Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 77-90, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.47236)
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Histórias críticas da fotografia nas Amazônias
e arte é resistência decolonial
Critical History of Photography in the Amazons
and Art Is Decolonial Resistance
Historias críticas de la fotografía en las Amazonías
y arte es resistencia decolonial
Cláudia Leão (Universidade Federal do Pará, Brasil)
*
Izabelle Louise Anaúa Tremembé (Universidade Federal do Ceará, Brasil)
**
https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.47235
RESUMO: Este artigo pretende, a partir de relatos e reescritas, pensar sobre percursos das
histórias da fotografia em suas relações entre ética e uso da imagem e apropriação de his-
tórias, na tentativa de repensar a relação de poder constituída a partir de um ponto de vis-
ta na história da imagem, partindo da Amazônia paraense como lugar de reflexão. Este
texto tem a colaboração de Izabelle Louise Anaúa Tremembé, estudante indígena da Uni-
versidade Federal de Ceará (UFC), que fez um relato sobre a cultura da apropriação, da
exotificação dos objetos sagrados e sexualização dos corpos femininos, assim como, em
sua fala, ela afirma a ausência de conhecimento acerca de seus rituais e, ainda, que a au-
tonomia dos povos indígenas em fazer arte sempre existiu. Os relatos foram articulados no
encontro entre professores e produtores de fotografia e cinema em Alcântara, Maranhão,
em abril de 2019.
PALAVRAS-CHAVE: Amazônia Paraense; exotificação e sexualização de corpos indígenas;
história crítica da fotografia
*
Cláudia Leão é fotógrafa, pesquisadora e professora dos Cursos de Artes Visuais da Universidade Federal do Pará. Orcid:
https://orcid.org/0000-0002-4005-3436. E-mail: aclaudialeao@gmail.com.
** Izabelle Louise Anaúa Tremembé é arte-educadora, artista, comunicadora e fotógrafa, graduada em Publicidade e Propaganda pela
Universidade Federal do Ceará. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1052-0651. E-mail: iza.bellephotos@outlook.com.
Cláudia Leão e Izabelle Tremembé, Histórias críticas da fotografia nas Amazônias e arte é resistência decolonial.
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ABSTRACT: Based on accounts and rewrites, this article intends to think about paths in photog-
raphy history, their connections between ethics and use of image and narrative appropriations.
Taking the Pa Amazon as a place of reflection, an effort is made to rethink the power relation-
ship constituted by a specific point of view in the history of image. This text had the collabora-
tion of Izabelle Louise Anaúa Tremembé, an indigenous student at Federal University of Pará
(UFC). In her accounts, she talks about appropriation culture, exotification of sacred objects,
and sexualization of female bodies, as well in her speech, she affirms the lack of knowledge
when it comes to their rituals and even brought up that indigenous autonomy in making art has
always existed. The accounts were articulated on the occasion of the meeting between teachers
and photography and cinema producers, in April, 2019, Alcantara, Marano.
KEYWORDS: Pará Amazon; exotification and sexualization of indigenous bodies; critical history
of photography
RESUMEN: En ese arculo se pretende, a partir de relatos y reescrituras, pensar en los cami-
nos de las historias de la fotografía en sus relaciones entre la ética y el uso de la imagen y la
apropiacn de historias en un intento de repensar la relación de poder constituída desde un
punto de vista en la historia de la imagen a partir de Amazoa del Estado de Pará, como lugar
de reflexn. Este texto fue hecho con la colaboracn de Izabelle Louise Tremem, una estu-
diante ingena de la Universidad Federal de Cea(UFC), quién relató sobre la cultura de la
apropiacn, la mistificación de objetos sagrados y la sexualización de los cuerpos femeninos,
así como, en su discurso, ella afirma sobre el desconocimiento de sus rituales, y aun sobre la
autonomía de los pueblos indígenas en hacer arte, que siempre ha existido. El relato se articu-
de forma colaborativa, a partir de nuestra reunión en Alntara, Maranhão y su intervención
en abril de 2019, en el encuentro entre profesores y productores de fotografía y cine.
