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RESUMO Nos últimos anos, manifestações contrárias às artes questionaram uma suposta receptividade dos
públicos. O fato de os detratores compartilharem várias características dos contrapúblicos suspendeu a vincula-
ção exclusiva do termo aos públicos progressistas. Mas a mudança não se reduz a uma ampliação de escopo
do conceito; ela vai da ascensão de ultraconservadores à disjunção entre as instâncias normativa e descritiva
que o conceito era capaz de sobrepor. Após revisarmos a teoria de Michael Warner sobre os contrapúblicos,
discutimos os usos do termo pelo campo da arte, para então confrontá-los com duas expressões daquela mu-
dança: o caso
Queermuseu
e a formação de um contrapúblico ultraliberal.
PALAVRASCHAVE contrapúblicos, esfera pública, Michael Warner, Queermuseu, guerras culturais
ABSTRACT In recent years, demonstrations against the arts have questioned the supposed receptivity of the
audience. The fact that detractors share several characteristics of the counterpublics suspended the term’s exclusive
link to progressive audiences. But the change has not just expanded the scope of the concept; it ranges from the
rise of ultraconservatives to the disjunction between the normative and descriptive instances which the concept
was able to conflate. After reviewing Michael Warner’s theory about counterpublics, we discuss the uses of the
term in the field of art, and so confront them with two expressions of that change: the
Queermuseu
case and the
formation of an ultraliberal counterpublic.
KEYWORDS counterpublics, Michael Warner, public sphere,
Queermuseu
, culture wars
Cayo Honorato [Universidade de Brasília, Brasil]*
Diogo de Moraes Silva [Universidade de São Paulo, Brasil]**
MUDANÇA ESTRUTURAL DOS CONTRAPÚBLICOS
EM FACE A
CONTROVÉRSIAS ARTÍSTICOCULTURAIS
The structural transformation of the counterpublics
before
artistic and cultural controversies
La transformación estructural de los contrapúblicos
ante las
controversias artístico-culturales
* Cayo Honorato é Doutor em Educação e Professor Adjunto pela Universidade de Brasília. E-mail: cayohonorato@unb.br, ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5220-0691
** Diogo de Moraes Silva é Doutorando em Artes Visuais pela Universidade de São Paulo. E-mail: diogodemoraes@gmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5124-1355
Cayo Honorato e Diogo de Moraes Silva, Mudança estrutural dos contrapúblicos
em face
a controvérsias artístico-culturais.
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RESUMEN En los últimos años, las manifestaciones contra las artes han cuestionado la supuesta receptividad
de los públicos. El hecho de que los detractores compartan varias características de los contrapúblicos ha sus-
pendido el vínculo exclusivo del término con los públicos progresistas. Pero el cambio no se trata solo de ampliar
el alcance del concepto; va desde la ascensión de los ultraconservadores a la disyunción entre las instancias
normativas y descriptivas que el concepto supo superponer. Después de revisar la teoría de Michael Warner
sobre los contrapúblicos, discutimos los usos del término por parte del campo del arte, para luego confrontarlos
con dos expresiones de ese cambio: el caso
Queermuseu
y la formación de un contrapúblico ultraliberal.
PALABRAS CLAVE contrapúblicos, esfera pública, Michael Warner,
Queermuseu
, guerras culturales
Citação recomendada:
HONORATO, Caio;
SILVA, Diogo de Mo-
raes. Mudança estrutural
dos contrapúblicos
em
face a controvérsias
artístico-culturais. Revista
Poiésis, Niterói, v. 22,
n. 38, p. 309-343, jul./
dez 2021. [https://doi.
org/10.22409/poiesis.
v22i38.47572]. Este
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cial 4.0 Internacional
[CC-BY-NC] © 2021
Caio Honorato e Diogo
de Moraes Silva.
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 309-343, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.47572]
(Submetido: 10/12/2020;
Aceito: 13/5/2021;
Publicado: 7/7/2021)
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INTRODUÇÃO
Tributário da sociedade burguesa, o conceito de
esfera pública
remonta ao século XVIII e designa
originalmente o caráter aberto do debate de ideias
em torno de preocupações comuns, fomentado pela
imprensa e pela cultura do livro. Desenvolvendo-se
fora do domínio do Estado, esse debate, em tese, é
acessível a um público irrestrito de pessoas privadas,
processando-se em contraposição ao poder esta-
tal, mediante argumentação crítico-racional [REPA,
2005]. Essa vocação tem por pressupostos a igual-
dade, a liberdade, a publicidade e a inclusão univer-
sais, que municiam a sociedade civil burguesa na
busca pela transformação da ordem dominante no
Antigo Regime. A principal referência no assunto é o
filósofo Jürgen Habermas [2014 [1962]], para quem o
advento do Estado social de direito, a partir das últi-
mas décadas do século XIX, associado à crescente
massificação das experiências cultural e comunica-
tiva, provocou o que ele chama de uma “mudança
estrutural da esfera pública”.
O presente artigo parafraseia essa
mudança
, cha-
figura marginal da esfera pública: o contrapúblico,
em suas diferentes personificações e irrupções.
Se o bem-estar social, os meios de comunicação
em massa e a indústria cultural produziram altera-
ções profundas na lógica e no funcionamento da
esfera pública – tendo em vista a desarticulação de
sua função crítica pelos imperativos do consumo
cultural e informacional, associados à promiscuida-
de que se estabelece nesse processo entre Estado
e sociedade –, por outro lado, os contrapúblicos
parecem ter trilhado caminhos heteróclitos, cru-
zando obliquamente os padrões e prerrogativas da
esfera pública. Logo, a
mudança estrutural
a que
nos referimos não necessariamente acompanha
as mesmas transformações sofridas pelo ambiente
discursivo em que os contrapúblicos são persona-
gens de exceção.
Embora o surgimento dos contrapúblicos seja
concomitante ao dos públicos crítico-racionais da
esfera pública, eles emergem em reação a supos-
tos consensos sociais de maneira notadamente
descontínua e imprevista – o que tende a lhes atri-
buir um caráter duplamente progressista. Acompa-
nhando, porém, algumas de suas manifestações
mais recentes, particularmente em relação ao cam-
po das artes, verificamos que a contrapublicidade
[
counterpublicness
] vem sofrendo mudanças que
solicitam uma revisão de seu progressismo. Nesse
sentido, é também nossa compreensão acerca
dos contrapúblicos que deve mudar, de modo a
considerar a heterogeneidade de seus pleitos e
Cayo Honorato e Diogo de Moraes Silva, Mudança estrutural dos contrapúblicos
em face
a controvérsias artístico-culturais.
mando atenção para sua incidência relativa a uma
312
performances nos lugares em que os discursos
públicos se entrecruzam e se referenciam. Na se-
ção seguinte, buscamos discutir detalhadamente o
entendimento de Michael Warner sobre o conceito.
A revisão um pouco extensa se justifica por duas
razões: o autor ainda não foi suficientemente tradu-
zido para o português
1
e, como iremos demonstrar,
uma interpretação parcial de suas ideias tem sido
recorrente em diferentes campos.
1. OS CONTRAPÚBLICOS
SEGUNDO MICHAEL WARNER
Embora reconheça que
Habermas jamais adotou
uma concepção unitária de público, ou ainda, que
sua reflexão sempre enfatizou diferentes tipos de
discurso público, das conversas de bar à crítica de
arte, Michael Warner [2005] entende que o filósofo
terminou confundindo, em seu livro
Teoria do agir
comunicativo
[1981], o exercício da razão pública
com a argumentação tête-à-tête. Assim, acabou
desconsiderando o que de certo modo havia reco-
nhecido no
Mudança estrutural da esfera pública
[1962]: que o público corresponde tanto a um modo
de endereçamento quanto a uma audiência inde-
terminada. Mas o que Habermas principalmente ig-
norou foi que alguns públicos são definidos por sua
tensão com um público mais amplo, pelo conflito
com as normas de seu próprio ambiente cultural – o
que para Warner representa uma primeira caracte-
rística dos contrapúblicos.
Segundo o autor, os contrapúblicos são públicos que
têm alguma consciência de seu status marginal e
subordinado; que se organizam por “disposições ou
protocolos alternativos”; que se mostram abertos às
dimensões poéticas, afetivas e expressivas da lin-
guagem; que “se definem por meio de […] performan-
ces tipicamente corporificadas” [WARNER, 2005, p.
103].
2
Inicialmente, seus exemplos são o movimento
feminista, as culturas gay e lésbica, e o discurso
afeminado [WARNER, 2005, p. 55-63]. No entanto,
porque tais exemplos são frequentemente associa-
dos a uma subcultura, sua relação com o sentido de
contrapúblicos precisa ser mais bem esclarecida.
Para Warner, os termos não se recobrem inteira-
mente. Nesta seção, revisaremos tanto a relação
dos contrapúblicos aos conceitos de esfera pública
[em sentido habermasiano] e público discursivo [em
sentido warneriano], quanto às diferenças “internas”
entre os diferentes tipos de contrapúblicos, nota-
damente, entre os contrapúblicos subalternos e os
contrapúblicos performativos e, depois, entre contra-
públicos progressistas e conservadores. Entre esses
conceitos e posições, há tanto diferenças quanto
pontos em comum, de modo que os binarismos aqui
perdem qualquer utilidade.
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 309-343, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.47572]
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Assim como os públicos da esfera pública, os con-
trapúblicos possibilitam um horizonte de opinião
e troca, relacionam-se criticamente com o poder,
têm uma extensão indefinida, são mediados pela
imprensa, entre outros meios e redes mais difusas.
No entanto, ao contrário dos públicos, são frequen-
temente pensados como
subalternos
.
3
Warner
esclarece que nem todos os contrapúblicos podem
ser caracterizados dessa forma.
Os exemplos a que ele recorre
para demonstrá-lo são alguns
públicos juvenis ou artísticos
que operam como contrapúbli-
cos, mas não são exatamente
subalternos. Isso significa que os
contrapúblicos não necessaria-
mente representam identidades
subalternas em sentido substan-
tivo, que estariam constituídas
previamente. Eles são entidades
performativas
. Sua participação
no discurso público, no tempo
em que ela se dá, é essencial à
sua caracterização como tal. Por
meio dela, sua “identidade” se
forma e se transforma [WARNER,
2005, p. 56-7].
Um exemplo dessa performatividade transformado-
ra é a Casa Susanna, um clube de
drag queens
que,
entre os anos 1950 e 60, se reunia em uma casa em
Nova Jersey.
