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OS OBJETOS GRÁFICOS DE MIRA SCHENDEL: O SILÊNCIO DA FALA
NA IMAGEM
¹
Mira Schendel’s Objetos gráficos: the silence of speech in image
Los Objetos gráficos de Mira Schendel: el silencio del discurso en la imagen
* Thiago Grisolia Fernandes é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. E-mail: goathigrisolia@yahoo.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0856-8528.
Thiago Grisolia Fernandes (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)*
RESUMO Este artigo propõe uma análise da série
Objetos gráficos
(1967/1973) de Mira Schendel, artista
nascida na Suíça e radicada no Brasil, a partir da ideia do silêncio e da ausência implicados na linguagem.
Três elementos principais são abordados nesta análise: a materialidade da letra, a transparência do suporte de
acrílico e papel de arroz e a existência de várias camadas na obra, que garantem uma profundidade à mesma.
A partir da leitura de autores como Haroldo de Campos, procuramos ainda inserir o trabalho de Mira Schendel
dentro de um campo ampliado da poesia, esgarçando as fronteiras entre palavra e imagem no contemporâneo.
PALAVRASCHAVE Mira Schendel; Objetos gráficos; silêncio; ausência.
ABSTRACT This article proposes an analysis of the series
Objetos gráficos
(1967/1973) by Mira Schendel, an
Three main elements are addressed in this analysis: the materiality of the letter, the transparency of the acrylic and
rice paper support and the existence of several layers in the work, which guarantee its depth. Based on the read-
ing of authors like Haroldo de Campos, we also try to insert Mira Schendel’s work into a broader field of poetry,
blurring the boundaries between word and image in the contemporary.
Keywords Mira Schendel; Objetos gráficos; silence; absence.
RESUMEN Este artículo propone un análisis de la serie
Objetos gráficos
(1967/1973) de Mira Schendel,
artista nacida en Suiza y afincada en Brasil, a partir de la idea de silencio y ausencia implícita en el lenguaje. En
este análisis se abordan tres elementos principales: la materialidad de la letra, la transparencia del soporte de
acrílico y papel de arroz y la existencia de varias capas en la obra, que garantizan su profundidad. A partir de
la lectura de autores como Haroldo de Campos, también intentamos insertar la obra de Mira Schendel dentro
de un campo más amplio de la poesía, difuminando los límites entre palabra e imagen en lo contemporáneo.
PALABRAS CLAVE Mira Schendel; Objetos gráficos; silencio; ausencia.
FERNANDES, Thiago
Grisolia. Os Objetos
gráficos de Mira
Schendel: o silêncio da
fala na imagem. Revista
Poiésis, Niterói, v. 23,
n. 39, p. 155-169,
jan./jun. 2022.
Este documento é dis-
tribuído nos termos da
licença Creative Com-
mons Atribuição-Não
Comercial 4.0 Interna-
cional (CC-BY-NC) ©
2022 Thiago Grisolia
Fernandes. Submetido:
10/3/2021; Aceito:
25/5/2021
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 155-169, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.49097]
artist born in Switzerland and based in Brazil, based on the idea of silence and absence implied in language.
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INTRODUÇÃO
Mira Schendel foi poeta, antes de se estabelecer
como artista visual, uma das mais instigantes do
Brasil do século XX, especialmente pela dificul-
dade - e pela falta de necessidade - de incluí-la
em alguma vertente da história da arte, de filiá-la
a alguma tendência estilística, embora isso tenha
sido tentado, com mais ou menos sucesso. Haroldo
de Campos, por exemplo, contrariando o movimen-
to mais usual da crítica, que é o de tentar inseri-la
em uma vertente mais ligada ao construtivismo e a
algumas questões do Concretismo, em entrevista a
Sônia Salzstein, afirma que
Consideramos fundamental iniciar este pensamen-
to a respeito do trabalho de Mira Schendel, mais
especificamente a respeito da série
Objetos gráfi-
cos
, realizada pela artista entre 1967 e 1973, com a
afirmação de que ela foi poeta.
