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Marjorie Perloff [Universidade de Stanford, Estados Unidos] *
POETA ENTRE PINTORES
Poet among painters
Un poeta entre los pintores
Tradução: Ana Clara Mattoso [Universidade Federal Fluminense, Brasil] **
Augusto Melo Brandão [Universidade Federal Fluminense, Brasil] ***
* Marjorie Perloff ministra cursos e escreve sobre poesia e poéticas anglo-americanas dos séculos XX e XXI em perspectiva comparatista, bem como sobre intermídia e ar-
tes visuais. É professora emérita de Inglês na Universidade de Stanford e titular da cadeira Florence R. Scott de professor emérito de Inglês na Universidade da Califórnia
do Sul. É membro da Academia Americana de Artes e Ciências e da Sociedade Filosófica Americana. E-mail: perloffmarjorie@gmail.com
** Ana Clara Mattoso é mestranda em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense, cineasta e artista visual. E-mail:anacmattoso@gmail.
com, ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0813-1040
*** Augusto Melo Brandão é mestrando em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense, performer, escritor, tarólogo e astrólogo. E-mail:
cartas.m.b.a@gmail.com , ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1894-634X
RESUMO O ensaio trata da relação entre a obra poética de Frank O’Hara e a pintura, em especial com as
vanguardas do expressionismo abstrato na cena artística da Nova York dos anos 1950 e 1960. O texto integra
o terceiro capítulo do livro homônimo escrito pela crítica e ensaísta Marjorie Perloff, todavia inédito em língua
portuguesa. Analisando as relações de O’Hara com artistas visuais no plano afetivo, intelectual, profissional e
artístico, Perloff enfatiza as experimentações formais desse autor cuja poesia foi diretamente influenciada pela
action painting
, pelo
happening
e pela sua atuação como crítico e curador do MoMA. O ensaio apresen-
ta ainda duas colaborações artísticas de O’Hara com os pintores Larry Rivers e Norman Bluhm, que Perloff
denomina
poemapinturas
, dado o entrelugar formal que os caracteriza, poeta e pintor agindo simultaneamente
sobre uma mesma superfície. Poesia e pintura revelam-se, na obra de O’Hara, partes de uma mesma matéria
vivente. [Resumo e palavras-chave elaborados pelos tradutores].
PALAVRASCHAVE Frank O’Hara, Marjorie Perloff, poesia e pintura, literatura em campo ampliado
Marjorie Perloff, Poeta entre pintores.
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Citação recomendada:
PERLOFF, Marjorie.
Poeta entre pintores
[tradução Ana Clara
Mattoso e Augusto
Melo Brandão]. Revista
Poiésis, Niterói, v. 22,
n. 38, p. 191-245, jul./
dez. 2021. [https://doi.
org/10.22409/poiesis.
v22i38.50654 ]
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Marjorie Perloff, Ana
Clara Mattoso, Augus-
to Melo Brandão
ABSTRACT The essay approaches the relations between Frank O’Hara’s poetry and painting, especially
with the abstract expressionism avant-garde artists in New York scene during the 1950s and 1960s. The text
integrates the third chapter of the homonymous book, written by Marjorie Perloff, yet unreleased in Portuguese.
Analyzing the relations between O’Hara and visual artists from an affective, intellectual, professional and cre-
ative perspective, Perloff emphasizes the formal experimentations of the author whose poetry was directly im-
pacted by
action painting
,
happening
and his role as art critic and curator at MoMA. The essay presents two
artistic collaborations of O’Hara with Larry Rivers and Norman Bluhm, referred by Perloff as
Poem-Paintings
,
given their formal in-between space, poet and painter acting simultaneously on the same surface. In O’Haras
lyric, poetry and painting reveal themselves to be, after all, parts from the same living substance. [Abstract and
Keywords written by the translators].
