Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 115-136, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.47239)
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Nas conversas e nos silêncios:
memórias inundadas por Belo Monte
In Conversations and Silences: Memories Flooded by Belo Monte
En conversaciones y silencios: recuerdos inundados por Belo Monte
Camila Aranha (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil)
*
https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.47239
RESUMO: As ruínas de Santo Antônio e suas memórias inundadas revelam o pro-
cesso de perda do espaço afetivo. A hidrelétrica de Belo Monte construída no Pa-
rá, em funcionamento desde 2016, é um símbolo da “modernidade” da Amazônia.
Neste projeto nacional, as populações mais vulneráveis foram excluídas. Em bus-
ca por memórias georreferenciadas na região e na resistência social, realizei uma
investigação sobre a história da agrovila Santo Antônio narrada através das me-
mórias das famílias expulsas pela barragem, tratadas conceitualmente como me-
mórias inundadas. Nesta extinta comunidade, moraram cerca de 60 famílias. En-
contrei antigos moradores que compartilharam suas reconstruções simbólicas so-
bre o vivido naquele espaço.
PALAVRAS-CHAVE: memória afetiva; vila Santo Antônio; hidrelétrica de Belo Monte
*
Camila do Socorro Aranha dos Reis é professora de Arte da Rede estadual de Educação do Pará (SEDUC-PA) na cidade de Salinópolis e
doutoranda em Memória Social pelo Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Ja-
neiro (UNIRIO). Orcid: http://orcid.org/0000-0002-4434-8362. E-mail: cami.aranha@gmail.com.
Camila Aranha, Nas conversas e nos silêncios: memórias inundadas por Belo Monte.
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ABSTRACT: The ruins of Santo Antônio and their flooded memories reveal the
process of loss of affective space. The Belo Monte dam built in Pará state, working
since 2016, is a symbol of the “modernity” of the Amazon. In this national project,
the most vulnerable people have been excluded. In search of georeferenced
memories in the region and social resistance, I realized an investigation about the
history of the Santo Antônio small village narrated through the memories of the
families expelled by the dam. The memories of these families were treated con-
ceptually as flooded memories. In this extinguished community, around 60 fami-
lies have lived. I found former villagers that shared their symbolical reconstruction
about the lived in that space.
KEYWORDS: affective memory; Santo Antônio village; Belo Monte dam
RESUMEN: Las ruinas de Santo Antônio y sus recuerdos inundados revelan el
proceso de pérdida del espacio afectivo. La central hidroeléctrica de Belo Monte
construida en Pará, en funcionamiento desde 2016, es un símbolo de la "moderni-
dad" de la Amazonia brasileña. En este proyecto nacional, se excluyeron las po-
blaciones más vulnerables. En busca de recuerdos georreferenciados en la región
y en resistencia social, realicé una investigación acerca de la historia del pueblo
de Santo Antônio contada a través de los recuerdos de las familias expulsadas por
la represa, tratados aquí como recuerdos inundados. En este extinto pueblo, vi-
vían unas 60 familias. Conoa antiguos residentes que compartieron sus recons-
trucciones simbólicas sobre lo que se vivía en ese espacio.
PALABRAS CLAVE: memoria afectiva; pueblo de Santo Antônio; represa de hidro-
eléctrica Belo Monte.
Citação recomendada:
ARANHA, Camila. Nas conversas e nos silêncios: memórias inundadas por Belo Monte. Revista
Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 115-136, jan./jun. 2021.
[https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.47239]
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Nas conversas e nos silêncios:
memórias inundadas por Belo Monte
O ponto de partida
Parte da história da agrovila Santo Antô-
nio foi “escritadurante o plano de colo-
nização da Amazônia, arquitetado pelo
então governo militar na década de 1970.
Este período marca o momento de encon-
tro do rio Xingu com “rios modernos”
estradas abertas na mata fechada, dentre
essas, a rodovia Transamazônica
1
, que
fragmentou importantes terririos indí-
genas. Ironicamente, 40 anos depois, a
pequena vila cede espaço a outro projeto
de “modernização”: a Usina Hidrelétrica
(UHE) de Belo Monte. No instante em que
fincaram as primeiras placas com inscri-
ções “Propriedade particular NÃO
ENTRE” se iniciou o deslocamento com-
pulrio de cerca de 60 famílias em 2012.
