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IMAGENSLEMBRANÇA E IDENTIDADES NO CINEMA
INTERCULTURAL DE TILA CHITUNDA
Recollection-images and identities in the intercultural cinema of Tila Chitunda
Imágenes-recuerdo e identidades en el cine intercultural de Tila Chitunda
Fernanda Mendes de Mendonça [Universidade Estadual de Campinas, Brasil]*
RESUMO Este artigo propõe uma reflexão sobre a presença das imagens de arquivo familiar apresentadas
no curta-metragem
FotogrÁFRICA
, de Tila Chitunda, que nos encaminha a pensar junto ao conceito deleuziano
de imagem-lembrança. Fazemos esta análise compreendendo o filme como produto de um cinema intercultural,
que se situa na intersecção de dois regimes culturais de conhecimento, neste caso Brasil e Angola, países da
rota do Atlântico Negro. Diante dessas imagens, acessamos o que é visível e virtual e exploramos seus aspec-
tos paradoxais. Ao tempo em que se apresentam como registros familiares, as fotografias também expõem a
opressão colonial e violência promovida contra identidades e individualidades.
PALAVRASCHAVE cinema intercultural; imagem-lembrança; identidade; experiências afro-diaspóricas
ABSTRACT This article proposes a reflection about the presence of the family archive images presented in the
short film
FotogrÁFRICA
, by Tila Chitunda, which leads us to think with the Deleuzian concept of recollection-im-
age. We carry out this analysis understanding the film as the product of an intercultural cinema, which is located at
the intersection of two cultural knowledge regimes, in this case Brazil and Angola, countries on the Black Atlantic
route. In view of these images, we access what is visible and virtual and explore its paradoxical aspects. At the
time they are presented as family records, the photographs also expose colonial oppression and violence com-
mitted against identities and individualities.
KEYWORDS intercultural cinema; recollection-image; identity; afro-diasporic experiences
* Fernanda Mendes de Mendonça é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Multimeios da Unicamp. E-mail:
mendesdemendonca@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9327-4083.
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 278-291, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.49114]
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RESUMEN Este artículo propone una reflexión acerca de la presencia de imágenes de archivo familiar
presentadas en el corto
FotogrÁFRICA
, de Tila Chitunda, que nos lleva a pensar junto al concepto deleuziano de
imagen-memoria. Realizamos este análisis entendiendo la película como producto de un cine intercultural, que
se ubica en la intersección de dos regímenes de conocimiento cultural, en este caso Brasil y Angola, países de la
ruta del Atlántico Negro. A la vista de estas imágenes, accedemos a lo visible y virtual y exploramos sus aspec-
tos paradójicos. En el momento en que se presentan como registros familiares, las fotografías también exponen
la opresión colonial y la violencia promovida contra identidades e individualidades.
PALABRAS CLAVE cine intercultural; imagen-recuerdo; identidad; experiencias afro-diaspóricas
MENDONÇA, Fernan-
da M. Imagens-lem-
brança e identidades
no cinema intercultural
de Tila Chitunda.
Revista Poiésis, Niterói,
v. 23, n. 39, p. 278-
[DOI: https://doi.
org/10.22409/poie-
sis.v23i39.49114]
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NC) © 2022 Fernanda
M. Mendonça. Sub-
metido: 11/3/2021;
Aceito: 25/5/2021
MENDONÇA, Fernanda M. Imagens-lembrança e identidades no cinema intercultural de Tila Chitunda.
291, jan./jun. 2022.
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O que há no espaço entre culturas distintas? O
que se compreende da amálgama Brasil-Angola,
ambos colonizados por Portugal? O que se coloca
na bagagem – física, dos bens materiais, e sim-
bólica, dos bens sentimentais, – antes de cruzar o
Atlântico? O que fica, o que vai e o que se perde no
deslocamento? E como pensar em sobrevivência
ou em formas de reexistência mesmo quando tudo
ao redor projeta o apagamento? Refletindo sobre
memórias, histórias, identidades e imagens do
cinema intercultural produzido nas rotas do Atlân-
tico Negro, localizamos o trabalho memorialístico
e autobiográfico da diretora, roteirista e produtora
Tila Chitunda. Primeira filha brasileira de uma famí-
lia de angolanos, Tila nasceu e cresceu em Per-
nambuco, especificamente na cidade de Olinda. Os
pais Amélia Sicato e Teodoro Chitunda e seus cinco
filhos atravessaram o Atlântico nos anos 1970 como
refugiados da guerra civil angolana, declarada logo
após o país se tornar independente de Portugal.