KEYWORDS Frank O’Hara, Marjorie Perloff; Poetry, painting, literature in the expanded field
RESUMEN El ensayo trata de la relación entre la poesía de Frank O’Hara y la pintura, sobre todo en lo que
respecta a las vanguardias del expresionismo abstracto en la escena artística de Nueva York en los anos 1950
y 1960. El texto forma parte del tercer capítulo del libro homónimo de la crítica y ensayista Marjorie Perloff, aún
no publicado en lengua portuguesa. Analizando las relaciones de O’Hara con artistas visuales en perspectiva
afectiva, intelectual, profesional y artística, Perloff subraya las experimentaciones formales de ese autor cuya
poesía fue directamente influenciada por la
action painting
, por el
happening
y por su actuación como crítico y
curador del MoMA. El ensayo presenta aún dos colaboraciones artísticas de O’Hara con los pintores Larry Ri-
vers y Norman Bluhm, que Perloff llama de
poemapinturas
, debido al entre-lugar formal que los califica, poeta
y pintor actuando simultáneamente sobre una misma superficie. Poesía y pintura resultan, en la poética O’Haria-
na, partes de una misma materia viviente. [Resumen y palabras-clave escritos por los traductores]
PALABRASCLAVE Frank O’Hara, Marjorie Perloff; poesía, pintura, literatura en campo ampliado
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 191-245, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.50654]
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Em 1965, Francine du Plessix, ao editar uma pu-
blicação especial da revista
Art in America
sobre
a relação da poesia com a pintura, fez um convite
para que vinte e dois pintores escolhessem um
poema contemporâneo que lhes fosse especial e
dedicassem a ele um trabalho em preto e branco
produzido no suporte de suas preferências.” “A fim
de evitar duplicações”, ela explica, “eu defini um
sistema de escolha por ordem de chegada. Três
pintores de Nova York, por exemplo, tiveram que
fazer uma segunda escolha porque Frank O’Hara, o
poeta que desejavam ilustrar, já tinha sido escolhi-
do por Jasper Johns, o primeiro artista a responder
o nosso projeto e a pedir para interpretar a obra de
O’Hara
1
” [DU PLESSIX, 1965, p. 24].
A popularidade de O’Hara entre os principais
artistas de sua época é hoje emblemática. Rene
d’Harnoncourt, em seu prefácio de
In Memory of
My Feeling
[publicado em 1967, o volume comemo-
rativo
deluxe
trazia trinta poemas de O’Hara ilus-
trados por artistas com os quais o poeta mantinha
relações extremamente próximas] explica: “Frank
nunca precisou ser incisivo porque ele sabia
exatamente o que sentia diante de uma obra de
arte. Ele cultivava uma integridade absoluta, e nela
Às vezes eu penso que “estou apaixonado” pela pintura.
[O’HARA, 1971, p. 329]
não havia espaço para presunção... foi através de
sua presença que muitos entre nós aprenderam
formas melhores de enxergar
2
”. Naturalmente,
as trinta ilustrações do livro variam em termos
de qualidade, estilo e adequação ao poema em
questão, no entanto, quando apreendidas como
um todo, não falham em transmitir um testemunho
eloquente da relação extraordinária que O’Ha-
ra nutria com pintores tão diversos como Larry
Rivers, Robert Motherwell, Jasper Johns, Graça
Hartigan, Barnett Newman, Robert Rauschenberg,
Alfred Leslie, Norman Bluhm, Joe Brainard, Helen
Frankenthaler e Willem de Kooning. Desde o início
dos anos cinquenta, tempo em que vendia cartões
de Natal na recepção do
Museu de Arte Moderna
de Nova York, até o ano de sua morte, momento
em que, como curador, começou a trabalhar numa
grandiosa retrospectiva das obras de Jackson
Pollock e finalmente havia garantido o consenti-
mento de De Kooning para organizar uma relevan-
te coletânea de sua trajetória na pintura, O’Hara
trabalhou em estreita colaboração com muitos
desses artistas, organizando suas exposições,
visitando seus ateliês, entrevistando-os e escre-
vendo sobre seus trabalhos. Muitas das parcerias
[
poemapinturas
e suas respectivas performan-
ces em suportes variados] desenvolvidas a partir
dessas conexões, são, em sua própria essência,
Marjorie Perloff, Poeta entre pintores.
194
importantes obras de arte – mesmo que os críticos
literários tenham a inclinação de ignorá-las. Retor-
naremos a elas nos próximos tópicos deste texto.