Por iniciar deste modo, é recomendável recorrer
à sua biografia, mas apenas de maneira breve e
lateral, apenas para chegar aí, onde sua atividade
de poeta se revela insuficiente para dar conta de
suas questões artísticas. Caberá lembrarmo-nos de
seu nascimento em Zurique, na Suíça, em 1919, sua
formação intelectual, já em artes, mas também em
filosofia e teologia, na Itália, suas viagens em fuga
da perseguição nazista, que a levaram a Sarajevo,
Roma e, finalmente, em 1949, a Porto Alegre, no
Brasil, país onde instalou-se definitivamente até a
sua morte, em 1988. E, aqui, Mira inicia um diálogo
com intelectuais e poetas importantes, como o
físico Mário Schenberg e o poeta Haroldo de Cam-
pos, e desenvolve seu trabalho artístico, ao mesmo
tempo em que leciona e publica poemas.
Seus poemas, tais como eram publicados no início
de sua vida no Brasil, são difíceis de serem
encontrados, e não nos caberia reproduzi-los
aqui. O diálogo com a poesia que nos leva a
iniciar este ensaio afirmando que Mira Schen-
del foi poeta se revelará manifesto ao longo de
toda a sua trajetória artística, e se funda muito
mais sobre uma perspectiva ampliada de poesia
[uma perspectiva que seguiria as pistas oferecidas
por Rosalind Krauss e indicaria um campo ampli-
ado da poesia], que considera, inclusive, a poesia
muito mais a partir de sua negatividade, de seu co-
eficiente silencioso; a partir daí, interessa observar
que, já do nascedouro, a produção plástico-poética
aqueles com quem Mira teria mais ligação seriam o Hélio Oiticica,
por alguns aspectos específicos, ligados ao trabalho mais pictural
que ele realizou, e a Lygia Clark, por determinados esvaziamentos
da forma que marcam alguns de seus objetos. Eu acho que os três
formam uma constelação de artistas [CAMPOS, 1996, p. 241].
FERNANDES, Thiago Grisolia. Os Objetos gráficos de Mira Schendel: o silêncio da fala na imagem.
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de Mira articula a palavra, a imagem e o silêncio
através de um reviramento da linguagem, como
procuraremos demonstrar a seguir.
Os
Objetos gráficos
evocam, de um modo muito
singular, a ideia de vazio que permeia todo o tra-
balho de Mira, e por isso trataremos especifica-
mente de tais trabalhos neste texto. Maria Eduarda
Marques aponta-nos o seguinte:
Trata-se, no trabalho em questão, de uma série de
telas que “flutuam” pelo espaço expositivo presos
por fios de náilon [como pode ser visto na figura 1];
as telas consistem em uma série de letras, algar-
ismos e outros signos gráficos, datilografados ou
adesivados, e outros símbolos não-gráficos, mas
que remetem a espécies de rabiscos, manuscritos
por Mira, dispostos sobre uma folha de papel de
arroz prensada por duas camadas de acrílico, sobre
as quais também são inseridos alguns símbolos. A
cor de tudo isto é escura, quase preto-e-branco, ou
sépia; os símbolos, como bem apontado por Ricar-
do Nascimento Fabbrini, “são discretos, diminutos”
[FABBRINI, 2002, s/p]. As letras pairam, flutuam pelo
espaço; há profundidade, dada pelas camadas que
se sobrepõem [letras sobre acrílico sobre letras so-
bre papel de arroz sobre letras sobre acrílico sobre
letras]; e há, sobretudo, transparência.
O que salta aos olhos nesses trabalhos de Mira
são esses três elementos fundamentais: a pre-
sença da letra, dissociada da formu-
lação de um vocábulo; a profundidade,
embora pareça tratar-se de um plano;
e a transparência da composição, que
lhe confere certa fragilidade, certa
evanescência. Do intervalo entre ess-
es elementos, entre essas exigências
fundamentais dessas telas, portanto
do silêncio que, essencialmente, há nessa com-
posição, emerge o sentido que nos será caro em
sua análise.
A noção de vazio foi uma constante na obra de Mira, presente nas
pinturas e, mais intensamente, nos desenhos que veio a realizar. ‘O
espaço vazio me comove profundamente, disse ela. É o vazio do
sujeito imanente, no limiar de sua existência e expressividade, imerso
‘nel vuoto del mondo’ [no vazio do mundo] [...]. O vazio que se apre-
senta em suas pinturas não é apenas ausência de objetos represen-
tados no plano: evoca a ideia de uma negatividade produtiva [...].”
