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de Carvalho, como também – embora neste caso
se refira a um momento particular da história do
país – em Roberto Schwarz [2008 [1970], p. 71],
para quem “a presença cultural da esquerda não
foi liquidada naquela data [em 1964], e mais, de lá
para cá não parou de crescer”. Essa hegemonia,
a propósito, é um dos principais fatores para o
surgimento das chamadas “guerras culturais”, em
resposta às conquistas por direitos civis a partir
dos anos 1960 [HUNTER, 1991; HARTMAN, 2016]
ou, no caso do Brasil, em resposta às conquistas
da redemocratização e da Constituição de 1988
[ORTELLADO, 2014]. Como lembra Nagle [2017, p.
57], “às vezes se diz que a direita ganhou a guerra
econômica e que a esquerda ganhou a guerra cul-
tural”. Da sua perspectiva, é o reconhecimento de
que a identidade cultural triunfou sobre a igualda-
de econômica, em termos de expectativas sociais,
o que leva a direita digital a adotar uma política
identitária à sua maneira, que tem “mais o espírito
desbocado dos comentários em
threads
feitos pe-
los
trolls
do que o dos estudos bíblicos, mais
Clube
da Luta
do que valores familiares”.
Para Rocha [2019, p. 132 e 165], haveria dois fatores
principais condicionando a mudança em ques-
tão: uma popularização ambivalente da internet,
que tanto democratiza quanto fragmenta a esfera
pública, e o que Robin Celikates [2015] chama de
uma “multiplicidade de esferas públicas – mais ou
menos locais, mais ou menos integradas, mais ou
menos oficiais e institucionalizadas, e mais ou me-
nos digitalizadas”. As mudanças a que a pesquisa-
dora se refere envolvem uma crise das instituições
democráticas e do sistema representativo em geral,
que se aprofunda desde 2013. Nesse processo, o
próprio papel mediador da esfera pública [ou das
esferas públicas] entre a sociedade civil e as insti-
tuições políticas assume um funcionamento diver-
so, em que a legitimidade daquilo que diria respeito
ao comum perde qualquer estabilidade. Certa-
mente, a digitalização dessas instâncias – que
deve ser entendida como um processo “complexo
e multifacetado” [CELIKATES, 2015] – massifica os
espaços de convocação, engajamento e contesta-
ção. Porém, na medida em que suas operações são
incontornavelmente editadas pela economia da
atenção, podem inclusive ser revertidas em favor de
seus próprios adversários [NUNES, 2020].
Em sua leitura de Michael Warner, Camila Rocha
[2019, p. 133] entende que “a despeito de serem su-
balternos ou não, [os membros de um contrapúbli-
co] partilhariam identidades, interesses e discursos
[…]”. De fato, com base nas entrevistas que realizou,
os ultraliberais se percebem como “parte de uma
mesma coletividade, organizada na forma de um
contrapúblico”; que entre eles foi se cristalizando
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 309-343, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.47572]