Costuma-se argumentar que as artes visuais
tomaram muito tempo de O’Hara, impedindo-o de
se dedicar àquilo que seria sua verdadeira vocação
– a poesia. John Ashbery, por exemplo, aponta:
Há momentos em que queria que ele não tivesse se envolvido tão fertilmente com
o Museu e o mundo da arte. Ao contrário da maioria dos artistas que ilustrou o
seu livro, por mais que Frank fosse um poeta aclamado internacionalmente, as
dinâmicas econômicas do mundo da arte não permitiam que ele se sustentasse
exclusivamente do seu trabalho. Isso significa que ele nunca poderia se dedicar
à poesia por mais do que uma fração de seu tempo
3
. [ASHBERY, 1968, p. 68]
Em termos práticos, faz sentido: escrever poe-
mas correndo durante a hora do almoço ou numa
festa lotada, como O’Hara costumava fazer, não
parece ser o jeito mais apropriado para escul-
pir palavras. Entretanto, do mesmo modo que
Williams, a quem ele se assemelha em tantos
aspectos, O’Hara se apropriava – e, mais do que
isso, precisava – deste outro ofício como fonte de
inspiração. Como relembra Joe Le Sueur, o único
período no qual O’Hara se absteve do Museu
[janeiro a junho de 1956] em decorrência de um
prêmio relativo ao
Poet’ s Theatre
em Cambridge,
Massachusetts, acabou se transformando “num
verdadeiro inferno para ele”:
[...] ele odiava ficar longe de Nova York e de todos os
seus amigos, odiava ter que retornar aos mesmos cenários
dos seus anos de faculdade, e enquanto esteve em Mas-
sachusetts não escreveu nenhuma dramaturgia, apenas
alguns poemas. Assim que se liberou, voltou para Nova
York num surto, bebeu mais do que eu jamais o vira beber
e ficava o tempo todo falando como Cambridge era pro-
vinciana [...]. Nitidamente Frank não se encaixava no perfil
dos editais para os quais ele nem sequer se candidatou,
nem em lugares como Yaddo, onde
ele nunca colocou os pés; eu acho que
ele via nesses espaços algo como a
criação de situações artificiais para a
escrita. Mas me parece que a dispo-
sição do Museu funcionou para ele.
Não que a rotina e o trabalho buro-
crático fossem uma fonte de prazer, na
verdade, muitas vezes tudo isso fazia com que ele chegas-
se à beira do colapso; era simplesmente uma questão de,
quem sabe, precisar da concretude e disciplina do mundo
regrado do trabalho diário [...]. E, acima de tudo, ele
acreditava no que estava fazendo. Para ele, não se tratava
apenas de um trabalho, era uma necessidade vital
4
.
O Museu, portanto, serviu a O’Hara como um
point
de repère
, um centro sólido e estável cuja rotina das
nove às cinco oferecia um contrapeso ao seu estilo
de vida libertário e desorganizado. Mas até mesmo
as famosas noitadas de muito álcool e conversação
– fossem elas no Cedar Bar
5
ou nas festas de Long
Island – cumpriam uma importante função na vida
do poeta. Como LeSueur constata:
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 191-245, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.50654]
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[...] ele parecia inspirado e eletrizado por todos os seus amigos pintores, desde Bill De Koo-
ning, a quem idolatrava, até outros nomes que surgiram nos anos 60, como Alan d’Arcan-
gelo. Era tão grande o tempo que dedicava para olhar e refletir sobre esses trabalhos que
você pensaria que o que existia ali era um forte interesse no desenvolvimento deles enquanto
artistas. Mas eu não compactuo inteiramente com essa ideia sugerida por vários amigos de
Frank, de que sua generosidade o afastou de seu próprio trabalho. Não foi exatamente isso
o que aconteceu. Ele ofereceu-lhes encorajamento, inspirou-os com suas ideias e sua pai-
xão; eles, por sua vez, colidiram e adentraram em sua poesia, que, sem essa interferência,
não teria sido a mesma e provavelmente não seria tão boa. [“Four Apartments”, p. 292]
e serigrafias menores e
maiores, espalha-se
por cima e ao redor da
figura nua reclinada do
poeta [Fig. 1], palavras
são atiradas sobre
formas sugestivas e
semi-abstratas em
suas estonteantes
cores brilhantes. É interessante notar como o
poeta e a pintora abordam de maneiras seme-
lhantes a palavra
oranges
: exceto pelo título,
O’Hara nunca a menciona; já em Hartigan, a cor é
usada apenas ocasionalmente, não sendo de
forma alguma proeminente em sua série.
