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CINZAS, CACOS E RASTROS: APONTAMENTOS
SOBRE A NOÇÃO DE VESTÍGIO
Ashes, smithereens and tracks: notes about the notion of vestige
Cenizas, fragmentos e rastros: notas sobre la noción de vestigio
Daidrê Thomas de Amorim [Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil]*
RESUMO Este artigo apresenta algumas reflexões sobre a noção de vestígio, a partir de trabalhos artísticos
de Claudio Parmiggiani, Alberto Giacometti e Carlos Vergara. São consideradas nesta análise certas perspec-
tivas teórico-críticas de Jean-Luc Nancy e Georges Didi-Huberman. Busca-se pensar sobre possíveis relações
entre arte e vestígio, tendo em vista o entendimento da operação artística como algo que diz respeito ou inclui
procedimentos destrutivos e de desaparecimento.
PALAVRASCHAVE arte; vestígio; destruição; desaparecimento
ABSTRACT This article presents some reflections on the notion of vestige, from the artistic works of Claudio Par-
miggiani, Alberto Giacometti and Carlos Vergara.Some theoretical-critical perspectives of Jean-Luc Nancy and
Georges Didi-Huberman are considered in this analysis.It seeks to think about possible relations between art and
vestige, in view of the understanding of artistic operation as something that concerns or includes destructive and
disappearance procedures.
KEYWORDS art; vestige; destruction; disappearance
RESUMEN Este artículo presenta algunas reflexiones sobre la noción de vestigio, a partir de las obras artísticas
de Claudio Parmiggiani, Alberto Giacometti y Carlos Vergara. En este análisis se consideran ciertas perspectivas
teórico-críticas de Jean-Luc Nancy y Georges Didi-Huberman. Se busca pensar en posibles relaciones entre
arte y vestigio, teniendo en vista el entendimiento de la operación artística como algo que concierne o incluye
procedimientos destructivos y de desaparición.
PALABRAS CLAVE arte; vestigio; destruición; desaparición
AMORIM, Daidrê
Thomas de. Cinzas,
cacos e rastros:
apontamentos sobre a
noção de vestígio. Re-
vista Poiésis, Niterói, v.
23, n. 39, p. 136-154,
jan./jun. 2022. [DOI:
https://doi.
org/10.22409/poie-
sis.v23i39.49094]
Este documento é dis-
tribuído nos termos da
licença Creative Com-
mons Atribuição-Não
Comercial 4.0 Interna-
cional (CC-BY-NC) ©
2022. Daidrê Thomas
de Amorim. Submetido:
9/3/2021; Aceito:
25/5/2021
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 136-154, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.49094]
* Daidrê Thomas de Amorim é mestranda em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
E-mail: daidre.thomas@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1868-8646.
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“ELE: Que bonito!...que bonito!...
Ainda que involuntariamente, manteve algo do sotaque dos Grisões...Que bo-
nito! Os olhos se arregalam, o sorriso é amável; referia-se à poeira que cobria
todas as velhas garrafas de solvente amontoadas numa mesa do ateliê.”
[Jean Genet]
As coisas da arte começam frequentemente ao contrário das coisas da vida.
A vida começa por um nascimento, uma obra pode começar sob o império da
destruição: reino das cinzas, recurso ao luto, retorno de fantasmas, necessária
aposta sobre a ausência.”
[Georges Didi-Huberman]
A primeira citação utilizada como epígrafe deste
artigo foi extraída do livro
O Ateliê de Giacometti
[GENET, 2000], escrito pelo autor e dramaturgo
Jean Genet [1910-1986] entre os anos de 1954 e
1957, período em que conviveu intensamente com
o artista suíço Alberto Giacometti [1901-1966],
frequentando o ateliê do artista e posando para
vários de seus retratos. O livro é resultado desses
encontros e é constituído de fragmentos, separados
nas páginas por espaços em branco. São trechos
em que Genet comenta obras de Giacometti, faz
algumas reflexões a partir delas e transcreve alguns
diálogos que teve com o artista. Nesses diálogos,
Giacometti está designado como ELE, enquanto
Genet aparece como EU. O texto do livro foi publica-
do originalmente na revista
Lettres Nouvelles
e em
1963 foi republicado juntamente com as fotografias
de Ernst Scheidegger, tiradas no
ateliê de Giacometti entre os anos
de 1948 e 1959.
Na época desses encontros, ambos
os artistas já eram consagrados:
Giacometti realizava exposições
retrospectivas pela Europa e Esta-
dos Unidos e Genet havia publicado
muitos de seus principais livros e
peças, incluindo
As criadas
[1947].
Segundo Célia Euvaldo, responsável pela tradução
de
O Ateliê de Giacometti
para o português, quando
os artistas se encontraram pela primeira vez, em
1954, o que chamou a atenção de Giacometti em
Genet foi sua calvície, que revelava o formato de
sua cabeça.
Giacometti tinha especial interesse pelas cabeças,
mas considerava impossível retratá-las, e nessas
tentativas desenhou, pintou e esculpiu inúmeras ao
longo de sua vida. Genet transcreve uma afirmação
de Giacometti: “Jamais conseguirei pôr num retrato
toda força que há numa cabeça” [GENET, 2000, p.
72]. Mas foi nesse esforço que o artista trabalhou,
muitas vezes apagando o trabalho de dias e dias, e
recomeçando o retrato ou a escultura.
O ateliê de Giacometti é descrito por Genet como
um espaço pouco iluminado, atulhado de obras e
AMORIM, Daidrê Thomas de. Cinzas, cacos e rastros: apontamentos sobre a noção de vestígio.
