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RESUMO A partir da produção da artista Pêdra Costa – dando foco à exposição
À Nordeste
e às ações de
Solange tô aberta
– pretendo desenvolver neste artigo uma reflexão sobre a arte da performance associada às
ações políticas, à ação-palavra-performance, tendo como foco da discussão a decolonialidade, uma perspec-
tiva política da ação dos corpos dissidentes, compreendendo a dissidência desde uma perspectiva estética. O
artigo ainda busca discutir os territórios da performance, pensando o corpo, a borda, a fronteira, a criação de
espaços fronteiriços e as [des]deslocalizações que se dão pela performance e pelo corpo.
PALAVRAS-CHAVE performance, Pêdra Costa, território, aesthetic dissent
ABSTRACT Based on Pêdra Costa’s production – focusing on the exhibition
À Nordeste
and
Solange tô aberta
actions – I intend to develop in this article a reflection on the art of performance associated with political ac-
tions, action-word-performance, focusing on the subject of decoloniality, a political perspective on the action of
dissident bodies, comprising dissent from an aesthetic perspective. The article also seeks to discuss the territories of
performance, thinking about the body, the edge, the border, the creation of border spaces, and the [de]displace-
ment that occurs through performance and the body.
KEYWORDS performance, Pêdra Costa; territory, aesthetic dissent
CORPORALIDADES [DES]LOCALIZADAS: ACIONAMENTOS DE
PERFORMANCE DE PÊDRA COSTA
[De]localized corporealities: performance drives of Pêdra Costa
Corporealidades [des]localizadas: impulsos de rendimiento de Pêdra Costa
Thigresa [Universidade Federal Fluminense, Brasil]*
*Thigresa, Thi. Gresa & José Pedro Almeida é pessoa não binarie, professore, performer, pesquisadore. Graduade em Artes do Corpo [PUC/SP],
mestru em Comunicação Social [UERJ] e doutorande em Estudos Contemporâneos das Artes [UFF], desenvolve pesquisas sobre genealogias de per-
formance, estéticas dissidentes, ações políticas e relações entre performance, gênero e política. E-mail: josepedro.arte@gmail.com, ORCID: https://
orcid.org/0000-0003-2509-8203;
Thigresa, Corporalidades [des]localizadas: acionamentos de performance de Pêdra Costa.
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RESUMEN Partiendo de la producción de la artista Pêdra Costa - centrándome en la exposición À Nordeste y ac-
ciones de “Solange, tô aberta” - pretendo desarrollar en este artículo una reflexión sobre el arte de la performance
asociada a las acciones políticas, acción-palabra-performance, con foco de la discusión a la descolonialidad, una
perspectiva política sobre la acción de los cuerpos disidentes, entendiendo el disenso desde una perspectiva esté-
tica. El artículo también busca discutir los territorios de la actuación, pensando en el cuerpo, el borde, la frontera, la
creación de espacios fronterizos y el [des]desplazamiento que se da a través de la actuación y el cuerpo.
PALABRAS CLAVE performance, Pêdra Costa, território, disidencia estética
Citação recomendada:
THIGRESA. Corporali-
dades [des]localizadas:
acionamentos de perfor-
mance de Pêdra Costa.
Revista Poiésis, Niterói,
v. 22, n. 38, p.279-292,
jul./dez. 2021. [https://
doi.org/10.22409/poie-
sis.v22i38.49077].
Este documento é
distribuído nos termos da
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mons Atribuição-Não
Comercial 4.0 Internacio-
nal [CC-BY-NC]
© 2021 THIGRESA
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 279-292, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.49077]
(Submetido: 8/3/2021;
Aceito: 13/5/2021;
Publicado: 7/7/2021)
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INTRODUÇÃO
Uma exposição ou uma ocupação? Novas narrati-
vas pelo corpo, ou um corpo-existência-performan-
ce que amplia os diálogos sobre a linguagem da
arte da performance? Esse artigo pretende lançar
um olhar-investigação sobre a produção artística
da artista da performance Pêdra Costa
1
, desde “So-
lange tô aberta” até a ação que a artista apresentou
na exposição
À Nordeste
, realizada em São Paulo,
no Sesc 24 de Maio.