Neste caso, então, a poesia inspirou a pintura. Mas
a recíproca também é verdadeira. Graça [o nome
carrega, obviamente, infinitas leituras] aparece
numa sequência de poemas, começando com o
soneto de amor inicial,
Poem for a Painter/
Poema
para um pintor
7
, no qual o interlocutor declara:
Graça,
você é a florista na campina à luz de velas
os dedos encharcados de aguarrás
8
Sua poesia, sem dúvida, não teria sido a mesma.
Em primeiro lugar, os pintores e a pintura alimen-
taram O’Hara com um de seus temas centrais.
Considere Graça Hartigan, cuja vida esteve extre-
mamente conectada à de Frank no início dos anos
1950 até 1960
6
, e o papel desempenhado por ela
nos poemas. Na opinião da pintora, ela e o poeta
muitas vezes se apropriavam da mesma imagem
como ponto de partida. Assim, quando Graça
Hartigan pintou
Oranges | Laranjas
, a série corres-
pondente aos doze pastorais de mesmo nome que
O’Hara havia escrito poucos anos antes, ela
encontrou as formas mais engenhosas de aplicar
as palavras do poeta: algumas vezes, amontoando
um poema inteiro em um canto da tela, outras, no
objetivo de criar fortes camadas de tensão e
êxtase, espalhando apenas algumas palavras
pela superfície. Como acontece em
What Fire
Murmurs Its Sedition
, onde todo o terceiro poema
em prosa de O’Hara, fragmentado em texto corrido
[O’HARA, 1971, p. 80]
Marjorie Perloff, Poeta entre pintores.
196
Fig. 1. Graça Hartigan.
What Fire Murmurs Its Sedition | Que fogo murmura sua revolta
. 1952. Óleo
em papel, 48 x 38 polegadas. No. 3 da Série
Oranges
.
Coleção Leonard Kasle.
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 191-245, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.50654]
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É bastante evidente que O’Hara encontrou na pintu-
ra de Graça a confirmação visual de sua própria es-
tética; vejamos as observações descritas pelo autor
no ensaio de 1954,
Nature and
the New Painting
:
O início de sua carreira foi como
uma pintora abstrata [...]. Seus
primeiros trabalhos mostram a influ-
ência dos ensinamentos de Hans
Hofmann e do espírito livre e ico-
noclasta de Jackson Pollock. Dizem
que, numa manhã, ela acordou
com a decisão de que não poderia
mais continuar a pintar abstrata-
mente. [...] Deixando para trás as
preocupações de origem exclusivamente estética sobre suas
abstrações, as novas telas convulsionam imagens e influên-
cias até então reprimidas: nus fantásticos e figuras fantasia-
das, naturezas mortas densas como pedreiras, referências
abertas aos monumentais banhistas de Cézanne e Matisse.
[...] Uma pintora, fundamentalmente, de quadros hetero-
gêneos, onde o agrupamento de imagens extremamente
dissonantes se conjura através do insight sobre as relações
funcionais que mantém... seu método é realçado quando
aproximado, por exemplo, de um pintor abstrato como Philip
Guston, cujos vários períodos e explorações culminam no
silêncio puro, integral e perfeito, de seu presente trabalho.
[O’HARA, 1975b, p. 44-45, grifos da autora]
Aquilo que O’Hara chama de “inclusão progressiva”
na obra de Hartigan se transmite de forma belíssima
na seguinte passagem de
Second Avenue | Segunda
Perceba como as imagens heterogêneas e os des-
locamentos sintáticos de O’Hara “mimetizam” o pró-
prio processo de pintura. O pronome “onde” [“onde
ansioso”] não tem antecedente; “em carrossel de
risadas” nenhum referente específico e, ainda assim,
descobrimos que “isso” [“desafinado desbunde”?