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materiais de trabalho e coberto de poeira. Para o
escritor, isso daria a ver o respeito que Giacometti
tinha por todas as matérias, incluindo a poeira, que
ele não permitia que sua esposa, Annette, retirasse
das vidraças [GENET, 2000, p. 45]. Ainda em relação
ao ateliê, ou seja, ao lugar de trabalho do artista –
mas que também implica em um trabalho do lugar
– Genet observa:
Aliás, esse ateliê, ao rés-do-chão, vai desabar de um momento para
outro. É de madeira carcomida e poeira cinza, as estátuas são de
gesso, deixando à mostra a corda, estopa ou um pedaço de arame;
as telas, pintadas de cinza, perderam há muito tempo a tranquilidade
que tinham na loja, tudo está sujo e abandonado, tudo é precário e
está prestes a desmoronar, tudo tende a se dissolver, tudo flutua [...]
[GENET, 2000, p. 92]
Ou seja, tanto as obras de Giacometti quanto o seu
lugar de trabalho tocam esta possibilidade de
desmoronamento, de apagamento, de dissolução.
É sempre uma precariedade que está em jogo, ou
uma iminência de destruição. James Lord1, em seu
livro
Um retrato de Giacometti
, também fala sobre o
ateliê do artista e o descreve de forma parecida
com a de Genet:
De tanto posar ali, hora após hora naquele ateliê cinzento,
atravancado, empoeirado, a gente começava a sentir que,
realmente, todo o futuro dependia da possibilidade de se
reproduzir exatamente por meio de pincéis e de pigmentos
a sensação visual produzida por um determinado aspecto
da realidade. [LORD, 1998, p. 34-35]
A poeira depositada e acumulada pelo tempo é
uma menção recorrente nos livros de Genet e de
James Lord.
A segunda citação da epígrafe foi retirada do
livro
Génie Du No-Lieu: Air, Poussière, Empreinte,
Hantise
[2001], em que Georges Didi-Huberman se
detém sobre a série de obras intitulada
Delocazio-
ne
, do artista italiano Claudio Parmiggiani [1943-].
A série foi iniciada pelo artista em 1970,
com um trabalho realizado na Galleria Ci-
vica di Modena [galeria de arte em Módena
– Itália], onde se organizava uma exposição
coletiva, intitulada
Arte e Crítica.
Parmiggiani escolheu trabalhar em um
determinado espaço do museu, que era uti-
lizado habitualmente como depósito. Nessa sala,
o artista encontrou diversos objetos ali deixados,
entre eles obras em caixas de madeira e um peda-
ço de escada apoiado na parede, juntos a muita
poeira [Fig. 1].
Como observa Didi-Huberman:
Ao deslocar os objetos para “fazer o espaço”, como se
diz – primeiro ato de delocazione, portanto –, o artista
foi tomado pela visão, paisagem ou natureza morta,
de traços deixados em negativo pela poeira. E foi isso
mesmo que ele decidiu, consequentemente, trabalhar.
Tratava-se de intensificar, de acentuar, de dar de novo
consistência às impressões existentes, e mesmo de criar
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novas por uma escolha processual, material e formal,
específica. [DIDI-HUBERMAN, 2001, p. 18]
Assim, Parmiggiani desloca os objetos do lugar
onde estavam, revelando a impressão em nega-
tivo que deixaram nas superfícies e nas paredes.
Essas impressões, efetuadas pelo tempo, e a
poeira que se acumulou no espaço, produziram as
marcas dos objetos [Fig. 2].
A partir dessa percepção, Parmiggiani fez uma
escolha artística: passou a criar impressões, ves-
tígios a partir do fogo e das cinzas. Por meio da
queima de pneus em galpões com objetos [corti-
na, livros nas prateleiras e outros, como crânios e
ampulhetas], o artista faz com que a fumaça e a
fuligem se imprimam no espaço. Posteriormente,
os objetos são retirados de seu lugar, deslocados,
e a impressão feita pelas cinzas e pelo desloca-
mento é tornada visível.
Ao comparar esses dois momentos do trabalho
de Parmiggiani, Didi-Huberman afirma que, no
caso da poeira que se acumula no espaço, tra-
ta-se de uma obra passiva do tempo; já no caso
das impressões feitas por meio da fumaça, o que
Parmiggiani propicia é uma obra ativa do fogo.
Em ambos os casos, o artista implica e trabalha
as noções de tempo e de lugar por meio do deslo-
camento dos objetos.2
Fig. 1 – Depósito escolhido por Parmiggiani na Galleria Civica di
Modena.
Fig. 2 – Claudio Parmiggiani, obra da série
Delocazione.
AMORIM, Daidrê Thomas de. Cinzas, cacos e rastros: apontamentos sobre a noção de vestígio.
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Em outro trabalho,
Labirinto di Vetri Rotti
[1995],
Parmiggiani prepara em uma grande sala do Le
Fresnoy [centro de formação artística e audiovi-
sual na França] um labirinto com placas de vidro
espalhadas pelo espaço. Vestindo uma roupa
protetora, capacete e luvas, o artista caminha pelo
espaço e quebra, com a ajuda de um martelo, as
placas de vidro. O procedimento dura cerca de
vinte minutos e, ao final, as placas estão em diver-
sos tamanhos, além de inúmeros cacos estarem
espalhados pelo chão [Fig. 3]. O espaço labiríntico
se torna, então, impenetrável.3
Fig. 3 – Claudio Parmiggiani,
Labirinto di Vetri Rotti
, 1995, Le Fresnoy.
Jean-Luc Nancy comenta brevemente esse traba-
lho ao final de sua conferência
El arte hoy
, publi-
cada no livro de mesmo título [2014]4, em que ele
desdobra questões sobre a arte contemporânea,
preferindo recusar essa nomenclatura e falar em
arte hoje”. Como último de seus exemplos, Nan-
cy cita
Labirinto di Vetri Rotti
e afirma que a obra
apresenta, simultaneamente, uma transparência
e uma impenetrabilidade, tensionando assim suas
experiências, a princípio, contraditórias ou, ao me-
nos, heterogêneas. O gesto de destruição do vidro
realizado por Parmiggiani seria também um gesto
de destruição da transparência.