Este vilarejo foi uma das primeiras co-
munidades expulsas pela barragem. Na
busca por compreender este lugar a par-
tir das memórias de antigos moradores,
me deparo com as reconstruções simbóli-
cas do vivido e a partir delas apresento a
cartografia dos afetos de Santo Antônio.
Camila Aranha, Nas conversas e nos silêncios: memórias inundadas por Belo Monte.
118
O território amazônico é um espaço de
resistência em si ao se ressignificar cons-
tantemente perante à colonialidade, onde
se tecem diferentes construções simbóli-
cas do viver. Em outras palavras, são lu-
gares afetivos, identidades e memórias. A
vila Santo Antônio fazia parte do municí-
pio de Viria do Xingu, no Pará, localiza-
da precisamente entre as margens do rio
Xingu e o chamado “quilômetro 50 da
Transamazônica. Suas famílias foram des-
territorializadas para transformar a co-
munidade em estacionamento de cami-
nhões, remanescendo hoje reminiscên-
cias de quem recorda.
Ao cartografar as memórias de Santo An-
tônio, encontro imagens de distintas na-
turezas definidas ao longo das reflexões
como imagens de resistência, por resisti-
rem ao tempo através das memórias das
famílias entrevistadas e também por, em
alguns casos, contribuir para a resistên-
cia social de quem recorda o passado e
elabora severas críticas ao presente,
opondo-se ao projeto de “modernidade”
excludente e invisibilizador. A essas ima-
gens associo as imagéticas presentes nas
lembranças e reminiscências individuais,
aqui tratadas como memórias inunda-
das
2
, por rememorar paisagens perdidas
do rio Xingu (REIS, 2016). Nesse sentido,
entendo a cartografia como um mapa
aberto, “conectável em todas as suas di-
mensões, desmontável, reversível, susce-
vel de receber modificações constante-
mente (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.
30).
Esta pesquisa parte do meu próprio des-
locamento pela região nas incursões em
campo em busca das famílias mais anti-
gas da vila. Apresento uma rie de foto-
grafias deste processo de investigão
com o intuito de as conectar com os fios
de memórias coletadas por meio de en-
trevistas feitas entre os anos de 2015 e
2016. Essas imagens situam o leitor em
parte dos percursos traçados e almejam
materializar possíveis reminiscências des-
te lugar de memória (NORA, 1993). Ob-
jetivo analisar as relações entre meria
e terririo, visibilizando assim as histó-
rias das populações expulsas pela hidre-
létrica de Belo Monte, motivada pelas pa-
lavras de Hal Foster (1996, p. 20) na se-
guinte reflexão: “esta maneira horizontal
de trabalhar demanda que os artistas e
críticos estejam familiarizados não so-
mente com a estrutura de cada cultura
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 115-136, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.47239)
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de forma suficiente para map-la, mas
também com sua história de forma sufici-
ente para narrá-la”. Embarquemos neste
processo.
Da terra natal para as terras estrangeiras
Nos caminhos que se abrem, o rio Xingu
é o guia onde as relações de vida aconte-
cem e afluem memórias coletivas de co-
munidades ribeirinhas, pescadores, ex-
trativistas, dentre outras. Para quem se
estabeleceu distante do rio, à beira da
estrada e ao entorno dela, os vínculos
sociais se desenham e transitam por dife-
rentes modos de vidas: o agricultores,
comerciantes, pequenos produtores de
cacau e arroz. Estas duas realidades não
são opostas, elas coexistem e eram pre-
sentes na vila de Santo Antônio.
A ocupão deste solo comum se intensi-
ficou na década de 1970 com a abertura
da rodovia Transamazônica e o incentivo
do governo militar para a imigração. Em
sua maioria, foram os nordestinos fugin-
do da seca que chegaram até a Amazô-
nia. Naquele tempo, o acesso por terra
facilitou a apropriação de um espaço des-
conhecido para quem era de fora, acele-
rou também o desmatamento e lotea-
mentos às margens das estradas abertas.
O status de agrovila vem com a Emater
como chamam a Empresa de Assistência
Técnica e Extensão Rural do Estado do
Pará , responsável pela reorganização
territorial daquele perímetro da Transa-
mazônica, reunindo famílias que viviam
próximas, mas dispersas, e agregando
novas famílias de imigrantes.
A agrovila Santo Antônio ganhou este
nome por causa de um igarapé honi-
mo vizinho, comentou Pedro
3
em nossa
primeira conversa. Ele era um dos mora-
dores mais antigos e o último deixar a
comunidade no primeiro s de 2013.
