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CASAEXÍLIO
1
, PALAVRAMAPA
Home-exile, map-word
Casa-exilio, palabra-mapa
Karina Dias [Universidade de Brasília, Brasil]*
Luciana Ferreira [Universidade de Brasília, Brasil)**
RESUMO O que é o exílio? – esta é a questão que norteia o diálogo entre dois pensamentos. No
primeiro, o exílio é entendido como a perda de uma casa, um lançamento no mundo, onde a procura da
casa acontece de forma incessante e sem garantias. No segundo, o exílio é vivido como a perda do mun-
do pela condição de se ter que permanecer dentro da própria casa, portanto, quando o mundo precisa
ser percorrido e inventado entre as suas paredes. O texto explora as nuances desses dois pensamentos em
diálogo com trabalhos de artistas visuais e, em alguns momentos, na sua relação com a palavra, ora uma
palavra exilada, ora uma palavra-mapa.
PALAVRASCHAVE Casa; exílio; palavra; arte contemporânea.
* Karina Dias é Pesquisadora e Professora associada do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília. E-mail: karinadias.
net@gmail.com
**Luciana Ferreira é Pesquisadora no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais (PPGAV) da Universidade de Brasília. E-mail:
lusmferreira@yahoo.com.br
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 205-223, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.48997]
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ABSTRACT What is the exile? - that is the question that guides the dialogue between two thoughts. In the
first one, the exile is understood as the loss of a home, a launch to the world, where the search for a home
happens in an incessant and free of guarantee way. In the second one, the exile is experienced as the loss
of the world for the condition of having to remain inside its own house, therefore, when the world needs to
be crossed and invented between its walls. The text explores the nuances of these two thoughts in dialogue
with the works of visual artists and, at some points, in its relationship with the word, sometimes an exiled
word, sometimes a map-word.
mer, el exilio es entendido como la pérdida de una casa, un lanzamiento al mundo, en donde la búsqueda
de la casa ocurre de forma incesante y sin garantías. En el segundo, el exilio es vivido como la pérdida del
mundo por la condición de tener que permanecer dentro de la propia casa, por lo tanto, cuando el mundo
necesita serrecorrido e inventado entre sus paredes. El texto explora los matices de esos dos pensamientos
en diálogo con trabajos de artistas visuales y, en algunos momentos, en su relación con la palabra, por
veces una palabra exiliada, por veces una palabra-mapa.
PALABRASCLAVE Casa; exílio; palabra; arte contemporâneo.
DIAS, Karina;
FERREIRA, Luciana.
Casa-exílio, pala-
vra-mapa. Revista
Poiésis, Niterói, v.
23, n. 39, p. 205-
[DOI: https://doi.
org/10.22409/poie-
sis.v23i39.48997]
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Karina Dias, Luciana
Ferreira. Submetido:
5/3/2021; Aceito:
25/5/2021
DIAS, Karina; FERREIRA, Luciana. Casa-exílio, palavra-mapa.
KEYWORDS Home; exile ; word ; contemporary art.
RESUMEN ¿Qué es el exilio? esta es la cuestión que guía el diálogo entre dos pensamientos. En el pri-
223, jan./jun. 2022
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Ana Maria Martins, em
Como se fosse a casa
[2017],
escreve:
a vontade de partir antecede sempre
a casa
estamos para ir
prestes, mas não prontos
só vigor e vontade
lar, ela pensa, é sempre lá
Talvez assim comece o exílio. Sem
dúvida, é a procura de uma casa. Acontece quando
a casa que temos, por desejo ou por necessidade,
não pode mais permanecer. É preciso partir.
Em outra passagem do mesmo texto [2017], Ana
Maria Martins continua:
penso que só sabe da casa
quem precisa atravessar
rapidamente uma fronteira
quem fez sua casa
num país que não o quer
aqueles a quem a casa
segue como um cão
Bachelard, pretendendo fazer uma fenomenologia
do espaço e, com ela, dos valores de intimidade do
espaço interior, elegeu a casa como elemento privi-
legiado. Seria ela o “nosso canto do mundo”, o nos-
so “primeiro universo”, um lugar de acolhimento dos
nossos sonhos e devaneios. Sonhos e devaneios
exigiriam a segurança de paredes sólidas e de um
teto que protegeria das tempestades, um “não-eu
que protege o eu” [BACHELARD, 2008, p.24]:
A casa teria, assim, um valor intrinsecamente ma-
ternal, de profundo amparo, proteção e acolhimento
da existência humana. E haveria, como referência
mais profunda, a “casa natal”, a casa das memórias
mais antigas, onde os hábitos se firmaram:
A partir dessa experiência do habitar, onde nascem
os hábitos, a casa passa a ser, essencialmente,
“um corpo de imagens que dão ao homem razões
ou ilusões de estabilidade” [BACHELARD,2008,
p.36]. O hábito é a organização da lida de uma
[...] todo espaço realmente habitado traz a essência da noção de casa.