Nancy afirma que a pintu-
ra clássica tinha grande
preocupação em captar
a transparência do vidro
[muitas são as pinturas em
que se veem vidros, gar-
rafas, cristais] e que essa
preocupação revela tam-
bém o desejo de colocar
luz sobre as coisas, ou seja,
de torná-las claras, trans-
parentes, e tornar também
os signos claros. Nancy
cita, inclusive, a expressão
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bíblica
fiat lux
[faça-se a luz], relativa à criação do
mundo. Podemos, talvez, pensar nessa expressão,
relacionada ao ato de criação, em contraposição
ao gesto destrutivo de Parmiggiani [ainda que o
artista crie, primeiro, o espaço, para depois destruí-
-lo parcialmente, pois restam apenas cacos]. E ao
restarem cacos, uma certa opacidade se constitui,
em relação à própria impenetrabilidade do espaço.
Nancy afirma:
Eu diria que esta obra ilustra que existe um gesto que, neste
caso, é um gesto de quebra, portanto um gesto violento,
um gesto de destruição e também a destruição, justamen-
te, da transparência, do sentido que se comunica, e, ao
mesmo tempo, um signo sem significação, além da obra
e além da destruição, mas não em direção a uma nova
construção, pois não é um objetivo social, político ou ético.
[NANCY, 2014, p. 35]5
Nesse caso, o gesto do artista é, segundo Nancy,
repetir a transparência até o infinito, por meio das
camadas de vidro que se sobrepõem, mas também
destruir a transparência. Parmiggiani quebra os
vidros e, assim, impede o acesso ao labirinto de
transparência, ao mesmo tempo em que impede a
construção de um sentido imediato da obra.
A respeito de
Labirinto di Vetri Rotti,
Didi-Huberman
faz a seguinte observação, em
Génie Du No-Lieu:
Air, Poussière, Empreinte, Hantise:
“O resultado
era um campo de ruínas transparentes, um lugar
de devastação, de onde surgiam ainda os restos
lascados, os traços no solo do labirinto. A obra se
assemelhava exatamente a um espaço soprado
por uma explosão” [DIDI-HUBERMAN, 2001, p. 38].
Ou seja, esses trabalhos artísticos citados até aqui
se constituem a partir de uma destruição, ou me-
lhor, de vários modos de destruição: as obras da
série
Delocazione
, a partir da queima dos pneus, e
Labirinto di Vetri Rotti
, a partir da quebra das placas
de vidro. E, de outro modo, os trabalhos de Giaco-
metti, a partir do apagamento ou do desfazimento
das figuras, do desfiar do gesso ou do escavar
do bronze. Por mais de uma escolha processual
relacionada a operações de destruição, esses
trabalhos artísticos se elaboram restos, vestígios.
No primeiro caso, os vestígios são as impressões
deixadas pelos objetos, nas superfícies, pela ação
do tempo, da poeira ou das cinzas, e também pelo
gesto do artista de deslocá-los do lugar em que es-
tavam apoiados ou colocados. No segundo caso, o
que resta são os destroços das placas de vidro que-
bradas, cacos espalhados pelo espaço. Nos dois
casos, há a instauração de um lugar, a elaboração
de um espaço outro a partir de uma destruição. Já
no caso dos trabalhos de Giacometti [e não abordo
aqui nenhuma obra em particular, mas tento pen-
sar em determinados procedimentos repetidos pelo
artista], o desfazer insistente deixa, muitas vezes,
suas figuras, suas esculturas, por um fio [Fig. 4].
AMORIM, Daidrê Thomas de. Cinzas, cacos e rastros: apontamentos sobre a noção de vestígio.
Fig. 4 – Alberto Giacometti,
Quatre femmes sur socle
, 1950, escul-
tura em bronze, 76 x 41,3 x 16,4 cm., coleção Fundação Giacometti,
Paris.
Fig. 5 – Alberto Giacometti,
Le chien
, 1951, escultura em bronze, 44.2
× 96.8 × 15.7 cm., Guggenhein Museum, Nova York.
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 136-154, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.49094]
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Na escultura acima, por exemplo, as quatro mu-
lheres aparecem tão alongadas, tão afiladas, que
suas formas quase desaparecem. O trabalho de
Giacometti com o bronze é de quase destruição
do material e o bronze passa a conservar as mar-
cas dos dedos do artista, como podemos ver em
Quatre femmes sur socle
[Quatro mulheres sobre o
pedestal]: há nas figuras uma rugosidade, relevos
oriundos do manusear do bronze por Giacometti.
Um manusear que faz e, ao mesmo tempo, desfaz
as figuras trabalhadas pelo artista.
A escultura
Le chien
[O cão] também nos mostra o
trabalho de Giacometti com o bronze. As marcas
no bronze são quase as impressões dos dedos
do artista na matéria, são vestígios das inúmeras
tentativas de modelar o bronze e dos desfazimentos
operados por Giacometti. É este fazer desfazendo
que afina as figuras, de forma a fazer com que elas
apareçam na iminência do desaparecimento.
James Lord percebeu esse procedimento e trans-
creve um trecho do diálogo que teve com Giaco-
metti, enquanto posava para um retrato:
Essa demolição era, nesse caso, feita no desenho,
no retrato de Lord, mas ocorria também na escava-
ção na matéria. Era como se Giacometti procurasse
no próprio material [gesso, bronze, tela, papel] as
suas figuras. Como se essas figuras já estivessem
no material e Giacometti precisasse manipulá-lo
intensamente para que dele só restassem vestígios,
e para que as figuras, enfim, se revelassem.
