Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 189-208, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.47271)
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Miçangas tchecas como arte na Amazônia? Produção de
corpos e beleza na Guiana Indígena
Czech Beads as Art in the Amazon? Production of
Bodies and Beauty in the Indigenous Guiana
¿Cuentas checas como arte en la Amazonía? Produccíon de
cuerpos y belleza en la Guayana Indígena
Cecília de Santam Azevedo de Oliveira (Instituto de Pesquisa e Formação Indígena, Brasil)
*
https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.47271
RESUMO: A partir dos usos e circulações de miçangas entre povos habitantes das
Terras Indígenas Parque do Tumucumaque e Rio Paru d'Este (Tiriyó, Katxuyana,
Wayana, Aparai, dentre outros), localizadas no norte do Pará, indico a importância
do cotidiano e da alteridade na estética desses povos amazônicos - e como essa
experiência traz impactos para além da Amazônia. Mobilizando elementos da his-
tória e da cosmologia dos povos da região, trago elementos que podem contribuir
para debates sobre autoria, transformações culturais e o papel das mulheres na
produção de corpos e de artes. Este artigo foi elaborado a partir de pesquisa bibli-
ográfica e etnográfica, incluindo visita ao acervo do Museu Paraense Emílio Goeldi.
PALAVRAS-CHAVE: miçangas; corpo; Tiriyó
*
Cecília de Santarém Azevedo de Oliveira é mestra em Antropologia Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5187-3878. E-mail: ceciliadesantarem@gmail.com.
Cecília de Santarém Azevedo de Oliveira, Miçangas tchecas como arte na Amazônia? Produção de corpos e beleza...
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ABSTRACT: Based on the uses and circulation of beads between the inhabitants
of the Parque do Tumucumaque and Rio Paru d'Este Indigenous Reserves (Tiriyó,
Katxuyana, Wayana, Aparai), located in the north of Pará, I indicate the im-
portance of everyday life and the alterity in the aesthetics of these Amazonian
peoples. - and how this experience impacts beyond the Amazon. Mobilizing ele-
ments of the history and cosmology of the peoples of the region, I bring elements
that can contribute to debates about authorship, cultural transformations and the
role of women in the production of bodies and arts. This article was prepared
based on bibliographic and ethnographic research, including a visit to the collec-
tion of the Museu Paraense Emílio Goeldi.
KEYWORDS: beads; body; Tiriyó
RESUMEN: Basado en los usos y la circulación de cuentas entre los habitantes de
las Terras Indigenas Parque do Tumucumaque y Río Paru d'Este (Tiriyó, Katxuya-
na, Wayana, Aparai), ubicado en el norte de Pará, indico la importancia de la vida
cotidiana y la alteridad en la estética de estos Pueblos amazónicos. - y mo esta
experiencia trae impactos más allá del Amazonas. Al movilizar elementos de la
historia y la cosmología de los pueblos de la región, aporto elementos que pueden
contribuir a los debates sobre la autoría, las transformaciones culturales y el papel
de la mujer en la producción de cuerpos y artes. Este artículo fue preparado en
base a investigaciones bibliográficas y etnográficas, incluida una visita a la colec-
ción del Museu Paraense Emílio Goeldi.
PALABRAS CLAVE: cuentas; cuerpos; Tiriyó
Citação recomendada:
OLIVEIRA, Cecília de Santarém Azevedo de. Miçangas tchecas como arte na Amazônia? Produ-
ção de corpos e beleza na Guiana Indígena. Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 189-208,
jan./jun. 2021. [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.47271]
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Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 189-208, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.47271)
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Miçangas tchecas como arte na Amazônia? Produção de
corpos e beleza na Guiana Indígena
Miçanga. Palavra de origem africana, ban-
to, significando conta de vidro; em lín-
gua portuguesa, remete à quinquilharia.
Entre os povos falantes de línguas karib,
na Guiana Indígena (em especial no norte
do Pará) circulam pelo menos desde o sé-
culo XVII; na língua tiriyó, traduz-se por
samura, fazendo alusão à areia; em
katxuyana, por orokowëti, “cocô de lagar-
ta”; em wayana e aparai, kasuru e kahu-
ru, aludindo às contas em formato de ca-
sulo que chegavam pela região na frontei-
ra entre Oiapoque (norte do Amapá) e
Guiana Francesa, nos séculos anteriores.
