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ENTREVISTA COM RODRIGO BRAGA
Interview with Rodrigo Braga
Entrevista con Rodrigo Braga
RESUMO Entrevista com o artista Rodrigo Braga partindo de seu trabalho em vídeo intitulado Tônus. Para
embasar a conversa, o trabalho Grande Budha, de Nelson Félix, e a ideia central do livro O Contrato Natural,
de Michel Serres.
PALAVRASCHAVE arte, natureza, disputa, sujeito
ABSTRACT Interview with artist Rodrigo Braga based on his video work entitled Tólio. To support the con-
versation, the work Great Budha, by Nelson Félix, and the central idea of the book The Natural Contract,
by Michel Serres.
KEYWORDS art, nature, dispute, subject
RESUMEN Entrevista con el artista Rodrigo Braga basada en su trabajo en video titulado Tólio. Para
apoyar la conversación, el trabajo Great Budha, de Nelson Félix, y la idea central del libro The Natural
Contract, de Michel Serres.
PALAVRASCLAVE arte, naturaleza, disputa, sujeto
Claudia Tavares [Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil]*
* Claudia Tavares é Doutora em Processos Artísticos Contemporâneos pelo Instituto de Artes da UERJ. E-mail: claudia@claudiatavares.com, ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-6724-3061
Claudia. Entrevista
com Rodrigo Braga.
Revista Poiésis,
Niterói, v. 22, n. 38,
p. 163-175, jul./dez.
2021. [https://doi.
org/10.22409/poie-
sis.v22i38.49100]
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BY-NC] © 2021
Claudia Tavares
Claudia Tavares, Entrevista com Rodrigo Braga.
Citação recomen-
dada: TAVARES,
(Submetido: 10/3/2021;
Aceito: 13/5/2021;
Publicado: 7/7/2021)
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A intenção dessa entrevista – realizada no apar-
tamento do artista, no bairro de Santa Teresa,
Rio de Janeiro, em 6 de março de 2018 – foi a de
dialogar com o artista Rodrigo Braga sobre sua
produção, que experimenta, tenciona e dialoga
diretamente com forças da natureza. A conversa
é norteada pela a ideia central do livro
O Contrato
Natural
1
, do filósofo francês Michel Serres, que
resumidamente sugere que os homens devem
repensar a sua forma de interação com a natu-
reza. Esse livro foi uma das balizas teóricas da
minha tese,
Um Jardim em Floresta, a natureza
como sujeito
2
, onde a hipótese principal é da arte
estabelecer uma relação de simbiose com a na-
tureza, acrescentando assim um novo paradigma
nas relações já estabelecidas de representação,
contemplação e ou intervenção na natureza.
Esse paradigma propõe a interação entre arte e
natureza, que convoca, além da visão, os outros
sentidos do corpo a habitar essa relação. Propõe
também a percepção do corpo da natureza, com
sua fala própria, firmando-a como sujeito e não
mais apenas como objeto.
As primeiras linhas escritas por Michel Serres no
livro citado acima descrevem uma disputa entre
dois inimigos que lutam num campo de areia
movediça. O filósofo, inspirando-se na pintura de
Goya, não deixa escapar que os dois lutadores
se enfrentam sobre um pântano e, assim, quan-
to mais se movimentam mais se afundam. Parte
da série de Pinturas Negras,
Duelo a Garrotazos
se refere à disputa politica como luta pelo poder
entre os homens. Serres, no entanto, utiliza essa
imagem para se referir ao momento em que nos
encontramos enquanto humanidade em nossa
relação com a Terra. A disputa entre os dois ho-
mens pintados, para ele, não se restringe à dis-
puta no domínio específico entre os homens, mas
sim entre humanidade e natureza. “A cada mo-
vimento, um buraco viscoso engole-os e ambos
se enterram na lama gradualmente. A que ritmo?
Isso depende da sua agressividade: na luta mais
encarniçada, os movimentos mais vivos e secos
aceleram o atolamento” [SERRES, 1990].
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Chama a atenção para nós, espectadores, que
ficamos de fora assistindo e apostando em um ou
outro lutador, sem nos darmos conta do pântano.