Quando o conheci em 2015, ele morava
em uma pequena casa onde havia uma
mercearia e um bar, na agrovila D’Vinci,
também às margens da Transamazônica,
mais próxima da cidade de Altamira.
Fig. 1 - Maria e seus álbuns de fotografias de Santo Antônio, 2016.
(Fonte: Acervo da autora.)
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O meu desejo por investigar a história e
a memória deste lugar se inicia com o úl-
timo festejo de Santo Antônio, padroeiro
da vila, em 2012, quando a comunidade
ainda estava presente. Era 13 de junho,
eu chegava cansada de uma viagem de
quase 24 horas de Belém, a capital do
estado, a Santo Antônio, percorrendo
aproximadamente 800 quilômetros de es-
trada. Na época, grande parte da Tran-
samazônica não tinha asfalto. A festa de
Santo Antônio fazia parte da programa-
ção de um evento chamado “Xingu+23”,
organizado pelo o movimento social Xin-
gu Vivo para Sempre. Passei alguns dias
hospedada no vilarejo.
Dois anos depois, quando a vila remanes-
cia como estacionamento, reencontrei Jo-
sé. A primeira vez que eu o vi, ele usava
um chapéu de vaqueiro e um sapato ele-
gante de couro com bico fino, comum na
redondeza de Altamira, o famoso estilo
cowboy. Mesmo observando-o à distân-
cia, senti o espírito de liderança que car-
regava consigo. Não por acaso, ele foi
presidente da Associação de Moradores
da Agrovila Santo Antônio durante anos.
Na primeira oportunidade de conversar
com José, ele carregava consigo o papel
da indenização de sua ilha no valor de R$
3.000,00 (três mil reais). Mesmo não sa-
bendo ler as palavras escritas e nem as
interpretar, apontava o dedo em direção
aos números, estes últimos mais familia-
res. Ao me mostrar o papel com as tabe-
las de valores das benfeitorias passíveis
de indenização, me impressionou a quan-
tia tão baixa dada a sua fonte de susten-
to, o que em tese tem um preço de mer-
cado. Existia na fala de José também
uma atenção ao cultivado em seu quintal
como fonte de afeto e de um valor imen-
surável para si.
As conversas com José revelaram subje-
tividades consolidadas por imigrantes,
como ele, no eixo TransXingu
4
, enfati-
zando com certa insistência as memórias
dos tempos de luta por sobrevincia. De
certo modo, uma resistência de viver e
cultivar um pedaço de terra. A vila Santo
Antônio abrigava famílias de imigrantes:
alguns procuravam um lote para produzir
sua própria subsistência enquanto outros
buscavam aportar em uma beira de rio e
pescar. Era um privigio de viver em
Camila Aranha, Nas conversas e nos silêncios: memórias inundadas por Belo Monte.
122
uma das margens do rio Xingu, com sua
fartura de pescado.
A história da agrovila Santo Antônio co-
meça antes mesmo da fundão da vila.
Ela remete a um tempo anterior, da par-
tida da terra natal para as terras estran-
geiras. É José quem norteia esta reflexão
e assim diz:
As imagens idealizadas sobre a Amazônia
se esfacelaram no momento em que a
realidade apresentava desenhos comple-
tamente diferentes, nunca antes visto.
Nas palavras de José: “chegando aqui, eu
conheci a história bem diferente”. Ele
rememora:
Na qualidade de um dos guardiões da
memória da vila, Jo foi fundamental
para a reconstituição de parte da memó-
ria coletiva das famílias que remanesciam
na beira da estrada e do rio antes da hi-
drelétrica. Ele sente as reminiscências do
tempo-passado existentes nas rnas-
rizomas do que restou da comunidade de
Santo Antônio. Ao andar pelas rnas da
agrovila, José aponta para a mangueira
que plantou, integrante de seu quintal.
Ela permanecia no mesmo local
5
.
Fig. 2 - As lembranças que guarda da vila, 2016.
(Fonte: Acervo da autora.)
Camila Aranha, Nas conversas e nos silêncios: memórias inundadas por Belo Monte.