Diversos modos de designar pequenas
contas de vidro arredondadas, pequenos
objetos com orifício central, por onde se
passa (pelo menos) um fio. As contas,
nome genérico para esses objetos fura-
dos, feitos dos mais diversos materiais,
podem ser reconhecidas como um dos
primeiros sinais de uma humanidade cria-
tiva, que transforma materiais em orna-
mentação corporal. achados de 30.000
anos antes do presente (DUBIN, 1987), e
a grande plasticidade e transportabilidade
permitidas pelas contas fazem delas cobi-
çadas e queridas por diversos povos e so-
Cecília de Santarém Azevedo de Oliveira, Miçangas tchecas como arte na Amazônia? Produção de corpos e beleza...
192
ciedades ao longo dos séculos, até mesmo
suscitando pesquisas em áreas variadas,
como arqueologia, artes e antropologia.
Tal é o caso do estudo que eu mesma pu-
de desenvolver ao longo de minha pesqui-
sa de mestrado, defendida em dezembro
de 2019, na FFLCH/USP.
É possível escrever um artigo para uma
revista acadêmica do mesmo modo como
se tece uma saia de miçangas? Aproximar
o fazer científico do fazer artístico é um
exercício que agrada bastante as pessoas
que têm afinidades com ambas atividades
do tal do espírito humano, como se diria
em língua francesa. Não se trata de facul-
dade mental separada de prática, posto
que se mistura técnica com intuição e
muito enredamento com outras pessoas,
assim como materiais, momentos, experi-
ências. Perder-se em miçangas, diferentes
tipos de fios e agulhas, conhecer tantos
padrões gráficos que vão se imbricando
uns nos outros, compondo corpos huma-
nos e não-humanos. Reconhecer o estilo
de cada artesã, escutar histórias, apren-
der cantos e pontos. Errar, rir, se perder,
se encontrar. Neste escrito, pretendo tra-
zer, para a pessoa que se aventurar a ler,
algumas reflexões sobre perigos e belezas
do deixar-se envolver em relações, sobre
a importância da prática cotidiana exerci-
da pelas mulheres, sobre ser e circular en-
tre Amazônia e sudeste.
o é nenhuma novidade que as línguas
indígenas, de modo geral, não possuam
uma palavra facilmente traduzível por “Ar-
te” (BOAS, 1927; LAGROU, 2016). O reco-
nhecimento do valor estético nas expres-
sões ameríndias (mas não apenas) tem, ao
longo do tempo, sido fortalecido e melhor
reconhecido tanto em espaços como mu-
seus (vide exposições como No Caminho da
Miçanga, disponível para visitação online no
site do Museu do Índio) quanto pela litera-
tura especializada, seja em trabalhos de
antropologia quanto de semiótica, linguísti-
ca e arqueologia. Também artistas indíge-
nas expoentes, como Jaider Esbell e Denil-
son Baniwa, têm ganhado cada vez mais
espaço, sendo requisitados em seminários
e com obras de arte em diversos países.
Mas o que quero tratar aqui é da arte coti-
dianamente tecida pelas mulheres indíge-
nas Tiriyó, Katxuyana, Wayana, Aparai,
dentre outras gentes, com quem pude rea-
lizar minha pesquisa de mestrado e com as
quais sigo atuando enquanto assessora de
uma instituição indigenista.
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dizia a letra de um carimbó composto
pela amiga talentosa e querida conterrâ-
nea Dany Batista: “Minha sorte foi nascer
no Norte, com o na terra, assim que
me criei”. É assim que me sinto, filha de
dois paulistas que se conheceram e se
apaixonaram entre os rios Tapajós e Ara-
piuns, no coração da Amazônia, traba-
lhando junto às comunidades ribeirinhas
da região, com arte, comunicação e edu-
cação ambiental. Mesmo 4.000 km distan-
tes de suas famílias, minha mãe e meu pai
preferiram que meu nascimento e cresci-
mento fosse em Santarém, de onde saí-
mos 12 anos, na época em que eu
concluía o ensino médio. Pude ingressar
no curso de Ciências Sociais, na Universi-
dade de São Paulo e, posteriormente, no
Programa de Pós-Graduação em Antropo-
logia Social da mesma instituição. No meio
desse caminho, também passei a integrar
a equipe do Iepé, Instituto de Pesquisa e
Formação Indígena, atuando junto aos
povos indígenas do Tumucumaque.