Pêdra Costa é ume corpo-território em constante
criação, transmutação e tensão de narrativas.
A artista instaura com a sua política-existencial
ações estético-políticas que ampliam os limites
e as dinâmicas dos fazeres práticos da perfor-
mance. É a produção de Pêdra que mobiliza os
olhares e pulsões deste artigo. Um olhar para a
arte da performance, desde as ações disparadas
pela artista, me instiga a pesquisar os campos
indisciplinares da performance, sob uma ótica das
dissidências e dos desvios.
Pêdra Costa atualmente reside em Berlim, mas já
transitou entre Rio de Janeiro, Natal, Belém e as
fronteiras do mundo. Conheci a produção da artista
ainda na graduação em Artes do Corpo na PUC,
quando investigando a linguagem da performance
me deparei com a produção de “Solange Tô Aber-
ta”. Pedra é uma artista que localiza a sua produção
desde o seu corpo dissidente no campo da per-
formance, das narrativas artísticas e das localiza-
ções. A existência estético-política de Pêdra Costa
desloca, e desde essa relocalização se produz
um território de ação. Assim sendo, além de Pêdra
produzir ações da performance, o corpo de Pêdra
é um território para se acionar performances: um
corpo-suporte.
Ser um corpo suporte não significa ser um corpo
passivo, o corpo-suporte é um território político que
guarda as suas idiossincrasias e se coloca como
uma tensão para os debates sobre os limites da
performance. O corpo-suporte é a existência levada
ao limite, é a crise da norma e das possibilidades
lineares de existências. Corpo-suporte é a crise
instaurada no discurso normativo e regulatório.
Busco debater durante o desenvolvimento do texto
as questões provocadas pelos deslocamentos e as
[des]localizações, desde uma perspectiva deco-
lonial, dissidente e do desvio, tendo como foco a
produção da artista.
Esse artigo articula-se diante dessas três chaves: o
decolonial, que redimensiona a ação do corpo e o
corpo como território; a dissidência, compreendida
enquanto uma dissidência estética que transcende
a questão de gênero e se aproxima do fazer político,
Thigresa, Corporalidades [des]localizadas: acionamentos de performance de Pêdra Costa.
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como a ação estético-política; e, o
desvio, um olhar para a prática da
performance e das questões da lin-
guagem da fronteira. Aliás, é desde
as fronteiras e os territórios da borda
– propriamente falando da performance – que esse
artigo se desenvolve, levando em consideração que
é nos limites e nas práticas fronteiriças que se esta-
belece o movimento de descolonização, de desvio e
da performance.
LOCALIDADES
Realizada no Sesc 24 de Maio, em São Paulo, entre
os dias 16 de Maio e 25 de Agosto de 2019, a expo-
sição teve como eixo curatorial uma abordagem de
artistas que residem no Nordeste, ou que produzem
desde os territórios nordestinos. O evento buscou
produzir um questionamento estético a partir da
contraposição social, cultural, econômica e artísti-
ca, à qual a região é submetida desde os processos
coloniais e, posteriormente, aos olhares centrali-
zados que se fazem sob perspectivas sudestinas.
A organização estética/conceitual se deu a partir
de um questionamento do artista Yuri Firmeza
2
,
como afirma o texto curatorial da exposição – que é
assinado por Clarisa Diniz, Bitu Cassundé e Marcelo
Campos [2019]. Reproduzido no catálogo da exposi-
ção, o texto afirma:
Tal fricção se deu pela apresentação de diverses
3
artistas das mais distintas linguagens e gerações.
A exposição não buscava uma representação da
região – como muitas vezes é feita pelo imaginá-
rio – mas sim tensionar o que se compreende por
Nordeste, reconfigurado agora por “estratégias de
luta” [CASSUNDÉ; DINIZ; CAMPOS, 2009, p. 7] e de
resistência. Por meio da reconfiguração, a partir de
novas estratégias de luta é que se dá a resistência
geopolítica e estética. O título da exposição já é
uma provocação com relação a um deslocamento,
um redimensionamento e uma realocação da espa-
cialidade imaginária do Nordeste.