124
Quando a vila começava a se desintegrar
fisicamente, se consolidando em um tipo
de arquitetura da destruição, o que foi
abandonado se tornou uma espécie de
ruína. Apesar da promessa de reassentar
todos os moradores juntos em outro lo-
cal, isto nunca aconteceu. Com a ruptura
dos laços comunitários e a dispersão na
região entre os munipios vizinhos, essas
famílias foram obrigadas a ressignificar
seus próprios modos de vida e suas me-
rias sobre o lugar vivido. Alguns nega-
ram as novas perspectivas e a readapta-
ção aos novos espaços, resistindo às
transformações impostas. A perda tam-
m se configura na privação do contato
com as paisagens habituais e na elimina-
ção de seus elementos. Perde-se a sono-
ridade, o cheiro, a textura, a cor e outros
pontos fundamentais na recordão. O
contato com o familiar é um impulsiona-
dor de recordações e não se tem como
falar de lugar sem falar de memória, en-
tendendo que “ao perdermos uma paisa-
gem sonora sempre poderemos evocá-la
através de sons ou na conversa com tes-
temunhas que a viveram” (BOSI, 1994,
p. 447). As antigas famílias da vila são
testemunhas das histórias do tempo pre-
sente da Amazônia.
As ruínas de Santo Antônio
Quando perguntei a Pedro o que lembra-
va da vila, ele respondeu rápido: “Na-
da!”. Foi no ato de negar as lembranças
que elas surgiram forte na memória des-
te ancião. A partir da negão do passa-
do, ele narrou a criação da agrovila, se
colocando como um dos principais prota-
gonistas dessa história:
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 115-136, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.47239)
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As ruínas se materializam como “um
mundo em vias de desaparecimento”, es-
clarece Bruno Latour (2013, p. 40). Elas
desvelam memórias, “evocam a passa-
gem do tempo em alguns casos, como
resquícios da falência de projetos moder-
nizadores, utópicos e civilizatórios”
(DALCOL, 2015, p. 54). Enquanto resquí-
cios do que existiu, a agrovila Santo An-
tônio paradoxalmente surge como parte
do projeto militar de colonização da Ama-
zônia e falece por outro plano de moder-
nização neocolonialista.
As ruínas de Santo Antônio não se corpo-
rificam como restos de construções urba-
nas, onde o peso do concreto se faz pre-
sente. Ao contrário, elas estão mais pró-
ximas da natureza e poucas foram deixa-
das porque muitas famílias reaproveita-
ram boa parte desses materiais, deslo-
cando-os para novos espaços. Eram tá-
buas de madeira, ripas de paxiúba (uma
espécie de palmeira nativa da Amazônia)
e restos de construções “rústicas” se hi-
bridizando com o mato que as consome.
Elas resistem ao esquecimento porque
permanecem demarcando um território
do que foi e restou até hoje, alimentando
as memórias de quem já morou neste lu-
gar e o reconhece.
Um artista como etgrafo é, em certa
medida, um cartógrafo. É um desafio car-
tografar um espaço desconhecido por
meio de uma etnografia sensível. Neste
trabalho, Joorienta o mergulho através
da geografia dos afetos de Santo Antônio.
Embarco nesta viagem guiada pelos
olhos atentos dele, pois um morador
poderia estabelecer conexões entre cer-
tos pontos cartográficos. Com ele desen-
volvi um olhar atento e comecei a obser-
var cada árvore que via nos percursos
que fizemos juntos.
Fig. 3 - As placas demarcam a desterritorialização, 2016.
(Fonte: Acervo da autora.)
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Retornei mais uma vez à vila Santo Antô-
nio em 2016. Caminhando pelas ruas que
ainda existiam, de maneira simples, rápi-
da e meio sem querer falar, José disse:
“— Aqui era uma rua”. Para ele, o im-
portava muito observar como o mato e
certas espécies de capins haviam cresci-
do tanto ao ponto de não parecer mais
que havia uma antiga rua ali. Para mim,
era como contemplar uma ruína sem ruí-
na, restavam somente as reminiscências
do que um dia foi uma passagem, uma
rua. A perda das relações estabelecidas
foi sucumbida pela natureza em uma
verdadeira simbiose sobre o lugar vivido.
A vegetação invade, resiste e reconfigura
lugares como este, compondo assim no-
vos pontos cartográficos e outros não-
cartografáveis nas afetividades do vilare-
jo. Estes pontos se tornam evidentes
quando demarcados através da memória
individual de quem recorda, como fez Jo-
ao apontar a mangueira, a antiga rua
e o “barracão”, como ele mesmo disse,
de Manoel.