4
Nesse ambiente doméstico, o contexto
privado é subvertido pela ambição de “um tipo dife-
rente de publicidade”. O lugar corresponde a um
espaço protopúblico de “improvisação coletiva”, no
qual a transformação identitária parece depender
Fig. 1:
Camera Club
, Nova Jersey, 1962.
Fonte: SWOPE, Robert, HURST, Michael.
Casa Susanna
, 2005.
Cayo Honorato e Diogo de Moraes Silva, Mudança estrutural dos contrapúblicos
em face
a controvérsias artístico-culturais.
314
de uma relação com outros públicos. Em uma de
suas sessões de glamourização [fig. 1], as
habitués
da Casa posam umas para as outras, cada qual
empunhando uma câmera fotográfica. A imagem
ilustra a capa do livro
Publics and Counterpublics
.
As câmeras sugerem que a cena pode ser vista por
um sem número de estranhos, inclusive por quem
as veria como “monstros do descaramento”. Desse
modo, forjam um ambiente simultaneamente íntimo
e público, no qual as retratadas experimentam seus
corpos de um modo que não seria possível sem
aquele “testemunho”. Assim, questionam o próprio
sentido do que é público [WARNER, 2005, p. 13-4].
Em substituição aos públicos da esfera pública,
Warner propõe o conceito de “públicos discursivos”,
5
dos quais os contrapúblicos se diferenciam, mas
sem deixar de compartilhar algumas características.
Mais do que constatar, representar e veicular iden-
tidades ou interesses prévios, ambos constituem,
performam e medeiam identidades ou interesses
na
esfera pública. Nesse sentido, a circularidade
entre públicos e discurso também é essencial aos
contrapúblicos.
6
Diferentemente dos públicos, no
entanto, os contrapúblicos elaboram “novas formas
de cidadania […] no sentido de uma participação
ativa na construção de um mundo coletivo por meio
dos públicos de sexo e gênero” [WARNER, 2005, p.
57]. Assim, transformam o lugar estigmatizado de
suas vidas “privadas”, de um modo que os diferen-
cia dos públicos da esfera pública. Enquanto estes
públicos supostamente constituem suas identidades
no âmbito privado e debatem questões comuns de
maneira crítico-racional, a partir da colocação entre
parênteses de seus interesses pessoais, domésti-
cos e familiares, os contrapúblicos constituem suas
“identidades” em público.
Ainda segundo Warner, essa compreensão da
performatividade dos contrapúblicos é responsável
pela reabilitação de Hannah Arendt no âmbito da
crítica feminista, para quem a filósofa represen-
tava um pensamento “masculino”, que aparente-
mente ignorava a reivindicação do pessoal como
político. Para Arendt, a vida política consistiria na
modelação pública de um mundo em comum – o
que não significa pôr de lado a individualidade e
a privacidade, nem simplesmente estendê-las ao
mundo público, mas sim abri-las a um processo de
transformação por meio daquela modelação, onde
as diferentes individualidades atuam umas sobre as
outras, nas melhores situações, agonisticamente.
Arendt nesse momento se opõe ao totalitarismo
tanto quanto ao liberalismo. Certamente, o exercí-
cio daquela modelação pública também é limitado
pelas assimetrias da sociedade massificada. Para
Warner, no entanto, o movimento feminista e a
cultura
queer
representam modelos típicos desse
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 309-343, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.47572]
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processo. Em vez de se comportarem como se a
sociedade fosse uma extensão da família ou da
vizinhança, eles
parecem dispostos a elaborar
mundos em comum e se transformar nesse proces-
so, a partir do intercâmbio de pontos de vista com
estranhos, questionando o caráter excludente das
normas de participação num determinado contexto
[WARNER, 2005, p. 58-61].
A par da necessidade de se entender concretamente
as condições que medeiam o trabalho transfor-
mativo dos contrapúblicos, Warner conclui que,
ao elaborar cenas coletivas para que as pessoas
saiam do armário”, os contrapúblicos de gênero e
sexualidade elaboram novas privacidades, corpos,
cidadanias – que não guardam relação com a casa,
o matrimônio, o parentesco, a propriedade, a nação
[WARNER, 2005, p. 49-50, 116 e 199]. Nesse proces-
so, podem certamente provocar “reações viscerais”,
inclusive porque a visceralidade, enquanto corpo-
ralidade expressiva, é uma das manifestações que
eles buscam tornar publicamente relevante. Essas
provocações também evidenciam contradições pre-
sentes na insistência em se manter uma oposição
absoluta entre intimidade e publicidade [no sentido
de
publicness
], quando a orientação para estranhos,
mesmo em nossas atividades mais íntimas, é uma
das dimensões mais significativas do imaginário
moderno [WARNER, 2005, p. 76 e 200-1].
Após ser discutido no fim do capítulo
Public and
Private
, o tema será retomado nas duas últimas
seções do capítulo
Publics and Counterpublics
, no
momento em que Warner avalia a relação do clube
She-Romps
ao periódico
The Spectator
: “trata-se
de uma cena onde um grupo dominado pretende
recriar-se como público, mas que, ao fazê-lo, entra
em conflito não só com o grupo social dominan-
te, mas com as normas que constituem a cultura
dominante como público” [WARNER, 2005, p. 112]. É
preciso aqui apresentar minimamente cada um dos
atores envolvidos – o que faremos a seguir. Portan-
to, mais do que uma oposição a grupos ideologica-
mente distintos, os contrapúblicos se caracterizam
pelo questionamento das normas que possibilitam
a existência de públicos dominados e dominantes.
Segundo Warner [2005, p. 112-3], “porque elas [ce-
nas como a do
She-Romps
] diferem marcadamente
[…] das premissas que permitem à cultura dominan-
te se entender como público, elas passaram a ser
chamadas de contrapúblicos”.
The
Spectator
foi um jornal diário, publicado em
Londres entre 1711 e 1712, no qual leitores [reais ou
fictícios] publicavam suas opiniões sobre assun-
tos diversos: gosto, moda, maneiras, relações de
gênero etc. Ao discutir questões privadas por meio
de procedimentos impessoais, o periódico não só
conferia relevância pública a essas questões, como
Cayo Honorato e Diogo de Moraes Silva, Mudança estrutural dos contrapúblicos
em face
a controvérsias artístico-culturais.
316
atribuía a seus participantes um tipo de generali-
dade que até então era privilégio do Estado ou da
Igreja. Trata-se de um dos primeiros periódicos a
desenvolver uma “reflexividade sobre sua própria
circulação”, ao coordenar relações entre diferentes
leitores, resultando na produção de um “público
geral”. Essa impessoalidade, no entanto, embora
se dirigisse a qualquer um, reivindicando ser a voz
da sociedade civil, representava um contexto de
recepção prioritariamente masculino. De fato, uma
série de requisitos materiais, linguísticos e sociais
condicionam sua circulação entre estranhos. Se,
por um lado, isso contradiz os postulados de uma
circulação indefinida, reforçando a ideia de uma
apropriação particular, por outro, não evita que ou-
tros públicos se imiscuam naquele contexto mascu-
lino [WARNER, 2005, p. 98-108].
Segundo Warner, uma tensão intrínseca ao discur-
so público – entre abertura e fechamento – impede
que suas estratégias de dominação, no sentido de
postular
um
público como sendo
o
público, sejam
completamente bem-sucedidas. Tais estratégias
são contudo visíveis, na forma como o periódico,
a fim de assegurar sua legitimidade, representa
cenas à margem de seu próprio público. É nesse
contexto que a carta de uma das
She-Romps
é
publicada no nº 217 do
Spectator
. Suas integrantes
se encontravam à noite, uma vez por semana, num
quarto alugado para esse propósito. Nesses encon-
tros se despiam da discrição com que ser mulher
lhes obrigava a se comportar em público. Podiam
ser rudes como homens, jogar fora as amarras do
decoro, arrancar as roupas umas das outras. Mas
o espaço que o
Spectator
lhes reserva não signifi-
ca que ele as tem como público, muito menos que
aprove seu estilo de sociabilidade, considerado
demasiadamente corporal, agressivo e sexualiza-
do. Entre o público feminino, o periódico espera no
máximo inspirar conversas à mesa de chá, que não
questionassem seu modelo de sociabilidade poli-
da. Segundo Warner [2005, p. 111], “é a recusa de
quaisquer normas familiares para a sociabilidade
entre estranhos, mais do que a feminilidade, que faz
delas uma contraimagem dos públicos”.
Ao mesmo tempo, os contrapúblicos não estão
imunes às críticas que fazem aos públicos dominan-
tes. Afinal, também são públicos; trabalham com os
mesmos postulados de circulação e circularidade,
formam-se através da mesma sociabilidade entre
estranhos – o que também significa que eles com-
partilham das mesmas contradições presentes na
organização dos públicos, relativas às exclusões que
praticam e suas limitações ideológicas. Para Warner,
por exemplo, os contrapúblicos podem providenciar
um sentido de “pertencimento” que mascara o fato
de que eles não teriam um poder de atuação muito
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 309-343, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.47572]
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decisivo na sociedade capitalista. Em todo caso,
esse imaginário do endereçamento público é esta-
belecido por meio de uma ética do estranhamento
e uma poética do
social, que de algum modo trans-
formam tanto o
Spectator
quanto o
She-Romps
. Ao
projetar a circulação entre estranhos como uma en-
tidade social endereçável, o discurso público põe em
risco o próprio mundo concreto que o sustenta, uma
vez que esse mundo pode não ser completamente
confirmado por aquela entidade. Essa estrutura con-
traditória não só determina sua instabilidade formal,
como abre espaço para eventuais estranhamentos e
reconfigurações [WARNER, 2005, p. 113].
Certamente, o fato de os contrapúblicos serem
mais abertamente orientados para as dimensões
poético-expressivas da linguagem é constante-
mente apagado pelo que Warner chama de uma
“ideologia da linguagem”. Essa ideologia caracteri-
za o discurso público enquanto diálogo entre inter-
locutores previamente constituídos, assim como a
circulação enquanto espaço de deliberação crítico-
-racional. Seus pré-requisitos e protocolos discursi-
vos possibilitam a confiança moderna na sociabili-
dade entre estranhos, característica da circulação
pública. Porém, ela deriva, segundo Warner, de uma
questionável transposição das faculdades do leitor
privado para um horizonte geral de opinião pública,
cuja capacidade de oposição ao poder estatal tem
na racionalidade crítica sua principal avalista. No
caso dos contrapúblicos, em função da sua expres-
sividade e corporalidade, essa transposição não
goza da mesma credibilidade. Sendo assim, uma
vez estabelecidos os pressupostos da “opinião pú-
blica”, todos os públicos tendem a ser assimilados
como parte
do
público, no sentido de um espaço
unitário [WARNER, 2005, p. 115-7].