Assim, me situo para a pessoa que me lê:
alguém que sempre esteve entre ser san-
tarena (por nascimento, crescimento, gos-
to pelo açaí, pelos rios e igarapés, pelo ca-
rimbó) e ser paulista (cor de pele, sota-
que, família), mas sempre tendo como di-
reção o compromisso muito grande com a
Floresta Amazônica e seus moradores:
povos indígenas, ribeirinhos, quilombolas,
espíritos, encantados, flora, fauna, rios,
igarapés, cada componente desses mun-
dos e seus conhecimentos. E acredito que
o caminho para honrar essa sorte de nas-
cer amazônida necessariamente passa por
fortalecer conhecimentos e modos de vida
dos povos tradicionais, que constantemen-
te nos lembram da importância da alegria
e do fazer junto, bem como de colocar be-
leza até mesmo nas batalhas diárias.
Localizando a região no tempo e no espaço
Para relatar aqui algo da experiência que
tenho tido junto a essas mulheres indíge-
nas, é fundamental situar brevemente a
região e os povos indígenas de quem es-
tamos falando. Quem tiver interesse em
se aprofundar, mais informações podem
ser encontradas nas páginas do Iepé
1
e da
iniciativa Povos Indígenas do Brasil
2
do
Instituto Socioambiental; alguns estudos
de antropologia também estão elencados
na bibliografia (FRIKEL, 1958; GRUPIONI,
2002; GRUPIONI, 2005; OLIVEIRA, 2019).
Fig. 1 - Lurdes Kaxuyana me explica sobre cores das miçangas, antes de começar a armar o keweyu em seu
tear. A armação mais clara, à direita, é do keweyu que ela me ensinaria a tecer. A outra, com um
keweyu em processo de feitura, ela está fazendo para sua filha. Foto: Jacilene Parena Kaxuyana Tiriyó,
janeiro de 2019. (Fonte: OLIVEIRA, 2019)
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As Terras Indígenas Parque do Tumucu-
maque e Rio Paru d’Este estão localizadas
no norte do Pará, com uma pequena faixa
no estado do Amapá, na região de frontei-
ra com Suriname. São terras indígenas
demarcadas e homologadas desde 1997,
totalizando 4,2 milhões de hectares, cir-
cundados por outras unidades de conser-
vação. É uma região de acesso muito difí-
cil, pois é possível chegar nas aldeias
por meio de fretes de avião, sendo que a
quase totalidade das pistas de pouso não
são homologadas (exceto a pista da base
da Força Aérea, 1º Pelotão de Fronteira
Tiriós), tendo capacidade para receber
apenas aviões monomotores. Além da flo-
resta ombrófila densa que reina na região,
também grandes áreas de savana, em
especial, no meio da TI Parque do Tumu-
cumaque. Há também muitas serras e rios
com trechos não navegáveis, de cachoei-
ras e corredeiras.
Apesar desse difícil acesso, os povos indí-
genas Tiriyó, Katxuyana, Wayana e Aparai
- principais etnônimos reconhecidos atu-
almente - desde tempos imemoriais circu-
lam pela região, com intensas redes de re-
lações, envolvendo trocas comerciais, ca-
samentos, xamanismo e outras circula-
ções de conhecimentos (GALLOIS, 2005)
das quais também faço parte hoje em dia.
Num panorama mais amplo, pode-se des-
tacar que a maior parte dos povos indíge-
nas dessa região são falantes de línguas
da família karib, como tiriyó, katxuyana,
wayana, aparai, txikiyana, dentre outras;
mas também há falantes de língua tupi
(Wajãpi) e mesmo aruak (Mawayana),
além de também dominarem línguas não-
indígenas de origem europeia, como por-
tuguês, francês, inglês e holandês, e até
mesmo takitaki, língua falada por povos
negros habitantes das florestas da região,
descendentes das populações africanas
trazidas em condição de escravidão.
