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ACOCORÉ: UM PROJETO DE RESISTÊNCIA À PANDEMIA OU
ARTE EM TEMPOS DE TELEPRESENÇA
Acocoré: a pandemic resistance project or art in times of telepresence
Acocoré: un proyecto de resistencia a la pandemia o arte en tiempos de telepresencia
Maria Beatriz de Medeiros [Universidade de Brasília, Brasil]*
RESUMO O presente texto apresenta o projeto Acocoré [Arte, Coletivos, Conexões e Redes] realizado em
telepresença desde julho de 2020, isto é, durante uma pandemia. Acocoré foi uma ideia, um movimento, e, de
repente, [e]vento: site, performances, entrevistas, vídeos, isto é, movimento disruptivo fazendo História.
PALAVRAS-CHAVE Acocoré, arte, coletivos, conexões, redes
ABSTRACT The following paper presents the Acocoré project [Art, Colectives, Connections and Networks],
conceived and carried out online and over telepresence since July 2020, during the pandemic. Acocoré was
an idea, a movement, and suddenly is [e]vent: website, performances, inter-actions, videos, therefore disruptive
moviment making history.
KEYWORDS Acocoré, art, collectives, connections, networks
RESUMEN Este texto presenta el proyecto Acocoré [Arte, Colectivos, Conexiones y Redes] realizado en
telepresencia desde julio de 2020, es decir, durante una pandemia. Acocoré fue una idea, un movimiento y, de
repente, [e]viento: web, performances, entrevistas, videos, es decir, un movimiento disruptivo que hace historia.
PALABRAS CLAVE Acocoré, arte, colectivos, conexiones, redes
Citação recomendada:
MEDEIROS, Maria Be-
atriz de. Acocoré: um
projeto de resistência à
pandemia ou arte em
tempos de telepre-
sença. Revista Poiésis,
Niterói, v. 22, n. 38,
p. 266-278, jul./dez.
2021. [https://doi.
org/10.22409/poie-
sis.v22i38.48172].
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Não Comercial 4.0
Internacional [CC-BY-
NC] © 2021 Maria
Beatriz de Medeiros
*Maria Beatriz de Medeiros é professora do Departamento de Artes da Universidade de Brasília - UnB, Doutora em Arte e Ciências da Arte pela Universidade Paris
I e coordena o Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos desde 1992. E-mail:mbmcorpos@gmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1899-1052
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 266-278, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.48172]
(Submetido: 15/1/2021;
Aceito: 13/5/2021;
Publicado: 7/7/2021)
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De repente, o silêncio. Não mais “teatro, boate, cine-
ma” [Luiz Melodia,
Congênito
]. De repente, o pouco
que se tem representa tudo e/ou o muito que se tinha
se fechou. A vida cessou nas ruas. Não mais carros
e ônibus, desde às seis horas da manhã, arranhan-
do o sono pouco de quem muito correu. O sono se
esparrama junto com o medo. Silêncio: ninguém vai
chegar e ninguém vai sair. Não haverá convites, nem
vernissages, nem aniversários, nem almoços fami-
liares, nem viagens, hotéis ou outras paisagens.
O COVID 19 tomou a vida de muitos no momen-
to em que escrevo, janeiro de 2021. O COVID 19
tomou a vida de 1% da população brasileira. Presa
em casa, 50% da população, e o vírus passeando
nas ruas, calçadas, praias e parques. Os teatros
escuros e fechados ruminando mofo e poeira em
poltronas tortas; as boates silenciosas e ninguém
cheirando nos banheiros, os cinemas surdos, cegos
e mudos com portas enferrujando. Os museus e
galerias de arte acumulando um vazio de sentido de
obras de arte enclausuradas. A arte se completa
na interação e/ou na iteração.
1
Sem ser vista, ela é,
naturalmente, invisibilizada, mas também inviabili-
zada. Um papel cheio de pontos, de linhas e de tin-
tas, nada pode dizer em uma gaveta, mofando. Um
grito não escutado escorre pelas paredes mudas e
a performance congela o artista na geladeira que
estala, range, mas não interage nem iterage.
Assim foi se passando o inesquecível ano de 2020,
se arrastando entre paredes ou brilhando, um
pouco, nos 15 minutos em que o sol toca jane-
las, na cerveja solitária ao final do dia surdo, em
intermináveis séries televisivas agora esgotadas:
ninguém filma, ninguém atua, ninguém monta
cenários que permitiriam outros devaneios para
longe deste confinamento. Com fim? Não sabe-
mos, mas certamente, lamento.