Ao crasear o artigo “a” que direciona o olhar e o
imaginário para o Nordeste – produzindo uma
tensão léxica e gramatical
à Nordeste
– transforma
uma porção territorial definido “apoliticamente”
e simploriamente em termos geográficos em um
território político fronteiriço, um território de perfor-
mance
4
.
À Nordeste
, além de se configurar como
uma exposição que questiona os limites das re-
presentações, tensiona a política dos corpos pela
performance da palavra. Como afirma, o texto de
apresentação da exposição.
concebemos a exposição À Nordeste não como uma busca por identidades
regionais, mas como uma articulação entre posições e contraposições soci-
ais que apontam para narrativas diversas e continuadas disputas em torno e
intrínsecas ao nordeste. [CASSUNDÉ; DINIZ; CAMPOS, 2009, p. 7]
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 279-292, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.49077]
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Ainda acrescentaria que ao crasear a expressão,
À
Nordeste
deixa de ser uma ação de negação e con-
frontação às classes léxicas e gramaticais, e passa
a ser uma performance: o próprio título da expo-
sição/ocupação é uma performance. Ocupação
e performance ao deslocar e provocar reflexões
sobre as subjetividades e singularidades a partir de
uma questão. Ao mesmo tempo, performance ao
instaurar uma outra dinâmica de olhar e de produ-
ção de sentido, por meio do questionamento das
posições rígidas das relações de poder.
Por um lado, trata-se de um projeto contra-hegemô-
nico que produz outras/novas narrativas de mundo,
ao passo que questiona a desinstitucionalização e
desierarquização das relações e políticas das espa-
cialidades, ocupações e disposições geopolíticas.
Por outro lado, é um processo de tensão a partir
dos corpos, que performam um giro que nos leva à
perspectiva à nordeste, ou, como ainda dito pelos
curadores, que a pergunta de
Yuri Firmeza deslocou o ques-
tionamento para a reflexão
sobre a ideia e a produção do
Nordeste.
[...] em que posições encontram-
-se as nossas identidades e valo-
res. Confrontadas com corpos e
subjetividades em deslocamen-
to, nossas certezas são surpreendidas pela crase que,
insurgindo-se contra a gramática, ativa a linguagem – e
a arte – como armas de luta e gozo [CASSUNDÉ; DINIZ;
CAMPOS, 2009, p. 8]
À Nordeste é a expressão do que instaura uma ação
política no mundo, ela deixa o espaço do papel e
vira uma ação do corpo que habita os territórios
fronteiriços dessa política contra-hegemônica.
Essa proposta de movimento se localiza e dialoga
com o que o filósofo da linguagem
5
, John Langshaw
Austin [1990], conceitualiza no seu livro
Cómo hacer
cosas con palabras: palabras y acciones
. Para o
autor, a construção do ato da palavra [e da sua fala,
seja na dimensão do ruído – a voz – seja por meio
da escrita] é uma ação. Ele compreende que essa
ação impreterivelmente está associada a um ato
performativo. Assim: atos de fala são atos de fazer
[quando falar é fazer].
Crasear a expressão ‘À Nordeste’ não é fixar um lugar por suas características
identitárias. Em outra direção, desejamos a instabilidade de um gesto que, desobe-
decendo a norma culta, fricciona normatividades. Inventar expressões reverbera
questões prementes que atravessam a história e a atualidade desse território, como
núcleos da exposição, que provocam ideias de futuros, [de]colonialidades, trabalho,
insurgências, linguagens, desejos, cidades, natureza. A crase torna ambivalente o
estereótipo regionalista, pois evita o artigo definido – e, com ele, uma identidade
unívoca – de “o nordeste”, ao passo que torna mais ambíguas suas coerções de
gênero. A crase indica também movimento, trânsitos que questionam estigmas e
destinos. [CASSUNDÉ; DINIZ; CAMPOS, 2009, p. 8]
Thigresa, Corporalidades [des]localizadas: acionamentos de performance de Pêdra Costa.