Em entrevista transmitida pelo canal do
YouTube
do
grupo Arqueologia do Sensível [2020], a cineasta
relata que as fotografias que constituem o arqui-
vo familiar foram recuperadas gradativamente e
expostas na parede da sala de estar da casa de sua
família em Olinda. Chitunda propõe um olhar para
essas fotografias no curta-metragem
FotogrÁFRICA
[2016]. Esse é o primeiro título da série documental
em que investiga memória e identidades através de
sua própria trajetória familiar entre Angola e Brasil.
Até o momento, a série é constituída por outros dois
títulos:
Nome de batismo – Alice
[2017] e
Nome de
batismo – Frances
[2019]. Nestes curtas, a direto-
ra explora a memória de sua família refugiada e a
constituição de uma identidade afro-diaspórica re-
visitando [e questionando] a história de seu próprio
nome: Alice Frances Tilovita Sicato Chitunda.
Propomos concentrar nossa análise no primeiro
dos curtas,
FotogrÁFRICA
, e refletir sobre a pre-
sença e afetação das imagens de arquivo familiar
atreladas ao conceito de imagem-lembrança [DE-
LEUZE, 2005]. O cinema brasileiro é focalizado em
perspectiva transcultural, compreendendo a obra
como produto de um cinema realizado no Atlântico
Negro. A narrativa do curta compila imagens de
arquivo, entrevistas e narrativa em primeira pessoa,
articulando o modo poético, que enfatiza a ambi-
guidade, as fragmentações e derivações no tempo
e espaço; e o modo participativo, ao compartilhar
o processo de escuta e escavação de memórias
familiares em busca de outras perspectivas da his-
tória [NICHOLS, 2010].
Cabe observar aqui, considerando nossa recepção
fílmica, que a produção evoca uma “leitura docu-
mentalizante” na qual a espectadora ou espectador
presume como reais as asserções enunciadas
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 278-291, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.49114]
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no filme, como conceitua Odin [2012]. A diretora
contribui com o acionamento desse modo de leitura
ao apresentar materiais de arquivo, relatos orais e
seu próprio testemunho. Esta última característica,
inclusive, encaminha para a possibilidade de pen-
sarmos o curta também como uma “EGO produção”
[Odin, 1995], filme feito, em geral, para exibição
pública, realizado por um membro da família que
se expressa individualmente como um
eu
e que
não pretende preservar intimidades [confidências
e confissões]. O autor distingue três estratégias
comunicacionais assumidas nas EGO produções:
compartilhar uma espé-
cie de processo de “cura
psicanalítica”, fazer um
testemunho e utilizar o
espaço público de exibi-
ção como meio de comu-
nicação com um ou mais
membros da família.
Através de conversas com a mãe, Chitunda expõe
conflitos e adaptações vivenciadas por sua família
no movimento diaspórico. A narrativa se desenvolve
a partir de dois elementos centrais: o jogo de bú-
zios, oráculo comumente utilizado por religiões da
diáspora africana e regido pelos Orixás, e o mural
fotográfico exposto pela matriarca na parede da
sala.
FotogrÁFRICA
situa-se na intersecção de dois
regimes culturais de conhecimento, no caso Brasil
e Angola. Essa característica expressa no cinema
intercultural, como explana Laura Marks no livro
The skin of the film
, produz novas condições para o
conhecimento original apagado ou reprimido por
regimes dominantes e opressores, re-escrevendo
histórias, produzindo arquivos, articulando memó-
ria pessoal e coletiva, assumindo outras perspecti-
vas de olhar e construindo fabulações. Com o uso
da montagem e através de exercícios imaginativos,
torna-se possível a re-existência de imagens até
então ausentes.