14 dias, 30 dias, 60 dias. No meio da solidão,
julho de 2020, uma mensagem. Tratava-se de um
convite para fazer uma sequência de fotos sobre
máscaras feito por Juliana Cerqueira, pessoa que
não via há mais de dez anos, que havia colabora-
do em alguns trabalhos em arte e tecnologia, isto
é, em performance em telepresença do Grupo
de Pesquisa
Corpos Informáticos
2
,
que coordeno
desde 1992.Resolvi telefonar e questionar, ao que
me foi respondido que era uma proposta inicial
ainda sem rumo definido. Assim, fizemos uma
simples” sequência de fotos.
Me adianto no texto para não deixar os leitores
inquietos:
Acoco
é hoje, janeiro de 2021, a me-
lhor coisa que fizemos, Juliana e eu, mas também
todos aqueles que vêm participando deste proje-
to: ele mudou nossas vidas, ele nos dá felicidade,
risadas, danças, trocas, comédias, debates sé-
rios, [e]vento, e uma infinita coleção de figurinhas
Maria Beatriz de Medeiros, Acocoré: um projeto de resistência à pandemia ou arte em tempos de telepresença.
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no
WhatsApp
. Temos performances coletivas
aos sábados no Zoom, nas quartas-feiras temos
o projeto
Entre-atos
,
nunca entrevistas no Insta-
gram
, nas segundas-feiras vamos começar um
grupo de estudos, temos um site [criado e alimen-
tado por Juliana Cerqueira: https://acocore.wix-
site.com/acocore] e cerca de 300 mensagens no
WhatsApp
por dia: conversa séria: 2%; diversão,
comédia, brincadeira, palhaçada crítica: 98%.
Temos, inclusive, uma marca.
Acoco
nasceu
Arte, Coletivos
,
Conexões e Redes
em 18 de julho de 2020 com a performance
Des-
cobrindo Máscaras
. Como dito, desde esta data
temos performado todos os sábados pelo
Zoom
.
À cada performance, corresponde um título, um
texto e uma imagem e/ou vídeo que convida para a
ação [criação e design: Juliana Cerqueira]. Somos,
em ordem alfabética: Ana Reis [GO]; Alex Simões
[BA]; Arthur Scovino [RJ, BA, SP]; Bia Medeiros [RJ,
DF]; Carla Rocha [DF, USA]; Cássia Nunes [GO];
Cristine Carvalho Nunes [RS]; Juliana Cerqueira
[RJ]; Maíra Vaz Valente [SP]; Milene Lopes Duenha
[SC, PR]; Raphael Couto [RJ]; Ricardo Garlet [SC];
Zélia Caetano [PR]; Zmário [José Mário Peixoto.
BA]. Alguns destes artistas conhecemos pessoal-
mente e/ou realizamos trabalhos em grupo, outros
foram aparecendo e se tornando parte deste
movimento, digamos, necessário. Alguns partici-
pam desde o início, outros acocoraram há pouco,
outros observam sem nos deixar vê-los, outros
pululam por lá.
Fig.1 - Logomarca do Projeto Acocoré.
Fonte: Arquivo Bia Medeiros, https://acocore.wixsite.com/acocore.
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 266-278, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.48172]
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Fig. 2 - Acocoré, Grupo, 2021, performance. Fonte: Arquivo Bia Medeiros, https://acocore.wixsite.com/acocore
Da esquerda para a direita, de cima para baixo: Enquanto isso na pia [Naldo Martins]; Ricardo Garlet; Zmário; Maíra Vaz Valente; Cássia Nunes;
Naldo Martins; Raphael Couto; Milene Lopes Duenha; Arthur Scovino; Juliana Cerqueira; Bia Medeiros. Fonte: https://www.instagram.com/artecole-
tivosconexoes/
270
Em outubro de 2020, solicita-
mos aos participantes textos
sobre o
Acoco
:
4
Como dito,
cada performance aos sábados
possui título e texto, cada um su-
gerido por um de nós. Eles são
propostos, mas quase nunca
seguidos. Performances todos
os sábados! Haja repertório e,
em tempos de pandemia, é pra-
ticamente impossível perseguir
propostas: em geral, trabalha-
mos com o que temos em mãos,
nossos corpos, objetos, animais
[gatos, cachorros, pássaros
fazendo ninho na cozinha, e
até cavalos], trabalhamos com
nossas pias sempre de novo e
de novo lotadas. Alguns lavam
banheiros, poucos passeiam.