Ao contrio das grandes construções da
modernidade, a agrovila Santo Antônio
foi construída como um lugar diferente de
outras edificações modernas erguidas em
pleno efervescente desenvolvimento eco-
nômico da região amazônica. O conceito
de lugar aqui é compreendido em sua
completude de relações que afluem nas
trocas cotidianas através dos laços de vi-
zinhança e de parentesco, ressaltando,
assim, a “fala, a troca alusiva de algumas
senhas, na convivência e na intimidade
mplice dos locutores”, como pontua
Marc Augé (2002, p. 73). Oposto ao lu-
gar, existem outros espaços destitdos
de memória afetiva, são eles apenas es-
paços de transição, de passagem e não
identitários, considerados como não-
lugares (AUGÉ, 2002). Por este ponto de
vista, a hidrelétrica de Belo Monte pode
ser considerada como um não-lugar que
inundou as memórias de Santo Antônio.
Fig. 4 - Aqui era uma rua, 2016.
(Fonte: Acervo da autora.)
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O tnsito intenso entre localidades e as
imigrações sazonais são características
fundamentais da região. Inicialmente, a
agrovila foi agregando pessoas a partir
de espaços comuns dentre esses, a
igreja, o campo de futebol e a sede como
um espaço de lazer e organização políti-
ca. A partir desses ambientes, as famílias
foram solidificando o solo enquanto um
lugar. Pedro disse que em 1973 foi criada
a comunidade pelo desejo comum dos
primeiros moradores, sem incentivo do
poder municipal. As memórias de Pedro
foram confrontadas com as de Antônio.
Para Annio, considerado o primeiro mo-
rador de Santo Antônio, a crião da
agrovila acontece quando um técnico e
uma assistente social da Emater decidem
doar um terreno para abrigar um agru-
pamento maior de pessoas, antes espa-
lhadas, reunindo-as assim. Segundo ele,
a estratégia usada pelos funcionários pa-
ra atrair pessoas para as reuniões era
distribuir leite em pó:
A história da agrovila chega progressiva-
mente ao seu final quando se iniciam as
obras de escavações dos reservatórios de
água de Belo Monte. É a história do de-
senvolvimento econômico que mais uma
vez ocupa um lugar central na história da
Amania, tornando a extinta agrovila
gradualmente em um espaço de deca-
dência, na medida em que os laços iden-
titários, as relações cultivadas e a própria
memória se esvaem abrindo margem ao
esquecimento e à solidificação de poucas
e significativas ruínas.
Memórias inundadas
Camila Aranha, Nas conversas e nos silêncios: memórias inundadas por Belo Monte.
130
Pedro conta orgulhoso que fundou a co-
munidade em 1973. Ele disse que de-
socupou seu ponto comercial depois de
quase três anos brigando judicialmente
com a empresa responsável pela indeni-
zação. Desse momento, guarda na me-
ria o período de intensas ameaças de
despejo, quando mandaram um funcioná-
rio e um trator para derrubar seu estabe-
lecimento. Ele não queria sair de onde
estava por avaliar que a única saída para
o enfrentar uma situação pior era re-
sistir dentro de seu imóvel. Ele temia ser
realocado em um Reassentamento Urba-
no Coletivo, como chamam os bairros
planejados pela empreendedora de Belo
Monte, onde as casas são padronizadas,
todas de três quartos. Ele queria voltar à
vida passada.
O primeiro morador da Transamazônica
de Marabá à Altamira foi Pedro, como ele
mesmo me disse: “não tinha outro, era
dentro da mata eu”. Ele veio de Belém
com 35 anos, “casado e fugido”. Fugido
porque quando era mais novo brigava
bastante. É natural de Bujaru, distrito do
município deo Domingos do Capim,
nordeste paraense, onde acontece o fa-
moso fenômeno natural, a Pororoca, no
rio Capim. Quando chegou à região do
Xingu, naquele tempo de barco a Vitó-
ria do Xingu, a Transamazônica ainda não
havia sido inaugurada, por isso ressaltou
o privilégio de assistir à cerimônia em
que o Presidente Médici cortou a casta-
nheira simbolizando a chegada do “pro-
gresso”, em novembro de 1973. O pau
do presidente” é como as pessoas, em Al-
tamira, chamam o memorial feito no lo-
cal. O que na memória de Pedro aconte-
ceu em 1973, os documentos históricos
afirmam ter ocorrido em 1970.
