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Das páginas duplas que contêm imagens figura-
tivas em ambos os lados, algumas apresentam
fotografias identicamente duplicadas, o que pode
aludir à visão multiplicada dos xamãs durante o
transe [Fig.7]. Numa delas, um rapaz retratado do
tórax para cima volta a cabeça e o olhar para um
lado. Do nariz e da boca, escorrem muco e saliva,
reação que comumente se segue à inalação da
yãkoana
. Por trás da cabeça, distribuem-se os
frenéticos caminhos ondulantes de luz, sobretudo
ao longo de uma linha horizontalizada. Em outra
dupla de páginas, tais caminhos avolumam-se
a tal ponto que se transformam em massa muito
espessa de luz branca, que, em primeiro plano,
corta horizontalmente a imagem, deixando atrás
de si minúsculos elementos humanos. Os corpos,
proporcionalmente pequenos, parecem aludir à
submissão do homem à onipresença desse mun-
do sobre-humano, que pulsa por trás das aparên-
cias a reger e organizar a vida humana.
Em duas páginas duplas já mostradas [Figs. 6 e
7, embaixo], a posição da fotógrafa, que capta a
cena de cima, parece sugerir uma troca de ponto
de vista, na acepção do perspectivismo ameríndio
de Viveiros de Castro [1996] e Tânia Stolze Lima
[1996]. Segundo essa teoria, para os ameríndios,
uma ampla gama de seres no universo é dotada
de humanidade e agência: o que é ou não humano
depende do ponto de vista de quem está na posi-
ção de sujeito. No passado absoluto, descrito pela
mitologia, todos os seres eram humanos, cultural
e morfologicamente, e a possibilidade de meta-
morfose entre eles era virtualmente infinita. Com
o passar dos tempos, alguns perderam a forma
humana, transformando-se em animais, vegetais,
etc., preservando, porém, o espírito humano. A
perda da unidade primordial e a diferenciação das
espécies deu origem às múltiplas perspectivas.
Embora o espírito humano permaneça transespe-
cífico, cada corpo carrega consigo uma perspec-
tiva única, um ponto de vista singular, irredutivel-
mente inscrito naquele corpo e apenas possível a
partir dele. O xamã, enquanto diplomata cósmico,
consegue transitar entre as perspectivas, assu-
mindo diferentes pontos de vista sem deixar de
retornar ao seu próprio. Diferentes pontos de vista
não significam diferentes representações sobre
o mundo, mas sim, necessariamente, diferentes
mundos: cada mundo só existe na perspectiva de
quem está na posição de sujeito, não havendo a
“coisa em si”. O perspectivismo ameríndio é, as-
sim, amplamente relacional, e as relações preda-
dor-presa constituem campo altamente propício
para as inversões perspectivas. Por exemplo, “os
animais predadores e os espíritos [...] veem os
humanos como animais de presa, ao passo que os
animais de presa veem os humanos como espíri-
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 224-252, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.49154]