Mas a univocidade do público, como dissemos,
depende de uma série de protocolos para delimitar
sua extensão potencialmente infinita. Os públicos
que dominam tais protocolos terminam represen-
tando mais do que outros aquilo que consideramos
o
público. Certamente, muitos desses públicos não
se veem como a nação nem como a humanidade;
são públicos especializados, profissionais ou locais,
que participam do público em geral e até podem se
considerar seus membros mais representativos. Po-
rém, alguns públicos se distinguem inegavelmente
do público em geral. Neste ponto, Warner se refere
à caracterização dos “contrapúblicos subalternos”
por Nancy Fraser, para quem eles constituem “are-
nas discursivas paralelas onde membros de grupos
sociais subordinados inventam e circulam contra-
discursos, que por sua vez lhes possibilitam formu-
lar interpretações de suas identidades, interesses e
necessidades em sentido opositor” [FRASER, 1990,
p. 67; FRASER
apud
WARNER, 2005, p. 118]. Fraser
Cayo Honorato e Diogo de Moraes Silva, Mudança estrutural dos contrapúblicos
em face
a controvérsias artístico-culturais.
318
dá como exemplo o contrapúblico feminista do fim
do século XX, com suas revistas, livrarias, editoras,
redes de distribuição, centros de pesquisa etc. Mas
o que faz desse público um contrapúblico?
Para Warner, a filósofa entende que os públicos não
são unitários, mas os descreve de modo seme-
lhante a Habermas, como sendo crítico-racionais.
Além disso, ela os descreve com base em suas
identidades, desreconhecendo tanto sua dimen-
são performativa quanto sua dimensão poético-
-expressiva. Por sua vez, Warner entende que o
caráter opositor dos contrapúblicos não pode ser
uma função apenas de seu conteúdo. Fosse o caso,
sua diferença para os públicos especializados se
resumiria a um programa político particular. Ambos
seguiriam os mesmos protocolos crítico-racionais,
com a “diferença” de que os contrapúblicos teriam
um caráter opositor. Além disso, Warner pergunta
por que deveriam estar limitados a públicos “subal-
ternos”. Ou ainda, de que modo se diferenciariam
dos fundamentalistas cristãos, por exemplo. Afinal,
estes públicos também formulam interpretações
opositoras de suas identidades, organizam-se por
protocolos diferentes daqueles praticados noutros
lugares, tiram diferentes conclusões a respeito do
que pode ou não ser dito. Ainda se referindo aos
fundamentalistas cristãos, Warner afirma que “tais
públicos são de fato contrapúblicos,
em um sentido
mais forte
do que aquele abrangendo subalternos
com um programa reformista” [WARNER, 2005, p.
119, grifo nosso].
A afirmação pode nos surpreender. Ela reconhece
os fundamentalistas religiosos como contrapúbli-
cos “em um sentido mais forte” do que o público
subalterno feminista. Warner não a desenvolve
no livro, mas afirma em entrevista recente que
sua pesquisa atual é sobre “como os primeiros
evangélicos podem ser entendidos como um tipo
de contrapúblico” e, mais adiante, que “a
alt-right
pode ser vista como uma versão disso [do contra-
público]” [WARNER, 2018]. Em todo caso, este é o
sentido do termo que ele termina defendendo no
livro: os contrapúblicos têm alguma consciência
de seu status subordinado; o horizonte cultural
contra o qual eles se opõem não é só o de um
público geral ou mais amplo, mas o de um públi-
co dominante; sua oposição não se limita a um
conflito de ideias, mas se estende aos gêneros
discursivos, aos modos de endereçamento, à hie-
rarquia dos meios; o discurso que o constitui não
é simplesmente alternativo ao público dominante,
mas considerado muitas vezes como hostil ou
indecoroso; sua relação conflitiva com o público
dominante traz para um primeiro plano o caráter
poético-expressivo de seu discurso [WARNER,
2005, p. 119-20].
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 309-343, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.47572]
319
A partir desse ponto, os exemplos de Warner são
os públicos gay ou
queer
. O tema será retomado
no capítulo
Sex in Public
, em uma seção intitulada
Queer Counterpublics
, cujo projeto de mundo inclui
“modos de sentir que podem ser aprendidos mais
do que experimentados como um direito inato”
[WARNER, 2005, p. 198]. Assim como os públi-
cos, os contrapúblicos se constituem por meio do
endereçamento a estranhos indeterminados, mas
diferentemente do discurso público, os contrapú-
blicos se endereçam a estranhos como não sendo
quaisquer pessoas, eis que seus públicos são,
antes de mais nada, marcados socialmente por sua
participação num tipo de discurso do qual muitas
pessoas não querem participar. Um discurso que se
endereça a “qualquer um” como gay ou
queer
pode
circular livremente, até o ponto em que se depara
com algum incômodo, resistência ou reação, como
veremos mais adiante no caso
Queermuseu
. Nesse
processo, a luta individual contra o estigma social
é transposta para um conflito entre modalidades
daquilo que é público [
publicness
]. Em resumo, “os
contrapúblicos são ‘contra’ na medida em que bus-
cam providenciar diferentes maneiras de imaginar
a sociabilidade entre estranhos e sua reflexividade”
[WARNER, 2005, p. 121-2].
Como já indicamos, “o status subordinado de um
contrapúblico não reflete simplesmente identida-
des formadas noutro lugar; a participação […] é uma
das maneiras pelas quais as identidades de seus
membros são formadas e transformadas” [WAR-
NER, 2005, p. 121]. Desse modo, mesmo quando de-
safiam a hierarquia social entre a faculdade crítico-
-racional e a poético-expressiva, os contrapúblicos
projetam o espaço da circulação discursiva entre
estranhos como uma entidade social na qual suas
próprias subjetividades são modeladas. Portanto,
para que os fundamentalistas sejam contrapúblicos
no sentido atribuído por Warner, precisariam de
algum modo performar essa disponibilidade para
modelar e ser modelado, em vez de simplesmen-
te projetar a sociedade como extensão de seus
valores identitários, familiares ou comunitários. Do
mesmo modo, essa disponibilidade não é algo que
pertença essencialmente aos públicos gay e
queer
,
que eventualmente se organizam para defender
identidades previamente concebidas, assim como
fazem os públicos subalternos de Fraser.
No caso do
She-Romps
,
essa disponibilidade
aparece na iniciativa de uma de suas integrantes
– que assina “Kitty Termagant” – de escrever uma
carta para o
Spectator
, relatando suas atividades
em um quarto alugado, que também pode ser visto
como um lugar protopúblico. Chama a atenção
sua dificuldade para traduzir o que experimen-
tam: “Não sou capaz de expressar o prazer de que
Cayo Honorato e Diogo de Moraes Silva, Mudança estrutural dos contrapúblicos
em face
a controvérsias artístico-culturais.
320
gozamos, das dez horas da noite às quatro da
manhã [...]” [TERMAGANT
apud
WARNER, 2005, p.
109]. Em seguida, ela lista os “trapos e farrapos”
que costumam restar no chão após seus jogos
libidinosos: “leques quebrados, anáguas rasga-
das, restos de toucados, babados, rendas, ligas e
aventais de trabalho”, despojos que elas chamam
de “homens mortos” [TERMAGANT
apud
WARNER,
2005, p. 109-10]. Há nisso um
esforço de transpo-
sição
. A demanda do
She-Romps
não é publicizar
«atos privados de leitura», como faz o público do
Spectator
. Elas almejam “abrir a intenção transfor-
madora de suas reuniões ao distanciamento críti-
co do discurso público” [WARNER, 2005, p. 112]. A
opacidade entre os protocolos discursivos de cada
público é tamanha que Termagant decide abrir
uma exceção às regras do
She-Romps
, convidan-
do o “Sr.
Spectator
para testemunhar “pessoal-
mente” suas cenas noturnas, para que tenha “uma
verdadeira noção do nosso esporte” – convite que
é peremptoriamente recusado.
Os contrapúblicos se caracterizam, entre outras
coisas, por essa disposição para se transformar
entre estranhos. Enquanto os públicos dominantes
tomam suas pragmáticas discursivas e mundos
vitais como pressuposto, os contrapúblicos são
espaços de circulação nos quais se pressupõe
uma transformação do próprio espaço da vida
pública. Nesse sentido, Warner admite que os
públicos gay e lésbico, ao se transformarem em
movimentos sociais atuantes frente ao Estado,
adaptando-se para isso à pragmática do discurso
crítico-racional, parecem ter ignorado ou mesmo
recusado o caráter contrapúblico que os marcou
historicamente. Mais do que isso, ignoraram uma
condição fundamental do público discursivo, que é
ser organizado independentemente de instituições
formais de cidadania preexistentes [WARNER,
2005, p. 68]. Os contrapúblicos lutam para que a
sociabilidade corporificada, o afeto e o jogo, en-
quanto atividades que não correspondem à trans-
posição de atos privados de leitura, tenham um
papel mais decisivo na constituição das relações
político-sociais – o que requer tanto uma contrai-
deologia da linguagem, quanto outro imaginário
social [WARNER, 2005, p. 122-4].
Antes de retomarmos o problema dos “contrapúbli-
cos fundamentalistas”, que será objeto da quarta
seção, parece-nos oportuno revisar de que modo
os contrapúblicos têm sido associados aos públi-
cos progressistas. Para isso, analisamos na próxi-
ma seção os usos do termo no/pelo campo da arte,
onde suas ocorrências, apesar de situadas cultural
e institucionalmente, podem refletir dinâmicas
sociodiscursivas mais abrangentes. Precisamos
ainda considerar que, embora os públicos [e contra-
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 309-343, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.47572]
321
públicos] discursivos não possam ser confundidos
com formações concretas [isto é, com pessoas que
compartilham um mesmo espaço físico], tanto os
frequentadores quanto os detratores da arte em
museus e exposições participam de um público dis-
cursivo. Voltaremos a isso na terceira seção, onde
abordamos o caso
Queermuseu
, no qual aquelas
dimensões [discursiva e concreta] se encontram
sobrepostas.