PALABRAS-CLAVE: Amazonía de Pará; mistificación y sexualización de los cuerpos indíge-
nas; historia crítica de la fotografía
Citação recomendada:
LEÃO, Cláudia; TREMEMBÉ, Izabelle Louise Anaúa. Histórias críticas da fotografia nas Amazô-
nias e arte é resistência decolonial. Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 77-90, jan./jun.
2021. [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.47236]
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Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 77-90, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.47236)
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Histórias críticas da fotografia nas Amazônias
e arte é resistência decolonial
Eu comecei na dança e no teatro, mas a
fotografia me arrebatou de tal maneira
que hoje estou aqui tecendo diálogos na
Fotografia e ensino da arte, e não sobre
Dança e nem Teatro. É, também, a pri-
meira vez que falo em um encontro para
um público específico atuante na Fotogra-
fia, no Cinema e no ensino dessas duas
linguagens. Eu sempre fui e continuo sen-
do uma fotógrafa tímida, prezo por cuida-
do em chegar e fotografar alguém, pen-
sando em não invadir territórios e corpos.
Eu falo no sentido do trato com pessoas e
na abordagem... falo em ética... essenci-
almente, eu penso sobre o deslocamento
da imagem sem que a gente tenha domí-
nio sobre para onde ela possa ir e a quem
e o que atinja. Sempre me perguntei so-
bre de onde vêm e para onde vão os ros-
tos e os corpos quando se descolam no
espaço e no tempo. A primeira vez que
senti materialmente essa sensação de
despregamento foi quando participei de
um videopoema como atriz. Fiquei extre-
Cláudia Leão e Izabelle Tremembé, Histórias críticas da fotografia nas Amazônias e arte é resistência decolonial.
mante incomodada com essa relação entre
imagem e corpo, o que me fez declinar o
convite.
Lembro-me de Susan Sontag e do questi-
onamento de Diane Arbus, quando ela re-
velou a perversidade da fotografia e o po-
der que a/o fotógrafa/o exerce sobre a/o
sua/seu fotografada/fotografado. Diane
falava a partir de seu contato com as pes-
soas que ela retratava em parques e
mesmo nas casas delas... ela falou da re-
lação da confiança estabelecida para que
aquela imagem acontecesse. Creio que
muitos de nós ainda lembramos do casal
de velhinhos nus sentados na sala, do
menino com granada na mão em uma po-
se estranha com os braços retesados, do
olhar fixo e perdido de uma travesti dan-
çando, da animalidade frontal dos olhares
que se cruzaram selando entre eles e ela
um elo jamais desatado. Aqueles retratos
sempre me olham.
Como fotógrafa, penso sempre que meu
desejo por obter imagens não pode ser
maior que a minha aproximação, que uma
conversa não incite, necessariamente, fa-
zer uma fotografia ou um vídeo. Algumas
vezes, estive nessa situação e cheguei a
desistir da fotografia para simplesmente
olhar, sentar e conversar. Lembro-me de
uma experiência, que foi fotografar a festa
de Nossa Senhora das Dores, uma das
festas do Padre Cícero, no Juazeiro do
Norte, Ceará. Eu fui a convite de um fotó-
grafo amigo e todos os dias ele fazia o ri-
tual da rebobinação de filmes; uma lata
era consumida, por volta de 18 filmes, di-
ariamente. Era 1994, a gente fotografava
em película de 36 poses. Fotografar tinha
início meio e fim em cada rolo operado. A
fotografia sempre foi bem cara, naquele
tempo mais ainda. Consegui levar uma la-
ta de filme para usar nos cinco dias de
festas. Como nunca fui muito ávida no
disparo, retornei com no máximo doze
filmes operados. No Juazeiro, muitas das
vezes, apenas caminhava. Eu queria olhar
as pessoas, mesmo no pouco tempo que
tinha, e ver a vida ali... Foi lá também,
sentada no mirante do padre Cícero, des-
cansando depois de muito andar, onde
conheci dona Brígida, uma senhora do
sertão de Alagoas. Ficamos sentadas con-
versando, e com ela mantive correspon-
dência, trocamos endereços, fotografias,
mas em minhas mudanças nos perdemos.
