distanciamento do real:
um rei sem súditos; um homem de negó-
cios que se dedica inteiramente a contar
estrelas acreditando ser isto o bastante
para tornar-se proprietário delas; um
geógrafo preso a seu gabinete que anseia
por exploradores que lhe tragam dados do
mundo real.
Ora, se por um lado, a pintura, como meio
central da arte moderna, iria concentrar-
se nos aspectos sintáticos de seu fazer,
caracterizando, com sua pretendida auto-
nomia, um período de “presentação”, em
que chegou a preferir ser descrita como
“concreta” em lugar de “abstrata”, por ou-
tro, ao emergir em sua plenitude, a in-
fluência do paradigma indicial introdu-
zido pela fotografia, iria atrair para a esfe-
ra da arte o potencial das alterações do
regime sígnico inerente a ela. A imagem
fotográfica preencheria então o vácuo cri-
ado pela falência da convencionalidade
prévia do símbolo, isto é do regime de re-
presentação, com a alternativa implícita
no novo modo como texto e imagem são
levados a interagir, a partir de sua indicia-
lidade característica e fundamental.
Ocorre que, definida a condição pré-textual
que a possibilita (o encontro dos conceitos
produtivos da física, da química e da histó-
ria da arte), a imagem fotográfica, em sua
indicialidade, apresenta-se em um certo
estado que poderíamos definir como sendo
de disponibilidade geral, de onde ela afirma
apenas o ça y est (isto é) da frase de
Barthes (BARTHES, 1984), disponibilizan-
do-se daí por diante para outros gestos e
apropriações que a desloquem para possí-
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 331-352, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.45691)
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veis significações futuras. É justamente es-
sa dupla condição que caracteriza o lugar
de onde ela passa a funcionar como novo
paradigma, em regime de “propresenta-
ção”. Assim, o paradigma indicial parte da
apropriação de uma imagem do real para
produzir um deslocamento produtivo ale-
egórico (alle-egorei: outra fala), em um
modo de funcionamento cuja referência
originária é o tipo de ligação que se produz
através da distância próxima ou da pro-
ximidade distante que ocorre entre o re-
al e a fotografia. Segundo a frase de Walter
Benjamin, da qual deriva sua teoria da ale-
goria, “qualquer pessoa, qualquer objeto,
qualquer relação pode significar absoluta-
mente outra coisa qualquer (BENJAMIN
apud OWENS, 1992, p. 160).
Aqui, parece possível opor ao pré-texto
flusseriano outra possibilidade de agenci-
amento textual à imagem. Este teria como
referência a legenda fotográfica, que se
ampliaria ao modo de um pós-texto no
espaço da arte e da literatura pós-
moderna. Assim o título de um trabalho de
arte, por exemplo, passa a poder se valer
desta possibilidade: se no período, da arte
moderna, de vigência na crença da auto-
nomia da obra de arte e de ênfase nos as-
pectos sintáticos, de organização interna
dos elementos da mesma, o título pico
era Sem título (a enfatizar justamente a
condição de autossuficiência e isolamento
relativo de quaisquer fatores externos ao
trabalho), com Duchamp, por exemplo,
veremos uma alteração radical desta pre-
missa, da qual não faltam exemplos. O
uso da imagem literalizada do trocadilho
em Com a minha língua..., conforme a
análise de Rosalind Krauss, é típico deste
aspecto: aqui o autor se vale da possibili-
dade não de indicar uma perspectiva
leitura, mas também de tensionar o espa-
ço alegórico de recepções interpretativas
acrescentando novos dados verbais e
ambíguos, entre os dois sentidos da ex-
pressão, literal e figurado a serem agen-
ciados aos visuais para configuração do
estado de complexidade das peças no ta-
buleiro de xadrez do trabalho e da pró-
pria arte. Também a iniciativa do livro
ilustrado, seja como autor único para a
criação de ambas as realidades textuais,
como em O pequeno príncipe, ou em par-
ceria, como se tornou usual, podem ser
vistos como sintomas desta virada.
“Esta é a caixa. O carneiro está dentro”.
Pré-texto ou pós-texto, a aceitação pelo
pequeno príncipe da sugestão verbal do
aviador leva à outra, a de que o carneiro
Ricardo Maurício Gonzaga, A língua, o chapéu, o elefante e a caixa do carneiro...
350
que se sugere oculto de fato esteja.
“Assim é se lhe parece”: a nova posição
do conceito de verdade, coerente com a
proposição de Flusser, define agora o jogo
do funcionamento dos dispositivos mediá-
ticos, artísticos e culturais; é preciso a ca-
da momento evocar a inocência do olhar
da criança e saber ler criativamente, ne-
gociando, inventando e recriando as cha-
ves de produção de novos sentidos.
Se o significado estático, convencional, do
símbolo se tornara improdutivo ou, no mí-
nimo, enganoso, como superá-lo de modo
a resgatar a possibilidade de produção de
mediações pela arte e pela cultura? Com a
minha língua na minha bochecha, ou seja,
o que eu digo não é para ser tomado lite-
ralmente, afinal: te olharei, mas tu não
dirás nada. A linguagem é uma fonte de
mal-entendidos (p. 71).
Arguto, Duchamp demonstra total consci-
ência relativa ao trânsito por este novo
ambiente de produção de sentido. Em
seus trabalhos, explora a instabilidade
semântica do signo, operando corajosa-
mente na abertura alegórica que disponi-
biliza para o receptor em sua capacidade
de ressignificação produtiva. Em Tu m’,
por exemplo, deixa aberta a lacuna a ser
preenchida, não quanto às possibilida-
des do verbo em questão, como de seus
tempos: “tu me cativas? Tu me cativaste?