[...] Na vida do homem, a casa afasta contingências, multiplica seus
conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso.
[BACHELARD, 2008, p.24-26]
A casa natal é a casa habitada [...] para além das lembranças, a
casa natal está fisicamente inserida em nós. Ela é um grupo de hábi-
tos orgânicos. [...] gravou em nós a hierarquia das diversas funções
de habitar. Somos o diagrama das funções de habitar aquela casa;
e todas as outras não passam de variações de um tema fundamental.
[BACHELARD, 2008, p.33-34]
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 205-252, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.48997]
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existência com o lugar. Estabelece padrões que
sugerem a estabilidade e permitem que a casa ha-
bitada cumpra a sua função de proteção. O hábito
adquirido no habitar a casa natal é transferido para
e reproduzido nas outras casas, perpetuando a
sensação de segurança.
Mas acontece de perder a casa. Acontece o exílio.
Como segue esse que perdeu o seu canto do mun-
do? Para onde vai esse ser agora disperso?
Fig.1 - Adrian Paci, Centro di permanenza temporanea, 2007
Fonte: https://welldesignedandbuilt.com/2012/03/02/adrian-paci-centro-di-permanenza-temporanea/[acesso em 18.02.21]
Estas questões nos tomam com sua máxima inten-
sidade quando nos deparamos com as imagens
de
Centro di permanenza temporânea.
Um vídeo
registra pessoas – claramente imigrantes – em
uma escada de aeronave, em uma pista de um ae-
roporto, sem qualquer avião próximo. Não sabemos
de qual aeroporto se trata, não sabemos a que país
pertence, não sabemos quem são essas pessoas,
não sabemos de onde vieram, não sabemos para
DIAS, Karina; FERREIRA, Luciana. Casa-exílio, palavra-mapa.
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onde vão. Não possuem sequer bagagem. Apenas
esperam em um espaço suspenso que é também
um hiato temporal entre o que foi e o que será. A
imagem, que por vezes enquadra alguns rostos,
não nos informa nada. Dá-nos apenas o duro con-
tato com a espera calma, desinformada, lacunar de
pessoas que não conseguem pisar o chão, deslo-
cadas no próprio lugar.
2
O expatriado é para Blanchot não apenas aquele
que perdeu seu país, mas o que descobriu um modo
de habitar sem hábito [BLANCHOT, 2010b, p.42]. O
exílio que enfrenta exige o abandono do hábito. Por
isso a casa é difícil, embora permaneça sempre
uma procura incessante. Uma procura, por força,
desapegada da casa natal. Uma procura, porquan-
to urgente, não exigente. O exílio é um trânsito, uma
chegada que não se conclui, uma partida que nun-
ca termina. Um estado suspenso. Todo exilado é um
estrangeiro diante do mundo e diante de si mesmo.
Mas, quem é o estrangeiro? – pergunta Maldonado.
E ensaia uma resposta:
O estrangeiro é o que se despede. Deixa para trás a
estabilidade da casa e dos sonhos. Deixa para trás a
língua materna, a casa de todas as casas. Salta em
um abismo de profundidade não mensurável, onde
não se faz abrigo. O estrangeiro é uma pergunta. E,
sendo essa pergunta inquieta e insistente, ela mes-
ma imprecisa, já não espera por qualquer resposta.
Um estrangeiro nunca se sente em casa. Ele atra-
vessa a soleira de uma casa que não lhe pertence
e espera, nela, encontrar hospitalidade. “A hos-
pitalidade pressupõe [...]a possibilidade de uma
delimitação rigorosa das soleiras ou fronteiras:
entre o familiar e o não-familiar, entre o estrangeiro
e o não-estrangeiro”
[DERRIDA, 2003, p.43]. E, uma
vez atravessada a soleira, aquele diante do estran-
geiro, primeiramente, pergunta-lhe o nome. Não se
oferece hospitalidade sem que o estrangeiro se de-
fina como estrangeiro. É preciso saber quem ele é
e de onde vem para submetê-lo às leis da hospita-
lidade, pois, “do ponto de vista do direito, o hóspe-
de, mesmo quando bem recebido, é antes de tudo
um estrangeiro, ele deve continuar
estrangeiro.