2. USOS DO CONTRAPÚBLICO
NO/PELO CAMPO DA ARTE
A noção de contrapúblico tem figurado no debate
da arte contemporânea das duas últimas décadas,
sobretudo a partir de sua retomada por Michael
Warner. Alguns de seus primeiros disseminado-
res nesse campo foram o curador, crítico de arte
e professor dinamarquês Simon Sheikh [2008,
2009, 2015] e o crítico de arte e ativista cultural
catalão Jorge Ribalta [2004]. Sheikh se envolveu
longitudinalmente com o tema e seu trabalho teve
alguma repercussão no Brasil. Ribalta foi chefe do
Departamento de Atividades Culturais do Museu de
Arte Contemporânea de Barcelona [MACBA], entre
1999 e 2009, quando integrou o comitê editorial da
coleção que traduziu o capítulo
Publics and Coun-
terpublics
para o espanhol.
7
Mais recentemente,
encontramos apropriações do termo pelo filósofo
e professor brasileiro Rodrigo Nunes [2015], entre
outros. Além das referências ao trabalho de War-
ner, os textos da área de artes também se referem
a Nancy Fraser [1990] e, com menor frequência, ao
trabalho seminal de Oskar Negt e Alexander Kluge
[1993 [1972]]. Embora Warner faça uma referência
muito pontual a estes dois autores, devemos credi-
tar a eles o pioneirismo do conceito.
Avaliamos que, do ponto de vista da recepção dos
discursos artísticos [representativos das práticas ar-
tísticas, curatoriais e institucionais] pelos contrapú-
blicos, a utilização do termo tem se dado de maneira
parcial, senão problemática. Como procuramos de-
monstrar, alguns daqueles autores pressupõem que
seria possível se associar, interagir e colaborar com
os contrapúblicos. Se, por um lado, isso corresponde
a uma abertura politicamente bem-intencionada,
por outro, negligencia a contrapublicidade naquilo
que ela tem de auto-organizado e incongruente com
as agendas artístico-institucionais. Nos exemplos
que vamos comentar [Ribalta, Sheikh e Nunes], o
modo imprevisível e desafiador com que tais agen-
das são confrontadas pelos contrapúblicos resta
surpreendentemente ausente ou é simplesmente
aludido, como se fosse algo secundário.
Ribalta recorre ao conceito no ensaio
Contrapúbli-
cos. Mediación y construcción de públicos
[2004],
Cayo Honorato e Diogo de Moraes Silva, Mudança estrutural dos contrapúblicos
em face
a controvérsias artístico-culturais.
322
em que comenta diferentes projetos desenvolvidos
pelo MACBA naquele momento, junto a comunida-
des locais. Sheikh, por sua vez, utiliza o conceito
em uma quantidade de textos sobre curadoria na
contemporaneidade.
No lugar da esfera pública?
Ou o mundo em fragmentos
[2008] questiona a
esfera pública de matriz liberal-burguesa, reunindo
projetos artísticos e curatoriais que a concebem
em termos fragmentários e contrapúblicos. Parte
dessas ponderações também integra o texto
Sobre
a produção de públicos ou arte e política em um
mundo fragmentado
[2009], que problematiza os
públicos das exposições de arte. Já no texto
A Long
Walk to the Land of the People: Contemporary Art
in the Spectre of Spectatorship
[2015], que mais
abertamente se dedica à recepção artística pelos
públicos, Sheikh curiosamente não utiliza o concei-
to – embora se refira ao
Publics and Counterpublics
de Warner. Nunes emprega essa categoria no texto
Por uma política de contracafetinagem
[2015], no
qual analisa formas de colaboração, negociação
e captura entre, de um lado, públicos institucional-
mente legitimados e, de outro, os contrapúblicos.
A despeito de como cada autor se refere ao con-
ceito, chama a atenção que todos atribuam aos
contrapúblicos um caráter progressista. Além
disso, tendem a concebê-los como comunidades
subalternizadas com as quais artistas, curadores
e educadores colaboram em projetos politicamen-
te engajados. Desse modo, como já sugerimos,
pressupõem que os contrapúblicos possam ser
conclamados ou mesmo fortalecidos por agentes
institucionais, a partir da sua posição no siste-
ma da arte, reverberando ou mesmo suprindo as
reivindicações de segmentos minorizados. Pressu-
põem ainda que os contrapúblicos, ao se envolver
com a esfera pública da arte, pudessem desafiar
ou mesmo transformar os regimes de visibilidade
vigentes nesse contexto. É nesse sentido que Shei-
kh salienta o caráter oposicional dessas forma-
ções, assim como sua disposição para modificar
os lugares em que incidem:
Contrapúblicos podem ser entendidos como forma-
ções particulares paralelas de um caráter menor
ou até mesmo
subordinado
, onde outros discursos
e práticas, até mesmo opostos, podem ser formu-
lados e circular. Onde a clássica noção burguesa
de esfera pública exigia universalidade e raciona-
lidade, contrapúblicos frequentemente exigem o
oposto e, em termos concretos, frequentemente
implicam uma
subversão dos espaços existentes
em outras identidades e práticas
. [SHEIKH, 2008, p.
130, grifos nossos]
A subalternidade associada à possibilidade de
subversão e uso heterotópico dos espaços públicos
e plataformas discursivas – sendo o museu de arte
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 309-343, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.47572]
323
um lugar emblemático dessa conjugação – tam-
bém é valorizada por Ribalta. Destacando trechos
de
Rethinking the Public Sphere
, de Fraser, o autor
parece prescindir dos “contrapúblicos performa-
tivos” de Warner em benefício do conceito mais
estável “contrapúblicos subalternos”, cunhado
pela filósofa para se referir a espaços de “retiro e
reagrupamento” e, ao mesmo tempo, “preparação
para atividades de agitação”, no caso, destinadas
a públicos não exclusivamente feministas [FRASER
apud
RIBALTA, 2004, p. 3-4].
Apesar da tendência para substantivar o contrapú-
blico e do caráter “reformista” que o termo adquire
na argumentação de Fraser [cf. WARNER, 2005, p.
119], sua vocação supostamente emancipatória e
seu endereçamento aos públicos em sentido mais
abrangente são dimensões presentes também no
ensaio de Nunes. O filósofo destaca o caráter múlti-
plo dos contrapúblicos, sugerindo que suas cola-
borações com os agentes da arte correspondem a
iniciativas marcadamente políticas:
Optar por falar em contrapúblicos plurais em detrimento do público em geral […] não é uma
simples opção por privilegiar o particular diante do universal, mas deriva de uma tomada de
posição em relação ao lugar que a arte deve ocupar ao intervir em um processo social e
político. [...] Ao invés de falar para o público a respeito do contrapúblico, o papel poli-
ticamente mais relevante que a arte pode assumir envolve um compromisso com ampliar
a capacidade que o contrapúblico pode ter de falar por si mesmo e de agir sobre suas
condições de existência e de fala, transformando-as. [NUNES, 2015, p. 1-2, grifos nossos]
Sem entrar no mérito dos critérios e estratégias
adotados pelas iniciativas de ampliação das possi-
bilidades de transformação das cenas discursivas
dominantes pelos contrapúblicos, salientamos que,
nas análises em questão, eles são considerados
como necessariamente progressistas e potencial-
mente emancipatórios, dada a posição marginal
que lhes é socialmente imputada e o desejo de
transformação que supostamente trazem con-
sigo. Nos textos em questão, os contrapúblicos
aparecem objetivamente caracterizados como
habitantes de favela, minorias sexuais e de gêne-
ro, militantes anticapitalistas, imigrantes, ativistas
sociais, menores em situação de rua, associações
de vizinhos etc. Daí sua importância, conforme a
ótica dos autores arrolados, para os processos de
abertura e pluralização almejados pelos agentes e
instituições do sistema da arte.
Observamos, porém, uma dissonância entre o
entendimento que os três autores têm do conceito e
a compreensão do próprio Warner. Nota-se nos
autores uma tendência
para associar os contrapú-
blicos à ideia de
comuni-
dades
, ou seja, a corpos
coletivos identificáveis ou
passíveis de serem produ-
zidos enquanto tal. Como
Cayo Honorato e Diogo de Moraes Silva, Mudança estrutural dos contrapúblicos
em face
a controvérsias artístico-culturais.
324
já aventamos, os contrapúblicos podem até perfor-
mar esse papel, mas não em função de
pertence-
rem
a uma comunidade e sim, em virtude do modo
como se relacionam aos discursos. Dessa forma,
sua contrapublicidade deve ser vista como relacio-
nal e contingente, em vez de algo dado de antemão,
como sugere a proposta de “colaboração com
contrapúblicos”. Conforme a ressalva de Warner:
[…] [a cultura queer na qual se baseia o conceito de contrapúblico] difere da
comunidade ou do grupo, já que necessariamente inclui mais pessoas do que
aquelas que podem ser identificadas, mais espaços do que aqueles que podem
ser mapeados para além de uns poucos pontos de referência, modos de sentir
que podem ser aprendidos mais do que experimentados como um direito inato.