[MARQUES, 2011, p. 19-20]
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 155-169, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.49097]
Fig. 1 -Vista da exposição
Tangled alphabets: León Ferrari and Mira Schendel
, MoMA, 2009, com alguns trabalhos da série
Objetos gráficos
FERNANDES, Thiago Grisolia. Os Objetos gráficos de Mira Schendel: o silêncio da fala na imagem.
em destaque. [Fotografia de Jonathan Muzikar]
[Fonte: https://www.moma.org/calendar/exhibitions/299/installation_images/3951#, acesso em 05/03/2021.]
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A LETRA
A “poética da letra”, trabalhada pela artista Helena
Trindade em ensaio que recebe justamente esse
título, nos dá um bom caminho para pensar a letra
tornada imagem, e a decorrente relação que se
torna manifesta entre a escrita e a visualidade:
É interessante observar o trabalho de Mira por essa
perspectiva; buscar o vazio daquelas letras, que
não foi abolido delas quando receberam o novo es-
tatuto de imagens; observar que sua presença não
completa a imagem, mas a “des-completa”. Mas
a letra talvez nunca possa vir a ser um signo pura-
mente visual, plástico, principalmente no trabalho
de Mira. Isso porque, sobretudo nesses trabalhos,
pelo fato de as letras estarem aproximadas umas
das outras, avizinhadas, há um chamamento ao
sentido, à palavra, ao verbo. Essa composição, por
mais que se quisesse puramente visual, pede a nós,
espectadores, fragilizados pela nossa necessidade
de racionalizar, de pôr em palavras, de dar nossa
palavra para tornar em verdades as coisas, de sa-
ber o mundo através da palavra, que as ordenemos;
que as coloquemos em relação; que as utilizemos
para construir um sentido por vir; que imaginemos
que há uma palavra oculta, por formar-se, por
revelar-se no meio daquele turbilhão de ausências;
que há talvez uma sentença primordial
onde tudo o que vemos é ausência, onde
só o que se nos mostra é “pura entropia”
[FABBRINI, 2002, s/p], como diria o pesqui-
sador Ricardo Fabbrini a respeito da obra
de Mira. Não nos parecerá tentador achar
justamente a palavra “palavra” no canto
direito do
Objeto
mostrado a seguir [figura
2], como se se tratasse de um jogo, de um caça-pa-
lavras, de um desafio cartesiano, e “desvendar”,
assim, o sentido da obra?
a plasticidade de uma “poética da letra” decorreria de uma topologia
entre o enunciável e o visível. Ao mesmo tempo em que busca a materi-
alidade de sua encarnação no mundo: na voz, no texto; o vazio pode
ser o que ela diz. A construção de uma consistência de imagem para
a letra não implica a abolição desse vazio, antes, trata-se de cingi-lo
e dá-lo a ver, pois intui-se que esse vazio coloque toda a estrutura
simbólica a funcionar. Quando a letra “des-completa” a imagem, o ver
vem ao encontro do dizer. [TRINDADE, 2013, p. 23]
página seguinte
Fig. 2 - Mira Schendel, série
Objetos gráficos
, 1997/1973
Tipografia, grafite e óleo sobre papel entre placas de acrílico tipografa-
das, 100 x 100cm.
[Fonte: https://www.moma.org/collection/works/108826, acesso em
05/03/2021.]
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 155-169, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.49097]
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Mesmo sabendo que “tornada objeto, a letra fica
opaca e resiste ao sentido” [RIVERA, 2009, p. 125],
nós quase nunca resistimos a atribuir-lhes sentidos.
Mesmo sabendo que
a partir de sua aparente irredutibilidade, a letra pode
ser pensada como o resultado de um processo radical
de essencialização e adensamento da linguagem que
se presta muito bem a uma visualidade de concisão e
economia de meios [TRINDADE, 2013, p. 23],
e que “o exemplo mais puro do significante é a letra”
[LACAN apud TRINDADE, 2013, p. 23], ainda assim
não cessamos de buscar o significado como duplo
do significante, mesmo do mais “puro” deles, de não
aceitar da linguagem seu adensamento e fazê-la es-
pargir-se, transbordar. Resistir a isso seja talvez uma
chave de entrada fundamental para o trabalho de
Mira Schendel e por isso, pensando esse trabalho,
Vilém Flusser afirma: “São as letras em formação
que demandam o significado. São os enxames de
letras que demandam o sentido. São as metamor-
foses de letras que demandam as regras do jogo do
pensamento” [FLUSSER, 1996, p. 265].