Acocoré é oxigênio com que o galo enche o peito para cantar toda manhã. É o
som do respiro da tartaruga na superfície do mar aberto. É o chão da platafor-
ma suspensa na nuvem criada para promover encontros virtuais, performáticos e
simultâneos de corpos aflitos que se estrebucham na terra em chamas.
@arthurscovino [Arthur Scovino, SP, 04/10/2020]
Acordar no espelho das nossas sombras voláteis. Poesia bordada dos sentidos.
Uns lá e eus aqui. Textura de espaços e tempos, tautocronia. Renda preciosa,
colcha de retalhos de uma memória desejada. Música rebelde dos desejos. Tele-
transporte do sopro, toque.
@carlarocha [Carla Rocha [RJ, DF, USA]
Acocora a vida, o mundo, o tempo que vai passando, num pequeno instante de
nós captado. Nosso sexo, desejos à flor da pele, na pele película do corpo, da
tela, do vídeo. Exposto, entregues ao devir do agora, do já, na potência que
move os corpos. Conexões onde corre eletricidade, afeto, água de rio, mar, extin-
guindo distâncias na imensidão do existir.
@nau_vegar [Naldo Martins. AP, 08/10/2020]
Uma ideia,
Um movimento,
E, de repente, vento.
Um tormento, um lamento
E, sem muito, evento.
Um retorno entardecido,
Talvez, distorcido, talvez,
Inacabado, no tempo mutilado.
Eu, magia;
Tu, vida;
Ela, existência;
E nós, nós, nós,
E eles e elas e outros também:
Acontecimento.
@performancecorpopolitica [Bia Medeiros. RJ, 13/10/2020]
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 266-278, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.48172]
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As performances aos sábados são simultâneas:
cada um no seu quadrado” ou retângulo, por vezes
entrando em conjunção com uma das ações de
outros artistas. Por vezes, todos entram em uma
mesma vibração, na mesma cor, em movimentos
semelhantes
5
. Por vezes, não há consonância, mas
a potência caótica na criação de pequenas maqui-
narias do heterogêneo” [RANCIÈRE, 2012, p. 66]. Es-
tamos fazendo arte [sempre lido como quem late],
poesia, histórias e História: “O espaço do choque e
do contínuo pode ter o mesmo nome, História. De
fato, a História pode ser duas coisas contraditórias:
a linha descontínua dos choques reveladores ou o
contínuo da copresença” [RANCIÈRE, 2012, p.70].
Assim se expressou Zmário [José Mário Peixoto
Santos] no
WhatsApp
:
[Texto proposto por Bia Medeiros em 25/07/2020]
[Texto proposto por Cristine Carvalho Nunes. 10/10/2020]
[Texto proposto por Alex Simões. 28/11/2020]
Maria Beatriz de Medeiros, Acocoré: um projeto de resistência à pandemia ou arte em tempos de telepresença.
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Reflexões matutinas: não noto que apresento performances via Zoom... vejo que
improviso em telepresença, como nas aulas de Improvisação em Dança, na
Escola de Dança da UFBA, quando levávamos [...] objetos para performar [e as
músicas tocadas davam o tom das ações]. Performance, para mim, requer uma
determinada elaboração mesmo que o ensaio nunca ocorra... Leio os txts pro-
postos para o encontro no Zoom, ficam reverberando no meu cabeção, separo
alguns objetos que se aproximam simbolicamente dos conteúdos dos txts minutos
antes, ligo a cam, e os aciono de maneira improvisada...Então, ao meu ver/
sentir, me apresentar no Acocoré é um exercício contínuo de improvisação em
performance, ou seja, é por em primeiro plano e em prática um dos elementos
característicos da performance: o improviso.
O projeto
Entre-atos
, nunca entrevistas, no Insta-
gram, às quartas-feiras, foi inicialmente pensado
no sentido de gerar uma maior iteração entre dois
artistas, e havia, sobretudo, a intenção de fugir do
formato de entrevistas que foi intensificado em
diferentes projetos artísticos durante a pandemia.