No últimos dias, cansada, eu parei na pra-
ça da matriz. Era um largo que parecia
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bem grande, tinha uns degraus, e sentei
no batente para somente ver... e vi... para
onde virava eu via uma fotografia pronta,
exata, precisa. Eram pequenos estalos si-
lenciosos e desconhecidos. No sol forte,
mulheres chegando de preto e rosários de
contas azul branco; a metade de um rosto
me olha, mas vejo os braços dela, que
carregavam a criança; o retratista arru-
mando o cavalinho no fundo estampando;
um mundo de coisas atravessou na minha
frente... um homem grande andou em di-
reção ao meio do largo, outros vieram
juntos, ele usava chapéu e timão de couro
bordado e carregava o bacamarte pratea-
do que brilhava no sol. Eles levantaram as
mãos... estouros e saraivadas de balas no
ar. O salve para Nossa Senhora das Do-
res. As fotografias mais lindas que eu
nunca fiz, talvez. Mas eu as vi. Elas se
movimentavam na minha frente, vivas.
Juazeiro foi para mim um dos lugares
mais competentes para se fazer imagens,
as personagens mais lindas, fortes histó-
rias impregnadas em cada pedaço de pele,
no tecido surrado, escuro, nas contas,
brincos, anéis e moedas, nas suas rugas
marcadas pelo sol... Pessoas de poucos
recursos materiais, empobrecidas, de lu-
gares longes e espalhados, que habitavam
a paisagem e compunham o cenário dese-
jado e explorado pela hipocrisia da estéti-
ca da miséria. Elas estavam ali, prontas a
serem alçadas ao status de imagem exóti-
ca, sem que nunca soubessem qual livro,
filme, ou exposição de fotografias exibiu
seus mundos, corpos e rostos.
Penso sobre a naturalização do ato de fo-
tografar nesse tempo de tantas imagens,
autofotografias, selfies obsessivas e bana-
lizadas. Como desconsiderar o lugar de
poder de uma imagem que se ampara no
espaço que ocupa e no fetiche que suscita,
no deslocamento ou naquilo que constitui
o caráter de uma imagem? Imagens se
deslocam como vento. Corpos não. Eu
preciso estar diante de alguém para man-
ter esse contato e viver essa experiência
como a que experimentamos, agora, aqui
nessa conversa entre nós... Eu diante de
vocês. Minha fala se constitui da tentativa
em pensar sobre histórias cristalizadas,
narrativas criadas sem pensar em outras
histórias ou em contranarrativas (outras
narrativas). O historiador da arte alemão
Hans Belting nos contou que a invenção
da perspectiva linear foi o grande aconte-
cimento reforçado pela invenção da foto-
grafia, que potencialmente alterou a cultu-
Cláudia Leão e Izabelle Tremembé, Histórias críticas da fotografia nas Amazônias e arte é resistência decolonial.
ra do olhar. A criação do ponto vista pos-
sibilitou pensar sobre a autonomia do
olhar, e olhar de um lugar constitui a pos-
sibilidade de contar uma história, talvez
outras histórias ou mesmo sua própria
história. Mas quem pode contar outras
histórias além das histórias oficiais? Quem
contou a história da fotografia na Amazô-
nia? Quantas histórias sabemos sobre a
história das imagens na Amazônia? A es-
critora feminista nigeriana, Chimamanda
Adichie, fala sobre o perigo de conhecer
somente uma história, sobre o perigo de
reproduzir essa única história e, mais que
isso, do perigo em reafirmar uma única
história selando ausências e silêncios, co-
mo o que ainda fazemos, até hoje. Nesse
sentido, gostaria de propor um exercício
de pensar de maneira crítica sobre esse
contar histórias da fotografia na Amazônia
paraense.