Mas é interessante retornar à ideia de que a letra,
tornada objeto, [...] fica opaca e resiste ao sen-
tido”². É dessa opacidade, dessa resistência ao
sentido advinda da opacidade, que nasce o ele-
mento mais forte, mais importante para este estudo
presente nos
Objetos gráficos
. Porque, nesses
trabalhos, a letra, “tornada objeto”, tem sua opaci-
dade irrevogavelmente contrastada à transparên-
cia do suporte em que é colocada. A opacidade da
letra tornada objeto põe em jogo a relação entre
os três elementos que, acima, afirmamos serem os
mais potentes da série de Mira: a presença da letra,
a profundidade e a transparência. É porque a letra é
opaca que nos damos conta de que os suportes são
transparentes; é porque ela é opaca que, vetando a
observação das camadas, anuncia a existência das
camadas, pela via negativa; e é porque ela é opaca
que a vemos, que a percebemos como tal: letra,
símbolo gráfico; letra,
objeto gráfico
. E é porque ela
resiste ao sentido que, de seu silêncio, o sentido
emerge: e o silêncio é o sentido, ou, como disse Hel-
ena Trindade, o vazio é o que ela, a letra, diz.
A TRANSPARÊNCIA, A PROFUNDIDADE
É preciso resistir ao sentido diante de uma obra
como esta, em que fala o silêncio - o silêncio da
letra, exigência daquela tela, necessária para com-
por o todo transparente e profundo [silencioso] de
que faz parte. Mas resistir ao sentido talvez não seja
renunciar à história, à biografia.
E volta o dado de que Mira Schendel chegou ao
Brasil refugiada da perseguição nazista na Europa;
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 155-169, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.49097]
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volta o dado de que Mira nasceu na Suíça, mas
viveu na Itália, Bósnia, Brasil; vem o dado de que
a guerra é sempre uma experiência-limite para a
formulação de qualquer linguagem, pois é aquilo
sobre o que nada se pode dizer; é aquilo que inter-
rompe sua enunciação mesma. Certamente nada
de sua produção artística completa-se em algum
desses dados; mas há que se levar em consider-
ação que há, neles, muito de silêncio, de ausên-
cia. Benjamin afirma que os soldados voltaram da
Primeira Guerra Mundial em silêncio; a experiência
de que se tratava era incomunicável:
para ele, “os livros de guerra que inund-
aram o mercado literário nos dez anos
seguintes não continham experiências
transmissíveis de boca em boca” [BEN-
JAMIN, 1994, p. 115]. E há uma relação
inegável entre o vazio da experiência da
guerra e a frieza das letras tipografadas,
dos símbolos gráficos que procuram dizer o mundo,
porém nada dizem, porque já não podem dizer. Em
livro escrito durante a Segunda Guerra, no poema
A
flor e a náusea
, o poeta mineiro Carlos Drummond
de Andrade bem declara: “Os homens voltam para
casa. / Estão menos livres mas carregam jornais,
/ e soletram o mundo, sabendo que o perdem”. A
incomunicabilidade da experiência, que Benjamin,
em seu ensaio de 1933, diz ter se tornado estrutural
no homem do pós-guerra, e sobre a qual Drum-
mond, em seu
A rosa do povo
, escrito durante a
Segunda Guerra, tão oportunamente escreveu em
alguns de seus melhores versos [como o mencio-
nado acima], também é apontada pela própria Mira
como elemento constitutivo de seu trabalho. Con-
tudo, embora compreenda que essa experiência -
não apenas a experiência da guerra; a experiência,
de uma maneira geral - seja incomunicável, ela não
a vê sob o prisma da pobreza, como o faz Benjamin,
mas exatamente ao contrário. Diz ela:
E parece-nos que Mira, a seu modo, de fato con-
segue efetuar essa coincidência: o signo, “relati-
vamente” imortal, ou seja, de alguma maneira a
linguagem, que é o reino no qual procura-se captar,
para transmitir, a experiência [a própria vida], co-
munica, em sua obra, justamente o incomunicável:
enuncia o que não pode ser enunciado, e portanto
é silêncio, e dá a ver o que é invisível. E parece-nos
que Mira só consegue fazê-lo, só consegue alca-
nçar essa coincidência do reino da experiência,
a vida imediata, aquela que sofro, e dentro da qual ajo, é minha, inco-
municável, e portanto sem sentido e sem finalidade. O reino dos símbo-
los, que procuram captar essa vida [e que é o reino das linguagens], é,
pelo contrário, anti-vida, no sentido de ser intersubjetivo, comum, esva-
ziado de emoções e sofrimentos. Se eu pudesse fazer coincidir estes dois
reinos, teria articulado a riqueza da vivência na relativa imortalidade do
signo [SCHENDEL, 1996, p. 256, grifo nosso].