284
Segundo Austin [1990, p. 138], “
a considerar des-
de la base en cuántos sentidos puede entenderse
que decir algo es hacer algo, o que al decir algo
hacemos algo
.” [p. 138]. O autor compreende que
o ato de falar gera uma ação política no mundo, de
forma que na concepção de Austin, falar
6
é fazer. Ao
falar-fazer uma ação no mundo, pode-se criar um
espaço de ações políticas por meio das palavras
que instauram movências e movimentos. O trânsito
do ato de falar e fazer algo é pautado pela ação po-
lítica, da afetação, contaminação, atravessamentos
e da idiossincrasia
7
, também em um conceito da
arte da performance.
O autor se debruça sobre os atos locucionários –
locutionary act
, que dentro dessas práticas da
ação da fala [fazer pela fala] tem um “acto de otro
tipo” [AUSTIN, 1990, p. 145]. “Tipo” refere-se a um
ato que se dá numa esfera que não a física, e John
Langshaw Austin qualifica esse outro tipo de ato
da seguinte forma: “
A menudo, e incluso normal-
mente, decir algo producirá ciertas consequencias
o efectos sobre los sentimientos, pensamientos e
acciones del auditorio
.” [AUSTIN, 1990, p. 145]. Políti-
ca aqui é entendida como o que produz um sentido,
uma sensação, e uma alteração nas organizações
e nas estruturas normatizadoras. Nesse sentido
cabe dizer da aproximação da produção de sentido
e da sensação que na performance está associa-
da à ideia de idiossincrasia. Essa ação, entendida
desde uma perspectiva do
locutionary act
mas, que
não engloba apenas o ato da fala, por isso é o ato
da locução, que implica também estudos das ações
de las unidades completas del discurso
”. [AUSTIN,
1990, p. 138]. Performance, palavra, ação, política
[arte] e agora, produção de sentido-idiossincrasia.
Palavras que possibilitam e friccionam novas for-
mas de estar no mundo, ao mesmo tempo que pela
performance da palavra, pela criação de movimen-
tos e trânsitos políticos, por meio da fala-perfor-
mance-política, se inventa novas palavras, léxicos
e dinâmicas gramaticais para se dar conta dos
corpos, existências e possibilidades de fazer [des]
localizados. Novas palavras para novas formas de
estar no mundo. É neste sentido que se dá o trânsito
e o giro político, desinstitucionalizado e descolonial
em
À Nordeste
. Ainda num sentido de produzir ou-
tras tensões por meio da palavra, e das localidades
deslocadas – [des]localidades –, quero construir
uma segunda linha de força, por meio da tentativa
de condensar as questões dentro das palavras.
Inicio dizendo que a palavra não dá mais conta, não
só da categorização, mas a palavra tornou-se, com
o passar do tempo, um elemento da captura, que
utilizado pelas normatividades, cai no vazio existen-
cial que provou o debate feito no livro
Los diferentes
modos de existência
[SOURIAU, 2017]. Para finalizar
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 279-292, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.49077]
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esta sessão e tentar construir mais uma dimensão
desses deslocamentos produzidos pela ocupação/
exposição, quero trazer à cena um debate sobre os
trânsitos que as palavras constroem junto com os
corpos dissidentes e as dissidências estéticas que
as produzem.
Sempre que penso em dissidência estética – que
está para além de uma dissidência de gênero, uma
vez que a estética se pauta além da visualidade por
um descompromisso com as normas, normativida-
des e linearidades
8
– as movências, movimentos e
trânsitos ilustram imageticamente o que eu penso e
o que eu quero construir. Há um primeiro momento
no qual essas imagens fazem referência aos movi-
mentos dos corpos, às suas ações. Diante do olhar
de Austin, ainda poderia dizer que a produção da
expressão que desloca o nordeste – À NORDESTE
, que se dá nos movimentos dissidentes de Pêdra
Costa, e que provoca movimentos e [des]localida-
des, se dá por meio da ação-proposta de Paul Zum-
thor [2005]: a performance [escrita, ação do corpo]
e o nomadismo.
Paul Zumthor – assim como Austin, seu contempo-
râneo –, estuda a performance da escrita e da fala
desde as perspectivas da poesia oral [oralidade].
Entendendo essas possibilidades de deslocamentos
do corpo, deslocamentos estéticos e as presenças
que se dão por meio da palavra, o autor escreve:
a voz, por onde a poesia transita, aceita, assume a ser-
vidão
9
que constitui a existência do corpo, com tudo que
esse corpo implica, suas fraquezas e suas forças. Estamos
assim de volta à ideia de espaço: a voz expande o corpo,
deslocando seus limites para muito além da sua epiderme.