Conta-se que na Amazônia, apenas cinco
anos depois da fotografia ter acontecido
na França, ela chegou por Belém. Via fo-
tógrafos expedicionários, sendo o primeiro
entre eles Charles De Forest Fredricks,
que teria permanecido por volta de três
meses. Depois veio Albert Frisch, que fo-
tografou o povo Mauás e disse que eram
canibais. Felipe Augusto Fidanza chegou a
Belém acompanhando a comitiva do Im-
perador. Permaneceu e abriu um estúdio,
o Photo Fidanza. Ele foi o responsável pe-
los principais registros da urbanidade de
Belém. Seus retratos, quase únicos, dita-
ram estilo e selo de qualidade do olhar eu-
ropeu sobre a Amazônia paraense. Existiu
de 1867 a 1969, sendo administrado por
cinco proprietários. Com exceção do fun-
dador italiano, todos os outros eram ale-
mães, entre eles George Huebner, que vi-
veu entre a Europa, Manaus e Belém. Em
Manaus, Huebner, fundou o Estúdio
Photographia Alemã. ele retratava as
autoridades e pessoas das famílias endi-
nheiradas que podiam pagar pelos servi-
ços de “qualidade europeia”. Entretanto,
mesmo com uma produção voltada para
esses grupos com alto poder econômico,
as imagens que mais interessavam aos
museus europeus (principal cliente fora do
Brasil) não eram dessas pessoas, mas dos
tipos exóticos, os Indianer, como eles os
chamavam. Eram os indígenas que Hueb-
ner trazia para o estúdio ou fotografava
em suas viagens, e esses retratos integra-
vam o menu de possibilidades de venda
certa. Ele atendia uma demanda colabo-
rando com pesquisadores, como seu con-
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terrâneo, o etnólogo Theodor Koch-
Grünberg, o zoólogo e o geógrafo suíço
Louis Agassiz, ou para o colecionador Os-
car Schneider, fornecendo produto foto-
gráfico”. As imagens que ele fornecia
eram ricas em informações, contendo des-
crição, ilustração dos tipos físicos e peculi-
ares habitantes da Amazônia. Huebner era
ambicioso; não o interessava somente
participar das pesquisas, ele pretendia o
reconhecimento de seu trabalho para ci-
ência produzida na Europa sobre Amazô-
nia. Com o declínio da borracha e o perío-
do de recessão para as oligarquias ma-
nauaras, o Photographia Alemã encerrou
suas atividades em 1910. Ele era um bom
empreendedor e vinha investindo em sua
carreira como botânico especialista em or-
quídeas, tendo uma delas sido registrada
com seu nome.
Não há como negar que Huebner contribu-
iu com imagens e textos para constituição
dessa nossa história tão conhecida, a úni-
ca. Mas pouco se fala que ele foi um dos
principais articuladores da apropriação,
venda e tráfico de peças, objetos perten-
centes a povos indígenas, orquídeas, bro-
mélias, insetos; os tipos de espécies raras
que constituem coleções que pertencem a
museus etnográficos da Suíça e da Alema-
nha.
Como ele, outros fotógrafos, desenhistas e
pintores expedicionários ajudaram fundar
a história da imagem da Amazônia e todos
os seus enredos, reproduzindo e difundin-
do modos de olhar, imagem idílica do va-
zio e dos seus cenários, e dos tipos “sel-
vagens”, “exóticos”, tecendo uma relação
dúbia entre o que é retirado e o sentido de
cada um dos rostos ou plantas vistas
longe. Por outro lado, conseguimos perce-
ber que as histórias contadas, nas entreli-
nhas, defendem mais a arte da fotografia,
a estética do exótico e manutenção do
ponto de vista dos estrangeiros, mas pou-
co lembram ou pensam sobre uma ética
do olhar. Vejamos nesse relato a partir de
escritos de Huebner durante as sessões
fotográficas:
Cláudia Leão e Izabelle Tremembé, Histórias críticas da fotografia nas Amazônias e arte é resistência decolonial.