FERNANDES, Thiago Grisolia. Os Objetos gráficos de Mira Schendel: o silêncio da fala na imagem.
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da vida, com o reino dos símbolos, da linguagem,
através da transparência, que, na série dos
Objetos
gráficos
, é justamente o que confere a ele a profun-
didade que citamos. Maria Eduarda Marques, em
estudo sobre a obra de Schendel, diz:
Mas a própria Mira elabora melhor o caminho que
a fez chegar no acrílico e a potência do acrílico
enquanto transparência para seu trabalho. Embora
longo, presumimos ser imprescindível lançar mão
deste trecho integralmente. No decorrer de suas
palavras, retiradas de uma anotação sem data,
sem título, incluída por Sônia Salzstein em volume
que organizou sobre a obra de Schendel, podemos
observar muitas das coisas que viemos discutindo
elaboradas pela própria artista - rica contribuição
sobre o papel da letra, da transparência e da pro-
fundidade em sua obra.
O que me preocupa é captar a passagem da vivência
imediata, com toda a sua força empírica, para o símbo-
lo, com toda a sua memorabilidade e relativa eterni-
dade. [...] Reformulando, é esta minha obra a tentativa
de imortalizar o fugaz e dar sentido ao efêmero. Para
poder fazê-lo é óbvio que devo fixar o próprio instante,
no qual a vivência se derrama para o símbolo, no caso,
para a letra.
No começo, pensava que para tanto bastava [...] sen-
tar-me a esperar que a letra se forme. Que assuma sua
forma no papel e que se ligue a outras numa
escrita pré-literal e pré-discursiva. Mas sentia,
desde o início, que isto poderia ter êxito ape-
nas se o papel fosse transparente. Agora sei
melhor avaliar porque tinha então aquela im-
pressão: a letra, ao formular-se, deve mostrar
o máximo de suas faces, para ser ela mesma.
Surgiu, no entanto, um segundo problema. A
sequência de letras no papel imita o tempo, sem pod-
er realmente representá-lo. São simulações do tempo
vivido, e não captam a vivência do irrecuperável, que
caracteriza esse tempo. Os textos que desenhei no papel
podem ser lidos e relidos, coisa que o tempo não pode.
Fixam, sem imortalizar, a fluidez do tempo. Por isso,
abandonei esta tentativa.
Abandonei, porque descobri o acrílico, que parece
oferecer as seguintes virtualidades: a. torna visível a outra
face do plano, e nega, portanto, que o plano é plano; b.
torna legível o inverso do texto, transformando portanto o
texto em anti-texto; c. torna possível uma leitura circular, na
qual o texto é centro imóvel e o leitor é móvel. Destarte, o
tempo fica transferido da obra para o consumidor, portan-
to o tempo se lança do símbolo de volta para a vida; d.