Fixamos nosso olhar nos homens e esquecemos de
prestar atenção à natureza. “Em que areias move-
diças nos atolamos em conjunto, adversários ativos
e espectadores perigosos?”[SERRES, 1990]. O autor
pressupõe uma sociedade que se funda no para-
digma da dominação antropocêntrica da natureza,
apontando o primado da espécie humana sobre
Fig. 1 - Francisco de Goya, Duelo a garrotazos, 1820. óleo sobre tela, 92 x 130 cm
Fonte: Acervo Museo del Prado
ela, que estabelece uma relação onde a natureza,
com seus recursos naturais, é serva do homem.
Seu pensamento, no entanto, vai muito além, nos
provocando a pensar nas múltiplas crises contem-
porâneas que atravessamos, sejam elas ambiental,
energética, alimentar, migratória, política, sanitária,
militar e/ou econômica. E sem dizer explicitamente,
entretanto, aponta que o conjunto de todas essas
crises parece ter um mesmo ponto de partida: a
situação de batalha entre humanidade e natureza.
Claudia Tavares, Entrevista com Rodrigo Braga.
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Não posso deixar de pensar nas garras pontiagu-
das de metal que são fixadas no solo apontando
para o tronco de uma árvore, mais precisamente
um mogno. À medida que ela cresce, ameaçada por
uma situação não natural e agressiva, o tronco da
árvore terá que se adaptar a esse constrangimen-
to. Trata-se de
Grande Budha
, trabalho de Nelson
Félix, que em 1985 instala, na floresta amazônica
do Acre, seis garras de latão, determinado pelas
coordenadas 10º 07’ 49” S e 69º 11’ 11” W. Essa ação
faz parte da obra Cruz na América, que inclui outras
três ações entre os anos de 1985 e 2004. O proces-
so de crescimento de uma árvore é muito longo e
aos olhos humanos pode ser quase imperceptível
pelo tempo que demanda. Por meio dessa interfe-
rência, Félix provoca um desarranjo na natureza:
o confronto e o encontro de duas matérias, uma
orgânica e outra inorgânica, vegetal e mineral. Uma
inconstante e mutável, a outra estável. Confronta
também duas naturezas sensíveis: as barras de
zinco e cobre, elementos naturais, porém já proces-
sados, em oposição à natureza virgem da árvore,
com sua força dirigida ao seu crescimento e à sua
perpetuação. A floresta amazônica é um organismo
altamente dinâmico, onde distintas espécies con-
vivem e se organizam. A ação de Félix propõe uma
interferência em uma das centenas de milhares de
árvores que formam a floresta. “Uma árvore, neste
contexto, é um igual entre iguais; a floresta é uma
imensidão cheia, construída por semelhantes
3
”.
A floresta é um conjunto de diferentes que cons-
titui um só. O artista age e se retira logo depois de
concluída a ação, entregando a matéria tradicional-
mente escultórica para o tempo-duração e tempo
clima, que vão tomar o lugar do artista e agir. Em
uma floresta as árvores morrem e caem, enquanto
outras nascem, ativando um ciclo dinâmico.
Gran-
de Budha
deixa em aberto muitas perguntas: como
a árvore vai responder a essa provocação? O metal
rasgará o tronco da árvore em crescimento? Será
possível voltar ao lugar exato passados muitos anos
para acompanhar o desenrolar da ação? Como a
floresta percebe essa intervenção? Todas essas
perguntas que o trabalho propõe só encontram res-
postas no campo da imaginação e da suposição, e
confirmam o poder da arte como campo de provo-
cação e parceria compartilhada com a natureza,
entendendo natureza como dimensão espacial
e temporal. Os trabalhos do artista estão sempre
acontecendo, não se limitam ao objeto esculpido
e instaurado em alguma localidade, se expandem
no tempo dilatado. A arte está no emaranhado do
tempo e o pensamento é sobre o acontecimento.
Félix sempre se refere a poesia como uma prática
onde a certeza e a segurança não fazem parte, pois
a poesia nunca sabe onde vai chegar. Assim como
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suas obras que acontecem no tempo da imprevi-
sibilidade, circularidade e instabilidade da natureza.
Em uma das cenas do vídeo Tônus, de Rodrigo Braga,
vemos, de um lado, um braço sujo de lama apoiado ao
chão, do outro, um caranguejo. Ambos estão interliga-
dos por uma pequena corda, que os ata e os impede
de se afastarem um do outro. Eles lutam. O homem
quer agarrar o bicho e o bicho quer morder o homem.