[WARNER, 2005, p. 198, grifo nosso]
Além da interpretação comunitarista que perpassa
os ensaios em questão, um segundo aspecto coinci-
dente em suas análises pode ser problematizado: a
ideia de que os contrapúblicos são chamados a se
envolver com a arte e suas instituições
mediante
as
iniciativas dos agentes que operam nessas institui-
ções – por mais que elas sejam conscientes dos
problemas de representação aí envolvidos. É o que
se pode notar quando Ribalta detalha parte da ação
do Departamento de Atividades Culturais do MACBA:
ou com ONGs que trabalham com crianças e adolescen-
tes de rua. [...] Toda essa atividade não se limita ao bairro,
uma vez que é parte de um contexto mais amplo de
pensar e praticar modos pelos quais o museu possa
contribuir para a reconstrução de uma esfera pública
radicalmente democrática e, portanto, possa exercer um
papel central na vida da cidade. [RIBALTA, 2004, p. 2]
Essa forma de uso da instituição artística, voltada
explicitamente para o fomento de uma esfera
pública plural e participativa a
partir da “colaboração com contra-
públicos”, também é patente nas
ideias de Sheikh sobre as práticas
curatoriais politicamente motiva-
das e sua busca por reimaginar as
instâncias de interação social e discursiva. Para ele,
a produção de exposições comprometidas com a
transformação progressista da esfera pública
pressupõe a adoção de um horizonte contrapúblico:
Enquanto a noção burguesa de esfera pública lutou por
racionalidade e universalidade, os contrapúblicos geralmen-
te reivindicam o oposto e, em termos concretos, isso quase
sempre vincula a mudança de espaços existentes [a] outras
identidades e práticas, [assim como a] um estranhamento do
espaço. Essa tem sido a forma pela qual as exposições
feministas contemporâneas usam a instituição de arte como
espaço para uma noção diferente de espetacularização e
articulação coletiva [...], o que Marion von Osten descreve
como a “produção de exposições enquanto estratégia do
contrapúblico”. [SHEIKH, 2009, p. 84]
[...] Desenvolvemos projetos com comunidades específicas
no bairro. Por exemplo, com grupos que trabalham com
prostitutas de rua para alcançar reconhecimento legal […],
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 309-343, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.47572]
325
Fica evidente, tanto na descrição de Ribalta
quanto na visão de Sheikh [e de von Osten, por
extensão], uma aposta no aproveitamento das
potencialidades políticas ensejadas pela institui-
ção artística. Tal oportunidade, assim como as
experiências que ela encoraja, são situadas por
Nunes [2015, p. 1] como uma “tendência observa-
da em práticas artísticas, curatoriais e institucio-
nais na última década em direção a um envolvi-
mento com questões políticas”, desdobrando-se
em um “ativismo artístico contemporâneo” que
se distingue por lidar com “públicos diretamente
mobilizados pelas questões políticas e sociais
com que dialogam”. O caso escolhido pelo autor
para discutir os critérios de avaliação dessa “arte
política” é o “envolvimento de dois anos do Gru-
po Comboio com a comunidade [da Favela] do
Moinho” [NUNES, 2015, p. 8]. O projeto resultante
desse processo foi comissionado pela 31ª Bienal
de São Paulo e decidiu pela reforma do campo de
futebol localizado no meio da favela paulistana
– que já funcionava como o principal espaço de
convivência entre os moradores.
A par dos efeitos que são perseguidos na relação
com públicos e comunidades específicos, é pre-
ciso considerar as aproximações e gestos adota-
dos pelos contrapúblicos
independentemente
de
serem arregimentados pelas instâncias e inicia-
tivas artístico-institucionais, ou que até mesmo
contrariam um progressismo pretensamente
compartilhado. Referimo-nos à possibilidade
de que os contrapúblicos performem atitudes,
discursos e expressões decididamente estranhos
àqueles valorizados pelos artistas, curadores,
educadores etc. O problema, contudo, não reside
apenas no fato de que a lista de contrapúblicos
apresentada pelos autores ignore os “contrapú-
blicos fundamentalistas”, mas principalmente na
ausência do caráter auto-organizado, imprevisí-
vel e confrontador dos contrapúblicos, nas cenas
públicas de enunciação e endereçamento às
quais eles se referem.
Por exemplo, como explicar que Sheikh, em seu
ensaio especificamente dedicado ao “espectro
da recepção” em arte, abra mão da categoria de
contrapúblico? Curiosamente, estão presentes
nesse texto, ainda que de maneira secundária,
personagens notadamente alheios ao progressis-
mo adotado em seus escritos anteriores. Nestes
personagens, ironicamente, é possível flagrar a
emergência de contrapúblicos que, em lugar de
colaborar com os agentes artísticos,
confrontam
suas proposições:
Cayo Honorato e Diogo de Moraes Silva, Mudança estrutural dos contrapúblicos
em face
a controvérsias artístico-culturais.
326
Para os neoconservadores, por exemplo, a emancipação está associada com a pavorosa per-
missividade dos anos 1960, tendo claramente ido longe demais ao deixar outras identidades sa-
írem do armário, por assim dizer. Essa forte reação também afetou a arte contemporânea, desde
os ataques do senador norte-americano Jesse Helms ao trabalho de Robert Mapplethorpe e o
subsequente desmonte do National Endowment for the Arts através dos escritos de figuras como
o crítico Hilton Kramer. [...] Ou ainda, [desde a] designação da arte contemporânea como um
“hobby esquerdista” pelos partidos políticos de direita na Holanda, outrora orgulhosa e presun-
çosamente liberal. [SHEIKH, 2015, p. 256-7, grifos nossos]
Notamos, além disso, que a sua contrapublicidade
se manifesta não exatamente em função do perfil
conservador
a priori
dos personagens evocados,
mas sim de seus discursos antagônicos ao con-
senso progressista em torno da arte. Certamente,
não será possível conceber essa contrapublicida-
de se mantivermos intocada a ideia de que os
públicos representam um desdobramento direto
da imaginação artística, como parece acreditar
Sheikh [2015, p. 263], juntamente com boa parte
da crítica de arte associada à ideia de um público
“participador”: “Os públicos não devem ser enten-
didos apenas como aqueles que frequentam
exposições e programas públicos: eles também
existem como um corpo imaginário que pode a
qualquer momento ser ativado”.
Entendemos que os contrapúblicos não condi-
zem exatamente com as formações imaginadas e
empreitadas pelas práticas artístico-institucionais,
assim como não condizem com as comunidades
que se organizam
para produzir e
difundir discursos
alternativos que
concernem às suas
agendas políticas
prévias. Eles corres-
pondem, isto sim, às
formações que, em atenção a enunciados artísti-
cos percebidos como ameaçadores, por exemplo,
mobilizam-se como que
a posteriori
, respondendo
com discursos e expressões muitas vezes alheios
aos desígnios da arte e seus agentes. Certamente,
ao performar uma contraimagem do público, eles
também lançam mão de plataformas discursivas,
a fim de fazer circular entre desconhecidos os seus
enunciados antagonistas [WARNER, 2005, p. 112]. É
o que, aliás, faz deles
um
público.
3. OS DETRATORES DA ARTE
Neste ponto da discussão, parece-nos importante
calibrar o estatuto “discursivo” do público de arte,
que se caracteriza desse modo não tanto em fun-
ção de sua presença física no ambiente expositivo,
mas, principalmente, em virtude de sua atenção ao
que ali é exibido. O público se faz “discursivo” por
meio dos objetos semânticos que assim o definem.
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 309-343, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.47572]
327
A exemplo dos leitores de jornal, os visitantes de ex-
posição se autoproduzem performativamente como
um
público, no momento em que se relacionam
com os discursos artísticos colocados em cena.
Ao mesmo tempo, são de algum modo projetados
pelas mostras, curadorias e obras, às quais se dedi-
cam com maior ou menor grau de diligência, cons-
tituindo-se voluntária e temporariamente como seu
público. Essa dinâmica define a
circularidade
pró-
pria do discurso público. A relação que aí se estabe-
lece com os objetos artísticos e partidos curatoriais
envolve ainda uma contraparte responsiva. Aqui
entra em cena a
reflexividade
do discurso público,
fomentando produções distribuídas e inter-relacio-
nadas. Na condição de discursividades públicas,
as obras e curadorias artísticas, em última análise,
não se dirigem a alguém em particular, mas a um
público despersonalizado, que refere seus atos de
recepção a uma miríade de outras respostas.
Esse processo de referenciação tece a malha
citacional responsável por conferir publicidade
[
publicness
] a uma exposição de arte. Mas, como
Warner [2005, p. 95] sugere, as “controvérsias”
também fazem parte dessas respostas. Nelas há
posições de discordância ou mesmo de declarado
antagonismo. Elas sinalizam a mesma reflexividade
inerente à circulação dos discursos. Para discutir a
incidência da circularidade e da reflexividade nas
atividades exercidas pelos públicos de exposições
de arte – esfera da qual Warner não se ocupou –,
consideramos os episódios protagonizados por
públicos que, durante o segundo semestre de 2017,
insurgiram-se contra eventos artísticos em diferen-
tes cidades e instituições brasileiras, tendo como
alvos privilegiados algumas exposições de arte
contemporânea. Para avaliar em que medida a no-
ção de “contrapúblicos” condiz com os detratores
da arte, tomamos particularmente como referência
a exposição
Queermuseu: Cartografias da Diferen-
ça na Arte Brasileira
[2017].
No catálogo da mostra, editado por ocasião de sua
remontagem na Escola de Artes Visuais do Parque
Lage no Rio de Janeiro, Gaudêncio Fidelis, seu
curador, relata o que teria resultado no fechamento
da exposição em Porto Alegre. Como amplamente
noticiado, a mostra foi encerrada pelo Santander
Cultural em 10 de setembro de 2017 – um mês antes
da data inicialmente prevista.
8
Segundo Fidelis,
a medida foi tomada pela instituição com “ape-
nas dois dias e algumas horas de manifestações
do Movimento Brasil Livre [MBL]”.
Para o curador,
militantes do grupo teriam entrado na exposição
“produzindo vídeos e fotografias” que serviram
para a construção de “uma narrativa difamatória
de forte caráter moralista sobre a exposição”. Isso
a despeito de se basearem, como Fidelis enfatiza,
Cayo Honorato e Diogo de Moraes Silva, Mudança estrutural dos contrapúblicos
em face
a controvérsias artístico-culturais.
328
em apenas cinco obras da exposição [ESCOLA DE
ARTES VISUAIS DO PARQUE LAGE, 2018, p. 19].
9
Baseando-se na acusação de que a mostra fazia
apologia à zoofilia e à pedofilia, além de blasfemar
símbolos cristãos, essa narrativa se difundiu pelas
redes sociais digitais. Isso demonstra a
circularida-
de
indeterminada dos conteúdos da
Queermuseu
e
a
reflexividade
que ela propiciou enquanto discurso
público. Contudo, a versão de Fidelis omite que não
fora o MBL quem deflagrou os ataques, e que os
mesmos tiveram início em 06 de setembro de 2017.
Considerar o encadeamento citacional em ques-
tão também é importante para se perceber aquela
circularidade e reflexividade. Uma matéria da revista
Época documenta que, na manhã do dia 06, Cesar
Augusto Cavazzola Jr., advogado e professor de
Direito de Passo Fundo [RS], postou um texto de sua
autoria num site de perfil conservador [TAVARES;
AMORIM, 2017]. Suas linhas expõem a indignação
diante da mostra por ele visitada dias antes, expres-
sando repúdio ao que chamou de “ataques à moral e
aos bons costumes”. Sua publicação é considerada
a primeira rejeição rastreada à exposição. Dentre
as iniciativas subsequentes, destaca-se a de Felipe
Diehl, ex-militar e segurança patrimonial de Porto
Alegre, que visitou a mostra no dia da postagem de
Cavazzola Jr. Em vídeo gravado no espaço exposi-
tivo, ele classifica as obras de “putaria” e “sacana-
gem”, além de abordar educadores da exposição,
perguntando se eles eram “tarados” ou “pedófilos”.