Fig. 2 - Mapa das Terras Indígenas Parque do Tumucumaque e rio Paru d'Este.
(Fonte: GRUPIONI, 2009)
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 37, p. 189-208, jan./jun. 2021. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i37.47271)
.
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Retomando um pouco da história dos po-
vos Tiriyó, Katxuyana, Wayana e Aparai, é
preciso dizer que o contato contínuo com
os karaiwa (palavra que designa os não-
indígenas brasileiros) deu-se a partir da
década de 1960, com a instalação de uma
Missão Franciscana e de uma base da For-
ça Aérea, consolidando o maior aldeamen-
to da região, nas proximidades da frontei-
ra com o Suriname. A paulatina centrali-
zação populacional em torno de aldea-
mentos missionários repete-se como fe-
nômeno, nessa época, por toda a região:
além da missão católica mencionada, ou-
tros aldeamentos mobilizados pela con-
versão evangélica instalaram-se tanto no
lado brasileiro quanto no guianês e suri-
namês.
O movimento de concentração populacio-
nal esvazia as diversas calhas de rios e
igarapés da região, causando impacto na
ocupação territorial e também no modo
como esses povos indígenas concebem a
si mesmos. Em levantamento realizado na
década de 1950, Frikel (1958) identifica
mais de 140 “sub-grupos” (como mencio-
na o autor), amalgamados na relação com
estados nacionais nas etnias Tiriyó,
Katxuyana, Wayana, Aparai, Waiwai e
Hixkariyana. A batalha pelo fortalecimento
e reconhecimento da rica sociodiversidade
desses povos é realizada a cada dia, como
pode-se acompanhar, por exemplo, no
Plano de Gestão Territorial e Ambiental
das TIs Parque do Tumucumaque e Rio
Paru d’Este (2018).
Essa sociodiversidade que Frikel identifi-
cava como “subgrupos” é designada fre-
quentemente nas línguas indígenas da re-
gião pelo sufixo -yana, que pode ser tra-
duzido por “gente”; outros sufixos que
podem ter essa mesma designação são -
yo, -so, -koto (GRUPIONI, 2009). Assim,
aqueles que são reconhecidos como Tiri
(mas se autodenominam Tarëno “os da-
qui”) são compostos por variadas gentes,
como Aramayana (gente-abelha), Piyana-
koto (gente-gavião), Aramiso (gente-
juruti), Okomoyana (gente-vespa),
Pïrouyana (gente-flecha), dentre outros.
Essas diferentes gentes são percebidas
como as “continuações” (itïpï) às quais
pertencem as pessoas, conforme demons-
trou Grupioni (2002). A noção de itïpï fun-
damenta o sistema de mundo tarëno, as-
sim como a noção de pata, comumente
traduzida por “aldeia” (GRUPIONI, 2002,
2005). Articulando itïpï e pata, a pessoa
Cecília de Santarém Azevedo de Oliveira, Miçangas tchecas como arte na Amazônia? Produção de corpos e beleza...
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tarëno se compreende como “continuação”
de seus antepassados, do mesmo modo
que geradora de sua continuidade, no pre-
sente das relações cotidianas de sua pata
geralmente conformada pelo casal que
funda a aldeia (pataentu e sua esposa),
bem como seus filhos e filhas solteiros,
suas filhas casadas (juntamente com seus
maridos e filhos) e parentes da esposa do
pataentu.
Redes de beleza e perigo
Um dos meios mais interessantes de se
observar as redes de relações na região é
via repertórios de padrões gráficos dos di-
ferentes povos. Esses repertórios podem
ser apreciados em diversas publicações,
como Arte Visual dos Povos Tiriyó e
Kaxuyana (GRUPIONI, 2009), Livro da
Arte Gráfica Wayana e Aparai (VAN
VELTHEM; LINKE, 2010), Kusiwa: pintura
corporal e arte gráfica Wajãpi (GALLOIS,
2002) e Dossiê de Patrimônio Cultural
Imaterial n.2: Arte Kusiwa - pintura cor-
poral e arte gráfica Wajãpi (INSTITUTO
DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E
ARTÍSTICO NACIONAL, 2008). Como disse
Kasiripinã Wajãpi para a antropóloga Do-
minique Gallois (comunicação pessoal),
ele conhece muitos padrões de pinturas
corporais por ter viajado muito, para
muitos lugares, conhecendo muita gente.