Os “céus” vistos como um “carrossel”? Os “nacos de
gorda tinta branca”? Ou todas essas coisas juntas?]
torna-se “amor para ela” e também é “o que eu [o
poeta] desejo”. Na linha 6, a frase abreviada “e o
que você” desloca novamente a perspectiva: nesse
momento, “você” se transforma na própria Graça;
sua pintura é tudo o que ela deseja que seja - uma
Graça devora
os rostos rodopiando em desafinado desbunde ali onde ansioso,
o nariz arrebitado para os céus em carrossel de risadas
e obliterado espasmodicamente com nacos de gorda tinta branca
e isso é amor para ela, é o que eu desejo
e o que você, para que possa jogar fora uma coisa sem bocejar
Ah Folhas de Relva! Ah Sylvester! Ah Conferência das Bordadeiras”
e assim cumprir a nossa promessa de destruir alguma coisa mas não a gente
9
[O’HARA, 1971, p. 149]
Avenida
, que segundo o poeta é: “uma descrição da
pintura de Graça Hartigan” [O’HARA, 1971, p. 486].
Marjorie Perloff, Poeta entre pintores.
198
estrutura de “imagens extremamente
dissonantes” que, de alguma forma, con-
seguem escapar à grandiloquência [“Ah
Folhas de Relva! Ah Sylvester! Ah Conferência das
Bordadeiras], sendo capazes de desfigurar [“jogar
fora uma coisa sem bocejar”] a pura abstração em
privilégio da heterogeneidade – “Imagens [...] até en-
tão reprimidas “, “pinceladas caóticas e redemoinhos
de impasto” [O’HARA, 1975b, p. 45] – nutrida pela
paixão pessoal [“e assim cumprir a nossa promessa
de destruir qualquer coisa mas não a gente”].
Em poemas de amor tão agridoces
10
quanto
Christ-
mas Card for Grace Hartigan
|
Cartão de Natal para
Graça Hartigan
[O’HARA, 1971, p. 212] e
For Grace, af-
ter a party |
Para Graça, depois de uma festa [O’HA-
RA, 1971, p. 214], O’Hara deixa que uma imagem “san-
gre” na outra, espelhando a técnica que Hartigan
executa na pintura. “Estenda sua mão”, diz ele neste
último, “não há / um cinzeiro, de repente, ali? Ao
lado / da cama?”. Ou ainda, em meditações sobre
a condição da identidade, a capacidade de assumir
diferentes papéis e cultivar “referências sórdidas”,
emerge no consagrado
In Memory of My Feelings /
À memória de meus sentimentos
[1956], dedicado a
Graça Hartigan, a aforística frase: “a graça / de nas-
cer e viver de tantos modos quanto possíveis”.
11
Esta
menção à “graça”, segundo o que a própria pintora
me disse, relaciona-se às linhas precedentes:
O’Hara, nesse ponto, evoca dois nus artísticos de
Hartigan
12
. Até mesmo as figuras das pinturas de
Graça parecem ser fruto de identificação para ele,
que adentra, por assim dizer, no universo de suas
telas. Talvez em
LAmour avait passé par là
13
[1950]
se encontre o melhor exemplo sobre a impor-
tância da relação afetiva com Graça Hartigan na
construção dos poemas. Nesse poema, o eu lírico
aparece como um Pierrot que lamenta a perda de
seu amor. A mudança de tom entre o humor gen-
tilmente triste e autodepreciativo e a consolação
se traduz, sobretudo, em imagens da arte. Assim
começa o poema:
Sim
como o centro silencioso de um livro sobre Joan Miró
azul vermelho verde e branco...
e o gigantesco espelho atrás de mim pisca, manchado de tinta
eles pintaram o teto do meu coração
e penduraram uma nova luminária
e Arte Contemporáneo por Juan Eduardo Cirlot
e o Petit Guide para o Museu Nacional Russo...
“Um dos meus eus está em pé sobre as ondas, um banhista no oceano,
ou então estou nu com um prato de demônios à altura dos quadris.”
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 191-245, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.50654]
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Falta pouco para o poeta se transformar na pági-
na em branco de um livro de arte. De repente ele
se lembra que deve “ir ao Cedar para encontrar
Graça”, e assim, com uma sublime ostentação de
lógica, declara:
Preciso apertar meus mocassins
e esquecer as bibliografias miúdas de decepção
angústia e poder
em troca da honestidade tensa...