[DERRIDA, 2003,
p.63].
E tudo isso já está posto no
momento primeiro quando, atra-
vessada a soleira, o estrangeiro
precisa se apresentar em uma
língua que não lhe pertence.
[Aquele que] Vem de longe. [...] [que] tem que deixar a terra dos pais, a casa,
a memória. [...] Migra, o estrangeiro. E ao migrar desmancha qualquer vínculo
com a saudade e a tradição [...] Seus adeuses não deixam rastro ou memória.
Nenhuma memória tem respostas. Pois nenhuma resposta pode se dar senão
o olvido: o olvido que se torna ausência; a ausência que para dizer de si não
necessita rzes; raízes que o êxodo da língua materna e da ilusão de que uma
palavra possa des-velar [e não apenas revelar] transforma em pura errância.
[MALDONADO, 2004, p. 30-31]
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 205-252, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.48997]
210
Mas Derrida se pergunta se não seria possível outra
hospitalidade:
Há, na hospitalidade, uma antinomia entre as leis
da hospitalidade previstas pelo direito e a lei incon-
dicional da hospitalidade. São dois regimes con-
traditórios e inseparáveis, onde a lei incondicional
necessita das leis do direito enquanto as corrompe
e subverte, pois a lei incondicional da hospitalidade
seria sem lei, desprovida de deveres e imperativos
[DERRIDA, 2003, p.69-73].
Esgarçar ao limite a questão do estrangeiro e da
hospitalidade foi o que fez Paulo Nazareth. Em 2011,
percorreu a pé e de carona o caminho da sua casa
em Minas Gerais até a América do Norte. No per-
curso, fez uma série de registros da experiência que
estão reunidos no trabalho
Notícias da América.
Em um desses registros, o artista carrega no peito
uma placa de papelão escrita à mão onde coloca à
venda a sua imagem de “homem exótico”. A placa
é escrita em inglês, língua oficial do país onde se
encontra, diante do qual, enquanto homem
exótico, afirma-se como o estrangeiro
deslocado, não pertencente. Ao colocar a
sua imagem à venda, negocia a sua per-
manência. A cena acontece, entre outros
momentos, diante de uma kombi repleta de
bananas, dentro da sua exposição na
Art
Basel
, em Miami. Aqui, o estrangeiro parece
submeter-se, com ironia, às leis da hospita-
lidade impostas pelo direito local.
Em outro momento desse percurso, Paulo Nazareth
está em frente a uma placa do estado do Arizona
onde, dessa vez, carrega no peito outra placa de
papelão escrita à mão, agora em espanhol, dizendo
que também temos direito àquela paisagem. Então,
Nazareth afirma a América Latina reivindicando o
pertencimento ao lugar. Neste momento, há uma
tentativa de explosão de fronteiras:
Mi concepto de patria todos los dias se expande... nasci-
do en Brasil soy latino americano, siendo latino americano
soy tambien mexicano... soy parte de cada tierra por
donde pisaron mis pies... no hay como separar estas tierras
con una linea imaginaria llamada frontera... quiza sea por
eso que llevantaron el muro al norte: un intento de impe-
dir que Mexico siga siendo Mexico adentro de Estados
Unidos. [NAZARETH, 2009, s/p]
A hospitalidade consiste em interrogar quem chega? Ela começa
com a questão endereçada a quem vem [...]: como te chamas? [...]
Ou será que a hospitalidade começa pela acolhida inquestionável,
num duplo apagamento, o apagamento da questão e do nome? É
mais justo e mais amável perguntar ou não perguntar? [...] Oferece-se
hospitalidade a um sujeito? A um sujeito identificável? A um sujeito
identificável pelo nome? Um sujeito de direito? Ou a hospitalidade se
torna, se dá ao outro antes que ele se identifique, antes mesmo que
ele seja [posto ou suposto como tal] sujeito, sujeito de direito e sujeito
nominável por seu nome de família, etc? [DERRIDA, 2003, p.26-27]
DIAS, Karina; FERREIRA, Luciana. Casa-exílio, palavra-mapa.