Estávamos cansadas de entrevistas com carinhas:
duas carinhas falando em discursos muitas vezes
entediantes: somos artistas! Como não poderia ser
diferente, “voluímos”
6
para um formato outro: um
artista coordena a sala do
Instagram
e convida
aleatoriamente qualquer um de nós, a qualquer
momento. Esta iniciativa gera como que programas
televisivos [engraçadíssimos] com convidados
improvisando. O formato se revela cansativo para
aquele que “orquestra” e também para os convida-
dos, que permanecem em performance por 40 min
tendo direito a “entrar em cena” de 3 a 15 minutos,
no entanto, cria uma imensa
diferença, ou melhor, desseme-
lhança: “As imagens da arte são
operações que produzem uma
distância, uma dessemelhança”
[RANCIÈRE, 2012, p. 15].
Há necessidade de citar tam-
bém a proposta de ensaio. Em
polêmica gerada no
WhatsApp
,
que denominamos “
polenta
”,
discutimos diversas questões da performance.
Entre elas, questões que sempre voltam quando
se trata de performance. Por exemplo, o próprio
questionamento sobre o que é performance. Em
2010, após uma visita às exposições
Marina Abra-
movïc
[MoMA, NY, 2010] e
100 years of performance
no PS1, ao retornar ao Brasil, discuti com o grupo
Corpos Informáticos
sobre o fato da performance
“já” estar nos museus, isto é, ter se tornado doce
[SERRES, 2005], se tornado linguagem. A conversa
nos levou à necessidade de um novo termo para a
performance e declaramos não mais fazer perfor-
mance, mas fuleragem e, ainda, não mais realizar
arte efêmera, mas fazer coisa mixuruca. A fulera-
gem pode ser barbárie, pode ser vagabunda, pode
ser invertebrada, nego fugido, indolente, relaxado,
mas não subserviente. A troça e a trapaça estão
aí subentendidas. A ironia e o cinismo podem ser
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 266-278, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.48172]
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estratégias. Acocoré, no mesmo
sentido, preferiu, não mais fazer
performance, mas unicamente
ensaio. No ensaio podemos errar,
ser errantes, corpo sem órgãos, matilha ou movi-
mento. Performance, fuleragem ou ensaio? “Proust
chama essa desfiguração de
denominação, qualificando a arte
da sensação pura em Elstir: ‘Se
Deus Pai criara as coisas nome-
ando-as, era tirando seu nome ou
dando-lhes outro que Elstir as re-
criava.’” [RANCIÈRE, 2012, p. 88].
7
Outra questão foram algumas
possibilidades da performan-
ce, do ensaio, ou da fuleragem, que divergem das
nossas. Possibilidades: 1 - o artista idealiza e realiza
a performance com seu corpo; 2 - o artista idealiza
e realiza a performance com seu corpo e, posterior-
mente, paga alguém para refazer a performance
[re-performance, exemplo: Marina Abramovic no
Museum of Modern Art
, NY, 2010]; 3 - o artista ide-
aliza a performance e paga alguém para realizar a
performance por ele. A isto podemos chamar “per-
formance terceirizada” [exemplos: Ayrson Heráclito
em
Transmutação da carne
em MAI Terra Comunal,
SESC-SP, 2015, ou Laura Lima].Afirma Laura Lima:
Pasmo: o corpo do outro entendido como carne,
objeto, com tarefas, como barro que se molda.
Neste questionamento, outros artistas foram pos-
tos em questão: Francis Alys e seu movimento de
montanha, Tania Brughera e Ana Mendieta, Santiago
Serra, Tino Seghal, mas como afirma Zmário em
polenta
no
WhatsApp
: “não tenho opinião formada”.
Corpos Informáticos
, por diversas vezes, se tornou
e se autodenominou
Corpos Expandidos
9
. Trata-se
uma prática diferente das acima citadas.
Corpos
Informáticos
, desde 2010 principalmente, idealizou
movimentos e/ou ações, sempre no improviso, isto
é, recolheu, amaciou, tratou objetos, mas também
camisetas [no sentido de formar visualmente um
grupo maior] e propôs performances livres a outros
Não entendo o meu trabalho no sentido de performance historicamente, os corpos
sempre são transformados em carne, objetos, têm tarefas. O corpo pode ser visto
como um barro que se molda [LIMA, 2021, s/p.].
O corpo, neste caso [experiências com sociedades não-ocidentais], remete
sempre a si e aos outros corpos ao mesmo tempo, sendo essencialmente no plural.