Tu me abandonas?” As escolhas ficam por
nossa conta, raposas ou aviadores (nunca
“pessoas grandes”, incapazes de tais vo-
os). Em sua definição do coeficiente da
arte”, ele não propõe que “o ato criador
não é executado pelo artista sozinho; o
público estabelece o contato entre a obra
de arte e o mundo exterior, decifrando e
interpretando suas qualidades intrínsecas
e, desta forma, acrescenta sua contribui-
ção ao ato criador”? (DUCHAMP apud
CABANNE, p. 74)
Se, como quer Flusser (2002), a invenção
da fotografia inaugura nova era, de resga-
te da imaginação, marcada pela hegemo-
nia de imagens pós-históricas, a esta altu-
ra não parece muito arriscado sugerir que
tais figuras de linguagem cobras fecha-
das, bochechas, caixas de carneiro apa-
recem em seus ambientes operacionais
específicos literatura, artes plásticas
como aparelhos de produção de sentido,
caixas-pretas das quais o leitor / observa-
dor extrairá o sentido (outputs), as signifi-
câncias singulares de sua própria leitura.
Evidentemente, que ainda condicionadas
pelos contextos culturais em que emer-
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 331-352, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.45691)
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gem e que definem os limites de mobili-
dade de cada leitura individual, sob o céu
de Zeitgeists específicos.
Tudo agora depende desta nova imagina-
ção, “a capacidade de produzir imagens,
segundo a definição de Flusser (1996), al-
go que as “pessoas grandes” talvez te-
nham perdido: não sei ver carneiros
através de caixas. Acho que envelheci
(são meus os grifos), diz o aviador.
3. “Isto não é um carneiro” (ou melhor:
até pode ser, mas está velho, doente).
“Desenha-me um carneiro”. Ele não sabia
desenhar um carneiro; seus esforços co-
mo desenhista tinham sido frustrados pe-
las “pessoas grandes” em embrião, logo
às primeiras tentativas. Mesmo assim, da-
da a insistência do menino, desenhou. Mas
o principezinho não gostou do resultado:
um era muito velho, o outro parecia doen-
te. Agruras da mímese... Então, sem tem-
po e sem paciência, o aviador desenha
uma caixa: “Esta é a caixa. O carneiro es-
dentro”. Para sua surpresa e a nossa
“iluminar-se a face” do seu pequeno
juiz: “era assim mesmo que eu queria!”.
Ao optar por uma saída fácil, evitando as
dificuldades inerentes às exigências da re-
presentação mimética, o aviador passara
de um paradigma o da representação
velho, doente a outro, da propresenta-
ção. Como no elefante ou na língua de
Duchamp, o significado aqui (o carneiro)
se ocultava, abrindo espaço para a inter-
pretação do receptor.
É crer para ver: elefantes, línguas, carnei-
ros ou elefantes voadores, línguas bífi-
das e carneiros elétricos emergirão das
caixas da arte, da literatuta neste pro-
cesso.
Mas também abandonar em partes as
crenças estabelecidas os homens não
têm imaginação: repetem tudo o que a
gente diz” (p. 66) para poder ver como
se fosse a primeira vez, afinal, “só as cri-
anças esmagam o nariz nas vidraças”.
Ricardo Maurício Gonzaga, A língua, o chapéu, o elefante e a caixa do carneiro...
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Notas
1
Figuras 2, 3 e 4 são ilustrações de O pequeno prínci-
pe realizadas por Antoine de Saint-Exupéry.
2
Para Peirce, o interpretante é a imagem mental cria-
da pelo signo na mente do intérprete (MORRIS, 1976).
3
Se você diz alguma coisa com a língua na bochecha,
você pretende que isso seja entendido como uma pi-
ada, ou seja, o equivalente no Brasil a dizer algo com
os dedos cruzados.
4
Flusser explica que “prétextos, préscrições, pro-
gramas não mais tornam visível o discurso falado, mas
transformam em imagem, em som e em ato o concei-
to pensado”.
Referências
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sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984.
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1955.
CABANNE, Paul. Marcel Duchamp, enge-
nheiro do tempo perdido. São Paulo: Per-
spectiva, 1997
CHIPP, Herschel B. Teorias da Arte Moder-
na. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
COELHO, José Teixeira. Semiótica, in-
formação e comunicação, diagrama da te-
oria dos signos. São Paulo: Perspectiva,
1980.
DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico.
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MORRIS, Charles. Fundamentos da Teoria
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OWENS, Craig, Beyond Recognition Re-
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ley; Los Angeles; Oxford: University of
California Press, 1992.
SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O pequeno
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SANTAELLA, Lúcia; NÖTH, Winfried. Im-
agem, cognição, semiótica, mídia. São
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VIRILIO, Paul. A máquina de visão. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1994.
Artigos
FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta:
ensaios para uma futura filosofia da foto-
grafia. Relume Dumará, 2002.
FLUSSER, Vilém. Prétextos para a Poesia,
Caderno Rioarte, ano 1, n. 3, 1985.
FLUSSER, Vilém. Texto/ Imagem enquan-
to Dinâmica do Ocidente. Caderno Rioarte,
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KRAUSS, Rosalind. Notes on the Index. In:
The Originality of the Avant-Garde and Oth-
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