Para pensar um pouco mais detidamente sobre a
noção de vestígio, a reflexão de Jean-Luc Nancy
presente na conferência
O Vestígio da Arte
6 torna-
-se importante para a análise que aqui se pretende
desenvolver. Ao tematizar as discussões sobre arte
contemporânea e sobre os diagnósticos do fim da
arte, Nancy afirma:
O que resta da arte? Talvez apenas um vestígio. É pelo
menos o que se ouve atualmente, uma vez mais. Pro-
pondo como título desta conferência “O Vestígio da
Arte”, tenho primeiramente em vista, simplesmente, o
seguinte: supondo-se que não reste com efeito senão
um vestígio – ao mesmo tempo um rastro evanescente e
um fragmento quase inapreensível –, isso mesmo pode-
ria ser apropriado para nos colocar na pista da própria
arte, ou pelo menos de alguma coisa que lhe
seria essencial, se pudermos levantar a hipóte-
se de que o que resta é também o que resiste
mais [NANCY, 2012, p. 289]
Nessa conferência, Nancy propõe pensar
a arte não a partir de uma essência imutá-
vel, pois a arte seria sempre radicalmente
-Agora você vai destruir tudo, suponho, eu disse quando começamos
a trabalhar.
-Exatamente, respondeu.
E foi isso, obviamente, que começou a fazer [...]
-Estou demolindo-o alegremente, observou algum tempo depois.
[LORD, 1998, p. 123-124]
AMORIM, Daidrê Thomas de. Cinzas, cacos e rastros: apontamentos sobre a noção de vestígio.
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outra, já que responde a cada vez a um novo mun-
do. Como alternativa a essa noção de essência,
o filósofo propõe pensar a arte como vestígio. Na
verdade, ele opta por uma proposição paradoxal.
Diz ele: “teremos de nos perguntar se essa alguma
coisa de essencial não seria, por sua vez, da ordem
do vestígio [...]” [NANCY, 2012, p. 289]. Ou seja, Nan-
cy propõe pensar uma essência vestigial da arte, já
que o que resiste é o que sobrevive às transforma-
ções e destruições.
Mas, ao final de sua conferência, Nancy afirma que
é preciso renunciar a nomear o
ser
do vestígio: “o
vestigial não é uma essência – e é provavelmente
isso mesmo que nos põem doravante no rastro da
essência da arte’” [NANCY, 2012, p. 304]. Portanto,
se no início de seu texto Nancy propõe, provocativa-
mente, pensar uma essência vestigial da arte, mais
adiante ele distingue o vestígio da essência. Segun-
do ele, a arte não é apresentação da Ideia, a arte
apresenta a “moção, a vinda, a passagem, o em-ida
de toda vinda-em-presença” [NANCY, 2012, p. 304].
Ainda segundo Nancy, a arte tem uma história. A
história e a passagem conduzem ao vestígio. Diz
Nancy: “Anteciparei aqui apenas uma conclusão: a
arte tem uma história, e ela é talvez radicalmente
história, isto é, não progresso, mas passagem, su-
cessão, aparição, desaparecimento, acontecimen-
to” [NANCY, 2012, p. 294].
A arte seria, portanto, o que resta, e o que resta de
si mesma. O que resta é aquilo que resiste, o que
fica de uma destruição, o que sobrevive de alguma
forma ao desaparecimento ou apagamento. Se
há vestígio, é porque algo permanece, mesmo que
ínfimo. Nesse sentido, pensar a arte, para Nancy,
não seria pensar o seu fim, a sua morte, mas os
seus vários fins, suas mortes constantes e sobrevi-
vências. Uma
finição infinita
7, um acabamento sem
fim, para recorrer à expressão mencionada por
Nancy. E pensar também nos seus rastros e restos.
Para Nancy, o vestígio é o que resta de uma retirada.
No caso de
Delocazione
, o que fica nas paredes e
superfícies é aquilo que resistiu ao tempo [no caso
da poeira], aquilo que restou da queima e da reti-
rada, da subtração dos objetos de seus lugares:
a impressão, a marca nas paredes. A noção de
impressão, inclusive, está intrinsecamente ligada
à de vestígio. Nancy ressalta que a palavra latina
vestigium
designa a sola ou a planta do pé, uma
pegada de um passo, e que para que se produza
uma pegada há necessidade do contato do pé
com o chão e da perda desse contato. Portanto,
uma pegada é, simultaneamente, a marca de uma
presença e de uma ausência, já que registra uma
passagem. Assim, o vestígio está ligado a uma tem-
poralidade, a uma passagem [do tempo e de um
corpo], e também a uma intensa materialidade, já
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 136-154, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.49094]
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que só se produz por meio do contato de um corpo
com uma superfície, com uma matéria; do contato
de uma matéria com outra.
De certo modo, a noção de vestígio também pode
ser relacionada à noção de
imago
para os roma-
nos, mencionada por Didi-Huberman em seu livro
Diante do Tempo – História da Arte e Anacronismo
das Imagens
. O autor lembra aí a noção de imagem
[
imago
] para Plínio, o Velho, no século I d.C. Didi-Hu-
berman descreve a produção das máscaras mortu-
árias, que eram feitas por meio do contato do gesso
com o rosto do morto. A partir desse molde negativo
se produziam máscaras de cera. Tais máscaras ti-
nham extrema semelhança com o morto e era esta
semelhança que prezava Plínio para as imagens.
A imago não é, portanto, uma imitação no sentido clássico
do termo; ela não é factícia e não requer nenhuma idea,
nenhum talento, nenhuma magia artística. Ao contrário, ela
é uma imagem-matriz produzida por aderência, por con-
tato direto da matéria [o gesso] com a matéria [do rosto].
[DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 81]
Essas máscaras, assim como as pegadas [mencio-
nadas por Nancy], exigiam o contato, uma presença
material e, ao mesmo tempo, a perda do contato, a
separação [o deslocamento] do molde de gesso do
rosto do morto. As máscaras mortuárias registravam
uma ausência [a ausência do morto, e o próprio
morto como ausência, ausência de vida]. No texto do
livro XXXV [um dos trinta e sete livros que compõem
a
História natural
], Plínio diz que “tinha-se, assim,
imagens [
imagines
] para fazer o cortejo fúnebre da
família e, sempre que alguém morria, toda a multidão
de parentes desaparecidos estava presente” [Apud
DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 80]. Contudo, enquanto as
máscaras são individuais e, portanto, identificam um
morto específico, as pegadas permitem descobrir
a passagem de alguém, mas não necessariamente
quem é este alguém.
O procedimento de impressão só se dá por meio
de um processo de subtração: algo se retira, ou é
retirado, para que sua marca seja deixada. O rosto
do morto só se imprime no gesso quando é afasta-
do do molde, do mesmo modo, o negativo do molde
só deixa sua marca nas máscaras de cera quando
o negativo é deslocado, quando perde seu conta-
to direto com a cera. Assim também no caso das
impressões produzidas por Parmiggiani por meio
de poeira e cinzas: só se pode visualizar as marcas
dos objetos nas superfícies a partir de seu desloca-
mento, de seu recuo do espaço inicial. O que vemos
nas paredes, após o deslocamento dos objetos, é
um negativo de suas formas.
Procedimento similar é utilizado pelo artista brasi-
leiro Carlos Vergara8, tanto em sua obra
Sudário
[2003-2019] quanto em
Prospectiva
[2019].
Sudário
é
uma série de 200 monotipias9 realizadas em lenços
AMORIM, Daidrê Thomas de. Cinzas, cacos e rastros: apontamentos sobre a noção de vestígio.
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nos locais que o artista percorreu em busca do que
ele chama de sinais do sagrado: Sete Povos das
Missões [Rio Grande do Sul], Istambul
e Capadócia, Pompeia [Itália], Serra
da Bodoquena [Mato Grosso do Sul],
Caminho de Santiago de Compostela
[Espanha], Cazaquistão e Rio Douro
[Portugal].
Prospectiva
é constituída por
três pinturas em telas de grande forma-
to [5,40m X 5,40m] a partir de mono-
tipias realizadas no Cais do Valongo e
nos trilhos do bonde em Santa Teresa,
no Rio de Janeiro.
Nesses trabalhos, está implicado um
duplo deslocamento: o deslocamento
do artista pelo mundo, suas viagens, e
o deslocamento dos lenços e telas nos
espaços que Vergara busca imprimir.
Os “sinais do sagrado” encontrados
pelo artista são rapidamente marcados
nos tecidos que ele carrega consigo,
apenas com a ajuda de carvão, que ele
aplica nas superfícies. Algumas vezes,
ficam impressos nos tecidos guimbas
de cigarro, pedaços de madeira, folhas
e outros objetos pertencentes aos lo-
cais visitados, que entraram em conta-
to com os tecidos, acoplando-se neles [Fig. 6].
Fig. 6 – Carlos Vergara, Exposição
Sudário
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Se pensarmos sobre esses trabalhos de Vergara e
sobre algumas das obras da série
Delocazione
, de
Parmiggiani, podemos perceber certas afinidades.
Ambos os artistas realizam suas obras por meio do
toque e da perda de contato. Não há, em nenhum
dos casos, uma tentativa de virtuosismo artístico
ou de representação dos objetos. Ainda assim,
justamente pelos procedimentos de impressão
envolvidos, as obras adquirem traços e contornos
dos objetos com os quais tiveram contato: trilhos,
árvores [no caso de Vergara] ou livros [no caso de
Parmiggiani], entre outros.
Essas formas, impressas nos materiais e super-
fícies, entretanto, são genéricas, digamos assim:
reconhecemos que se trata de um livro, por exem-
plo, por seus contornos, mas não há ali detalhes
que possam identificar a que livro se refere. Consi-
derando o princípio da causalidade e a fidelidade
em relação ao referente, geralmente associadas à
representação [ou a uma determinada noção de re-
presentação, mais convencional e mais fixa], Nancy
estabelece uma distinção entre imagem e vestígio.
Para diferenciar essas duas noções, no contexto
específico de sua reflexão, Nancy remete à teologia
cristã. Para os teólogos, segundo o autor, o homem
é considerado
imago Dei
[imagem e semelhança
de Deus], enquanto no restante da criação, Deus se
apresenta apenas de forma vestigial.
Os teólogos puseram em ação a diferença da imagem
e do vestígio a fim de distinguir entre a marca de Deus
na criatura razoável, no homem imago Dei, e outro
modo dessa marca, no resto da criação. Esse outro
modo, o modo vestigial, caracteriza-se pelo seguin-
te [tomo de empréstimo a análise de São Tomás de
Aquino]: o vestígio é um efeito que “representa apenas
a causalidade de sua causa, mas não a sua forma”.
São Tomás de Aquino dá como exemplo a fumaça, cuja
causa é o fogo. [...] “O vestígio mostra que houve movi-
mento de algum passante, mas não de qual”. O vestígio
não identifica sua causa ou seu modelo, diferentemente
[é ainda o exemplo de São Tomás de Aquino] da “es-
tátua de Mercúrio, que representa Mercúrio”, e que é
uma imagem. [É preciso aqui lembrar que, em conceitos
aristotélicos, o modelo é também uma causa, a causa
“formal”.] [NANCY, 2012, p. 301]
Assim, o vestígio, segundo Nancy, lida com o
princípio da causalidade de um modo específico.