Fig.2 - Paulo Nazareth, série Notícias da América, 2011-2012
Fonte: ttps://d.i.uol.com.br/diversao/2011/11/30/imagem-da-instalacao-do-artista-brasileiro-paulo-nazareth-exposta-na-vernissage-da-art-ba-
sel-em-miami-30112011-1322691762167_1920x1080.jpg [acesso em 18.02.21]
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 205-252, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.48997]
Fig.3 - Paulo Nazareth, série Notícias da América, 2011-2012
Fonte: https://artebrasileirautfpr.wordpress.com/2013/02/26/paulo-nazareth/[acesso em 18.02.21]
DIAS, Karina; FERREIRA, Luciana. Casa-exílio, palavra-mapa.
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Outro estrangeiro, Edmond Jabès, de uma famí-
lia de origem judia francófona, nascido no Cairo,
com nacionalidade italiana [sem jamais ter vivido
na Itália], exilou-se na França. Em certo momento,
afirmou nunca saber onde se encontrava, pois se
sentia na França quando habitava o Egito e, uma
vez na França, sentia-se sempre em outro lugar. “O
estrangeiro já não sabe qual é o lugar” [Jabès, in
MALDONADO, 2004, p.29]. E assim seguiu, ainda
que desejando firmar morada, sem apego a ela, fa-
zendo da sua existência uma contínua viagem onde
tudo é transitório.
Disse Jabés:
[...]
Deixei uma terra que não era minha,
troquei-a por outra que, tampouco, me pertence.
Refugiei-me num vocábulo de tinta, que tem o livro como
espaço;
palavra de lugar nenhum, palavra obscura do deserto.
Não me cobri, à noite.
Não me protegi do sol.
Andei nu.
De onde eu vinha, já não tinha sentido.
Para onde ia, não havia quem se importasse.
Vento, digo-lhes, vento.
E um pouco de areia no vento.
[JABÈS in MALDONADO, 2004, p.29]
E segue Jabès compartilhando o sentido do deserto –
imagem escolhida por ele para traduzir a sua errância
exilada – a partir da experiência de quem o viveu na
carne como ferida exposta. O deserto é, para ele,
ausência de paisagem, o lugar de um não-lugar, au-
sência de qualquer referência e, portanto, ao mesmo
tempo, distância e não distância, e ainda a própria
separação que é abertura do lugar [JABÈS, 1991, p.61].
Assim como é o deserto, é também o exílio.
Ora, se há deserto [se há exílio], se não há casa, há
de se buscá-la. Ainda que sem hábito, habitar. De
alguma maneira, encontrar uma forma de estar em
um lugar. Uma forma de “organizar, entretanto, esta
terra como residência.” [BLANCHOT, 2010a, p.73]
Jabès confessa ter encontrado abrigo no livro, onde
o exílio, de alguma maneira, pôde ser casa.
Curioso que, no máximo da indigência e do não
pertencimento, tenha havido esse encontro de um
abrigo em um livro, ainda que com “palavras de
lugar nenhum”. Um refúgio “num vocábulo de tinta,
que tem o livro como espaço”. Fazer não de um
país, mas da língua a casa-exílio. Habitar o estran-
geiro na palavra. Pela língua, morar no exterior
[não somente de um lugar, mas da experiência]. E,
assim, fazer da casa uma intimidade ao avesso, que
lança para fora e acolhe no fora. O externo como
experiência de morada. A errância como norte e
caminho conhecido. A intimidade do fora.
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 205-252, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.48997]
Fig.4: Regina de Paula,
Para o levante,
2015-2016
Fonte: : https://ogimg.infoglobo.com.br/in/18936623-464-ee0/FT1086A/652/2016-896524535-para-o-levante_video-regina-de-paula_fo-
towilton-montenegr.jpg [acesso em 18.02.21]
DIAS, Karina; FERREIRA, Luciana. Casa-exílio, palavra-mapa.
215
A PALAVRA EXILADA
Blanchot [2010a] fala da “paixão pelo Exterior”
3
.
Para ele, esse é o caminho para se pensar uma lín-
gua impossível, ou seja, uma língua que não pode,
uma língua sem poder, distante da compreensão
apropriadora. Somente uma separação assim in-
finita, que remete ao absolutamente outro de mim,
pode afirmar uma palavra plural, não submetida à
violência da única palavra.