Uma das características comuns aos filmes e vídeos
interculturais é o gesto, ou ação, de revisitar a histó-
ria oficial, contada sob o ponto de vista dos vencedo-
res, para desconstruí-la, revelar as histórias coloniais
e dar a ver outras histórias e formas de conhecimen-
to cultural. Assumimos a compreensão de Marks so-
bre o cinema intercultural como uma
arqueologia
de
pesquisa através das imagens que revelam vestígios
Diante desses apagamentos, o cinema intercultural recorre a uma variedade de fontes para
trazer novas condições de conhecimento: a história escrita, às vezes; o arquivo audiovisual;
memória coletiva e pessoal; ficção; e a própria falta de imagens ou memórias, em si um
registro significativo do que pode ser expresso. Os saberes culturais são perdidos, encon-
trados e renovados no movimento temporal da história e no movimento espacial entre os
lugares. [...] O cinema intercultural avança e retrocede no tempo, inventando histórias e
memórias para propor uma alternativa aos apagamentos, silêncios e mentiras esmagado-
ras das histórias oficiais. [MARKS, 2000, p. 24,
tradução nossa
1
]
MENDONÇA, Fernanda M. Imagens-lembrança e identidades no cinema intercultural de Tila Chitunda.
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Gilles Deleuze cria variadas categorizações para
a imagem [imagem atual, imagem virtual, imagem
óptica, imagem-movimento, imagem-tempo...],
mas propomos articular neste artigo principalmen-
te a compreensão de imagem-lembrança – que
inevitavelmente se articula a outros conceitos,
como de imagem virtual e óptica. Antes de definir-
mos as imagens-lembrança, precisamos estabele-
cer as imagens cinematográficas a que nos referi-
mos no cinema intercultural.
A partir das leituras de Bergson, Deleuze estipula
o pensamento cinematográfico em: 1] imagem-
-movimento, que provoca um reconhecimento
sensório-motor, orgânico, de causalidade, que
aceita a subjetividade implicada na imagem para
se sujeitar à forma hegemônica de percepção, ou
seja, quando certa percepção predomina sobre
outras possíveis; 2] e imagem-tempo, inorgânica,
que demanda participação ativa e posiciona-
mento da espectadora ou espectador perante a
imagem, decidindo o que é relevante, questionan-
do percepções, objetividades e subjetividades. É
nesse último que se situa o cinema intercultural a
que nos referimos. Também é através da imagem-
-tempo que se dá
o acontecimento
da imagem-lem-
brança.
e destroços de um passado invisibilizado, ocultado
ou incompleto. O cinema intercultural trabalha em
paradoxos, sem pretensão de encontrar uma só
verdade, e articula um senso de percepção pelo sen-
sível. As produções desse cinema não se propõem a
construir uma sólida biografia, com história e cau-
salidade, mas se dispõe a colocar em atrito história
e memória, objetivo e subjetivo, real e imaginário,
descrição e narração, atual e virtual [MARKS, 2000;
DELEUZE, 2005].
IMAGENS E MEMÓRIAS
Georges Didi-Huberman em
Quando as imagens
tocam o real
questiona que “tipo de conhecimento
pode dar lugar à imagem” e “que tipo de contribui-
ção ao conhecimento histórico é capaz de aportar
este conhecimento pela imagem”. A imagem, nos
pensamentos de Didi-Huberman, Gilles Deleuze e
Walter Benjamin que aqui iremos imbricar, não é
um simples recorte do mundo visível. Há nela sin-
tomas, lembranças, sobrevivências e dialética que
articulam outros tempos, fatalmente anacrônicos e
heterogêneos.
As noções de memória, montagem e dialética estão aí para indicar que as imagens não são nem
imediatas, nem fáceis de entender. Por outro lado, nem sequer estão “no presente”, como em geral
se crê de forma espontânea. E é justamente por que as imagens não estão “no presente” que são
capazes de tornar visíveis as relações de tempo mais complexas que incumbem a memória na
história [DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 213].