Ele não exibe a forma de sua causa, mas apenas
seu movimento, sua passagem. A causalidade, no
vestígio, é nebulosa, indefinida, não é totalmente
identificável. A noção de vestígio desloca a arte dos
habituais eixos do modelo ou referente: aquilo que
produz vestígios não deixa neles sua forma, por isso
não se trata propriamente de representação [não
se trata da reapresentação de um modelo prévio,
na qual a forma do modelo permanece na obra]. Na
fumaça vestigial, diz Nancy, não há a forma do fogo.
A fumaça não conserva do fogo sua forma, mas
AMORIM, Daidrê Thomas de. Cinzas, cacos e rastros: apontamentos sobre a noção de vestígio.
148
apenas sua consumação [NANCY, 2012, p. 301-
302]. A fumaça indica a ausência do fogo.
Na concepção da teologia cristã, podemos per-
ceber, de algum modo, uma hierarquia: o homem
como imagem e semelhança de Deus, enquanto
o restante da criação é apenas o seu vestígio. Ao
afirmar que o que resta é aquilo que mais resis-
te, Nancy desfaz essa hierarquia, ou ao menos a
problematiza.
Mesmo quando se trata de um vestígio produzido
de forma passiva pelo tempo”, como Didi-Huber-
man afirma serem os vestígios produzidos pela po-
eira, não podemos negar que há aí uma ação impli-
cada: há um trabalho do tempo, ainda que não haja
o trabalho do artista. Entretanto, talvez seja possível
distinguir ao menos dois modos de vestígios, dois
modos de restar: aqueles que, por meio do contato,
adquirem alguma similaridade com aquilo a que
aderiram momentaneamente [uma semelhança
por contato10 e não por imitação] e aqueles que se
constituem como restos ou fragmentos de algo que
desapareceu ou foi destruído.
Para exemplificar, pensemos na diferença entre os
trabalhos de Parmiggiani aqui citados. Nas obras
pertencentes a série
Delocazione
, os vestígios são
as impressões deixadas no espaço, nas superfí-
cies, as marcas que configuram os contornos dos
objetos após seu contato com determinada matéria
[cinzas ou poeira] e seu posterior deslocamento. Já
em
Labirinto di Vetri Rotti
, os vestígios são os cacos,
os fragmentos de vidro, restos da destruição provo-
cada pelo artista.
Nos dois casos, as dimensões de tempo e de lugar
seguem sendo fundamentais na noção de vestígio.
Ao deslocar os objetos de seu lugar ou posição
iniciais, ou quebrar os vidros, Parmiggiani constrói
outro lugar e outra temporalidade.
Em seu texto sobre a noção de vestígio, Nancy
afirma que “um
lugar
no sentido forte da palavra
é sempre o vestígio de um passo” [NANCY, 2012,
p. 304]. O vestígio é, para o autor, o resto de um
passo, mas o próprio passo jamais é algo além do
que sua própria passagem. Portanto, para Nan-
cy, o vestígio é a própria operação do passo, sem
ser sua obra. Assim, o
lugar
dá a ver o passo. Isto
ocorre porque a instauração do lugar é precedida
por uma retirada, pelo deslocamento de algo que
antes ali estava. Assim como para a configura-
ção da pegada é necessária a ausência do pé – o
deslocamento, o passo –, assim também um lugar
pode se constituir a partir da ausência, de um tra-
balho de retirada e de deslocamento, ou mesmo a
partir de uma inacessibilidade.11
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 136-154, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.49094]
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Nesse sentido, é possível pensar nas obras de
Alberto Giacometti retomando a citação de Di-
di-Huberman que está na epígrafe deste artigo. Gia-
cometti agia, trabalhava
sobre o material de que
dispunha, de forma
quase destrutiva. Quan-
do desenhava, muitas
vezes rasgava as folhas
com a força do lápis;
quando esculpia, deixa-
va no bronze as marcas
de seus dedos e no
gesso fiapos aparentes;
já quando pintava, seus
quadros eram constan-
temente apagados e
raspados. Suas obras
conservavam, portanto,
as marcas de suas hesi-
tações e destruições.
Em um retrato que Gia-
cometti fez de sua espo-
sa e principal modelo,
Annette
[1961], a figura
da mulher quase desa-
parece do quadro após as inúmeras rasuras feitas
pelo artista [Fig. 7].
Fig. 7 – Alberto Giacometti,
Annette
, 1961, óleo sobre tela, 116,2 ×
89,5 cm., The Metropolitan Museum of Art, Coleção Jacques e Natasha
Gelman, Nova York.
Esse retrato foi retrabalhado, inclusive, após já
ter sido exibido uma primeira vez em Paris. Gia-
cometti considerou que precisava refazer o nariz
de Annette, mas aca-
bou por refazer todo
o rosto e retrabalhar
também o fundo do
quadro. A cabeça
proporcionalmente
menor e mais escura
que o corpo é resulta-
do das tentativas de
Giacometti de retratar
o que via e de dar pro-
fundidade ao quadro.
Por essa razão o artista
gostava de pintar com
a luminosidade mais
escassa, pois assim
percebia quais partes
da cabeça possuíam
mais relevo e recebiam
mais luz.
Jean Genet, no livro
O
Ateliê de Giacometti,
transcreve um diálogo
que teve com o artista. Nele, Genet diz que não eram
as esculturas de Giacometti que ganhavam quando
AMORIM, Daidrê Thomas de. Cinzas, cacos e rastros: apontamentos sobre a noção de vestígio.
150
feitas em bronze, mas o bronze é que ganhava ao ser
matéria de suas estátuas:
Essa conversa permite-nos inferir, dentre outras
possibilidades de compreensão, que o desgaste
do bronze produzido por Giacometti é o que lhe
permite essa vitória. O que resta do bronze após o
trabalho destrutivo de Giacometti seria, na visão de
Genet, o que de mais forte havia no bronze, per-
cepção que está, de certo modo, em consonância
com a de Nancy, quando ele considera que o vestí-
gio é o que mais resiste, por isso, é o que resta.