A língua que interessa a Blanchot é a língua exila-
da, a língua que não estabelece morada senão no
próprio exílio. A língua interrompida tantas vezes,
tão deslocada de si, tão em trânsito, tão estrangei-
ra, que não possa ser tomada como última palavra.
Que acolha, portanto, a indigência, a diferença, a
dúvida. Uma língua, enfim, sem qualquer verdade,
um livro lançando ao mar, como em
Para o levante,
de Regina de Paula.
Mas, e quando o exterior não é só um lugar infi-
nitamente distante para onde a palavra aponta,
mas um lugar dentro da própria palavra? Ou seja,
quando, na palavra, o fora se abre por dentro?
Nessa língua mal-dita
4
, acontece de o exterior ser
íntimo, de o fora ser um tipo de infiltração que toma
a palavra na sua intimidade secreta e abala a sua
estrutura interna. O exterior mergulha na palavra e
a divide infinitamente a partir do seu interior. O exte-
rior, agora, está dentro da palavra, a palavra passa
a ser o seu fora. A palavra é exilada de si.
Quando isso acontece, quando a separação infinita
está dentro da palavra, a descontinuidade penetra no
interstício, no espaço vacante, e segue espaçando
ainda mais para que o fora nasça dentro da palavra e
lhe pertença como elemento constituinte fundamen-
tal. Enquanto há a intimidade do fora, compreende-
mos que o fora é também o que há de mais íntimo. O
infinitamente distante é também o mais próximo.
Essa é a experiência sugerida por
Quase notas para
quase pensamentos.
Nela, um poema de Gertrude
Stein e a sua tradução por Augusto de Campos são
rasurados com fita corretiva branca, de modo que
apenas a última letra antes de cada pontuação e a
pontuação correspondente permanecem intactas.
Surge, dessa experiência, uma leitura completa-
mente nova. Há, neste trabalho, um convite para
uma oralidade primeira, um balbucio de letras soltas,
constituído de puro gozo sonoro.
Deparamo-nos com
uma espécie de coleção de sopros que formam um
pequeno texto de quase anotações aéreas às quais
correspondem, talvez, pensamentos insipientes,
não desenvolvidos, expressos por desenhos visuais
desses fragmentos de sons agora estrangeiros no
próprio poema de origem. O novo texto deslocado
busca abrigo na antiga página-casa que agora se
tornou exílio. Pode, a própria casa, ser exílio?
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 205-252, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.48997]
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CASAMUNDO OU QUANDO
A TERRA NOS EXILA
Todos os dias vou a minha biblioteca e encontro a cora-
gem, todos os dias abro aleatoriamente um livro, todos
os dias leio as mesmas palavras: “onde poderia cair sem
desastre?”
5
,
Estar em casa todos os dias até que nos sintamos
exilados do mundo. Exilados do mundo, abandona-
dos pela terra
6
. Como nomear aquele que perdeu
o mundo? O que permanece como questão? Se
um estrangeiro nunca se sente em casa, porque
perdeu o teto protetor, em que medida aquele que
não pode mais sair de casa se torna também es-
trangeiro ao teto que o protege? A quem esperamos
dar hospitalidade quando aquele que chega somos
nós mesmos? Já não sabemos qual o nosso lugar.
Permanece, como nos lembra Anne Dufourman-
telle [2003, p.50] o onde, como sendo a questão do
homem. A autora continua salientando que Der-
rida nos faz compreender que ao próximo não se
opõe o algures, mas uma outra figura do próximo.
E esta geografia nos conduz ao
onde?
Nos conduz
a interrogar-nos sobre a relação essencial com o
lugar, com a morada e com o sem-lugar. Na impos-
sibilidade de estarmos no mundo atravessamos a
soleira de nossas casas para aí permanecermos
indefinidamente. O que era antes um território está-
Fig.5 - Luciana Ferreira, Quase notas para quase pensamentos
[original e tradução], [detalhes], 2016
Fonte: acervo da artista
DIAS, Karina; FERREIRA, Luciana. Casa-exílio, palavra-mapa.