Como comerciante, Pedro gostava de fa-
lar em meros. Quando eu posicionei a
câmera na mão e um gravador, ele pron-
tamente se preparou para tecer denún-
cias sobre os abusos vividos por causa de
Belo Monte. Assim, me explicou a situa-
ção judicial em que se encontrava por
o ter aceitado a oferta de indenização
de R$ 92.000,00 (noventa e dois mil re-
ais), valor dado a todos seus bens. Seu
ponto comercial tinha 130 metros de
frente por 100 metros de fundos, um
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simples jeito de falar de um lote de um
pouco mais de um hectare. Nas promes-
sas feitas no passado, ele receberia mais
por todas as benfeitorias.
Devido ao fato de ter rejeitado a oferta
de indenização, Pedro conseguiu receber
uma bolsa-aluguel por pouco mais de
um ano, o que já havia acabado quando
eu o conheci. No auge da construção de
Belo Monte, o aluguel do ponto comercial
onde morava chegou a custar R$
2.500,00 (dois mil e quinhentos reais)
em virtude da localização, à beira da ro-
dovia. O estabelecimento funcionava co-
mo bar e mercearia. Não havia um ba-
nheiro reservado para clientes e, para
acessar o único que tinha, os clientes
precisavam passar pela sala dostica,
pois não cabia um banheiro mais próximo
e separado do espaço da casa. Sem me-
dir” palavras, Pedro fala: “o lazer que
eles me deram foi ficar nesse chiqueiro”.
Sem letramento, Pedro teve que lidar
com uma justiça escrita com papel e ca-
neta. Mesmo com as novas ameaças de
despejo por causa das dívidas contraídas
pela falta de pagamento de aluguel, Pe-
dro foi enfático ao afirmar que naquele
momento não queria só uma “casa de
morada”, como chamou, mas sim um
ponto comercial semelhante ao que tinha,
na beira da estrada, onde também pu-
desse ter uma casa de morada espaçosa
e um quintal. Talvez Pedro não fosse o
primeiro morador da Transamazônica,
mas em suas andanças pela mata é pos-
vel o ter encontrado mais ninguém.
Para chegar à cidade de Altamira, antes
da Transamazônica, as pessoas andavam
pela floresta fechada. De primeiro mora-
dor de um pemetro marcado pela rodo-
via ao último habitante da agrovila, ele
conta que só saiu de Santo Antônio por-
que não teve mais para onde fugir.
Assim como outras pessoas impactadas
por Belo Monte, Pedro se descobriu de-
pressivo. Ou a depressão o descobriu.
Não é difícil imaginar esses casos dado a
expectativa criada em torno da obra, se-
guida de uma profunda decepção. Todos
tiveram a esperança de ganhar uma boa
indenização e conseguir se mudar para
outro lugar com condições similares ou
melhores, pom esta realidade foi para
poucos, em especialmente para proprie-
rios de fazenda e criadores de gado.
Depois da saída da vila, ele começou a se
Camila Aranha, Nas conversas e nos silêncios: memórias inundadas por Belo Monte.
132
tratar de depressão, mas interrompeu em
seguida. Parou de tomar remédios por-
que, segundo ele, “não adiantava tomar e
ficar da sala para a cozinha, da cozinha
para a sala. Se for assim, era melhor es-
perar morrer logo”.
Um ano depois da primeira entrevista
com ele, o visitei novamente. Ele perma-
necia na agrovila D’Vinci, em outra casa,
onde também mantinha um bar e uma
mercearia. Naquela época, me disse se
ver como uma pessoa agoniada, muito
diferente do Pedro comerciante de Santo
Antônio, antigo agricultor da região. Foi
ele quem ensinou Leo, o baiano, a culti-
var arroz. Se reconhecia como pescador e
pescava nos momentos de lazer. Mesmo
o querendo recordar, ele rememora:
Considerações Finais
A história da pequena vila de Santo An-
tônio prossegue sendo excluída e elimi-
nada da história do desenvolvimento da
região. Narrá-la é um jeito de adiar seu
esquecimento. É também uma singela
homenagem a Maria, também antiga mo-
radora, por me dizer temer o esqueci-
mento de Santo Antônio. Ela me adver-
tiu: em breve ninguém mais vai se lem-
brar que, por trás do estacionamento de
caminhões de Belo Monte, havia uma
comunidade.