Em outro trecho do livro sobre Giacometti, Genet
afirma:
Suas estátuas parecem pertencer a uma era defunta,
descobertas depois que o tempo e a noite – que as tra-
balharam com inteligência – as corroeram para lhes dar
esse ar, ao mesmo tempo doce e duro, de eternidade
que passa. Ou, melhor ainda, saíram do forno, resíduos
de um cozimento terrível: apagadas as chamas, isso é o
que restaria. [GENET, 2000, p. 44]
Genet menciona a materialidade das
estátuas de Giacometti como, aparen-
temente, resultantes de um cozimen-
to, saídas do fogo, das chamas. Mas
também como oriundas de uma outra
temporalidade, ao mesmo tempo eterna
e passageira. Desse modo, podemos
entender que o escritor via as obras de
Giacometti como vestígios, sobrevivên-
cias: sobreviveram à destruição pelo
fogo, sobreviveram ao tempo, à morte:
suas estátuas parecem pertencer a uma
era defunta” e foram trabalhadas pelo
tempo e pela noite. Suas estátuas não apenas
conservam os vestígios das hesitações do artista,
como poderiam ser também consideradas, elas
próprias, como vestígios, aquilo que restou, que
resistiu aos procedimentos destrutivos, aos des-
fazimentos. Tanto a ideia de corrosão quanto a de
cozimento e chamas, mencionadas por Genet,
aludem a uma destruição.
ELE: Você as viu em gesso... Lembra-se delas, em gesso?
EU: Sim.
ELE: Acha que perdem, em bronze?
EU: Não. De maneira nenhuma.
ELE: Acha que ganham?
Hesito aqui mais uma vez em proferir a frase que expressará melhor o
meu sentimento:
EU: Você vai zombar de mim de novo, mas a impressão que tenho é
curiosa. Não diria que elas ganham, e sim o bronze que ganhou. Pela
primeira vez em sua vida, o bronze acaba de ganhar. Suas mulheres
são uma vitória do bronze. Sobre ele próprio, talvez.
ELE: É assim que tinha que ser. [GENET, 2000, p. 16-17]
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 136-154, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.49094]
151
De algum modo, esta concepção da forma como
vestígio da matéria está presente também nas
reflexões do filósofo italiano Giorgio Agamben. No
ensaio
Do livro à tela. O antes e o depois do livro
, pu-
blicado no livro
O fogo e o relato:
Ensaios sobre cria-
ção, escrita, arte e livros
[2018], o autor destaca e
analisa aquilo que precede e que sucede uma obra
de arte, considerada e valorizada geralmente como
algo finalizado, pronto. Agamben cita, entre outros
exemplos, o livro
Um retrato de Giacometti,
em que
James Lord afirma que Giacometti costumava dizer
que “um quadro nunca é terminado, é simplesmente
abandonado” [AGAMBEN, 2018, p. 117].
O que costumamos entender como obra finalizada,
acabada é, na verdade, segundo Agamben, apenas
um momento de um “processo criativo potencial-
mente infinito” que se estende tanto em direção ao
passado, incluindo todos os rascunhos, esboços,
fragmentos, hesitações e tentativas que o artista
realizou, quanto em direção ao futuro, abarcando a
recepção e suas históricas transformações. O filó-
sofo ressalta que a interrupção da obra de arte em
determinado ponto é apenas contingente.
A cesura que põe fim à redação da obra não lhe confere
um estatuto privilegiado de completude: significa somente
que se diz estar terminada a obra quando, mediante
a interrupção ou o abandono, se constitui como que
um fragmento de um processo criativo potencialmente
infinito, em relação ao qual a obra, chamada de acaba-
da, distingue-se da inacabada apenas acidentalmente.
[AGAMBEN, 2018, p. 117]
Enquanto Agamben compreende o processo cri-
ativo como potencialmente infinito, no qual a obra
acabada é apenas um momento de interrupção ou
abandono, Nancy percebe um “acabamento sem
fim” na própria história da arte:
Mas esse acabamento sem fim – ou esse acabamento
acabado, se tentarmos entender isso como uma finaliza-
ção que se limita ao que ele é, mas que, por isso mesmo,
abre a possibilidade de um outro acabamento, e que é,
portanto, igualmente acabamento infinito –, esse modo
paradoxal da per-feição é provavelmente o que toda
nossa tradição exige e evita ao mesmo tempo pensar.
[...] Assim, essa tradição designa como que um limite,
como um fim no sentido banal, e bem depressa como
uma morte, o que poderia ser na verdade a suspensão
de uma forma, o instantâneo de um gesto, a síncope de
uma aparição – e, portanto, também, a cada vez, de
um desaparecimento. Somos capazes de pensar isso?
Ou seja, como podem adivinhar, de pensar o vestígio.
[NANCY, 2012, p. 294-295]
Assim, podemos pensar que essa
infinalização
,
estes infinitos desaparecimentos e aparecimentos,
são pertinentes à arte, tanto historicamente [o que
faz com que Nancy não partilhe da ideia de uma
morte da arte] quanto no que se refere aos seus
procedimentos e processos, e é neste sentido que a
arte se relaciona à noção de vestígio.
AMORIM, Daidrê Thomas de. Cinzas, cacos e rastros: apontamentos sobre a noção de vestígio.
152
No final do ensaio
Do livro à tela. O antes e o depois
do livro
, Agamben afirma: “Gostaria de propor, nes-
te ponto, uma definição mínima do pensamento,
que me parece particularmente pertinente
. Pensar
significa lembrar-se da página em branco enquanto
se escreve ou se lê.
Pensar – mas também ler –
significa lembrar-se da matéria” [AGAMBEN, 2018,
p. 136]. E, mais adiante, Agamben observa que as
formas nada mais são do que vestígio do sem for-
ma [AGAMBEN, 2018, p. 136].