a transparência que caracteriza o acrílico é aquela falsa
transparência do sentido explicado. Não é a transparên-
cia clara e chata do vidro, mas a transparência misteriosa
da explicação, de problemas. [SCHENDEL, 1996, p. 256]
Na densidade do desenho e das inscrições, a transparência alcançada
na montagem do papel sobre o acrílico é fundamental. [...] o papel é
prensado por entre duas placas de acrílico, suspensas por fios de náilon,
tornando visível a outra face do plano. A hierarquia do olhar é quebrada,
conduzindo a uma leitura circular e virtual. Mira explora a possibilidade
de acabar com a frente e o verso. Interessava a ela alcançar a simultanei-
dade do tempo e do espaço. [MARQUES, 2011, p. 27]
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 155-169, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.49097]
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Portanto, para Mira, está no material a chave para
essa leitura de sua obra; não terá sido à toa que
Haroldo de Campos, em entrevista, afirmou que Mira
tem esse grande respeito matérico pelos elementos
que convoca em seu trabalho” [CAMPOS, 1996, p.
234]. Do acrílico, de sua potência enquanto material,
advêm a negação do plano, que é a profundidade em
que temos insistido, e a possibilidade de o “inverso”
do texto ser lido, gerando a possibilidade mesma de
que se experimente a escrita, ou antes o avesso da
escrita [a
desescrita
, poderíamos dizer] com o corpo
- e, talvez, trate-se sempre disso; talvez a
desescrita
,
esse avesso de um texto que lhe é constitutivo, só
seja experimentado através de uma operação com o
corpo, de uma transferência de tempo da obra para
o corpo de seu “leitor”, de uma “leitura circular” que
possibilita que o tempo seja lançado “do símbolo de
volta para a vida”. E se Benjamin abomina os ambi-
entes de vidro, sob a justificativa de que “eles criaram
espaços em que é difícil deixar rastros” [BENJAMIN,
1994, p. 118], Mira Schendel recusa também o vidro,
deixa como rastro o vazio que nada tem a ver com a
falta, com a “transparência chata do vidro”, com sua
assepsia demasiada.
Além da opacidade da letra e da transparência do
suporte, há no trabalho de Mira Schendel ainda um
outro elemento que, sendo a colocação dos dois
primeiros em perspectiva, um em relação ao outro,
é aquele que nos revela de forma mais contundente
a potência da fragilidade, do silêncio e mesmo da
ausência implicados em sua obra. Tal elemento nos
é oferecido a partir da ideia das
camadas
. Segundo
a própria Mira, a existência de várias camadas em
seu trabalho, através de uma das “virtualidades”
do acrílico, nega o plano, indica que “o plano não é
plano”, denuncia a existência de profundidade, por
mais que se trate de uma tela. A ideia de
profundi-
dade
é este terceiro elemento, que a existência de
camadas em seus
Objetos gráficos
revela.
Em toda tela há a existência de camadas, mesmo
que seja, minimamente, a da tinta por sobre a tela
[mas há, na maioria dos casos, tintas sobre tintas,
e, ainda, outros materiais, que têm sido utiliza-
dos das formas mais inusitadas na arte de nosso
tempo]. E essa existência de camadas, que confere
profundidade material à tela [não estamos nos
referindo à profundidade virtual, produzida tecnica-
mente através da perspectiva], é o modo pelo qual
se consegue destacar os elementos que compõem
o quadro; é pela existência das camadas que o
intervalo entre elas, o vazio entre os signos que
fazem parte da composição, irrompe, e é a partir de
onde o sentido pode se fazer. Nos
Objetos
de Mira,
essa profundidade é apenas mais bem observada,
potencializada pelo acrílico; por isso seu silêncio é
tão potente, tão forte, tão eloquente.
FERNANDES, Thiago Grisolia. Os Objetos gráficos de Mira Schendel: o silêncio da fala na imagem.