Não é de modo algum isolável daquele a quem atribui um rosto e de quem é o
único indício de existência. Também não é separável daqueles com quem coex-
iste. Característico de ambientes sociais comunitários, este corpo não tem funções
delimitadoras. Não é propriedade privada. Não é eminentemente uma marca de
identidade social. Não é máscara. Não é indicador de um personagem. [...] esse
corpo é exatamente onde o homem transborda de si, onde recusa a inércia e os
confortos que o tornam passivo e dócil. [RODRIGUES, 1999, p. 191, grifo nosso]
8
Maria Beatriz de Medeiros, Acocoré: um projeto de resistência à pandemia ou arte em tempos de telepresença.
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que, participando com o grupo, integrando, itera-
gindo, fizeram potência. Gostaria de citar apenas
dois exemplos para não me estender:
Encerando o
Congresso Nacional
, 2010, e Dança das cadeiras,
2016. Na primeira, preparamos 17 enceradeiras ver-
melhas, uma máquina de escrever e um aspirador
de pó, e distribuímos aos participantes do evento
Performance, Corpo, Política e Tecnologia
10
. Na
segunda, catamos cadeiras de plástico quebradas,
abandonadas, isto é, “lixo”, plástico e micro-plás-
tico infinitos, e distribuímos aos participantes do
evento
Participação, Performance, Política
11
.
Entre 1996 e 2006,
Corpos Informáticos
mui-
to investiu na investigação artística através da
telepresença
12
. Nossa investigação era sobre a
possibilidade de um “corpo informático”, de um
corpo-carne numérico”, possibilidade de sobrevi-
vência de um corpo sensual, tornado imagem/mo-
vimento/som/vídeo, ou melhor, um corpo tornado
quase-presença” apenas pelo bombardeamento
de raios luminosos, gerando sensação, sensível,
quiçá, possibilidade de iteração efetiva, isto é, arte
[lido como quem late]. Desejo de presença real. O
desejo do outro é capaz de gerar prazer. O desejo
do outro, por mim, é capaz de prazer estético. A
telepresença, atualmente, no projeto
Acoco
, é
possibilidade de estar junto sem ser fisicamen-
te real, no entanto, estando “presentes”, isto é,
ausentes. Corpo real, “ausente-presente”, tocando
o sensível: som, imagem, movimento, palavra,
poesia, piada, nos retiram do confinamento para
nos jogar em
Acoco
.
Fig. 3 – Acocoré,
Encerando o Congresso Nacional
, 2010, fotografia.
Fonte: Acervo da autora.
Fig. 4 – Acocoré,
Dança das cadeiras
, 2016, fotografia. Fonte: Acervo
da autora.
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 266-278, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.48172]
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Somos sensíveis, agora, muito sensíveis à tele-
presença, ela constitui, para nós enclausurados
pelo coronavírus, as nossas próprias histórias e
a História. E nós, acocoréticos brasileiros, en-
clausurados e desgovernados, nos lambuzamos
de tecnologia para sermos nós mesmos, isto é,
corpos desejantes vazando por telas e escapando
da monotonia, da covardia, da hegemonia de um
Estado falido, decrépito e agonizante.
Não tenho certeza se
Acoco
é um grupo, um
espasmo, um refúgio, um lapso, um sopro ou um
porto, mas com certeza tem sido porta para outros
devires, sonhos por outros espaços, lance de feli-
cidade, fagulha de delícia e um bocado de risada.
De repente, o silêncio. Não mais “teatro, boate,
cinema” [Luiz Melodia,
Congênito
].
Acoco
, se-
gundas [teoria] e quartas-feiras [cinema] e sábados
[festa]. A vida cessou nas ruas, nas telas pulula,
dança e ri. Desde às seis horas da manhã, carros
e ônibus voltaram, mas lá fora o medo permanece.
Silêncio: ninguém vai chegar e ninguém vai sair:
Acoco
vai mandar 247 mensagens e muitas delas
serão conforto, discussão, palhaçada ou zombaria.
Haverá convites, vernissages, aniversários, almo-
ços, viagens, hotéis e outras paisagens nas veias
de um coletivo disruptivo e simultaneamente coeso.
Sejam bem-vindos!
Maria Beatriz de Medeiros, Acocoré: um projeto de resistência à pandemia ou arte em tempos de telepresença.