Percebemos que nessas narrativas es-
critas homogeneizadas todo um cuidado
para não macular e nem questionar con-
dutas espúrias. Huebner, como um dos
fundadores da estética retratista assumi-
damente “amazônica”, detêm esse legado
em que algumas histórias precisam ser
mantidas cristalizadas para não macular
“nossa” herança europeia. Mas nelas per-
cebe-se a imposição contida nos retratos
exóticos”, que além de naturalizada é re-
corrente e reproduzida. Como uma das
formas de abordagem na fotografia e na
arte, essa conduta é justificada e chancela
os que podem “contar” essas histórias.
Desenhistas, pintores e fotógrafos, assim
como os expedicionários, falaram por e
em nome de alguém que não tem nem
nome e nem voz, e o corpo presente nas
imagens é mantido como objeto de expo-
sição ou de pesquisa científica. Observe-
mos com cuidado as imagens empreendi-
das por eles. Para isso, é necessário olhar
de verdade nos olhos das/dos retrata-
das/retratados, para entender que os
olhares diante da câmera são incômodos.
Os retratos de pessoas indígenas, assim
como os retratos de pessoas negras pre-
sentes na história da fotografia, guardam
o olhar enviesado e revelam a impaciência
do desacordo, o mal-estar latente, a vio-
lência de uma fotografia não autorizada.
Uma mistura de clamor, vergonha e cons-
trangimento. As/os audaciosas/os e rebel-
des enfrentaram com altivez ou ira, e seus
corpos não negaram a desconcertante si-
tuação imposta. Elas/Eles miram a lente,
seus olhos encaram e também desafiam.
Os livros de História da Fotografia não
contam outra história, tampouco indagam
sobre um possível contradiscurso, selando
como a única história da fotografia na
Amazônia a que é contada pelos viajantes.
Belém do Pará, conhecida como uma das
capitais da fotografia, confirma em diver-
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sos discursos formais e informais, além
dos escritos nas imagens ou em livros, es-
sa mesma história original dos artistas
viajantes. No II Fotonorte: o Olhar sem
Fronteiras (1998), o professor Benedito
Nunes fundamenta a história da fotografia
paraense:
Reler esse texto, datado de 1988, deve
nos fazer pensar criticamente sobre esses
quase dois séculos de histórias da fotogra-
fia na Amazônia, em que as condutas e
operações de abordagem no uso da ima-
gem são as mesmas praticadas séculos
antes. Não qualquer pudor no uso da
palavra expedição, por exemplo, inclusive
com o mesmo caráter, sacar imagens do
exótico interior amazônico com sua gente
ribeirinha. O modo de fazer e pensar a fo-
tografia no “cenário-sujeito” parece não
poder ser alterado.
A Amazônia onírica cristalizada deve per-
manecer tal como era antes: as/os verda-
deiras/verdadeiros sujeitas/sujeitos o
“objeto-cenário” misturados em uma mas-
sa só, para serem exibidos, somente.
Manter assegurado o direito do olhar de
quem sempre pôde fazer o registro, ne-
gando a inquestionável prática da apropri-
ação e de deslocamentos das/dos sujei-
tas/sujeitos no intuito de desautorizar os
corpos em contextos desiguais, em que as
relações de poder corroboraram, impositi-
vamente, tratando imagens sem anuência,
“concedendo”, quase que “sutilmente”, o
direito de uso e exibição da imagem a
quem fotografou. Assim foi, assim ainda é.
Sem qualquer constrangimento, ao se co-
locarem como salvadoras/salvadores ou
redentoras/redentores das histórias neo-
expedicionárias, podem contar e expor
nos espaços do sistema capitalista da arte,
muitas das vezes, inacessíveis as/aos re-
tratadas/retratados, que jamais saberão
por onde seus rostos estiveram expostos
(seja em livros ou mostras) e por quanto,
em moeda, foram negociados.
Cláudia Leão e Izabelle Tremembé, Histórias críticas da fotografia nas Amazônias e arte é resistência decolonial.