A tensão é provocada pelo artista, um construtor de
imagens, um interventor na natureza que provoca
encontros entre seres, vivos e mortos, entre estados
distintos da existência e de seu próprio corpo.
Fig. 1 – Rodrigo Braga,
Tônus
, 2012, frame de vídeo.
Fonte: https://www.rodrigobraga.com.br/Tonus
Estabeleço um paralelo entre esse trabalho, o Gran-
de Budha de Nelson Félix e a questão levantada por
Serres anteriormente. Penso que este trabalho de
Braga trata, primordialmente, dessa disputa. Além
da cena da luta com o caranguejo, vemos também,
no mesmo vídeo, o corpo do artista em várias outras
ações: tentando empurrar uma rocha; rolando no
chão movimentando duas árvores por duas longas
cordas enroladas em sua cintura; deitado numa
canoa semi naufragada com um peixe abatido em
seu ventre; novamente atado por um braço e uma
perna a um bode em um duelo de forças. Ouvimos
sua respiração cansada do esforço físico e alguns
gemidos de dor. Ouvimos
também passarinhos,
cigarras e o berro do bode.
O bode cansa e se deita.
Rodrigo também. O artista
parece estar, com o uso de
seu próprio corpo, em sua
própria escala, propondo
a pergunta: quem domina
quem? Com esse trabalho
em mente, procuro Rodrigo
e o convido para uma con-
versa, que transcrevo aqui
em formato entrevista.
Claudia Tavares, Entrevista com Rodrigo Braga.
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Então, Rodrigo, foi a partir do trabalho do Nelson Felix que eu comecei a pensar nes-
sa parceira entre arte e natureza. Falo do
Grande Budha
. Ele ativou em mim uma série
de questões. O que vai acontecer com o trabalho dele? Ele instala o trabalho ali e o deixa, sabendo que a
natureza vai reagir. Por mais que ele não tenha essa preocupação, com o que vai acontecer, com o desen-
volvimento, aquilo ali tem um desenvolvimento, vai acontecer alguma coisa. A Mesa que ele faz nos pampas,
aquilo já cresceu, a esfera que ele deixa no mar, que em algum momento vai quebrar… Será que já quebrou,
ou não? E aí eu comecei a pensar que não é mais uma questão de visualidade, trabalhar na natureza não é
mais um olhar para a natureza, como a ideia de paisagem estética, é a ideia que se age com ela.
AUTOR/A
Isso me ajuda a pensar também meu próprio trabalho. Você está certa.
RODRIGO BRAGA
A
Essa ideia tem sentido pra você?
RB
Tem sentido sim e amplia muito a discussão pra gente. Até porque você também, como fotógrafa, tem
esse princípio do visual muito forte. Como eu, não só na fotografia mas na pintura lá atrás, que faz
minha obra toda parecer pintura, no final das contas, imagem. Então, a gente ter essas outras visões mais
ampliadas… evidentemente o trabalho é muito visual, mas como ela vai além, isso acho que o texto que vai
falando também, né?
[…]
A
Quando você começou a pensar, a interagir com os ciclos da natureza,
com os espaço da natureza? Eu sei que tem a ver com seus pais, não é?
RB
Sim, tem a ver com formação sim. Eu vou falar sobre a minha experiencia, já que a pergunta é direta
assim. Porque dentro da ciência e da biologia, tem muita naturalidade em alterar a natureza. Um veteri-
nário ou um biólogo, se ele precisar estudar um animal, ele vai e mata o animal para estudar, sem
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frescuras e sem questões, porque para ele é um método científico que historicamente é estabelecido e aceito.
Então, desde criança eu via meu pai, não nesses procedimentos específicos, embora ele já tenha feito, eu,
enquanto criança, era um pequeno cientistazinho, fazendo pesquisas a ponto de pegar lagartixas, ou fazer
enxertos com as plantas. Então essa operação na natureza já é algo da formação. […] vem daí, não é Claudia.