A história de Santo Antônio nunca foi não
escrita, mas falada, gesticulada, vivida.
Não tive o objetivo de recompor toda sua
história, pois busquei fios de meria
que compõem mais uma história invisibi-
lizada pela “modernidade” na Amazônia.
Justifica-se com isso a investigação por
meio da incessante busca por imagens
presentes nas narrativas sobre o passa-
do, uma vez que “há um vivel que não
produz imagem, há imagens que estão
todas em palavras” (RANCIÈRE, 2012, p.
16).
Fig. 5 - Os troféus dos campeonatos de futebol de Santo Antônio guardados por Pedro, 2015.
(Fonte: Acervo da autora.)
Camila Aranha, Nas conversas e nos silêncios: memórias inundadas por Belo Monte.
134
A agrovila como um lugar se determinou
por meio da condição de convivência, das
trocas e de organização social. Foi no en-
contro com o rio Xingu que José tirou seu
sustento e sua alegria. Nas conversas e
nos silêncios, ele me presenteou com su-
as imagens não-cartografáveis, suas
memórias inundadas, imagens de um co-
ração que adotou a Amazônia como um
lugar afetivo. É nessa região que descobri
uma infinidade de subjetividades cultiva-
das no aprendizado constante com o rio e
com a natureza.
Investigações que priorizem os discursos
silenciados m suma importância para
dar ênfase à outras hisrias, ao saber
local que habita as fissuras da história do
desenvolvimento ecomico nacional, di-
ta como oficial e prevalecente na socie-
dade. Se pretendeu visibilizar parte das
histórias e merias coletivas de quem
sofreu com os efeitos socioambientais
provocados pela barragem do rio. Das
famílias que visitei, em diferentes locali-
dades, optei por não apresentar todas
neste trabalho, fazendo um recorte de
pesquisa para privilegiar os moradores
antigos com quem tive mais contato. Eles
acompanharam diversos processos na
história da agrovila e são guardiões da
memória da comunidade. Essas famílias,
além de mais antigas, são compostas por
matriarcas e patriarcas mais velhos, o
que as diferenciam de outras famílias
mais novas.
Ao conectar estudos de diferentes cam-
pos, como a Arte e a Antropologia, as
análises apresentadas contribuem para
ampliar as discussões sobre o estado da
Arte e a fuão do artista mesmo não
sendo o foco do trabalho. Por fim, con-
cluo me apropriando das palavras de Clif-
ford Geertz (2014, p. 103): “estudar arte
é explorar uma sensibilidade e isto “é
essencialmente uma formação coletiva”.
As incursões em campo me proporciona-
ram vivenciar, dentre outras coisas, a
experiência de artista enquanto etnógrafa
(FOSTER, 1996).
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 115-136, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.47239)
.
135
Notas
1
A Transamazônica faz parte do projeto geopolítico
de integração nacional executado durante o Regime
militar, na década de 1970. Terceira maior rodovia do
Brasil, com 4.223 quilômetros de comprimento, li-
gando Cabedelo, na Paraíba, à Lábrea, no Amazonas.
2
Michael Pollak (1989, p. 4, grifo meu) escreve: “Ao
privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados
e das minorias, a história oral ressaltou a importância
de memórias subterrâneas que, como parte integran-
te das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à
Memória oficial’, no caso a memória nacional”. O
conceito de memórias inundadas faz referência ao rio
Xingu e a barragem, também evoca as memórias sub-
terrâneas de Pollak, apresentadas no seu texto “Me-
mória, Esquecimento, Silêncio”.
3
Todos os nomes citados neste artigo são fictícios
com o fim de preservar a identidade dos entrevista-
dos.
4
Rodovia Transamazônica e rio Xingu.
5
Em 2019, de volta ao campo de pesquisa, confirmo
que as estruturas remanescentes da vila, assim como
seu cemitério, continuam no mesmo local.
Agradecimentos
Agradeço, em especial, à Luana Peixe e à Janaína
Torres, companheiras da primeira pesquisa de campo
do qual este trabalho resulta. A leitura atenta do Pro-
fessor Dr. Luizan Pinheiro enriqueceu este trabalho,
por isso o agradeço imensamente. O presente traba-
lho foi realizado com apoio da Coordenação de Aper-
feiçoamento de Pessoal de Nível Superior Brasil
(CAPES).
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uma antropologia da supermodernidade.
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