Amigo de Diehl, o blogueiro Rafinha BK também
filmou obras
in loco
, fazendo comentários que as
abominavam. Os vídeos viralizaram a partir de suas
postagens no dia 08, sendo sucedidos por um sem
número de manifestações de repúdio à mostra, via
redes sociais e e-mails enviados aos funcionários do
Santander, assim como pela depredação de agên-
cias do banco em diferentes cidades do país.
É somente no dia 10 que o MBL passa a influir – ao
menos publicamente – no curso dos acontecimen-
tos, data em que o Santander encerrou a mostra e
publicou uma nota acerca de sua decisão. A primei-
ra manifestação do grupo sobre o caso se deu por
meio de postagem no
Facebook
, embora Renan
Santos, um dos fundadores do MBL, afirme que a
mobilização via
WhatsApp
havia começado antes,
mesmo que nenhum de seus membros tenha visi-
tado pessoalmente a exposição. Isso sugere que a
campanha difamatória encampada pelo grupo teve
como principais referências o texto de Cavazzola Jr.
e os vídeos de BK e Diehl. O último inclusive chegou
a se mostrar ressentindo com o fato de os créditos
pelo fechamento da exposição terem ficado com o
MBL – identificado por ele como um grupo “socialis-
ta fabiano” [
sic
], que teria uma posição de esquer-
da, comprometida com o Estado provedor.
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 309-343, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.47572]
329
Diante de episódios como esse, com as consequ-
ências que produziu e segue produzindo no am-
biente sociopolítico e cultural brasileiro,
10
é oportu-
no retornarmos à concepção de público de Sheikh
como um corpo imaginário que pode a qualquer
momento ser ativado”. Como observamos, as prer-
rogativas dessa “imaginação ativadora” tendem a
ser reservadas aos agentes da arte, em correspon-
dência a uma renitente positivação dos contrapú-
blicos. Algo dessa lógica se deixa apreender nas
palavras do então Diretor-Presidente da Escola de
Artes Visuais do Parque Lage, Fabio Szwarcwald,
que no texto institucional para o catálogo da expo-
sição alinha a escola carioca às “instituições que
desejam se posicionar à frente do seu tempo [
sic
]
em plena sintonia com o sofisticado público do sé-
culo XXI” [ESCOLA DE ARTES VISUAIS DO PARQUE
LAGE, 2018, p. 10].
11
Considerando o teor suposta-
mente vanguardista e elitista do endereçamento, o
que fazer com os públicos menos “sofisticados” do
agora? Como reconhecer e lidar com os desafios
que eles nos impõem?
Enfrentá-los solicita levar a sério suas ações, dentre
as quais estão os ataques à
Queermuseu
. Como o
próprio Fidelis reconheceu, tais ações revelaram
“posições até então
não imaginadas
como forma
de manifestação e julgamento em relação a uma
exposição de arte” [grifo nosso]. O curador as des-
creve como um “processo difamatório que engo-
liu e submergiu a exposição em um terremoto de
infâmia” [ESCOLA DE ARTES VISUAIS DO PARQUE
LAGE, 2018, p. 47]. São inúmeros os argumentos
que ele apresenta, buscando deslegitimar a onda
detratora: [i] a incoerência com a narrativa origi-
nal da exposição e sua estrutura conceitual; [ii] o
equívoco e falsidade das informações circuladas,
estranhas à natureza da exposição; [iii] o engaja-
mento majoritariamente descolado da frequenta-
ção presencial à mostra; [iv] a eleição de um peque-
no número de obras ou detalhes para generalizar
o conteúdo da exposição; [v] a confusão entre
representação e realidade, entre crítica e apologia;
[vi] a deturpação, remontagem e ficcionalização de
aspectos das obras; [vii] o uso de robôs, a mani-
pulação dos algoritmos e o impulsionamento de
postagens nas redes; [viii] a premeditação funda-
mentalista em função de uma “guerra santa”; [ix] a
mobilização conservadora da noção de “ideologia
de gênero”; [x] os interesses econômicos e cliente-
listas da instituição financeira promotora da mos-
tra; [xi] a busca de base eleitoral por agentes políti-
cos neoliberais e reacionários; [xii] a agressividade
com que os indignados se manifestaram, incluindo
abordagens violentas de visitantes, trabalhadores
da exposição e do próprio curador [ESCOLA DE AR-
TES VISUAIS DO PARQUE LAGE, 2018, p. 11-51].
Cayo Honorato e Diogo de Moraes Silva, Mudança estrutural dos contrapúblicos
em face
a controvérsias artístico-culturais.
330
Apesar do compromisso desses argumentos com
a defesa da exposição, eles não apenas negligen-
ciam a circularidade e a reflexividade do discurso
público, como também acabam sobrepujados
pelas formas de apreensão e rechaço praticadas
pelos detratores da
Queermuseu
. Se consideramos
a controvérsia pelo viés performativo e da circula-
ridade dos públicos, os argumentos do curador pa-
recem desinformados do funcionamento da arena
pública discursiva, marcada por recepções e res-
postas conflitivas ou mesmo antagônicas. Nesse
campo de enunciação distribuída entre estranhos,
as demandas por fidelidade ao discurso “original” e
à “natureza” da exposição não se sustentam. Tam-
pouco se sustenta a afirmação de que grande parte
dos detratores sequer visitou a exposição, uma vez
que
um
público é formado, não por sua presença
física em determinado espaço, mas por sua aten-
ção ao discurso veiculado. Também não faz sentido
exigir que, para poder falar sobre a exposição, o
público esteja apropriado de todo o seu conteúdo,
inclusive porque a eleição de obras específicas
para representar uma exposição é prática corrente
tanto das suas estratégias de divulgação, quanto da
crítica especializada.
A confusão entre metáfora e literalidade, por sua
vez, não pode ser acusada de ilegítima, se conside-
rarmos que, na “condição pós-autônoma da arte”
[CANCLINI, 2016, p. 23], os critérios do mundo co-
mum concorrem para desarticular a especificidade
artística – incluídas aí sua ficcionalidade e criticida-
de. Deturpação e remontagem do discurso público
são expedientes da sua reflexividade, responsável
pela dinâmica citacional da qual depende o discur-
so para se fazer público. Por sua vez, apontar o uso
de artifícios técnicos para anabolizar os efeitos dos
ataques subestima a onda detratora, como se ela
fosse
fake
. Sobre o caráter fundamentalista e con-
servador dos ataques, isso reflete as “guerras cultu-
rais” [HUNTER, 1991; HARTMAN, 2016; ORTELLADO,
2018] em que estamos vivendo – o que justamente
precisaria ser considerado. Isso para não dizer dos
interesses autopromocionais da instituição reali-
zadora da exposição, de cuja engrenagem Fidelis
aceitou participar, tendo em vista que o marketing
cultural tem por motor a captura e instrumentaliza-
ção de imaginários artísticos. Dessa vez, isso não
se deu apenas a título de «valor agregado» à marca
do banco ou de “sala de visita” para a sua clientela,
mas como curral eleitoral do MBL, em seu gesto de
captura da captura”.
A violência das manifestações e as respectivas ma-
nobras discursivas deflagradas por Cavazzola Jr.,
Diehl e BK – catalisadas e capitalizadas pelo MBL –,
podem ser consideradas pela ótica poético-expres-
siva como
indecorosidade
, isto é, como a forma
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 309-343, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.47572]
331
destituída de credibilidade e confiança com que os
contrapúblicos irrompem na esfera pública. Neste
ponto, podemos nos perguntar se os detratores da
arte podem ser reconhecidos como
contrapúblicos
.
Noutros termos, em que medida essa categoria
analítica se presta a traduzir os atos discursivos
mobilizados nos ataques a exposições de arte ou,
inversamente, de que forma os autores desses ata-
ques performam a contrapublicidade nos termos
delineados por Warner com base nas discursivi-
dades
queer
? O caso
Queermuseu
não poderia
ser mais oportuno para indagações desse tipo. A
seguir, discutimos a pertinência de se atribuir uma
contrapublicidade aos públicos conservadores.
4. CONTRAPÚBLICOS CONSERVADORES
Como dissemos, Warner [2018] afirma em en-
trevista recente que sua pesquisa atual é sobre
como os primeiros evangélicos podem ser en-
tendidos enquanto um tipo de contrapúblico” e,
mais adiante, que “a
alt-right
pode ser vista como
uma versão disso [do contrapúblico]”. Mais do que
reconhecer a existência de contrapúblicos conser-
vadores [ou fundamentalistas, nacionalistas, ul-
traliberais, rancorosos etc.], Warner introduz uma
diferença “interna” entre eles. Enquanto os evan-
gélicos do século XVIII atuavam “tentando retirar
as pessoas do que eles entendiam ser a cultura
dominante”, a
alt-right
de 2016 – um ator decisivo
na eleição de Donald Trump à presidência dos
Estados Unidos – se empenha em “se tornar o pú-
blico dominante”. Essa contradição atual, segundo
Warner, está em toda parte. A diferença que ele
demarca é menos entre evangélicos e
trolls
do que
entre subcategorias de contrapúblicos conserva-
dores. Em todo caso, ambos compartilham, além
da “consciência de sua própria marginalidade”,
uma “vontade de converter estranhos” e um “uso
agressivo das mídias públicas”.
Ainda nessa entrevista, Warner sugere que os
contrapúblicos conservadores, assim como os
contrapúblicos em geral, existem desde que há
públicos. Apesar disso, como no caso dos “contra-
públicos subalternos” de Fraser, os contrapúblicos
têm sido principalmente associados aos públicos
progressistas. Se, por um lado, o fato de desafiarem
os públicos dominantes sugere essa associação,
por outro, o sentimento de marginalidade, entre
outros aspectos, não é exclusividade dos públicos
progressistas. Como explicar esse fenômeno? Nos
últimos anos, em meio ao que diferentes autores
chamaram de “fadiga da democracia” [APPADURAI,
2017], “populismo reacionário” [FRASER, 2017], “era
do ressentimento” [MISHRA, 2017], “de-civilização”
[NACHTWEY, 2017], “era da regressão” [GEISEL-
Cayo Honorato e Diogo de Moraes Silva, Mudança estrutural dos contrapúblicos
em face
a controvérsias artístico-culturais.