Mas também assim, sobre a observação, que é o que eu acho que te interessa, que o que a gente vive e vê de
natureza é a natureza alterada eminentemente. Mesmo quando a gente vai a Amazônia, às vezes, nem sem-
pre, o que você vai acessar lá são lugares trilhados, onde o homem já meteu a mão. […] É pura observação do
mundo. Na verdade, nós somos seres urbanos, duas pessoas que dialogamos com a natureza já alterada. Eu
acho que é isso. E acho que essa discussão toda ecológica, que entrou pelo avesso na minha historia, porque
meus pais são defensores da natureza, são ecologistas históricos, minha irmã se tornou ecologista e eu não,
mas eu lido com a natureza. Então quando eu vou trabalhar, eu não assumo nenhum papel de ecologista, pelo
contrário, sou criticado por ser malfeitor dos animais e da natureza. E aí é quase uma situação de matar o pai,
né? Uma questão aí já mais ampla, da minha psique talvez, que eu vou descobrindo que minha matéria prima,
Paulo Herkenhoff até fala isso, que eu não sou um artista que… meu tema central não é a natureza, é o homem.
O que eu faço é da perspectiva da alteração, o título do livro era Ciclos Alterados. Basicamente, minha perspec-
tiva é que onde o homem põe a mão na natureza dá merda, fica ruim. Em vários trabalhos que eu fiz tem um
pouco disso, inclusive o Tônus, que é uma briga de força com um caranguejo. Quem fere quem?
A
Exatamente…
RB
Eu dei uma palestra há dez anos atrás, a convite da Glória Ferreira, com Nelson Félix.
A
Jura? Que lindo!
RB
Lindo, foi incrível. Foi no Museu da Vale, uma das palestras mais incríveis que eu já dei, ou melhor, que
eu já estive, porque eu ainda era meio verdinho, foi umas das primeiras vezes mesmo saindo de
Recife para viajar e dar palestra, peguei o Museu Vale, com o auditório e quinhentas pessoas!
Claudia Tavares, Entrevista com Rodrigo Braga.
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A
Nossa, que medo
RB
[…] Aí, depois de eu falar, Nelson falou e houve uma pergunta para o Nelson.
“Nelson, a arte avilta a vida ou a vida avilta a arte”? Aí o Nelson responde:
essa pergunta não é para mim, é para o Rodrigo! [risos], foi ótimo. É… é esse
lado de quem avilta quem… então a gente se supõe superior, controlador dessa
natureza, mas na hora H cria-se um musgo dentro de casa, na hora H deu um vento
e muda tudo, a chuva destruiu o que você fez e tal, então é essa briga de força que
está também no seu trabalho, dentro de um campo do incontrolável, não é? Do
imprevisível, que até é previsível de certa forma, mas é essa co-autoria com a
natureza que você fala. Eu acho um viés muito interessante do seu trabalho, e
inclusive nessa coisa dos rios flutuantes, ou voadores, que você toma um conceito
da biologia, da natureza em si. Já eu trabalhando lá com as mímeses, uma folha que
parece um peixe, e que eu reproduzo isso. As inversões também de perspectiva.
A
Sim, porque a mímesis vem da ideia da imagem, da fotografia, que também já toca em outro lugar.
RB
Inclusive essa exposição “Agricultura da Imagem”, que vai abrir em Recife e que estava aqui no BN-
DES, o curador toca muito nisso, nas mímeses. O título é Agricultura da Imagem, nesse sentido que o
Jeff Wall falava do fotografo agricultor.
A
Eu gosto muito dessa ideia, do fotógrafo que vai criar a imagem.
RB
É aquele que vai criar uma situação para fotografar.