E a “honestidade tensa” de seu
tête-a-tête
com
Graça pode levá-lo a novos limiares:
uma vela mantida próxima à janela tem duas chamas
e talvez um bando de seguidores no sereno da juventude
assim como debaixo do arco você encontrará um coração de batom ou uma camisinha
deixada pelo desfile
de uma intuição generalizada
é o grande período da arte italiana quando todo mundo imita Picasso
com medo de significar qualquer coisa
enquanto a segunda chama em seu reflexo feliz ignora a vela e o vento
[O’HARA, 1971, p. 333]
Aqui, contrapondo a pálida “luminária” suspensa an-
teriormente do coração do poeta, Graça é associada
à “segunda chama” com seu “reflexo feliz”. A segun-
da estratégia de O’Hara para fundamentar e autenti-
car um estado de espírito singular em seus poemas
sobre arte é evocar artistas ou obras de arte como
marco referencial. Isso acontece em
Having a Coke
with you/ Tomar uma coca-cola com você
[1960],
quando o poeta faz uso do humor para mostrar a
superioridade daquele que ama [Vincent Warren]
diante das obras
O Cavaleiro Polonês
de Rembrandt,
Nu
Descendo uma Escada
de Duchamp e das figuras
equestres de Marino Marini, que de alguma forma –
no que considero uma percepção sagaz – não são
capazes de escolher “o
cavaleiro com o mesmo
cuidado que o cavalo”
[O’HARA, 1971, p. 360]. Em
A Warm Day for Decem-
ber / Um dia quente para
Dezembro
[O’HARA, 1971,
p. 375], ao percorrer as
galerias da 57th Street,
o poeta observa que
está “Isolado pelo meu
novo corte de cabelo / e
parecendo mais com Brancusi que de costume”. Ou
então vejamos
Rádio
, escrito em 1955:
Marjorie Perloff, Poeta entre pintores.
200
Por que você toca essa música deprimente
no sábado à tarde quando cansado, não,
exausto, eu anseio por uma pequena
lembrança da energia imortal?
A semana
inteira enquanto me arrasto com dificuldade
entre as escrivaninhas do museu
você solta os seus milagres de Roxette
e Tears for Fears por essas prisões.
Não estou eu
também trancado, e depois de uma semana
de trabalho não mereço George Michael?
Bem, eu tenho o meu belo de Kooning
em quem me inspirar. Penso que dentro dele existe uma
cama laranja, mais do que o ouvido pode ter
14
.
[O’HARA, 1971, p. 234]
É na cômica inversão dos três últimos versos, com a
lógica aparentemente absurda de que o poeta não
precisa de música porque seu «belo de Kooning”
lhe oferece “mais do que o ouvido pode ter” que
reside o charme do poema. Mas é óbvio que O’Hara
não está brincando: diferente de afastá-lo dos pra-
zeres da música, estar «isolado» no museu fez com
que aprendesse a «escutar» as pinturas. Todas as
artes – visuais, sonoras, escritas – são interdepen-
dentes. Como sugere o poema, aperfeiçoe uma e
as outras estarão cada vez mais próximas. Muito
longe de ser um comentário aleatório, a referência
de O’Hara à obra de De Kooning se baseia em fatos
reais, e isso é o que a torna particularmente interes-
sante. Certamente, uma das potências singulares
em O’Hara é a maneira carinhosa com que apreen-
de os detalhes reais responsáveis pela transmissão
de autenticidade. Em uma carta enviada a Frank em
22 de março de 1956, Kenneth Kock endossa:
Rádio é impecável. Ontem à noite eu estava na Cedar
Tavern e Bill de Kooning estava lá, então lhe perguntei se
já tinha lido o seu poema sobre a tela dele. Ele respondeu,
Já. . . mas como posso ter certeza de que é sobre a minha
pintura, ou se é apenas sobre uma pintura qualquer? Eu
citei “eu tenho o meu belo de Kooning / em quem me ins-
pirar. Penso que dentro dele existe / uma cama laranja ....”