217
vel, agora se transforma em um espaço em que as
fronteiras entre o interior e o exterior se encontram
esfumaçadas. Se a hospitalidade é uma relação
ambivalente com o espaço e se revela como um
gesto de acolhida, de dar lugar a quem chega [DU-
FOURMANTELLE, 2003, p.58], sejamos nós aqueles
que, a um só tempo, acolhem incondicionalmente
a própria casa e são acolhidos por ela. Casa [in]
cômoda, que nos confirma que não ocupamos mais
o centro da cena, que perdermos o ponto de vista
privilegiado sobre as coisas e nos sentimos à beira
do abismo. Deslocados não reinamos
mais despotamente. Fomos lançados à
margem para, dali quem sabe, reinven-
tar uma existência.
Nesse movimento, a casa-forte que nos
protege da eminente ameaça é também o farol
7
por
onde observamos os movimentos da terra. Se habi-
tar é uma geografia [DELEUZE, PARNET, 1996, 159] é
preciso reencontrar o seu relevo. Nesse estado-de-
-cabana permanecemos [i]móveis?
Levinas nos lembra que ao nos deitarmos, ao nos
encolhermos em um canto para dormir, nos aban-
donamos ao lugar, ele se torna nosso refúgio como
base [LEVINAS, 1993, p.119]. O geógrafo Eric Dardel
[DARDEL, 2011, p.41] completa que é desse lugar,
base de nossa existência que despertando, toma-
mos consciência do mundo e saímos ao seu encon-
tro. Na impossibilidade de sairmos audaciosamente
rumo aos espaços para além da casa, nos resta
compreender que a casa é um vasto mundo. Não
há como não lembrar de Mercator[1609], cartógrafo
flamengo do século XVI, que descrevia a casa como
um pequeno mundo e o mundo como uma grande
casa. Mas a pergunta que nos assombra atualmen-
te e que se mantém como um sussurro incessante
é o que acontece quando perdemos o mundo? Vale
reler o poema de Albert Camus [1939-53]
Do mar
bem perto
onde o poeta escreve:
Perder o mar, perder a paisagem, como se todas as
paisagens tivessem, momentaneamente, recuado
e nesse recuo, resta-nos ocupar uma exígua faixa
de terra [MALDONADO, 2004], um solo primeiro
que nos convida a experimentar de forma radical a
nossa casa. Confinados em nossas moradas, expe-
rimentamos distâncias que nos conduzam ao que
nos resta da concretude do mundo [a sua materia-
lidade] e a uma topologia mental, uma finisterra do
espírito como afirma Kenneth White [WHITE,1987].
Nessa dinâmica toda imagem fabrica distâncias,
cria tempos distintos, é ponto de vista e ponto de
... quando perdi o mar, todos os luxos passaram a ter para mim aparência
opaca .... Desde então espero. Espero as naves de retorno, a morada das
águas, o dia límpido. Aguardo pacientemente com todas as minhas forças
muito bem brunidas. [CAMUS, 1939-53]
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 205-252, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.48997]
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contato, detalhe e panorama. Nesse desejo de
espaço, espaçamo-nos... somos um corpo moven-
do-se no espaço [WHITE,1994] criamos paisagem,
inventamos lugares, deambulamos, talvez, em bus-
ca de um alhures possível... lá, onde estivermos.
Emergiriam daí outras rotas, um espaço de na-
vegação a bordo de todos os dias
8
? Vagamos,
quem sabe, em busca dos ventos, dos mares e das
correntezas, franqueamos distâncias, entrevemos
continentes. Companheiros de um lugar que só
conhecíamos, muitas vezes, de passagem, somos
nesse exílio forçado viajantes das pequenas distan-
cias. Habitar a proximidade como se um longínquo
fosse, compreender que o espaço é sempre uma
dúvida
9
e que a realidade geográfica é, como es-
creve Dardel [DARDEL, 2011], o lugar onde estamos.
Nessa morada do íntimo, como [não] pensar em
paisagem? Se a paisagem é a medida do olhar que
silencia o ruído, ela também é onde a terra e o céu
se tocam [CORAJOUD apud ROGER, 1995], um mo-
vimento mínimo e uma revolução máxima, sempre
entre visão e
invisão
[DIAS, 2010] essa ressonância
interna que nos confirma que a paisagem é mais
que um simples ponto de vista óptico. Nessa justa
aliança que une o lado objetivo daquilo que vemos
com o lado subjetivo, íntimo a cada um de nós, a
paisagem é um
como-ver-se
. Um ver de dentro que
se desdobra no fora. Estar incluído e saber-se dis-
tância. Nesse movimento nem sempre dócil, o olho
que olha é também o que sonha.