[…]
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A
Tem uma coisa que eu fico pensando também, que no próprio Labverde, essa residência que vc fez e
que eu vou fazer, tem uma proposta, um tipo de slogan que é algo “como a arte effects a natureza?”. Eles
não usam o termo afetar, eles usam o termo effect, como se fosse um efeito, né? Assim como uma coisa
cria efeito na outra. E aí eu fico pensando nesse lugar do artista, no lugar da proposta com a natureza, dessa
natureza alterada, dessa natureza dominada… Você acha que a gente tem um lugar de defensor? A gente
tem que ter esse lugar? Eu sei que tem alguns artistas que acham que sim, que a arte tem uma proposta
ativista, de defender causas, etc. Eu não sou exatamente dessa praia, mas fico pensando o quanto isso
ecoa pra você, se você acha que o artista ou a arte tem esse lugar de defesa do mundo, de defesa da nature-
za, dos gêneros, das raças
RB: Isso é uma coisa que acabei pensando muito, dentro dessa forma de trabalhar que traz isso porque é
essa coisa, filho de biólogos, ecologistas, irmã ecologista, cunhado ecologista…
A
Você está cercado de ecologistas…
RB
Sim, e aí é esperado de mim uma postura. Mas desde cedo, enquanto eu fui fazer o Fantasia de
Compensação, aquele trabalho do cachorro há anos atrás, há uma conversa com os pais. E é curioso
porque eles nunca foram contrários, sobretudo meu pai gosta de problematizar e debater tudo. Essa é
uma questão que volta e meia me acontece e me ocorre, de me perguntar: e a ética disso? E o meu papel
nisso tudo? Sou um cara que lida também com públicos, e lidar com as pessoas é ouvir as pessoas também.
E é também ser confrontado, e o tempo todo eu sou confrontado nessa perspectiva da ética também, né?
A
Você acha que isso ocorre principalmente pelo trabalho do cachorro?
RB
Principalmente, obviamente. Mas…
Claudia Tavares, Entrevista com Rodrigo Braga.
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A
É o seu trabalho mais forte, não?
RB
Sim, o mais forte. Mas olha, tem gente que
não conhece o do cachorro e vem me ques-
tionar por outros. Bizarramente assim, as vezes
trabalhos que são até fofos aparentemente, me
causam problema. Tem um que usa penas de
araras e papagaios, que causa problema.
A
Qual tipo de problema? Tipo, você matou a
arara pra pegar a pena?
RB
Isso, de onde veio? Esse trabalho deu
problema demais.
A
Aí você que comprou ali…
RB
Comprei ali não! Vai explicar o caminho
que você faz, que está muito dentro do meu
trabalho, que nada vem fácil assim… então essa
discussão sobre meu papel nisso tudo passa mas
eu mando meio ‘pras cucuias’. Não é que eu
desconsidere, mas eu acho mais importante
nossa liberdade de criação.
A
Pois é, porque eu penso que o lugar do artista
não é o lugar do cidadão
RB
É mesmo, cidadão?
A
Sim, a ideia de pensar no Sebastião Salgado,
por exemplo, que vem com um papel messiâ-
nico de cidadão que deve salvar o mundo através
das suas fotografias. Vou salvar o mundo, vou
salvar a natureza…
RB
Tem o Krajcberg…
A
O Krajcberg talvez também…
RB
É que ele sente a dor da natureza, mas é
diferente porque tem a história da família
dele, de violência a família, como fugitivo de guerra
ele mesmo, uma família que foi queimada. Então ver
a mata sendo queimada é outra entrada pro traba-
lho. Mas ambos têm esse sentido de dever.
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A
Mas esse lugar de dever, eu não acho que a
gente tem que assumir esse lugar. Eu acho que
a arte toca, provoca, ela te coloca num lugar mais
confortável ou menos, mas…
RB
É aquela velha questão, Claudia, eu acho
que a gente propõe. Acho que nosso maior
tesão de trabalhar com arte e fazer nossas ideias é
propor. E essas questões ecoam na gente às vezes
mais do que a gente imagina. Eu deixei de comer
carne no meio de processo de trabalho, junto a
vários outros motivos. Faz dez anos que eu não
como animais grandes, eu como peixe, frutos do
mar. Mesmo assim há umas escolhas dentro disso.
Mas eu já dei palestras sem citar isso e já tive depoi-
mento de gente que deixou de comer carne depois
de ver uma palestra minha. Então isso ecoa de uma
forma inesperada as vezes.
A
Acho que muito mais do que no grito, do que na
bandeira, né?
RB
Eu acho. Porque aí que tá, a questão que
aonde a gente opera, que é muito mais
poderoso, é nesse ambiente sutil e subliminar. As
vezes a gente toca mais pelo sentimento do que
fazendo discurso.