Além das semelhanças gráficas entre os
padrões, é comum entre os diferentes po-
vos o entendimento de que seus padrões
gráficos são originados de outros seres.
Muitas narrativas falam de encontros com
cobras grandes, como a saga do Tuluperê,
contada pelos Wayana e pelos Aparai
(VAN VELTHEM, 2003), assim como de
encontros com povos inimigos, que tinham
seus corpos completamente pintados
(GRUPIONI, 2009). Essas narrativas des-
tacam duas características que marcam a
concepção de beleza para esses povos in-
dígenas: a importância da alteridade e o
perigo inerente à beleza.
A celebração da alteridade como tema
central para os povos ameríndios já foi
tratada por diversos autores, por meio de
diferentes abordagens, como o modo que
aparecem em narrativas míticas (LÉVI-
STRAUSS, 1991), ou do canibalismo
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002, 2018). A
respeito do perigo inerente à beleza, uma
das etnografias mais bem documentadas
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199
sobre o tema foi feita entre os Wayana
aqui mencionados (VAN VELTHEM, 2003),
destacando o quanto seres profusamente
adornados frequentemente são também
predadores vorazes; a onça pintada e a
sucuri, com suas peles repletas de pintu-
ras, seriam duas das principais efígies.
Pintar-se como elas seria também um
modo de se apropriar tanto de sua feroci-
dade quanto de sua beleza (indissociação
de ética e estética).
Produção de corpos: ornamentação e mi-
çangas
O corpo humano não é algo dado, e sim
cotidianamente produzido por meio dos
mais variados processos. Nos estudos de
etnologia indígena nas terras baixas da
América do Sul, o anúncio dessa percepção
marcou época e influencia pesquisas até
hoje (SEEGER; DA MATTA; VIVEIROS DE
CASTRO, 1979). Alimentação, danças, or-
namentação, compartilhamento de varia-
das substâncias conformam alguns dos
processos que fazem parte da fabricação
de corpos, enfatizando o quanto a estética
dos povos ameríndios necessariamente im-
plica numa ética, muitas das vezes ligada
ao perpétuo desequilíbrio entre autocome-
dimento e apreço por grandes celebrações,
com fartura de comida e embriaguez.
A aplicação de padrões gráficos não se re-
sume à pintura corporal em humanos: a
trama das tecelagens também traz pa-
drões, que podem ser replicados nas pin-
turas corporais, assim como em cerâmica
e tramas de algodão e outras fibras, como
o próprio tipiti. O Livro das Artes Gráficas
Wayana e Aparai (VAN VELTHEM; LINKE,
2010) traz exemplos das diversas aplica-
ções dos padrões, destacando a presença
da ornamentação corporal como funda-
mental para a boa conformação do corpo
do ser, seja pessoa, animal, objeto. Mes-
mo porque entre esses povos é comum a
concepção de que a humanidade não é al-
go que se restringe a nossa espécie, mas
sim que ou foi compartilhada em tempos
míticos, ou pode ser acessada através do
xamanismo, por exemplo.
As miçangas são imensamente apreciadas
por povos na composição de sua orna-
mentação corporal. Circulando pela região
guianense desde pelo menos o século XVII
(SCHOEPF, 1976, p. 57), as contas de vi-
dro estão presentes nas trocas entre eu-
Cecília de Santarém Azevedo de Oliveira, Miçangas tchecas como arte na Amazônia? Produção de corpos e beleza...
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ropeus e povos ameríndios por todo conti-
nente americano, de Norte a Sul, desde o
início (ou mesmo anterior
3
) do processo
de colonização (DUBIN, 1987; KARKLINS;
SPRAGUE, 1972; BLAIR; PENDLETON;
FRANCIS JR., 2009). Os povos ameríndios,
de modo geral, dominavam técnicas de
produção de contas em sementes, ossos,
pedras e outros materiais, encantando-se
com as miçangas de vidro trazidas pelos
europeus. Dubin (1987) destaca a plasti-
cidade, a transportabilidade e a abundân-
cia como características que fazem das
contas e miçangas, bens apreciados pelos
seres humanos há 30.000 anos.