Nesse exílio-morada-exílio, pode a paisagem morar
na palavra? Pode a palavra armazenar o horizonte,
condensar o mundo, sustentar a sua arquitetura?
Habitar todas as línguas, escutar uma língua muda,
praticar uma língua nômade, encontrar as palavras
corajosas. [GALLIENNE, 2020], indagar os nomes.
Reencontrar o caminho de volta à terra, sem esque-
cer que “bastaria um movimento de distração para
afogar os cinco continentes. O mar não tem remor-
so...” [JABÈS apud
MALDONADO, 2004, s/p]
Pelas palavras chegar, pelas palavras refundar a
morada.
A PALAVRAMAPA:
“Vocês, palavras, levantem, sigam-me e quando
tivermos ido longe demais, iremos ainda mais
longe, isso não tem fim”, escreve a poeta Ingeborg
Bachmann [BACHMANN, 2020, p.127]. O que resta
quando a linguagem silencia? O vento, a respira-
ção, a distância entre os corpos que se movem,
as palavras miúdas ditas pelo caminho, inaudíveis
porque, em movimento, são como os invisíveis
detalhes que compõe um percurso. Como as flores
que ficam na beira da estrada sem nome ou pres-
tígio e que nos lembram que o próximo pode ser
DIAS, Karina; FERREIRA, Luciana. Casa-exílio, palavra-mapa.
219
um vasto mundo. Reencontrar
a língua do espaço. Formular
efêmeros enunciados. Lem-
brar que mover exige coragem.
Das coisas às palavras, sem-
pre em movimento, sempre
movediças. “Como os nomes
suportam portar os anônimos,
indaga novamente a poeta?”
[BACHMANN, 2020 p.25]. Os
nomes são geografias, são
como vozes que sussurram em
uma língua desconhecida. São
relevos, apontam direções,
distâncias, topografias nômades.
É preciso reencontrar o mapa. Rever percursos,
reler palavras esquecidas, pousar e repousar nas
distâncias percorridas, sem sair do lugar. Foi dessa
experiência que surgiu o vídeo Sudamérica
10
. Nele
o espectador acompanha o deslocamento em um
mapa ao mesmo tempo em que uma voz em off
narra sobre a viagem, o encontro com as fronteiras,
a impossibilidade de se chegar e o que significa
partir. No mapa, uma odisseia da palavra.
Se todo mapa é uma sombreada paisagem, é tam-
bém uma nota, um esboço, uma mirada. Uma mira-
da forasteira. Uma vista intrusa ao nome. Possibili-
Fig.6: Karina Dias & Albert Ambelakiotis,
Sudamérica
, 2020. Vídeo, detalhe.
Fonte: acervo da artista
dade de medida e efêmero contorno. Uma página
para um atlas. O projeto para um globo. Quantos
são os percursos, as horas vividas, os dias habita-
dos, as luzes meridianas, o que não está posto?
A terra não cabe num mapa, tampouco as pa-
lavras não ditas e a história abandonada como
um mato selvagem que encobre toda paisagem
esquecida. O que dizem as vizinhanças silencio-
sas aos ruídos que vem do sul? De terra em terra,
percorrer os lugares como se intrusos não fôsse-
mos, nessa impossibilidade permanente, somos
estrangeiros aos espaços e a seus nomes, mesmo
os mais fraternais. Nessa casa que se tornou mun-
do, há muitos nomes para os ventos, há muitos
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 205-252, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.48997]
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nomes para os lugares. O movimento foi sempre o
mesmo, atravessar de nome em nome uma faixa
de terra, estar à margem, entrever um continente
imaginado. Com o mapa, dar a volta ao mundo
sem sair do lugar, cartografar distâncias oceâni-
cas, fronteiras longínquas e estranhos nomes. As
palavras são quilômetros.
Nesse mundo da proximidade que recua, do
longínquo que [se] aproxima num instante
[MAR-
QUES,2009, p.64], noturnas são as distâncias.
Habitar as fronteiras, seus modos, suas línguas,
as palavras ferozes, os estranhos nomes. Quantas
são as rotas de fuga? Possuir as direções. Guar-
dar as distâncias. Abandonar o mapa
,
“lá onde a
terra é aquilo que podemos perder num instante”.