Portanto, o trabalho do artista é, de certa maneira,
encontrar a forma na matéria, encontrar na matéria
o seu vestígio. Talvez fosse algo similar que Gia-
cometti tivesse compreendido quando, ao retratar
Lord, “continuou a trabalhar, servindo-se do pincel
grande” [LORD, 1998, p. 105] e afirmou:
- O que estou fazendo é um trabalho negativo, disse.
É preciso fazer desfazendo. Tudo está desaparecendo
mais uma vez. É preciso ousar, dar a pincelada que faz
tudo desaparecer. [LORD, 1998, p. 105]
NOTAS
1 James Lord foi um escritor e crítico de arte norte-americano
nascido em 1922 e falecido em 2009, em Paris. Foi retratado por
diversos artistas, dentre eles Picasso, Lucien Freud, Cartier-Bres-
son e Dora Maar. Posou para Alberto Giacometti por dezoito
sessões em 1964 e, durante esse período, realizou diversas ano-
tações, que resultaram em um livro que escreveu sobre o artista,
Um Retrato de Giacometti
(LORD, 1998). Ou seja, enquanto era
retratado por Giacometti, tomou notas de diálogos e reflexões
para compor, por meio da escrita, um retrato do artista.
2 A partir dessa perspectiva e escolha de procedimentos, Par-
miggiani realizou vários outros trabalhos da série
Delocazione
,
que se constitui como uma longa série de experimentações com
as impressões, os vestígios deixados pelas cinzas, pela obra do
fogo. Um filme foi realizado em 2001 por Carine Bobin, Pascal
Convert, Martine Convert e Laurent Tarbouriech, a partir de uma
das obras da série.
3 Filme realizado em 1995 por Carine Bobin, Pascal Convert,
Martine Convert e Laurent Tarbouriech.
4 Cito aqui a tradução para o espanhol dessa conferência, es-
crita originalmente em francês. Conferência essa que está incluída
em um livro publicado em Buenos Aires, e que reúne ensaios de
Nancy traduzidos por Carlos Pérez López e Daniel Álvaro.
5 Diría que essa obra ilustra que “hay un gesto que, en este
caso, es un gesto de romper, por ende un gesto violento, un
gesto de destruicción y tambíen la destruicción, justamente, de
la transparencia, del sentido que se comunica, y al mismo tempo
un signo sin significación, más allá de la obra y más allá de la
destruicción, pero no hacia una nueva construcción, pues no es
un propósito social, político o ético.” (NANCY, 2014.)
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 136-154, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.49094]
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6 Conferência pronunciada no Jeu de Paume e publicada
pela primeira vez em
L’Art contemporain en question
, Paris: Jeu
de Paume, 1994. A versão utilizada neste artigo foi traduzida por
Mary Amazonas Leite de Barros e publicada no livro
Fragmentos
de uma teoria da arte
, organizado por Stéphane Huchet em
2012.
7 “O vestígio é o resto de um
passo
. Não é sua imagem, pois
o próprio passo não consiste em nada mais que seu próprio
vestígio. Desde que ele é feito, ele é passado. Ou melhor, ele
não é jamais, enquanto
passo
, simplesmente “feito” e depositado
em alguma parte. Se se pode assim dizer, o vestígio é seu toque,
ou sua operação, sem ser sua obra. Ou então, nos termos que
eu empregava há pouco, ele seria sua
finição infinita
(ou a
infi-
nition
) e não a
perfeição acabada
. Não há presença do passo,
mas ele é por sua vez apenas vinda em presença.” (NANCY,
2012, p. 304)
8 Nascido em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, em 1941,
Carlos Vergara é considerado um dos principais artistas da van-
guarda neofigurativa brasileira entre os anos de 1950 e 1960.
9 Técnica de impressão feita em uma superfície lisa, não absor-
vente. Trata-se de uma impressão única, já que a maior parte da
tinta costuma se depositar na superfície na prensagem inicial.
10 Georges Didi-Huberman desdobra este tema no livro
La
ressemblance par contact:
archéologie, anachronisme et moder-
nité de l’empreinte. Paris: Les Éditions de Minuit, 2008.
AMORIM, Daidrê Thomas de. Cinzas, cacos e rastros: apontamentos sobre a noção de vestígio.
154
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio.
O Fogo e o Relato
: Ensaios sobre Criação, Escrita, Arte e Livros. Tradução de Andrea Santurbano e Patricia Peter-
le. 1ª edição. São Paulo: Boitempo, 2018.
DIDI-HUBERMAN, Georges.
Diante do Tempo
: História da Arte e Anacronismo das Imagens. Tradução de Vera Casa Nova e Márcia
Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.
DIDI-HUBERMAN, Georges.
Génie Du No-Lieu
: Air, Poussière, Empreinte, Hantise. Paris: Éditions de Minuit, 2001.
GENET, Jean.
O Ateliê de Giacometti
. Tradução de Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2000.
LORD, James.
Um Retrato de Giacometti
. Tradução de Célia Euvaldo. São Paulo: Iluminuras, 1998.
NANCY, Jean-Luc.
El arte hoy
. Tradução de Carlos Pérez López e Daniel Alvaro. 1ª edição. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2014.
NANCY, Jean-Luc. O Vestígio da Arte. In HUCHET, Stéphane (org).
Fragmentos de uma Teoria da Arte
. São Paulo: Editora da Universi-
dade de São Paulo, 2012. p. 289-306.
SARTRE, Jean-Paul.
Alberto Giacometti
. Tradução de Célia Euvaldo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.
VERGARA, Luiz Guilherme.
Carlos Vergara
: Sudário. Coordenação de Carlos Vergara. Tradução de Alex Forman. 1ª edição. Rio de
Janeiro: Automatica, 2014.
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 136-154, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.49094]