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 278-291, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.49114]
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A imagem-lembrança pode ser compreendida
como uma memória sobre determinado fato ou
momento [pessoal ou coletivo] que não é captu-
rada, portanto não está visivelmente explícita na
imagem que se olha. A imagem, cabe enfatizar, é
pensada aqui como imaginal, ou seja, que remete
propriamente à imagem e se diferencia do imagé-
tico que, por sua vez, relaciona-se à imaginação
[SANTIAGO JÚNIOR, 2019]. A imagem-lembrança,
assim, desafia a história pública e a memória pri-
vada, já que remete a um objeto ou acontecimento
passado que não se encontra no repertório da
imagem atual
, que dá a ver o presente que passou.
A possibilidade de existência das imagens-lem-
brança surge no contato com a
imagem virtual
,
uma reação à imagem atual que revela, pelo con-
tato sensível, rastros do passado que persistem e
se conservam no presente [DELEUZE, 2005; 1996].
Essa definição se aproxima da
imagem dialéti-
ca
pensada por Walter Benjamin, derivada dos
destroços da história: ela pressupõe um campo
dialético que, ao entrar em contato com o visível,
gera um espaçamento entre observador e obser-
vado onde se evidencia a historicidade que os
envolve. A imagem-lembrança, retomando Marks
[2000], confronta o que não pode ser representa-
do e busca colocar o “irrepresentável” em diálogo
com a memória.
Relacionamos a concepção de memória aqui
expressa com a definição de
memória virtual
de
Didi-Huberman [2013]. Seu acontecimento surge do
acesso à imagem por outras vias, que não a do visí-
vel, mas do
visual
. O visual não é visível porque não
está no sentido de ser visto, contudo também não
é invisível porque é capaz de impressionar o olhar.
A concepção de
visível
e
visual
está para os con-
ceitos deleuzianos de
atual
e
virtual
. Marks [2000]
aponta que a imagem, em seu aspecto
visível
ou
atual
, é apenas o começo, sendo o movimento de
olhar para as imagens o aspecto mais produtivo do
cinema intercultural. É no encontro com as imagens
de arquivo que se questiona a percepção do olhar e
se convoca a espectadora ou espectador à ação de
perceber tudo novamente e enxergar lacunas que
resultam de “censuras deliberadas ou inconscien-
tes, de destruições, de agressões, de autos de fé
[DIDI-HUBERMAN, 2012].
Partindo desses conceitos, direcionamos agora
nosso olhar para algumas fotografias [Fig. 1 e 2]
apresentadas em
FotogrÁFRICA
que remetem à
juventude de dona Amélia, nascida em 1939 na
região de Catabola, na missão evangélica de
Chissamba, colonizada por Portugal. A maioria
das fotos, apesar de constituir um arquivo familiar,
pouco representa a individualidade da experiên-
cia de dona Amélia. O primeiro grupo de imagens
MENDONÇA, Fernanda M. Imagens-lembrança e identidades no cinema intercultural de Tila Chitunda.
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[Fig.1] não aparece em destaque na parede da
sala da matriarca por um motivo não dito, mas
subentendido. O mural fotográfico montado por
dona Amélia reúne fotografias que, como explica
a personagem, têm a função de rememorar sua
história: “Sempre que eu olho para aquela parede,
Alice [Tila Chitunda], eu me lembro exatamente
do que aconteceu. Então cada dia eu fico vitaliza-
da com a história da minha família. Não esqueço
nada”. Esse olhar que rememora e combate o
esquecimento – ou o apagamento histórico pro-
movido contra povos colonizados nos relatos de
conquista e dominação – nos leva a refletir sobre
as imagens-lembrança, que implicam uma outra
percepção, que não automática ou habitual, mas
de
reconhecimento atento
[BERGSON apud DE-
LEUZE, 2005]: percebemos de determinada coisa
[de uma fotografia, neste caso] uma imagem ópti-
ca [e sonora]; uma percepção físico-geométrica e
inorgânica, que não ocorre por causalidade.