Ele retrucou: “É um sofá. Mas isso é incrível, a pintura então
é realmente a minha.” E assim começou a me contar que
sempre se interessou por colchões porque, “como a terra”,
eles se unem em alguns pontos e se expandem em outros.
[O’HARA, 1971, p. 536]
Com o desejo de “traduzir” a atmosfera da pintura
em um suporte verbal, outro grupo de poemas
inspirados pela arte pode ser classificado como
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 191-245, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.50654]
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meditações sobre pinturas específicas. Ao con-
trário dos trechos de
Second Avenue | Segunda
Avenida
e
In Memory of My Feelings | À memória
dos meus sentimentos
discutidos acima, esses
são poemas que abordam a pintura como um
tema independente, sem referência ao artista.
Poem [The eyelid has its storms]
/ Poema [A pál-
pebra tem seus temporais…]
, por exemplo, tenta
capturar o que O’Hara chama de “tragédia de
uma violência linear” [O’HARA, 1975a, p. 33], em
seu ensaio sobre a obra de Jackson Pollock. O
poema começa assim:
A pálpebra tem seus temporais. Primeiro o seu verde opaco,
escama de peixe após nadar no mar e de repente a
a violência arranca, cílios estrangulados, e um arame
farpado de areia despenca na beira da praia
15
.
[O’HARA, 1971, p. 223]
Enquanto comentário sobre uma das
all-over
paintings
de Pollock, este é um poema eficaz, mas
fico me perguntando se ele se sustentaria para
além desse fato. Também tenho minhas reticên-
cias em relação à
Blue Territory
16
/ Território Azul
,
que com esse nome, se torna um poema “sobre” a
pintura de Helen Frankenthaler. Novamente aqui, a
interpretação de O’Hara se torna interessante para
alguém que já sabe que tal pintura abstrata, com
suas formas curvilíneas, cores vibrantes e superfí-
cies cintilantes carrega sutis lembranças de uma
paisagem oceânica.
Grandes sacos de areia até eles chegarem,
o lisonjeiro fim
do mundo
as gaivotas estavam mergulhando e engolindo e enchendo
os sacos
como criaturas prestativas por toda parte ajudavam
a acabar
o mundo
então nós podíamos ficar a sós finalmente, um por um
quem precisa de uma arca?...
[O’HARA, 1971, p. 270]
Mas se isolarmos esse
tone poem
17
impressionis-
ta e olharmos só para ele, sua “pintura” falha em
ganhar corpo. Escrito em 1955,
Joseph Cornell
é
uma “tradução” mais fortuita da pintura em poesia.
Cornell foi um mestre da
assemblage
surrealis-
ta; suas intrigantes caixas de sombra acoplavam
palavras e imagens exóticas a objetos banais –
dedais, cascas de ovo, espelhos e mapas – a fim de
criar pitorescas fábulas do inconsciente. Um bom
exemplo é
Taglioni’s Jewel Caske
t [1940], adquirida
Marjorie Perloff, Poeta entre pintores.
202
pelo Museu de Arte Moderna de Nova York. Con-
tendo quatro fileiras de cubos de vidro, a caixa é
feita de madeira, veludo, vidro e plástico. Dentro do
revestimento coberto por veludo azul, encontramos
um papel branco com a seguinte “mensagem”: “Em
uma noite de luar no inverno de 1835, um salteador
russo bloqueou a carruagem de Maria Taglioni e
ordenou à tão encantadora criatura que dançasse
para ele, público de apenas um, por cima da pele
de pantera que cobria o gelo sob as estrelas.” Tal
caixa, combinando espaço tridimensional e ilusão
cênica, torna-se, nas palavras de William Rubin
18
,
uma espécie de “teatro espacial”. A solene narrati-
va sobre Madame Taglioni se justapõe, de maneira
engenhosa, à simples caixa prosaica com suas
fileiras compostas por blocos de vidro aritmetica-
mente posicionados. O’Hara transmite algo equiva-
lente às caixas de Cornell em seu poema:
Sobre um desastre deslumbrante,
meticulosamente detalhado, a luz violeta irradia.
Não é um céu, é um quarto. E no campo aberto
uma taça de absinto vibra uma canção indiana.
Ventos das pradarias circundam mesquitas.