[ZUMTHOR, 2005, p. 89]
É na expansão que se dá esse movimento que tão
bem localizou o autor. A relação que aqui fizemos
entre as ideias de política, dissidência, performan-
ce, idiossincrasia, [des]localidades me fez pergun-
tar como a palavra, – no caso a expressão À NOR-
DESTE, – pôde gerar tantos debates, abrir tantos
caminhos – para que inclusive as organizações
artísticas repensem as suas políticas? A resposta
me levou esse extenso debate sobre a dinâmica
das palavras e dos corpos.
Nos deslocamentos provocados pelo título da
exposição ainda indico que a presença da voz está
diretamente associada à presença do corpo. E a
presença do corpo atravessa diretamente a ideia
do deslocamento da política por meio das dissidên-
cias estéticas. Para encerrar essa sessão, mas não
na esperança de encerrar o debate, entendo esse
movimento coletivo político estético, como parte do
deslocamento estético político que se dá também
pelas políticas das presenças da performance. Cito
uma das passagens em que Paul Zumthor discorre
sobre esse debate:
Thigresa, Corporalidades [des]localizadas: acionamentos de performance de Pêdra Costa.
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Quanto à presença, não somente a voz, mas o corpo inteiro está lá, na performance.
O corpo, por sua própria materialidade, socializa a performance, de forma funda-
mental. Aliás, a voz exerce no grupo uma função; e esta não é estritamente interpes-
soal como pode ser na conversação. O desejo profundo da voz viva, que está na
origem da poesia, se direciona para as coletividades dos que preenchem o espaço
onde ressoa a voz. [ZUMTHOR, 2005, p. 84]
AÇÕES, BORDAS E INSTABILIDADE
Sempre que me refiro à linguagem da arte da per-
formance, ao diálogo sobre os campos de ação do
corpo, à dissidência estética e às idiossincrasias,
eu gosto de trazer à cena um artista da performan-
ce que há muitos anos – pelo menos 27 anos
10
vem anunciando uma radicalidade no diálogo sobre
as ações da performance e as dissidências estéti-
cas: trata-se do artista e pesquisador da linguagem
da performance Guillermo Gómez Peña.
O primeiro contato se deu por meio do texto
Em
defesa da arte da performance
[2013]. Desde então
Guillermo me atravessa e permeia as minhas pro-
duções. Faço esse comentário pois acredito que ele
delimita um campo de ação da ocupação
À Nordes-
te
e diz muito sobre a produção de Pêdra Costa e
sobre os processos de investigação dos territórios
de ação da performance.
Logo, num primeiro momento, quero dizer que recu-
so já há algum tempo a palavra espaço, que venho
substituindo pela palavra
território. Nas minhas expe-
riências conceituais e inves-
tigativas em relação à arte
da performance, sinto que
o território guarda as parti-
cularidades políticas do corpo, que também é um
território de ação. Ilustro o que estou dizendo: na in-
trodução deste texto apontei que o corpo de Pêdra
Costa é um suporte não passivo, já que o território
não possibilita passividades – para ações, é nesse
sentido que entendo a complexidade do território.
Antes temos a ação de Pêdra: por onde se enca-
minha a produção da artista que [des]localiza as
tensões da arte por meio de seu corpo-ocupação?