Ao tempo em que são registros familiares, certas
fotografias também são, a nível visível e virtual, regis-
tros da opressão colonial e violência cometida con-
tra o povo angolano. Ainda que não haja a provoca-
ção para pensar a autoria das fotografias de arquivo
apresentadas no curta-metragem ou como se deu o
momento anterior ao da captura, em um exercício de
imaginação podemos analisar que o autor [homem
Fig. 1 - Montagem com fotografias apresentadas em FotogrÁFRICA
[Fonte: FOTOGRÁFRICA. Direção e roteiro Tila Chitunda, digital, cor, Pernambuco, Brasil, 25 mim., 2016]
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branco europeu, certamente] tinha
o objetivo de documentar o sucesso
da missão de Chissamba. Dis-
tanciado, o fotógrafo enquadra as
estruturas arquitetônicas e acom-
panha cerimônias que mostram
uma aglomeração ordeira de corpos
negros [em maior parte femininos]
reprimidos, dominados, obedientes,
que caminham enfileirados e assis-
tem ao hasteamento da bandeira
que representa seus opressores.
As fotografias não objetivam
pluralizar os sujeitos e explorar
suas individualidades, pelo contrário: invisibilizam
suas diferenças de experiências, subjetividades,
relações sociais e essencializam suas identida-
des [AVTAR BRAH, 2006]. Dezenas de mulheres
negras de vestidos brancos e homens negros de
ternos escuros participam de um ritual que lhes é
estranho e notavelmente incômodo. Seus corpos,
quando não aparecem enrijecidos, de cabeças
baixas, braços para trás ou colados ao tronco,
movimentam-se em uma coreografia que, ainda
que remeta a uma identidade cultural própria, é re-
gistrada com o distanciamento de quem assiste à
manifestação como um
voyeur
– afinal, para quem
aquelas mulheres dançam?
Na narrativa do curta, as três imagens que en-
cerram a sequência de fotografias da missão de
Chissamba têm mais proximidade física e afetiva.
São registros de um momento da vida particular
de dona Amélia: seu casamento [Fig. 2]. O branco
do vestido usado na cerimônia de hasteamento
da bandeira de Portugal que vemos na sequência
anterior [Fig.1] se conecta com o branco do vestido
de noiva em frente à igreja cristã. Essas fotografias,
diferentemente das anteriores, aparecem expostas
no mural da casa e geram um paradoxo entre os
elementos simbólicos do processo de colonização
e as memórias afetivas da história familiar.
Fig. 2 - Montagem com fotografias apresentadas em FotogrÁFRICA
[Fonte: FOTOGRÁFRICA. Direção e roteiro Tila Chitunda, digital, cor,
Pernambuco, Brasil, 25 mim., 2016.]
MENDONÇA, Fernanda M. Imagens-lembrança e identidades no cinema intercultural de Tila Chitunda.
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Outra imagem reveladora das violências simbóli-
cas cometidas contra a existência de dona Amélia
enquanto mulher negra nascida em Angola sob
regime colonial é descrita oralmente. Seu imagi-
nário guarda a lembrança dos desenhos de crian-
ças “com um rabinho atrás” feitos nos registros de
nascimento de sua família. Expondo a perspectiva
dos colonizadores sobre os cidadãos de pele preta,
ela diz: “O governo que nos colonizava era o gover-
no português, ainda tinha a ideia de que o negro
veio do macaco. [...] [O desenho era] Uma separa-
ção das crianças negras das famílias civilizadas,
das crianças negras não civilizadas”. A diretora
cria uma sobreposição de retratos antigos de seus
familiares que atravessam a imagem cinematográ-
fica da entrevista com sua mãe, mostrando que a
voz [e a imagem] que fala [e se mostra] no presente
reverbera muitas outras antepassadas [Fig. 3].
Fig. 3 - Frame com sobreposição de imagens apresentadas em FotogrÁFRICA
[Fonte: FOTOGRÁFRICA. Direção e roteiro Tila Chitunda, digital, cor, Pernambuco, Brasil, 25 mim., 2016.]