Entretanto, alguns acontecimentos, como
não somente as políticas de ações afirma-
tivas iniciadas de 2002, que tornaram
acessíveis vagas nas universidades públi-
cas para negras/os, pardas/os e indíge-
nas, mas também a articulação em coleti-
vos artísticos independentes, deram espe-
cialmente o acesso aos aparelhos de cap-
turas de imagens. Movendo os antes “ob-
jetos-cenário”, ou “sujeitas/sujeitos-
cenário” de contemplação, ao reconheci-
mento de si, a olhar de seus próprios pon-
tos de vistas e a produzirem suas próprias
imagens, a partir de suas escolhas, a con-
tar suas histórias. Esse mover de lugares
de poder foi fundamental para causar um
grande incômodo dentro da ativa tradição
colonial nas linguagens artísticas, na foto-
grafia e no cinema.
Penso que é preciso estimular o compro-
misso de repensar criticamente e proble-
matizar, dentro das Artes Visuais, relações
racistas e coloniais que ainda sejam esta-
belecidas nos seus meios de produção e
exposição. Compromisso que se torna ain-
da mais contundente quando pensamos no
ensino da fotografia e da Arte, lugar em
que atuo. Pois ensinar constitui uma res-
ponsabilidade em compreender, partilhar,
trocar saberes, rever, transformar mutu-
amente o quê e como ensinamos. Paulo
Freire chama isso de Educação Como Prá-
tica da Liberdade:
Atuar sobre o ensino de uma fotografia
crítica, pensar a ética no uso de imagens e
no direito de falar sobre pessoas deve ser
um dos compromissos que s, professo-
ras / professores, artistas, produtoras /
produtores que estamos e atuamos em
um lugar de poder e de privilégios. Preci-
samos pensar no que constitui e de que
maneira isso afeta pessoas, e ainda pon-
tuar, de maneira contundente, que essa é
uma prática perversa e racista.
Sobre histórias ausentes, mas que serão
visibilizadas dentro de práticas autônomas
de atuação, eu citarei o trabalho de Maria
Juliana, aluna do curso de Licenciatura em
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 77-90, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.47236)
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Artes Visuais Plano Nacional de Formação
de Professores da Educação Básica/UFPA -
Pólo de Bragança/PA, que tive a honra de
conhecer e participar de sua banca de de-
fesa do Trabalho de Conclusão de Curso.
Maria Juliana relatou o difícil processo,
ainda inicial, de autorreconhecimento de si
como indígena. Nos conta, a meu ver, em
seu lindo trabalho, Uma História da Foto-
grafia de Santa Maria do Açaizal, localida-
de da região nordeste do Pará, essa histó-
ria, que está no seu TCC, Arco Íris no
Quintal: Um Estudo sobre o Projeto Edu-
cação Patrimonial e Novas Mídias: Foto-
grafia em Foco. Juliana é fotógrafa e tem
um largo registro de sua localidade e de
seu povo.
Existem muitas histórias, muitas. Algumas
mais perto de s, outras que não estão
escritas em nenhum livro. Eu tenho certe-
za, mas elas aparecem. Elas estão sen-
do escritas, sim. Durante a minha fala em
Alcântara, convidei a quem assistia para
que, se quisessem falar de sua história de
pessoas que não fazem parte dessa histó-
ria oficial, para contar para nós ali, senta-
das/sentados naquele auditório climatiza-
do que, ainda, poucas pessoas acessam.
Izabelle Louise Anauá Tremenbé pediu a
palavra e, agora, compartilha conosco es-
sa escrita, no intuito de podermos acessar
histórias, histórias e mais histórias de
imagens.
Arte é resistência decolonial, por Iza-
belle Louise Anauá Tremembé
O olhar colonialista denuncia a ausência
dos nossos desejos. Compreendemos que
o pensamento eurocêntrico se baseia na
história de civilizações que vinham d’outro
lado do oceano para se impor e dizimar
nosso povo. Por séculos, acreditou-se que
esse conhecimento branco, europeu e de
grande poder econômico falasse sobre
nós: como o outro pensa sobre mim, se
sou eu que habito neste corpo? Enquanto
antropólogos vinham às nossas aldeias
com intuito de nos estudar e catalogar,
nós observávamos como esses indivíduos
chegavam com suas técnicas, que são
consideradas avançadas porque nós exis-
timos antes para compreender a natureza,
desenvolvendo a nossa própria tecnologia.
