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Não posso deixar de pensar nas garras pontiagu-
das de metal que são fixadas no solo apontando
para o tronco de uma árvore, mais precisamente
um mogno. À medida que ela cresce, ameaçada por
uma situação não natural e agressiva, o tronco da
árvore terá que se adaptar a esse constrangimen-
to. Trata-se de
Grande Budha
, trabalho de Nelson
Félix, que em 1985 instala, na floresta amazônica
do Acre, seis garras de latão, determinado pelas
coordenadas 10º 07’ 49” S e 69º 11’ 11” W. Essa ação
faz parte da obra Cruz na América, que inclui outras
três ações entre os anos de 1985 e 2004. O proces-
so de crescimento de uma árvore é muito longo e
aos olhos humanos pode ser quase imperceptível
pelo tempo que demanda. Por meio dessa interfe-
rência, Félix provoca um desarranjo na natureza:
o confronto e o encontro de duas matérias, uma
orgânica e outra inorgânica, vegetal e mineral. Uma
inconstante e mutável, a outra estável. Confronta
também duas naturezas sensíveis: as barras de
zinco e cobre, elementos naturais, porém já proces-
sados, em oposição à natureza virgem da árvore,
com sua força dirigida ao seu crescimento e à sua
perpetuação. A floresta amazônica é um organismo
altamente dinâmico, onde distintas espécies con-
vivem e se organizam. A ação de Félix propõe uma
interferência em uma das centenas de milhares de
árvores que formam a floresta. “Uma árvore, neste
contexto, é um igual entre iguais; a floresta é uma
imensidão cheia, construída por semelhantes
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”.
A floresta é um conjunto de diferentes que cons-
titui um só. O artista age e se retira logo depois de
concluída a ação, entregando a matéria tradicional-
mente escultórica para o tempo-duração e tempo
clima, que vão tomar o lugar do artista e agir. Em
uma floresta as árvores morrem e caem, enquanto
outras nascem, ativando um ciclo dinâmico.
Gran-
de Budha
deixa em aberto muitas perguntas: como
a árvore vai responder a essa provocação? O metal
rasgará o tronco da árvore em crescimento? Será
possível voltar ao lugar exato passados muitos anos
para acompanhar o desenrolar da ação? Como a
floresta percebe essa intervenção? Todas essas
perguntas que o trabalho propõe só encontram res-
postas no campo da imaginação e da suposição, e
confirmam o poder da arte como campo de provo-
cação e parceria compartilhada com a natureza,
entendendo natureza como dimensão espacial
e temporal. Os trabalhos do artista estão sempre
acontecendo, não se limitam ao objeto esculpido
e instaurado em alguma localidade, se expandem
no tempo dilatado. A arte está no emaranhado do
tempo e o pensamento é sobre o acontecimento.
Félix sempre se refere a poesia como uma prática
onde a certeza e a segurança não fazem parte, pois
a poesia nunca sabe onde vai chegar. Assim como
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 163-175, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.49100]