Fig. 5 - Projeto Acocoré, Proposta: Banquete [Bia Medeiros]: 15 de agosto de 2020. Fonte: Arquivo Bia Medeiros.
Fig. 6 - Projeto Acocoré, Proposta: Do outro lado da rua [Naldo Martins]: 14 de nov. de 2020. Fonte: Arquivo Bia Medeiros.
277
NOTAS
1 A iteração é o processo que acontece quando existe, em
performances abertas à participação do público, à participa-
ção de transeuntes e/ou errantes [que somos todos nós], à
efetiva participação. Por iteração entendemos, com Jacques
Derrida [1990, p. 7 e 120]: “Iterabilidade- [iter, provavelmen-
te vem de itara, outro em sânscrito, e tudo o que se segue
pode ser lido, o trabalho fora da lógica que liga a repetição
à alteridade] [...] A iterabilidade altera, parasita e contamina
o que ela identifica e permite repetir; faz com que se queira
dizer [já, sempre, também] algo diferente do que se quer
dizer, diz-se algo diferente do que se diz e gostaria de dizer,
compreende-se algo diferente etc”. Na iteração, a perfor-
mance proposta pode e deve se modificar, se contaminar, ser
outra pela participação dos outros.
2 Grupo de Pesquisa
Corpos Informáticos
, formado na Univer-
sidade de Brasília em 1992: www.corpos.org; www.performan-
cecorpopolitica.net; www.corpos.blogspot.com.br.
3 Disponível em: https://www.instagram.com/artecoleti-
vosconexoes/
4 Para todos os textos conferir: https://www.instagram.com/
artecoletivosconexoes/
5 Todas as performances são gravadas e posteriormente edi-
tadas por Juliana Cerqueira. Os vídeos editados possuem cerca
de 7 minutos e estão postados no site do
Acocoré
: https://aco-
core.wixsite.com/acocore.
6 “Volução” é outro conceito por mim desenvolvido:
volução não é evolução, nem devolução, nem involução. Na
volução não há progresso nem novidades. Nada é novo,
tudo volui, re-volui. Há volução, processos em voluta, em
espiral rodando sem objetivo, sem jamais atingir o centro
[inexistente], sem jamais manter um só movimento. A volução
se aproxima da volúpia quando paixões deixam mentes-cor-
pos tormando-se um corpus político de prazer em grupo. As
fragatas planam em volução.
7 Elstir é um personagem do livro d’À la recherche du temps
perdudeMarcel Proust. Elstir simboliza, para Proust, o pintor
visionário, aquele que é capaz de ver o mundo com outros
olhos, e, através dele, o romancista constrói seu pensamento
sobre pintura.
8 José Carlos Rodriguesé professor-associado da PUC-Rio e
professor titular de antropologia da UFF. Doutor em Antropolo-
gia pela Université Paris 7, mestre em Antropologia Social pelo
Museu Nacional da UFRJ e graduado em Ciências Sociais e em
Direito pela UFF.
9 Corpos Expandidos são amigos, próximos, artistas, iterato-
res, sempre dispostos a iteragir.
10 Performance, Corpo, Política e Tecnologia. Evento organi-
zado pelo Grupo de Pesquisa
Corpos Informáticos
, 2010. Finan-
ciamento: MINC-Petrobrás. www.performancecorpopolitica.net
11 Participação, Performance, Política. Evento organizado pelo
Grupo de Pesquisa
Corpos Informáticos
, 2010. Financiamento:
REDES-Funarte. www.performancecorpopolitica.net
12 http://corpos.org; http://www.corpos.org/telepresen-
ce2/index.html; http://www.corpos.org/teleperformance/
index.html; http://www.corpos.org/ctrlCctrlC79/index.html;
http://www.corpos.org/weblandart/Index.html.
Maria Beatriz de Medeiros, Acocoré: um projeto de resistência à pandemia ou arte em tempos de telepresença.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Corpos informáticos.
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Limited Inc
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LIMA, Laura. Laura Lima. Enciclopédia Itaú Cultural, 2021. Disponível em: https://enciclopedia.itaucultural.
org.br/pessoa215255/laura-lima. Acesso em 27/05/2021.
MEDEIROS, Maria Beatriz de. Sugestões de conceitos para reflexão sobre a arte contemporânea a partir da
teoria e prática do Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos.
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l. Brasil. V. 4, n. 1, p. 33-47,
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O Corpo na História/ José Carlos Rodrigues.
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