O colonizador sabe de tudo, menos de
nós. Existe falta de clareza nas traduções
do tupi para o português, existe exotifica-
Cláudia Leão e Izabelle Tremembé, Histórias críticas da fotografia nas Amazônias e arte é resistência decolonial.
ção dos nossos objetos sagrados e sexua-
lização dos corpos femininos, assim como
existe ausência de conhecimento acerca
dos nossos rituais. A autonomia dos povos
indígenas de fazer arte sempre existiu. As
fotografias, os textos, o cinema, a pintura
e a escultura sempre fizeram parte do
nosso cotidiano, não é porque não tínha-
mos as máquinas que deixávamos de
exercer nossas práticas artísticas. Busca-
mos a arte em nossas pinturas corporais,
a feitura dos nossos cocares e maracás,
nossas esculturas de divindade, nossas
cerâmicas, nossas máscaras, nossos arte-
sanatos e artefatos.
Enquanto a branquitude se preocupa com
o novo filme que vai retratar algum ritual
de indígenas nortistas até porque a co-
lonização foi tão cruel que poucos povos
resistiram ao massacre, principalmente no
Nordeste -, se esquecem de que o Brasil
todo é indígena, e que aquele ritual varia
de etnia para etnia, de aldeia para aldeia.
Além disso, enquanto o homem branco
produz filmes novos sobre nós, inúmeros
indígenas são assassinados. Na arte euro-
peia, o cinema e a fotografia nos tratam
como seres exóticos, na literatura somos
expostas sempre apaixonadas pelo coloni-
zador, as pinturas documentam as missas
impostas aos nossos ancestrais. Você con-
taria tudo para desconhecidos que invadi-
ram sua terra e roubaram seus bens? Pois
bem, quando a arte é feita pelo coloniza-
dor, nós não confiamos inteiramente.
Desde 1500, o outro tenta apresentar o
nosso mundo. Entretanto, eles não espe-
ravam que nossa resistência durasse até
então 519 anos contra o massacre ma-
chista e racista. Esqueceram que quando
nos colocaram como alvo, s fabricáva-
mos nosso arco e flecha. Nós não odiamos
o ser branco, mas sim a branquitude que
não respeita nossa terra, nossa cultura,
nossa arte e nosso modo de vida. Valori-
zar a nossa arte é uma forma de compen-
sar o passado sangrento, que ainda está
no nosso presente e no nosso futuro.
Nossas histórias são orais, e começamos a
compreender que ao documenta-las não
as perdemos. Brincamos com os laços da
memória dos nossos troncos velhos, para
preservar e recuperar as nossas histórias.
A arte branca não possuía valor para nós,
até percebermos que a necessidade de
documentar e organizar nossas lutas ne-
cessitava desses meios. Contamos, então,
nossa história.
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 77-90, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.47236)
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Enquanto discutimos sobre nosso direito à
vida e à terra em assembleias e encon-
tros, venho tentando reparar em quem
são os indivíduos presentes: quase sem-
pre há 4 com câmeras profissionais na
mão, e inúmeros com celular documen-
tando. Comecei a pensar em como, nós
indígenas, utilizávamos da arte branca e
como isso servia para a democratização
da arte e da comunicação. Somos povos
que não partilhamos da mesma concepção
de arte, entretanto, tomamos para nós e
usamos dessas ferramentas para nosso
benefício. Atualmente, conta-se com inú-
meros meios de comunicação indígena,
tais como o Rádio Yandê, Cine Kurumin,
Vídeo nas Aldeias e Escola de Cinema In-
dígena Jenipao-Kanindé. Ademais, quando
é ensinado um conhecimento, é da nossa
cultura passar isso para os outros da nos-
sa comunidade, então, quando as forma-
ções acontecem, até quem não participou
delas adquire conhecimento sobre arte,
construindo assim uma rede de afetos e
estudos. Para nós, é terra demarcada e
vida garantida, para assim, ter arte garan-
tida.
O nosso lema é um cocar na cabeça, a
câmera na mão e os pés em terra demar-
cada. Aguyjevete!
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