332
BERGER, 2017] etc., pudemos observar algumas
“mudanças na estrutura de oportunidades políticas”
[ROCHA, 2019], que por sua vez propiciaram uma
mudança na própria estrutura dos contrapúblicos.
Segundo Malin Holm [2019], “o surgimento recente
na internet de contradiscursos racistas, antifemi-
nistas e negacionistas […] levanta novas questões
sobre como podemos entender e analisar o poder
e o privilégio nas esferas públicas”. A seguir, busca-
mos indicar algumas dessas questões.
Em sua pesquisa sobre os “contrapúblicos ultrali-
berais”, Camila Rocha [2019, p. 132] avalia que “[…]
a mudança mais significativa na redefinição dessa
categoria foi o abandono da ideia de que o atributo
central dos contrapúblicos seria a condição subal-
terna de seus membros”. A cientista política cre-
dita a Warner uma contribuição destacada nesse
processo. Sua avaliação não deixa de estar correta,
particularmente a respeito dos limites de Fraser em
relação a Warner, mas ela também é parcial. Volta-
remos a isso mais adiante, mas, basicamente, as-
sim como Sheikh, Ribalta e Nunes, Rocha também
desreconhece a dimensão performativa dos con-
trapúblicos. Em todo caso, a mudança em questão
implica não só uma ampliação do escopo dessa
categoria, de modo a abarcar diferentes tipos de
contrapúblicos [progressistas e conservadores, su-
balternos e não subalternos], mas uma apropriação
por parte da direita que ascendeu nos últimos anos
de técnicas, estilos ou estratégias até então asso-
ciadas à esquerda, além de uma fragmentação do
que até então era considerado público dominante.
Segundo Angela Nagle [2017, p. 29], “a facilidade
com que esse ambiente
alt-right
e
alt-light
mais
amplo pode hoje usar estilos transgressores mostra
o quão superficial e historicamente acidental é a
associação desses estilos com a esquerda socia-
lista”.
Nagle não emprega o termo “contrapúblicos”, mas
entende que a habilidade da direita digital para
assumir a estética da contracultura, da transgres-
são e da inconformidade nos diz muita coisa sobre
[…] o
establishment
liberal contra o qual ela se de-
fine” [NAGLE, 2017, p. 28]. Devemos sublinhar que,
nos Estados Unidos, o termo “liberal” – conforme
a divisão entre liberais e conservadores enquanto
categorias para se pensar a política nesse país –
corresponde
grosso modo
aos setores progressis-
tas ou democratas da sociedade [LAKOFF, 2002].
Também podemos considerar que a
alt-right
nor-
teamericana chegou a se autodenominar “
liber-
tarian
[NAGLE, 2017, p. 13-4], enquanto no Brasil,
onde o liberalismo e o conservadorismo se asso-
ciam,
12
o termo “libertário” não pegou, segundo
Rocha [2019, p. 133], por remeter ao anarquismo.
Em todo caso, o comentário de Nagle sugere não
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 309-343, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.47572]
333
só uma caracterização da
alt-right
como contra-
público, mas também da esquerda como público
dominante. De fato, a fragmentação da esfera
pública, como veremos a seguir, fez com que tanto
a
alt-right
quanto os ultraliberais se referissem
simultaneamente a pelos menos dois públicos
dominantes: um à esquerda e outro à direita.
Rocha entende que o conceito de contrapúblicos
pode ser frutífero “para compreender a expressão
de atores que não são oprimidos socialmente, mas
que se percebem marginalizados na esfera pública”.
No caso dos ultraliberais, trata-se de contrapúbli-
cos das classes média e alta, que se organizaram a
partir de comunidades no
Orkut
, em um momento no
qual o acesso à internet no Brasil era restrito a uma
elite econômica e cultural. Apesar de sua condição
privilegiada, os ultraliberais compartilham um “senti-
mento de marginalidade”, uma “sensação de silen-
ciamento”, especialmente em relação aos públicos
acadêmicos, que percebem como sendo “domina-
dos culturalmente pela esquerda” e fechados para
“um debate franco acerca de questões políticas e
econômicas”. A ideia de que são “vítimas do esquer-
dismo” os diferencia tanto da esquerda que eles
chamam de “comunista” ou “bolivariana”, quanto de
setores à direita que consideram limitados. A defesa
peessedebista de um neoliberalismo de terceira via,
por exemplo, é para eles sinônimo de “esquerdis-
mo” [ROCHA, 2019, p. 125-6, 135, 153-4]. Do mesmo
modo, os primeiros detratores da
Queermuseu
impu-
taram ao MBL um suposto “socialismo fabiano”.
Outro componente da mudança a que nos referi-
mos é a perda por parte da esquerda do monopólio
sobre a mobilização social, a partir das manifesta-
ções de 2015 em favor do
impeachment
de Dilma
Rousseff, se não desde 2013. Nesse processo, os
defensores radicais do livre mercado são apenas
uma das “ideias-força” que organizam a mobili-
zação, juntamente com o antipetismo e o conser-
vadorismo moral [MESSENBERG, 2019]. Em um
artigo a respeito da influência da
alt-right
sobre o
bolsonarismo, Rodrigo Nunes [2020] entende que
a nova extrema direita, ao assumir a posição do
troll
, logrou “posicionar-se como a voz dos desejos
antissistêmicos ao mesmo tempo em que associa-
va a esquerda […] ao
establishment
, a uma cultura
uncool
’ e ultrapassada, ao controle de pensa-
mento”. Segundo o filósofo, o
troll
seria justamente
alguém que busca instigar reações fortes e parece
se alimentar da própria capacidade de causar con-
frontos e expor os outros ao ridículo”. A descrição
não só o aproxima do contrapúblico, como também
do artista de vanguarda, por contrafação da ideia
de épater la bourgeoisie.
No campo cultural, a ideia de uma “hegemonia
esquerdista” encontra respaldo não só em Olavo
Cayo Honorato e Diogo de Moraes Silva, Mudança estrutural dos contrapúblicos
em face
a controvérsias artístico-culturais.
334
de Carvalho, como também – embora neste caso
se refira a um momento particular da história do
país – em Roberto Schwarz [2008 [1970], p. 71],
para quem “a presença cultural da esquerda não
foi liquidada naquela data [em 1964], e mais, de lá
para cá não parou de crescer”. Essa hegemonia,
a propósito, é um dos principais fatores para o
surgimento das chamadas “guerras culturais”, em
resposta às conquistas por direitos civis a partir
dos anos 1960 [HUNTER, 1991; HARTMAN, 2016]
ou, no caso do Brasil, em resposta às conquistas
da redemocratização e da Constituição de 1988
[ORTELLADO, 2014]. Como lembra Nagle [2017, p.
57], “às vezes se diz que a direita ganhou a guerra
econômica e que a esquerda ganhou a guerra cul-
tural”. Da sua perspectiva, é o reconhecimento de
que a identidade cultural triunfou sobre a igualda-
de econômica, em termos de expectativas sociais,
o que leva a direita digital a adotar uma política
identitária à sua maneira, que tem “mais o espírito
desbocado dos comentários em
threads
feitos pe-
los
trolls
do que o dos estudos bíblicos, mais
Clube
da Luta
do que valores familiares”.
Para Rocha [2019, p. 132 e 165], haveria dois fatores
principais condicionando a mudança em ques-
tão: uma popularização ambivalente da internet,
que tanto democratiza quanto fragmenta a esfera
pública, e o que Robin Celikates [2015] chama de
uma “multiplicidade de esferas públicas – mais ou
menos locais, mais ou menos integradas, mais ou
menos oficiais e institucionalizadas, e mais ou me-
nos digitalizadas”. As mudanças a que a pesquisa-
dora se refere envolvem uma crise das instituições
democráticas e do sistema representativo em geral,
que se aprofunda desde 2013. Nesse processo, o
próprio papel mediador da esfera pública [ou das
esferas públicas] entre a sociedade civil e as insti-
tuições políticas assume um funcionamento diver-
so, em que a legitimidade daquilo que diria respeito
ao comum perde qualquer estabilidade. Certa-
mente, a digitalização dessas instâncias – que
deve ser entendida como um processo “complexo
e multifacetado” [CELIKATES, 2015] – massifica os
espaços de convocação, engajamento e contesta-
ção. Porém, na medida em que suas operações são
incontornavelmente editadas pela economia da
atenção, podem inclusive ser revertidas em favor de
seus próprios adversários [NUNES, 2020].
Em sua leitura de Michael Warner, Camila Rocha
[2019, p. 133] entende que “a despeito de serem su-
balternos ou não, [os membros de um contrapúbli-
co] partilhariam identidades, interesses e discursos
[…]”. De fato, com base nas entrevistas que realizou,
os ultraliberais se percebem como “parte de uma
mesma coletividade, organizada na forma de um
contrapúblico”; que entre eles foi se cristalizando
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 309-343, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.47572]
335
“uma identidade coletiva”; que eles partilhavam
“um sentimento de pertencimento”; que existia no
movimento uma “sensação de família” [ROCHA,
2019, p. 136, 153, 155 e 166]. Nossa leitura, diferen-
temente, demonstrou que os contrapúblicos não
podem ser definidos de forma substantiva, muito
menos identitária; que o que eles “compartilham”
é da ordem de uma performatividade; que a sua
configuração “coletiva” remete a uma sociabilidade
entre estranhos. Mas se, por um lado, a leitura de
Rocha parece limitada pela categoria dos contra-
públicos não subalternos, por outro, sua descrição
da formação e institucionalização dos contrapú-
blicos ultraliberais nos permite analisar com mais
precisão o que Warner chama de contrapúblicos
que se empenham para se tornar dominantes.