É por meio dessa ideia de corpo [como território
expandido da performance], território de ação do
corpo, que Guillermo Gómez-Peña estrutura uma
aproximação que permite, em determinado sentido,
compreender a dinâmica de diálogo, tensões e fric-
ções dessas dinâmicas. Em um primeiro momento
o autor delimita o espaço/território da performance
da seguinte maneira
11
:
Aqui’ a tradição pesa menos, as regras podem ser que-
bradas as leis e as estruturas estão em constante transfor-
mação, e ninguém presta muita atenção às hierarquias ou
ao poder institucional. ‘Aqui’, não há governo nem autori-
dade visível. ‘Aqui’, o único contrato social que existe é a
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 279-292, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.49077]
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nossa vontade de desafiar modelos e dogmas autoritários
e, assim continuar pressionando os limites da cultura e da
identidade. [GÓMEZ-PEÑA, 2013, p. 444]
Ainda, há aquilo que aproxima os territórios da ação
do corpo, do território do corpo. Gómez-Peña não
diz isso explicitamente no texto, mas constato pelo
teor que se segue: a fronteira, caminhar até a fron-
teira do território e chegar à fronteira do território do
corpo. E sigo, com o que o artista diz, “para mim a
arte da performance é um ‘território’ conceitual com
clima caprichoso e fronteiras movediças” [GÓ-
MEZ-PEÑA, 2013, p. 444]. Em contrapartida, e em si-
multaneidade, há também o abismo da fronteira do
corpo que liga esses dois territórios sobre o territó-
rio do corpo e a performance. Destaco duas passa-
gens: “somos criaturas
intersticiais e cidadãos
fronteiriços por nature-
za – simultaneamente
membros e intrusos –,
e nos regozijamos nessa paradoxal condição. No
ato mesmo de cruzar uma fronteira, encontramos
nossa emancipação… temporária” [GÓMEZ-PEÑA,
2013, p. 444].
Destaco nessa citação a palavra “temporária”. A
ideia de um corpo como território de ações da per-
formance que impossibilita de antemão a fixação.
A temporalidade é que provoca as movências, os
movimentos e permite que a fronteira se instale e se
instaure. Digo fronteira não como limite que separa
os territórios, até por que, como o próprio Guillermo
comenta, os territórios da performance se carac-
terizam por ser um local [santuário] daqueles que
foram expulsos das comunidades separatistas.
Portanto, a fronteira está posta como o território
político da dissidência estética e da ação da per-
formance. Faço essa explicação para que não haja
um retorno às fronteiras instauradas e friccionadas
pela performance.
Numa situação seguinte do texto, o autor relaciona
as fronteiras do território do corpo e do território da
performance da seguinte forma,
diferentemente das fronteiras impostas por um Estado/nação, as fronteiras em nosso ‘país
da performance’ estão abertas aos nômades, aos imigrantes, aos híbridos e desterrados.
Nosso país é um santuário provisório para outros artistas e teóricos rebeldes, expulsos dos
campos monodisciplinares e das comunidades separatistas. [GÓMEZ-PEÑA, 2013, p. 444]
Isso me faz crer e lançar a discussão em torno do
conceito e da ideia da borda [FERREIRA, 2010]. A
borda ilustra o encontro entre território do corpo
e território da ação da performance. Além desses
atravessamentos dos territórios, a borda também
dinamiza a implosão das fronteiras. Entre a rebeldia,
a desobediência e as ações políticas – dentro do
campo dos estudos da performance e relacionan-
Thigresa, Corporalidades [des]localizadas: acionamentos de performance de Pêdra Costa.
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do-o com as tensões políticas – por meio da ideia da
borda é que reflito sobre as [des]localizações: a bor-
da implode a fronteira e cria territórios fronteiriços.
Jerusa, na abertura do seu livro, ao conceitualizar
as bordas como o território móvel diz: “implica a
pertença múltipla e toda a dificuldade de estabele-
cer limites. Pode ser até um contracânone e mais,
a liberdade de assumir heterodoxias e o equilíbrio
precário daquilo que pode estar nas beiras de siste-
mas” [FERREIRA, 2010, p. 11]. Ainda, na concepção
da pesquisa, a borda como território de reflexão,
de tensão das fronteiras e de descobertas surge na
intenção de
A borda aparece como esse espaço de trocas, de
contaminações e atravessamentos, e é justamente
sobre esses atravessamentos possíveis que eu reflito
sobre as questões e possibilidades de instabilidades
dos territórios da performance. Jerusa aborda isso
na passagem já citada – pela desierarquização,
equilíbrio precário, e outras qualidades pautadas
pela autora – e é diante esse campo da borda que
se dão os territórios do corpo de Pêdra Costa, bem
como o território de ação do corpo de Pêdra.