Na região das Guianas, entre os povos fa-
lantes de língua karib do sudeste guianen-
se, vê-se particularmente o apreço pelas
miçangas pequenas, tamanho 9/0 e 12/0,
de origem tcheca
4
, nas cores preto, bran-
co, vermelho e amarelo. Outras cores são
muito apreciadas, como laranja, verde e
azulão, mas é raro que faltem as primei-
ras cores mencionadas numa encomenda
de miçangas. Junto com as miçangas,
outros objetos necessários para que com
elas se trabalhe: fios e agulhas. Os dife-
rentes tipos de objetos produzidos reque-
rem fios e agulhas específicos: colares são
feitos com linha de costura, possibilitando
um caimento mais macio; já pulseiras pre-
ferencialmente são feitas com linha de
pesca, resultando numa firmeza maior. As
peças mais tradicionais, keweyu (saia
frontal) e panti (cinto masculino), são fei-
tas também, preferencialmente, com al-
godão ou linha de costura.
Fig. 3 - Casa Galibi, com diversos objetos, incluindo uma tanga, possivelmente feita de miçangas,
ao lado esquerdo da rede. (Fonte: CREVAUX, 1883)
Cecília de Santarém Azevedo de Oliveira, Miçangas tchecas como arte na Amazônia? Produção de corpos e beleza...
202
Tecendo a cada dia
Atualmente, percebe-se que as pinturas
corporais ficam mais restritas a momentos
comemorativos e de grandes encontros
políticos, como as Assembleias de Associ-
ação que ocorrem pelo menos uma vez ao
ano, ou por ocasião de manifestações polí-
ticas, seja nas cidades por onde circulam
(em especial, Macapá), seja nas terras in-
dígenas. Embora as pessoas mais velhas
digam que muitos conhecimentos estão se
perdendo porque os jovens não têm inte-
resse, e as pessoas mais jovens digam
que são as mais velhas que não estão
mais ensinando, é possível considerar o
trabalho com as miçangas como uma ati-
vidade altamente mobilizadora de pessoas
de todas as idades. Ainda que a feitura
das peças seja tarefa praticamente exclu-
siva das mulheres, o uso de pulseiras, co-
lares e cintos é difundido entre todas as
pessoas, e até mesmo é possível encon-
trar alguns animais, como jacamins, tam-
bém usando, por exemplo, tornozeleiras
de miçangas.
Se é possível realizar inventários das pin-
turas corporais ou dos padrões aplicados à
cestaria, a enorme plasticidade das mi-
çangas praticamente inviabiliza trabalhos
exaustivos nesse sentido. Além das muitas
cores com que é possível trabalhar (em
contraste com o preto do jenipapo e o
vermelho do urucum, comumente empre-
gados nas pinturas corporais), as peças
em miçangas acionam e potencializam
aquilo que foi acima descrito a respeito da
autoria dos padrões gráficos: mais do que
“criar” desenhos “inovadores”, o que inte-
ressa nos sistemas estéticos (e éticos)
desses povos indígenas é “pegar” dos ou-
tros. Assim como no passado mítico os
padrões gráficos foram copiados ou tira-
dos das peles de cobras grandes e de ini-
migos (dentre outras possibilidades), as
artesãs de miçangas apreciam “imitar” pe-
ças feitas por outras pessoas. Imitação
essa que, como dizem os Wajãpi, “não é
de xerox”, posto que, mais próxima do
que Gabriel Tarde chamava de diferença
infinitesimal (TARDE, 2007), traz em si
sempre uma pequena diferença, que per-
mite variadas composições de cores e de-
senhos, assim como o exercício da criati-
vidade por meio de uma técnica que muito
agrada a essas mulheres indígenas.
As peças de miçangas também são de-
monstração de afeto e cuidado, oferecidas
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por mulheres e moças às suas crianças,
maridos, namorados, irmãos e irmãs. Ou
mesmo das netinhas para com suas avós,
que podem ser vistas usando pulseiras e
colares de voltas, em cores sortidas
primeiros passos no aprendizado das pe-
quenas artesãs. O aprendizado das técni-
cas de tecelagem de miçangas, que po-
dem ser apreciadas em maior profundida-
de no segundo capítulo de minha disserta-
ção (OLIVEIRA, 2019), é feito sobretudo
por meio da observação, por parte das
meninas, do trabalho que as mulheres
adultas estão fazendo. Na última década,
também têm sido promovidas algumas
oficinas visando o fortalecimento desses
conhecimentos, conforme reivindicação
das mulheres da região.