Há diferentes momentos nesse processo que não
podem ser confundidos: entre apropriações do
Orkut
por jovens universitários e a ascensão de
lideranças que impactaram significativamente a
política nacional, a ponto de conquistarem uma
centralidade para sua agenda na equipe econômi-
ca do 38º Presidente da República, não podemos
ignorar a preexistência de uma rede de
think tanks
liberais disposta a oferecer apoio organizacional
e financeiro à militância em formação [ROCHA,
2019, p. 125-6 e 166]. Uma das diferenças entre
aquele processo e a transformação dos públicos
gay e lésbico em movimentos sociais comentada
por Warner é que estes o fazem por adaptação à
pragmática do discurso crítico-racional, enquanto
os ultraliberais se institucionalizam radicalizando
a agressividade poético-expressiva que os carac-
teriza enquanto contrapúblicos. Serão mais ou
menos contrapúblicos por isso? Trata-se de uma
agressividade indecorosa, que se julga “moral-
mente superior” e que, no caso do bolsonarismo, é
percebida por seus apoiadores como indicativo de
que o Presidente é “sincero”, “autêntico” e “verda-
deiro” [ROCHA
et al.
, 2020]. Nela, entretanto, não
reconhecemos a disponibilidade para modelar e
ser modelado, característica dos contrapúblicos
performativos e progressistas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tanto os autores que associam os contrapúblicos
a ações políticas progressistas, quanto os que,
exclusivamente a identidades subalternas, desre-
conhecem o caráter performativo dos contrapú-
blicos. As razões para que isso ocorra excedem o
que foi analisado neste artigo, mas supomos que
a intratabilidade das formações contrapúblicas
pelas estratégias de mobilização política – em
função de seu caráter emergente, autoproduzido,
Cayo Honorato e Diogo de Moraes Silva, Mudança estrutural dos contrapúblicos
em face
a controvérsias artístico-culturais.
ao contrário, entendem que eles não correspondem
336
extrainstitucional etc. – seja um dos motivos para se
relegar o performativo. Os contrapúblicos são algo
de que se possa participar, mas não algo a que se
possa pertencer. Logo, não podem ser agenciados
nem dominados – embora eventualmente sejam,
como vimos, catalisados e capitalizados. Em última
análise, reconhecer o performativo implica abrir
mão dos contrapúblicos como um conceito crítico-
-normativo
a priori
, para pensá-lo e experimentá-lo
como um método capaz de descrever e analisar
a
posteriori
diferentes alianças ou
assemblages
de
contestação pública [THIMSEN, 2017].
Se por um lado a subalternidade deixa de caracte-
rizar os contrapúblicos suficientemente, por outro,
o performativo fornece outros critérios para des-
crevê-los empiricamente: o poético-expressivo, a
corporeidade, a indecorosidade etc. O ponto é que
esses critérios se encontram distribuídos tanto
à esquerda quanto à direita do espectro político.
Segundo Freya Thimsen [2017], enquanto os con-
trapúblicos foram pensados como subalternos,
sua valência crítico-normativa andou junto com
sua função analítico-descritiva. Com a disjunção
dessas instâncias, a função dos contrapúblicos
deixa de estar necessariamente comprometida
com os valores e práticas democráticos. Analisan-
do o trumpismo, a pesquisadora entende que esse
contrapúblico contestou o modelo dominante de
financiamento das campanhas eleitorais. Con-
tudo, ao posicionar Trump como a única solução
para enfrentar a interferência plutocrática dos
ricos e dos grandes conglomerados de mídia na
política, o trumpismo não se comprometeu com a
ampliação da democracia, no sentido do combate
às injustiças sociais.
A esta altura, porém, a tentativa de restaurar a
dimensão crítico-normativa dos contrapúblicos, no
sentido de fazer com que o conceito se apoie sobre
pressupostos democráticos, pode comprometer
sua capacidade analítico-descritiva. Uma das ca-
racterísticas dos contrapúblicos, no entanto, resta
como dificilmente associável aos públicos con-
servadores: a disponibilidade para modelar e ser
modelado. Diferentemente da vontade de converter
estranhos, trata-se de uma disponibilidade para
se transformar entre estranhos; de uma abertura
efetiva para as mais diversas e imprevistas dife-
renças. Mas isso tampouco se encontra facilmente
associado aos públicos progressistas, ao menos
enquanto movimento ou organização. Segundo
Richard Sennett [2015, p. 19], “A sociedade moderna
está gerando um novo tipo de caráter. É o tipo de
pessoa empenhada em reduzir ansiedades provo-
cadas pelas diferenças […]. O objetivo da pessoa
é evitar qualquer sobressalto, sentir-se o menos
estimulada possível por diferenças profundas”.
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 309-343, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.47572]
337
Para o sociólogo, essa “socialidade” contrasta com
a solidariedade, que pode basicamente se estabe-
lecer de duas formas distintas: de cima para baixo,
enfatizando a unidade, a coalizão, o consenso e a
organização; ou de baixo para cima, enfatizando a
inclusão, a cooperação, a reciprocidade e a infor-
malidade. A segunda, certamente mais receptiva
àquela disponibilidade para se transformar entre
estranhos, não condiz com a política dos meios
voltados para fins, podendo não levar a resultado
algum. Daí certa incompatibilidade entre os contra-
públicos e sua institucionalização enquanto movi-
mento social. Mais do que o poético-expressivo, é
o próprio performativo que pareceria sacrificado
nesse processo. Porém, quando mesmo a socia-
lidade tende a ser suplantada por uma vontade
de anulação das diferenças, é justamente aquela
disponibilidade que, de algum modo, precisaria ser
performada, suscitando redes em que a transfor-
mação possa existir, circular e ser compartilhada.
Certamente, é o próprio conceito que se transforma
nesse processo, para se tornar um conceito expos-
to às suas próprias diferenças internas.
NOTAS
1 Em 2016, por ocasião de nossa edição do sexto número do
Periódico Permanente
, publicação promovida pela plataforma
de ação e mediação cultural Fórum Permanente, promovemos a
tradução para o português da “versão abreviada” do capítulo
Publics and Counterpublics
do livro de Warner, versão esta pro-
duzida e veiculada pelo próprio autor. A tradução ficou a cargo
da mediadora Ethienne Nachtigall, convidada por nós, editores,
para esse fim. Disponível em https://bit.ly/3u2Ahc4. Acesso em
19/5/2021.
2 Todas as citações cujas referências estão em língua es-
trangeira têm tradução nossa.
3 Essa é a proposta de Nancy Fraser, no artigo
Rethinking the
Public Sphere: A Contribution to the Critique of Actually Existing
Democracy
[1990].
4 Warner emprega o termo “
drag queen
” para se referir às
frequentadoras da casa. Já o livro
Casa Susanna
, editado em
2005 por Michael Hurst e Robert Swope, emprega o termo
cross-dressers
”.
5 Distinguindo-se das noções de “público como totalidade
social” [pertencente a certa nacionalidade, sociedade, estado,
cidade etc.] e, também, de “públicos como formações con-
cretas” [presentes em espetáculos teatrais, exposições de arte,
sessões de cinema, procissões religiosas, protestos de rua etc.],
o conceito de “públicos discursivos” deriva de experiências
comunicacionais tipicamente modernas, inicialmente ligadas
às culturas da imprensa e do livro. Nesse sentido, os “públicos
discursivos” se autoproduzem performativamente
na relação
com
textos e outros artefatos que circulam entre desconhecidos. Essa
circularidade
indefinida do discurso público é necessariamente
Cayo Honorato e Diogo de Moraes Silva, Mudança estrutural dos contrapúblicos
em face
a controvérsias artístico-culturais.
338
acompanhada por um tipo de
reflexividade
, caracterizada por
citações e respostas públicas a esse mesmo discurso.
6 Essa circularidade é ilustrada por Warner com o “enigma do
ovo e da galinha”: o discurso não existe senão mediante seu en-
dereçamento a um público, que por sua vez só existe mediante a
atenção dispensada ao discurso que lhe é endereçado.
7 O capítulo
Publics and Counterpublics
do livro homônimo de
Michael Warner foi traduzido e editado em forma de brochura
pelo MACBA, em parceria com a Universidade Autônoma de
Barcelona, no ano de 2008.
8 O episódio de seu fechamento foi sucedido por uma série
de outros eventos, em diferentes cidades brasileiras [Campo
Grande, Jundiaí, São Paulo, Belo Horizonte, Fortaleza, Vitória,
Brasília], chegando à condução coercitiva do curador da
exposição em 08 de novembro do mesmo ano, mediante
requerimento aprovado pela CPI dos Maus-tratos. Nesta seção,
abordaremos o caso
Queermuseu
com um propósito particular,
interessado em demonstrar sua circularidade e reflexividade,
sem a pretensão de discuti-lo exaustivamente. Outros aspectos
do mesmo caso foram discutidos em textos nossos anteriores [ver
HONORATO, 2019; SILVA, 2018].
9 As obras são:
Cena de interior II
[1994], de Adriana Vare-
jão;
Travesti da lambada e deusa das águas
[2013] e
Adriano
bafônica e Luiz França She-há
[2013], de Bia Leite;
Cruzando
Jesus Cristo com Deusa Shiva
[1996], de Fernando Baril; e
Et
Verbum
[2011], de Antonio Obá.
10 Exemplo recente dessas consequências é a aprovação de
projeto pela Câmara Legislativa do Distrito Federal, proibindo
a nudez em exposições realizadas nessa unidade federativa
[CRUZ, 2020].
11 A primeira tentativa de remontagem da exposição na
cidade do Rio de Janeiro, prevista para o Museu de Arte do Rio
[MAR], fora vetada com traços de desdém pelo então Prefeito
Marcelo Crivella. A transferência da exposição para a Escola
de Artes Visuais do Parque Lage, instituição ligada ao governo
do estado, contou com campanha de financiamento coletivo
amplamente encampada pela sociedade civil.
12 Entrevistando Kim Kataguiri, um dos líderes do MBL, sobre
a adoção das guerras culturais pelo movimento, a jornalista
Anna Virginia Balloussier [2017, grifo nosso] transcreve: “Esse
distanciamento [em relação à moral, aos costumes, às tradições],
segundo ele [Kataguiri], ‘levou a uma derrota política acacha-
pante para a direita, porque as pessoas, antes de se preocu-
parem com o que é economicamente viável, se preocupam com
o que é justo. A gente esqueceu de focar no discurso da justiça
– que o MBL trouxe de volta para
o liberalismo e o conservado-
rismo brasileiros
’”. Mais uma vez, o caso
Queermuseu
demonstra
essa associação.
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 309-343, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.47572]
339
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
APPADURAI, Arjun. Une fatigue de la démocratie. In GEISELBERGER, Heinrich [ed.].
L’âge de la régression
.
Paris: Gallimard, 2017, p. 17-37.
BALLOUSSIER, Anna Virginia. Moral e costumes entram em foco em congresso do MBL.
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