Ainda, por uma outra radicalidade dos territórios
dos corpos: é por meio da ação da performance e
pela performance dos territórios múltiplos que se
possibilita as emancipações das bordas, justa-
mente os campos fronteiriços que ao implodirem
a fronteira constroem o espaço político do trân-
sito e da movência das ações da arte da perfor-
mance. E por último, é pela implosão que tam-
bém se dão as [des]localizações, que poderiam
igualmente ser ilustradas pela ideia de habitar a
borda e transitar pelas bordas criando territórios
fronteiriços deslocalizados.
À QUEM
DESLOCALIZAÇÕES.
Quero retomar nesta úl-
tima sessão a exposição/
ocupação
À Nordeste
. Mais
especificamente a publicação, o zine, distribuído
por Pêdra na abertura do evento. Na ocasião, a
artista distribuiu um zine com diversos textos de
sua autoria e de outres pesquisadores e artistas,
comentando aquela produção da artista. Neste
caminho de tensionar as ações, há um desloca-
mento causado pelo corpo e pelas ações de Pêdra
Costa. Destaco o texto da própria artista que in-
tegra a publicação: o
Manifesto contra os desejos
capitalistas
[COSTA, 2019]. Insisto que o texto é da
tentar dizer que, em espaços não consagrados do mundo urbano, se desenrola
toda uma cultura que absorve e é absorvida, criando regiões imantadas que nos
permitem pensar em temas, autores, textos a pedir sempre novos parâmetros de
avaliação, em regime de movimento e descoberta. [FERREIRA, 2010, p. 12]
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 279-292, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.49077]
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produção de Pêdra. Ela, enquanto artista, pesqui-
sadora e tensionadora de fronteiras, apresenta
uma dinâmica sobre esses trajetos e trânsitos
da arte da performance. Como ela mesma diz, o
corpo de Pêdra Costa é a “guerrilha encarnada”
[COSTA, 2019, p. 65]. É nesse campo de ações do
corpo, do campo fronteiriço, que se dão as ações
contra os desejos capitalistas, segundo Pêdra,
Vocês pensam que somos sempre cooptadxs, mas vocês não entendem que é nossa es-
tratégia é mais fatal que a sua. Atuamos de forma invisível. O que fazemos é profundo e
não há volta. Somos ‘invisíveis’ para o seu sistema, porque não deveria existir nada além
da binariedade. Mas nos hipervisibilizamos para que sejas incomodado. Nós passa-
mos, te enfrentamos e ao final rimos do seu sistema falido. [COSTA, 2019, p. 66]
Penso que a ação fronteiriça da performance, ainda
mais no caso de Pêdra Costa, se dá nessa ação
política de criar espaços que estão para além da
binariedade, de quebra das narrativas visíveis. Esses
territórios políticos desestabilizadores, [des]localiza-
dos das ações políticas e das construções das dissi-
dências estéticas, de território do corpo-guerrilha é
aquele que aciona uma ação estética decolonial
[GÓMEZ, 2014], que permite construir e inventar
outras formas de estar no mundo, capazes de tensio-
nar a codificação da estética que busca incansavel-
mente o controle. Assim, o corpo-guerrilha de Pêdra
Costa, [des]localizado é o desvio, que escapa da
lógica da captura e do controle da linearidade.
Thigresa, Corporalidades [des]localizadas: acionamentos de performance de Pêdra Costa.
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NOTAS
1 Não pretendo dar conta de toda a produção da artista.
Para tal, um único artigo não daria conta, já que a artista produz
em diversas linguagens, há muitos anos, e o conjunto de sua
produção impossibilita uma totalidade.
2 Diante dos mapas das eleições – que marcavam discussões
sobre políticas públicas – em 2011, o artista levou a questão: “a
nordeste de que?”. Justamente pela região demonstrar a impor-
tância sócio-política para o desenvolvimento do país mesmo
diante de uma exclusão xenofóbica sudestina.
3 Ao todo são mais de 300 trabalhos – que transitam da
produção pictórica ao meme – cerca de 160 artistas. Dentre es
artistas que participaram, destaco: Pêdra Costa, Jota Mombaça,
Michelle Muza Matiuzzi, Tertuliana Lustosa, Ayrson Heráclito,
Arthur Bispo do Rosário, Glauber Rocha, Jayme Figura, dentre
outres.