Se as redes de circulação de miçangas nos
séculos anteriores passavam por uma ex-
tensa cadeia de trocas, mobilizando povos
indígenas no interior das florestas, assim
como povos negros (tal como os Boni e os
Djuká) e as cidades localizadas na costa
caribenha (Paramaribo e Caiena, sendo as
principais), hoje em dia, após a concen-
tração em aldeamentos missionários (e
sua posterior e gradativa dispersão), vê-
se o estabelecimento de outros canais de
obtenção e circulação de objetos. No caso
das miçangas, que no mais das vezes
chegavam a partir desses povos negros,
atualmente dependem muito mais de rela-
ções estabelecidas com instituições e pes-
soas ligadas ao sudeste do Brasil, onde
podem ser obtidas as tão apreciadas mi-
çangas tchecas na importadora localizada
nas imediações da Rua 25 de Março (que
possui até mesmo descontos especiais pa-
ra povos indígenas).
Fig. 4 - Jacamim com tornozeleiras de miçangas, Aldeia Santo Antônio, TI Parque do Tumucumaque,
março de 2017. (Foto da autora)
Fig. 5 - Xipatai Apalai indica a proveniência das diferentes miçangas (as brancas vieram da Guiana Francesa)
que utilizou na feitura de seus weju; Xipatai prefere utilizar miçangas tamanho 6/0, chamadas kahuru
tepu (Wayana) ou kasuru topu (Aparai). (Fonte: OLIVEIRA, 2019)
Cecília de Santarém Azevedo de Oliveira, Miçangas tchecas como arte na Amazônia? Produção de corpos e beleza...
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Arrematando
Por mais delicado e cuidadoso que seja fei-
to um trabalho acadêmico, em especial de
antropologia, as relações de poder não es-
tão isentas. Devemos seguir na batalha pa-
ra que mais pessoas, das origens mais va-
riadas possíveis, possam ter acesso e ga-
rantia de permanência à educão blica,
gratuita e de qualidade. Os aprendizados
mais intensos que tenho podido vivenciar
junto a esses povos indígenas, tanto pelas
leituras quanto pela vivência em momentos
de pesquisa e de atuação indigenista, tra-
zem fortemente a sabedoria de que as ba-
talhas sempre continuao. E que bem por
isso precisamos cotidianamente nutrir nos-
sas alianças, enfrentando com beleza e
alegria as situações que desde muitos sé-
culos têm se colocado.
Tramas de miçangas podem parecer des-
conectadas de discuses políticas para
muitas pessoas, tantas delas que até se
julgam politizadas. Espero que as conside-
rações que apresentei aqui possam contri-
buir para alargar mentes, seduzir alianças,
avivar esses afetos que nos permitem se-
guir em caminhos pela riqueza das diferen-
tes vidas na Amazônia e por toda parte.
Notas
¹ Disponível em https://www.institutoiepe.org.br/
area-de-atuacao/povos-indigenas/complexo-
tumucumaque/. Acesso em 29/7/2020.
2
Disponível em https://pib.socioambiental.org/pt
/Povo:Tiriy%C3%B3/. Acesso em 29/7/2020.
3
Foi encontrada num sítio arqueológico na província
canadense de Terra Nova a mais antiga miçanga de
vidro da América do Norte, antecedendo a chegada
de Cristóvão Colombo. Trata-se de uma ocupação vi-
king, que teria sido abandonado por sua população
por volta de 1347 (DUBIN, 1987, p. 271).
4
As miçangas produzidas na região da cidade de Ja-
blonec, República Tcheca, antigamente comerciali-
zadas pela marca Preciosa, passando para Jablonex,
e, hoje em dia, pela LDI, são as preferidas dos povos
indígenas na América Latina por conta de sua unifor-
midade no tamanho e no furo, qualidade e durabili-
dade das cores e resistência do material, conforme
indicam as artesãs indígenas.
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