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 278-291, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.49114]
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A narrativa revela imagens-lem-
brança acessadas por memórias
que expõem feridas imaginais e
imagéticas causadas por violências
sistemáticas do regime colonial,
mas que também acessam indivi-
dualidades e evidenciam afetos possíveis. Chitun-
da, assim, investiga a rememoração e realiza um
trabalho arqueológico, como propõe Marks [2000],
nos convidando a olhar e ouvir não o que está
visível ou é causal, mas o que está nas lacunas, na
ausência, nas imagens-lembrança. Sua pesquisa
através das imagens escancara a disjunção entre
história oficial e memória privada que revela uma
outra história” em perspectiva, contribuindo com a
diversificação do conhecimento histórico aportado
pelo conhecimento pela imagem.
TESOUROS VOLÁTEIS
É necessário mover-se, colocar-se em ação, assu-
mir o
reconhecimento atento para possibilitar uma
outra forma de acesso às imagens. Esse movimento,
contudo, requer uma força, por vezes, dolorosa. As
imagens-lembrança, imagens ópticas e virtuais a
que nos referimos podem não ser reconciliadoras e,
pelo contrário, revelar a incompletude ou “falsidade”
da história oficial e das próprias memórias privadas.
Em
FotogrÁFRICA
, Chitunda faz sua investigação
ciente dos processos implicados, ao narrar em
off
:
A história a que Chitunda se refere é a da origem
de seus pais, crescidos na missão evangélica em
Angola, passando pelo fim do regime colonial
e enfrentando posteriormente uma guerra civil,
condições essas que levaram a família a escapar
de seu país de origem e se refugiar no Brasil, es-
pecificamente em Olinda, cidade que também se
constitui, material e imaterialmente, por processos
de colonização e transculturação. Chitunda reme-
xe sua identidade diaspórica na busca por uma
origem “pura”, mas o que encontra são rastros,
sobrevivências e outras formas de existência. O
contato entre culturas decorrente dos processos
coloniais implica disputas de poder, como des-
taca Stuart Hall em diálogo com Homi Bhabha,
que inclui dominador
e
dominados. O poder não
só oprime, invisibiliza, apaga, restringe e inibe:
ele também “é produtivo; gera novos discursos,
novos tipos de conhecimento [ou seja, o orienta-
lismo], novos objetos de conhecimento [o Oriente]
Eu cresci ouvindo essa história. Uma história que aprendi a contar como se fos-
se minha própria memória. Uma história que sempre me impressionou, pois sou
a única filha desta família que nasceu no Brasil. Podemos ficar muito impressio-
nados com uma história, principalmente quando somos crianças, e agora me
dou conta do quão perigoso é contar uma história a partir de um único ponto
de vista, pois isso pode alimentar preconceitos [FOTOGRÁFRICA, 2016]
MENDONÇA, Fernanda M. Imagens-lembrança e identidades no cinema intercultural de Tila Chitunda.
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e forma novas práticas [colonização] e instituições
[governo colonial]” [HALL, 2016, p. 196-197]. Assim,
novas identidades e culturas são produzidas por
processos de
hibridização –
na maioria dos casos
promovidos forçadamente em situações de colo-
nização, destruição e dominação – a partir das re-
lações conflituosas e assimétricas de poder entre
diferentes grupos [nacionais, raciais ou étnicos].
As interrogações feitas por Chitunda sobre seu
passado a partir das imagens e do imaginário
abre para constelações de sentidos e descons-
trói a identidade absoluta e unificada de sujeitos
afro-diaspóricos [DIDI HUBERMAN, 2016; HALL,
2016]. O cinema intercultural não apenas explo-
ra a intersecção de duas ou mais culturas, como
gera novos discursos e conhecimentos culturais
produzidos na diáspora. No curta, a imagem-lem-
brança evocada por uma pintura [não mostrada
na imagem, mas apresentada descritivamente] de
um Preto Velho da Umbanda exemplifica: enquan-
to o presbítero da igreja enxerga uma entidade,
construída como a representação do pecado e
do mal pela matriz cristã eurocêntrica, os pais
de Chitunda lembram de um tio que morava com
eles na missão em Chissamba. Quando se espera
solidez e uma “nova” verdade universal, o cinema
intercultural abre a terceira margem para um outro
percurso: “eu nunca havia imaginado que o Preto
Velho pudesse ser evangélico”, Chitunda fala em
sua narrativa em
off
. As imagens que desestabi-
lizam identidades fixas são os “tesouros voláteis
para o cinema intercultural, porque se elas não
podem falar por si, podem então ativar o processo
de memória” [MARKS, 2000].