4 Observo ainda que sobre essa questão do território político,
o projeto curatorial e expográfico, que ocupou durante 3 meses
os espaços do Sesc, construía um labirinto, onde se perder era
uma das ações políticas que o público poderia realizar ao visitar
a ocupação. Assim, em vez de falar em espaço expositivo – ou
enunciar qualquer outra expressão utilizada pelos estudos cura-
toriais – digo que “À Nordeste” foi uma ocupação, por tensionar
e deslocar esse espaço da exposição. A ocupação presume,
no sentido da exposição, que o espaço se manifeste também
como uma performance. Para isso, sobre as noções ampliadas
de espaço e performance sugiro a leitura do livro, “Espaço e
Performance”, organizado por Maria Beatriz de Medeiros.
5 Apesar da construção gramatical, semântica, lexical e
política da expressão “À Nordeste” negar qualquer análise lin-
guística, faço uso de um linguista – John Langshaw Austin –, por
acreditar que o autor é um dos precursores nas pesquisas que
tangem o debate sobre palavra, ação e performance. Portanto,
não se trata de uma análise linguística por meio de um linguista,
mas um olhar da performance por meio da ação de pesquisa de
um linguista.
6 O “falar” em Austin não está ligado apenas ao ato de ver-
balizar a palavra, ele pode estar associado à ação da escrita,
ou a visualidade da palavra. Isso também poderia nos levar ao
que os vanguardistas paulistas da poesia concreta denominaram
Projeto Verbivocovisual. Para um aprofundamento desse debate
sugiro a leitura de: “Poesia concreta: O projeto verbivocovisual”
[2008] organizado por Pedro Bandeira e Leonora de Barros; e,
A máquina performática” [2017] de Gonzalo Aguilar e Mário
Câmara.
7 Idiossincrasia pode ter algumas leituras dentro dos campos
da performance. No caso de Renato Cohen, por exemplo quer
dizer as habilidades pessoais [individuais] que cada performer
tem – neste primeiro sentido ela está ligada também ao estranha-
mento, as coisas que deslocam o olhar, pelo distanciamento da
construção aristotélica de narrativa das artes da cena, quando
acionada a performance –, e por outro lado, a idiossincrasia
no coletivo pode ser a definição de um campo de investigação
e linguagem própria. Utilizo dessas duas definições, e digo que
a idiossincrasia também tem um caráter de afetação, que faz
com o coletivo coloque as suas linguagens e crie a partir de
uma colagem um campo de ação a partir da performance e das
narrativas/fazeres pessoais.
8 Entendo que a dissidência estética não é uma característica
da imagem, a estética visual. Penso a dissidência estética desde
uma ação da performance. Dito isso, há algumas outras questões
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 279-292, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.49077]
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que pautam as dissidências estéticas que estão neste âmbito da
ação, poderiam ser elas: as dissidências cívicas, a desobediên-
cia e a dissidência ética.
9 A ideia de servidão em Zumthor não está associada à de-
pendência, e o autor também não hierarquiza a voz em relação
às demais ações do corpo.
10 Algumas datas poderiam marcar essa linha do tempo:
primeiro, a fundação do coletivo/organização La Pocha Nostra;
segundo, o lançamento da primeira edição do livro “Ethno-Te-
chno: Writings on performance, pedagogy and activism”, em
2005; terceiro, o lançamento, do manifesto “La Pocha Nostra:
un manifesto en constante processo de reinvención” [Guillermo
Gómez-Peña, Roberto Sifuentes e Nola Mariano, fundadores do
coletivo La Pocha Nostra], em 2007; e, quarto ainda o lança-
mento do livro “Exercices for rabel artists: radical performances
pedagogy”, em 2011.
11 Na verdade, para Guillermo Gómez Peña essa construção
se dá na simultaneidade – um elemento conceitual da arte da
performance mas, ao fazer a leitura do texto “Em defesa da arte
da performance”, coube uma reorganização dessa simultanei-
dade para explicar esses dois campos de ação e de território da
performance.
12 Disponível em: https://www.academia.
edu/43724035/P%C3%Aadra_Costa_2004_2017. Acesso em
24/2/2021.
Thigresa, Corporalidades [des]localizadas: acionamentos de performance de Pêdra Costa.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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