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Mira Schendel atinge visualmente o ponto onde
o silêncio emerge da fala, ainda que sua fala seja
apenas, como ela mesma aponta, pré-literal,
pré-discursiva; esse ponto que é comum à fala dos
poetas. Seu trabalho, portanto, se é que pode ser
considerado um poema, só pode ser assim consid-
erado pela via do silêncio, e não da voz; pela via do
intervalo, da ausência, e não tanto da presença das
letras. E, embora uma parte da crítica não admi-
ta seu trabalho enquanto poesia, como Fabbrini,
quando afirma que
Haroldo de Campos diz o contrário. Afirma a potên-
cia poética do trabalho da amiga Mira Schendel
em dois momentos importantes. O primeiro deles é
na já referida entrevista a Sônia Salzstein, quando
declara o seguinte:
Ela tem esse grande respeito matérico pelos elementos
que convoca no seu trabalho e, por outro lado, tem o gos-
to pela escritura. Esta nem sempre é létrica, às vezes não
são letras nem palavras; outras vezes aparecem palavras,
e o quadro dela já é um poema, um poema-quadro, um
quadro-poema. Certas escrituras são traços, são resíduos,
são resquícios, são restos que ela deixa no papel, deixa
aflorar no papel, deixa percorrer o papel, como se fossem
rastros existenciais, ontológicos. [CAMPOS, 1996, p. 234]
O outro momento é quando escreve um poema,
publicado originalmente no catálogo
Mira Schen-
del
, relativo à exposição da artista no MAM/RJ,
em 1966, e republicado no livro organizado por
Salzstein, no qual Haroldo consegue captar, com a
excelência poética exigida, essa “arte de vazios” de
Mira Schendel.
uma arte de vazios
onde a extrema redundância começa a gerar informação original
uma arte de palavras e de quase palavras
onde o signo gráfico veste e desveste vela e desvela
súbitos valores semânticos
uma arte de alfabetos constelados
de letras-abelhas enxameadas ou solitárias
a-b-[li]-aa
onde o dígito dispersa seus avatares
num transformismo que visa ao ideograma de si mesmo
que força o digital a converter-se em analógico
uma arte de linhas que se precipitam
e se confrontam por mínimos vertiginosos de espaço
sem embargo habitados por distâncias insondáveis
de anos-luz
uma arte onde a cor pode ser o nome da cor
as ‘miragrafias’, todavia, não são ‘poemas’, mas a figu-
ração de um estado anterior ao nascimento das línguas,
um regresso ao ‘in nato’ das letras, dos algarismos e de
suas primeiras conexões [FABBRINI, 2002, s/p],
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 155-169, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.49097]
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A “arte de alfabetos constelados” de que fala Har-
oldo remete à ideia de “constelação”, muito cara a
este teórico, e que pode ser aplicada ao trabalho de
Mira Schendel. Tomada do texto de Eugen Gom-
ringer,
Do Verso à Constelação - Função e Forma
de uma Nova Poesia
, essa ideia aparece em diver-
sos de seus textos mais importantes, e refere-se a
um modo outro de pensar a poesia, para além do
verso tal como é tradicionalmente conhecido; para
pensar este modo outro, tanto Gomringer quanto
Haroldo de Campos recorrem à escrita ideogrâmi-
ca chinesa, cujo método de composição poética,
de acordo com Haroldo, via Ezra Pound, é o de
“justaposição direta de elementos em conjuntos
geradores de relações novas [o que Gomringer, a
exemplo de Mallarmé, denomina de constelação]”
[CAMPOS, 2006, p. 141].
Evidentemente, a constelação de que falam
Gomringer e Campos refere-se à poesia; e a
uma poesia necessariamente feita com palavras.
Embora partindo
da consideração do instrumento ideográfico como o
processo mental de organização do poema em exata
consonância com a urgência por uma comunicação
mais rápida, direta e econômica de formas verbais que
caracteriza o espírito contemporâneo, antidiscursivo e
objetivo por excelência [CAMPOS, 2006, p. 142],
e concebendo o poema “como uma unidade
totalmente estruturada de maneira sintético-
ideogrâmica [todos os elementos sonoros, visuais
e semânticos - verbivocovisuais - em jogo]”
[CAMPOS, 2006, p. 142], é importante ressaltar que
a constelação é a forma mais simples de organizar
a poesia fundada na palavra
” [GOMRINGER apud
CAMPOS, 2006, p. 141, grifo nosso].
E, como já vimos, a escritura que está em jogo no
trabalho de Mira Schendel, ao mesmo tempo em
que se aproxima, pela via da ausência, da poe-
sia - pelo menos de sua essência -, não chega a
se constituir enquanto poema feito de palavras:
e a figura comentário da figura
para que entre significante e significado
circule outra vez a surpresa
uma arte-escritura
de cósmica poeira de palavras
uma semiótica arte de ícones índices símbolos
que deixa no branco da página seu rastro luminoso
esta arte de mira schendel
entrar no planetarium onde suas composições
se suspendem desenhos estelares
e ouvir o silêncio como um pássaro de avessos
sobre um ramo de apenas
gorjear seus haicais absolutos [CAMPOS, 1996, p. 239]
FERNANDES, Thiago Grisolia. Os Objetos gráficos de Mira Schendel: o silêncio da fala na imagem.