Segundo alguns estudos ainda não totalmente
reconhecidos pela ciência enquanto instituição
global, estamos hoje na era do Antropoceno, a era
geológica que sucede ao Holoceno. Como carac-
terística principal do conceito de Antropoceno,
a humanidade enquanto agente vem causando
radicais mudanças sistemáticas na natureza, em
velocidade crescente, no tocante ao clima, ao solo,
à vegetação, à água e à vida no planeta. Uma nova
camada geológica é atribuída à presença de polí-
meros plásticos achados nas rochas, o que registra
comprovadamente a ação humana na Terra. É uma
nova era que se inicia em estado de alerta, causando
risco ao futuro do nosso planeta e consequente-
mente à vida humana na terra. Michel Serres não se
refere diretamente ao conceito de Antropoceno, na
escrita de seu livro, mas já atenta para essa altera-
ção no curso do planeta. É com essa ideia de fundo
que venho pensando, mesmo sem utilizar o termo,
em relacionar arte e natureza. Se o planeta muda,
a vida muda junto e, consequentemente, a maneira
de fazer e pensar arte é afetada por essa mudança.
Encontro base, a partir do livro de Serres, para pen-
sar numa mudança de atitude artística em relação à
natureza. No entanto, os artistas escolhidos aqui não
se colocam como agentes ativistas de uma bandeira
ecológica. Entendo a contaminação da arte pelas
ciências como uma ampliação do escopo de pes-
quisa, não necessariamente como ponto de partida
Claudia Tavares, Entrevista com Rodrigo Braga.
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para uma atuação artística, mas como um campo
ampliado de conceitos estéticos e científicos. Tanto a
arte como a ciência não buscam a verdade, mas sim
as evidências e possibilidades, embora a ciência lide
com resultados concretos e gráficos demonstrativos
e a arte lide com a sensibilização.
Acredito que é no gesto artístico, nos deslocamen-
tos propostos, nas provocações sutis que reside
a força da arte contemporânea. A arte afeta, não
procura efeito. Sua metodologia é distinta da ciên-
cia, embora possa se alimentar de dados científi-
cos. Sua natureza é política em si, independente
de bandeiras levantadas. Não tem a função de
transmitir mensagens, nem de atingir resultados
previamente estudados, deixa isso para outros
campos de conhecimento e atuação. A meu ver a
arte de Rodrigo Braga conjuga com esse pensa-
mento, e o artista, em um texto que escreve sobre
a Amazônia, provoca:
Quem sabe artistas que versam experiências
ambientais não teriam um senso estético mais
voltado a sentidos um tanto ou quanto mais sutis
do que apenas o inicial prazer da satisfação re-
tiniana? Ou seja, seria possível que os artistas e
as artistas se seduzissem não tão somente pelo
visual ou o analítico, mas que explorassem sensa-
ções mais abrangentes, como quem quer adentrar
com a pele, sentir os odores e sabores, ouvir os
pequenos seres, estar e pensar a sós, sob um tem-
po dilatado, sobre todas as evocações sensíveis
que um igarapé proporciona? As terras extrema-
mente irrigadas, os vapores, as chuvas densas, a
água por si, enfim, além de um grande berçário,
poderiam ser metáforas para a gestação geral de
seres, ou para a gestação de ideias, de criação de
mundos como princípio?
4
NOTAS
1 SERRES, Michel.
O contrato natural
. Lisboa: Instituto Piaget,
1990.
2 TAVARES, Claudia. Um jardim em Floresta, a natureza como
sujeito. Revista Concinittas. Volume 20, número 35, 2019. Dispo-
nível em: https://doi.org/10.12957/concinnitas.2019.44875
3 http://nelsonfelix.com.br/obras/cruz-na-america/
4 Braga, Rodrigo - Amazônia lugar placenta em
https://www.revistacontinente.com.br/edicoes/212/amazo-
nia--lugar-placenta
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 163-175, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.49100]
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
BRAGA, Rodrigo.
Amazônia lugar placenta
em https://www.revistacontinente.com.br/edicoes/212/amazo-
nia--lugar-placenta
SERRES, Michel.
O contrato natural
. Lisboa: Instituto Piaget, 1990.
TAVARES, Claudia. Um jardim em Floresta, a natureza como sujeito.
Revista Concinittas
. V. 20, N. 35, 2019.
Disponível em: https://doi.org/10.12957/concinnitas.2019.44875
Claudia Tavares, Entrevista com Rodrigo Braga.