215
A PALAVRA EXILADA
Blanchot [2010a] fala da “paixão pelo Exterior”
3
.
Para ele, esse é o caminho para se pensar uma lín-
gua impossível, ou seja, uma língua que não pode,
uma língua sem poder, distante da compreensão
apropriadora. Somente uma separação assim in-
finita, que remete ao absolutamente outro de mim,
pode afirmar uma palavra plural, não submetida à
violência da única palavra.
A língua que interessa a Blanchot é a língua exila-
da, a língua que não estabelece morada senão no
próprio exílio. A língua interrompida tantas vezes,
tão deslocada de si, tão em trânsito, tão estrangei-
ra, que não possa ser tomada como última palavra.
Que acolha, portanto, a indigência, a diferença, a
dúvida. Uma língua, enfim, sem qualquer verdade,
um livro lançando ao mar, como em
Para o levante,
de Regina de Paula.
Mas, e quando o exterior não é só um lugar infi-
nitamente distante para onde a palavra aponta,
mas um lugar dentro da própria palavra? Ou seja,
quando, na palavra, o fora se abre por dentro?
Nessa língua mal-dita
4
, acontece de o exterior ser
íntimo, de o fora ser um tipo de infiltração que toma
a palavra na sua intimidade secreta e abala a sua
estrutura interna. O exterior mergulha na palavra e
a divide infinitamente a partir do seu interior. O exte-
rior, agora, está dentro da palavra, a palavra passa
a ser o seu fora. A palavra é exilada de si.
Quando isso acontece, quando a separação infinita
está dentro da palavra, a descontinuidade penetra no
interstício, no espaço vacante, e segue espaçando
ainda mais para que o fora nasça dentro da palavra e
lhe pertença como elemento constituinte fundamen-
tal. Enquanto há a intimidade do fora, compreende-
mos que o fora é também o que há de mais íntimo. O
infinitamente distante é também o mais próximo.
Essa é a experiência sugerida por
Quase notas para
quase pensamentos.
Nela, um poema de Gertrude
Stein e a sua tradução por Augusto de Campos são
rasurados com fita corretiva branca, de modo que
apenas a última letra antes de cada pontuação e a
pontuação correspondente permanecem intactas.
Surge, dessa experiência, uma leitura completa-
mente nova. Há, neste trabalho, um convite para
uma oralidade primeira, um balbucio de letras soltas,
constituído de puro gozo sonoro.
Deparamo-nos com
uma espécie de coleção de sopros que formam um
pequeno texto de quase anotações aéreas às quais
correspondem, talvez, pensamentos insipientes,
não desenvolvidos, expressos por desenhos visuais
desses fragmentos de sons agora estrangeiros no
próprio poema de origem. O novo texto deslocado
busca abrigo na antiga página-casa que agora se
tornou exílio. Pode, a própria casa, ser exílio?
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 205-252, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.48997]