167
é uma “escrita pré-discursiva”, anterior à formu-
lação de uma palavra que pudesse se colocar em
relação a outras, num jogo constelado. O que se
coloca em constelação, aqui, não são as pala-
vras, mas, talvez, como no poema de Haroldo,
apenas essa “cósmica poeira de palavras”, isto é,
as letras.
E é no intervalo entre essas letras, como já vimos,
que emerge o teor poético de sua obra, deixando
“no branco da página seu rastro luminoso”. Mais
próximas dos ideogramas do que as palavras
em caracteres ocidentais, as let-
ras - cada um dos caracteres
per se
- é que, em seu trabalho, adquirem
uma forma. “Não basta afirmar”, diz
Fenollosa a respeito dos ideogramas,
que cada um deles encerra um
determinado corpo de significado prosaico; pois a
questão é como pode o verso chinês implicar,
en-
quanto forma
, o elemento que distingue a poesia
da prosa?” [FENOLLOSA, 1977, p. 121]. A mesma
questão se pode colocar em relação às letras de
Mira, na composição não de um verso poético,
mas de uma tela que encerra um enunciado po-
tencialmente poético. Nesses objetos gráficos, os
alfabetos são constelados, as letras são abelhas
enxameadas, que fazem ouvir seu silêncio como
um pássaro de avessos.
Colocando em questão a ideia de que o pensa-
mento, naturalmente, ainda segundo Fenollosa,
é sucessivo, não em virtude de algum acidente
ou fraqueza de nossas operações subjetivas, mas
porque as operações na Natureza são também
sucessivas” [FENOLLOSA, 1977, p. 121], Mira, com
suas letras não sucessivas, mas consteladas,
propõe uma nova ordem do pensamento. Fenol-
losa se pergunta “em que sentido versos escritos
sob a forma de hieróglifos visíveis podem ser tidos
por verdadeira poesia?”, considerando que
Embora não sejam exatamente “hieróglifos”, as
“miragrafias”, como chamadas por Fabbrini, nos
oferecem, de algum modo, uma resposta a essa
pergunta. Fazendo outra vez circular a surpresa
entre significante e significado - um significante
sempre por vir, potência, portanto, de significa-
dos sempre múltiplos -, a artista nos oferece uma
transferência de tempo da obra para o consum-
idor [em suas palavras: “o tempo se lança do
símbolo de volta para a vida” [SCHENDEL, 1996,
p. 256]]: sua arte se dá no tempo, como a poesia,
Aparentemente, talvez, a poesia que, tal como a música, é uma arte do
tempo, entretecendo suas unidades através de sucessivas impressões
sonoras, dificilmente poderia assimilar um meio de comunicação verbal
que consiste, em grande parte, de apelos semipictóricos ao olho.
[FENOLLOSA, 1977, p. 120]
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 155-169, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.49097]
168
mas não de maneira sucessiva, e sim circular.
Mira nos permite experimentar, da escritura, seu
avesso, fazendo o espectador submeter-se a ele,
entrar no planetarium onde suas composições/
se suspendem desenhos estelares”, ouvir o gor-
jeio desse “pássaro de avessos” a relativizar seus
“haicais absolutos”; permite-nos, enfim, entrar na
dobra de sua escritura, onde a ausência da pala-
vra é eloquente, e encontrar em seus
Objetos
uma
potente
desescrita
.
NOTAS
1 Este artigo foi escrito com o auxílio da bolsa de pesquisa de
doutorado do CNPq.
2 Esta análise de Tania Rivera não refere-se ao trabalho de
Mira Schendel; antes, refere-se ao trabalho da artista Helena
Trindade, e consta no catálogo de uma exposição dela. Acha-
mos, todavia, adequado inserir esta análise aqui.
FERNANDES, Thiago Grisolia. Os Objetos gráficos de Mira Schendel: o silêncio da fala na imagem.
169
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