[DARDEL, 2011, p.36]
CONCLUSÃO
O que acontece quando perdemos a casa? O que
acontece quando perdemos o mundo? Nestas
perguntas, que provocaram a nossa reflexão, duas
experiências de exílio distintas se encontram: o
exílio fora de casa e o exílio dentro de casa. Como
se a casa fosse o lugar onde se quer estar quando
é preciso partir, ou o lugar de onde se quer partir,
quando é preciso estar. Em meio a tudo isso, surge
a relação do exílio com a palavra, seja a que es-
capa de um texto, seja a que aparece em um livro,
um mapa, no relato de uma recordação de viagem.
Palavra que fala sempre da urgência de pertenci-
mento, seja a uma casa ou ao mundo.
Em comum a essas experiências aparentemente
distintas, o fato de que todo exilado deseja estar
em um lugar onde não se encontra. E, por isso, o
exilado inventa para si o que precisa onde quer que
esteja – seja a casa fora de casa ou o mundo fora
do mundo. Toda casa se torna mapa de mundo me-
dido em pequenas distâncias, todo mundo se torna
canto de casa apoiado em distâncias infinitas. Per-
correr esses caminhos é a aventura que revela que
casa e mundo são sempre carregados conosco e
que, portanto, nem a casa e nem o mundo podem,
no fim, ser-nos retirados.
DIAS, Karina; FERREIRA, Luciana. Casa-exílio, palavra-mapa.
221
NOTAS
1 Parte deste texto é composto por escritos extraídos, com
alterações, dos capítulos Casa-exílio e Morada-murmúrio,
originalmente escritos para a tese de doutorado, em artes visuais,
intitulada Palavra-livro, casa-exílio [por uma língua mal-dita] de
Luciana Ferreira, sob orientação de Karina Dias [Universidade de
Brasília, 2017-2021]. O texto aqui apresentado foi enriquecido
pelas reflexões sobre as obras citadas de Adrian Paci e de Paulo
de Nazareth.
2 Adrian Paci, autor da obra, era ele mesmo imigrante, um
albanês que foi para a Itália em 1992.
3 Sobre o tema, ver Conversa infinita – a palavra plural, p.85-
94.
4 A tese de uma língua mal-dita é apresentada em Palavra-
-livro, casa-exílio [por uma língua mal-dita] onde, entre outras
coisas, pode-se ler: “Mal-dita é a língua maldita em sentido ordi-
nário, amaldiçoada por não se adaptar às regras e às expecta-
tivas. Assim é, também e por isso mesmo, a língua que é dita mal,
uma língua livre em buscar caminhos, que deve pouco às normas
e às instituições que a regulam. Uma língua que implode os limi-
tes que garantem a boa comunicação.”[2021, p. 54]. Programa
de Pós-Graduação em Artes Visuais – PPGAV- Universidade de
Brasília.
5 Iniciado no ano de 2020, em plena pandemia,
Todos os
dias
é um trabalho em processo de Karina Dias. O trecho
onde
poderia cair sem desastre
é de autoria do poeta Paul Valet.
6 Em referência à epidemia do Coronavírus que confinou
populações inteira ao redor do mundo. A epidemia começou no
inicio de 2020 e perdura pelo ano de 2021.
7 Em sua dissertação de mestrado, em fase final, intitulada
Terra caídas, como navegar em águas rasas
– sob orientação
de Karina Dias [UnB], a artista Raíssa Studart vem desenvolvendo
a compreensão de sua casa como um farol.
8 Título do artigo inédito do Grupo de pesquisa Vaga-mundo:
poéticas nômades [CNPq]. Coordenação Profa. Dra. Karina
Dias.
9 Em referência à Perec que escreve : [...]
l’espace est un doute
:il me faut sans cesse le marquer, le designer ; il n´ést jamais à
moi [...]
in PEREC, Georges.
Espèces d’espaces
. Paris: Galillée,
2000, p.179. O espaço é uma dúvida: eu preciso constante-
mente marca-lo, designá-lo; ele nunca é meu. [tradução das
autoras].
10 Vídeo inédito de autoria de Karina Dias e Albert Amabe-
lakiotis realizado ao longo de 2020. Realizado a partir do
reencontro com um mapa da américa do sul utilizado durante
uma viagem por esse continente- realizada de 1995 a 1996 - e
dos diários de bordo do período que compreendeu o trajeto.
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 205-252, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.48997]
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