Articulando os pensamentos de Homi Bhabha e
Kevin Robins, Hall [2006] aponta que os sujeitos
das novas diásporas das migrações pós-colo-
niais habitam, no mínimo, duas identidades, pois
já não estão próximos à
tradição
de uma cultura
pura e original. Esses sujeitos gravitam em torno
da
tradução
, quando são obrigados a “renunciar
ao sonho ou à ambição de redescobrir um tipo
de ‘pureza’ cultural ou de absolutismo étnico” por
estarem submetidos ao plano “da história, da
política, da representação e da diferença”. Chitun-
da, ao consultar os búzios na cena de abertura do
filme e iniciar sua narrativa almejando encontrar
sua origem, tenta recuperar a
tradição
, mas essa
intenção é apenas um ideal intangível. A
tradução
abre instâncias de complexidade e hibridismo:
sua mãe, dona Amélia, praticante do cristianismo
evangélico, recusa participar da roda de coco e
não frequenta o Candomblé, mas ela também
tornou-se referência de uma “mulher africana” na
comunidade onde mora por usar torço [turbante] e
trajes identificados como “típicos africanos”.
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 278-291, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.49114]
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Na percepção de Mãe Beth de Oxum, outra perso-
nagem entrevistada por Chitunda em
FotogrÁFRICA
que complexifica a definição das identidades, dona
Amélia traz na oralidade e em sua imagem a África
originária. Entretanto sabemos, a partir do contato
com as fotografias do arquivo familiar, que a exis-
tência dessa identidade cultural não era possível na
Angola colonizada, e só em Olinda, do outro lado
do Atlântico, pôde encontrar possibilidades outras
de expressão. Paul Gilroy, no livro
Atlântico Negro,
apresenta como alternativa à leitura romântica e
nacionalista de uma “cultura negra pura” um modo
transnacional e transhistórico de refletir sobre a ex-
periência negra no mundo, compreendendo que as
comunidades dos dois lados do Atlântico estiveram
em intercâmbio desde os séculos 18 e 19. Comba-
tendo essencialismos, relativismos e superando
binarismos, o sociólogo, em diálogo com Stuart Hall
[2006, 2016], defende a
dupla consciência
e a cons-
trução da identidade cultural como um processo de
devir, com vontade e poder [GILROY, 2001].
Revelar as imagens-lembrança através de uma
arqueologia da imagem praticada no cinema inter-
cultural abre o rizomático arquivo da memória e his-
tória afro-diaspórica em
FotogrÁFRICA.
Olhar para
essas imagens – ainda que difíceis de
dominar,
organizar
e
entender
devido às lacunas e destroços
da história – é se arriscar a colocar em interação, a
partir de um exercício de imaginação e montagem,
os rastros e traços de aspectos que sobreviveram
em locais e tempos separados [DIDI-HUBERMAN,
2016]. A ancestralidade de Chitunda não está na
Angola de seus pais e irmãos, como também não
está no Brasil que a obriga tirar seus “Pretos Velhos
da parede”. Ela pode ser encontrada no espaço
entre-Atlânticos, no Brasil-Angola e nas imagens-
-lembrança que remexem as cinzas daquilo que
queimou, mas sobrevive, apesar de tudo.
NOTAS
[1] No original: “In the face of these erasures, intercultural cinema
turns to a variety of sources to come up with new conditions of
knowledge: written history, sometimes; the audiovisual archive;
collective and personal memory; fiction; and the very lack of
images or memories, itself a meaningful record of what can be
expressed. Cultural knowledges are lost, found, and created
a new in the temporal movement of history and in the spatial
movement between places. In this chapter I dwell on archaeolog-
ical models of cultural memory, while in the next chapter spatial
acts of travel and physical contact will predominate. Intercultural
cinema moves backward and forward in time, inventing histories
and memories in order to posit an alternative to the overwhelming
erasures, silences, and lies of official histories”.
MENDONÇA, Fernanda M. Imagens-lembrança e identidades no cinema intercultural de Tila Chitunda.
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