Você é sempre jovem demais para entender. Ele
está cansado com seu sentido do passado o artista.
Para fora da profética rocha em seu peito ele
espalhou um solo sem flores de forração.
[O’HARA, 1971, p. 237]
Aqui, há uma aproximação sensível das experi-
ências verbais e visuais. Na primeira “caixa”, o
poeta concede sua versão às “mensagens” de
Cornell como uma descrição exótica e estilizada
que rememora a passagem de Maria Taglioni.
Numa mudança abrupta, a segunda “caixa” per-
segue a reação do espectador, o “você” [todos
nós] que é “sempre jovem demais para enten-
der”. Assim como faz Cornell, o artista deve criar
novas formas porque “Ele está cansado com
seu sentido do passado o artista”. De maneira
aforística, a terceira sentença converge para
o espírito da arte de Cornell: “ele espalhou um
solo sem flores de forração” [aqui, até mesmo
a quebra de linha enfatiza a ausência], a “coi-
sa nua e crua”, como diria Wallace Stevens, se
esgueirou “para fora da profética rocha”.
Certamente, mesmo nesse caso a compreen-
são do poema de O’Hara depende que conhe-
çamos pelo menos um pouco da obra de Cor-
nell. Em algumas situações, no entanto, quando
O’Hara trabalhava numa colaboração extre-
mamente próxima com pintores específicos, a
aura da pintura era absorvida tão intensamente
pelo poema a ponto de libertá-lo. Acredito que
isso se concretize em
On Seeing Larry Rivers’
Washington Crossing The Delaware at the
Museum of Modern Art
/
Depois de ver Washin-
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 191-245, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.50654]
203
gton Crossing the Delaware, de Larry Rivers, no
Museu de Arte Moderna
19
[O’HARA, 1971, p. 233].
Em uma entrevista com O’Hara para a revista
Horizon em 1959, Rivers explica o que tentava
elaborar nesta pintura em particular:
[...] O que poderia ser mais ridículo do que uma pintura
homenageando um clichê nacional como Washington
Crossing the Delaware. A última pintura sobre George e
os rebeldes, pendurada na parede do Met, foi pintada
pelo dono da maior paixão por Napoleão já vista, um
acadêmico alemão tosco do século XIX, que acreditava
que um general cruzando um rio numa tarde qualquer
do final de dezembro era só mais um pretexto para
exercer aquela pose heróica, ligeiramente trágica . . .
.Quanto a mim, o que vi nessa travessia foi outra coisa.
Eu vi tensão e desconforto nesse momento. Para mim era
impossível imaginar que qualquer pessoa entrando num
rio gelado perto da época do Natal pudesse estender
heroicamente a mão no peito. [O’HARA, 1975a, p. 112]
“Como as pessoas reagiram ao verem Geor-
ge?” pergunta O’Hara. “Praticamente da mesma
forma”, Rivers responde, “que reagiram numa
exposição Dada em Zurique, quando os Dadaís-
tas trouxeram um assento de vaso sanitário como
peça de escultura. A diferença é que não causou
perturbação no público – só nos pintores. Fui
chamado de impostor pelo pintor Gandy Brodie,
que foi bem enérgico em sua consideração. No
bar que eu frequento, vários pintores fizeram pia-
da” [O’HARA, 1975a, 113].
Por outro lado, o próprio O’Hara compreendeu a
pintura de Rivers perfeitamente. Escrito em 1955,
seu poema aborda
Washington’s Crossing of the
Delaware
com irreverente e jocoso desdém.
Agora que o nosso herói voltou pra gente
em suas calças brancas e conhecemos seu nariz
sacudindo como uma bandeira num tiroteio,
vemos que o rio calmo e gelado apoia
nossas forças, bela história
20
.
[O’HARA, 1971, 233]
As quatro estrofes seguintes continuam a dar ên-
fase à situação absurda que O’Hara, assim como
Rivers, considera como um não-acontecimento:
uma “travessia pela água, no inverno, para uma
margem que não é a mesma alcançada pela
ponte.” Aqui, a rima infantil –
shore/ reaches for
– ressalta o
bathos
do que se entende por nossa
“bela história” – note que a travessia ocorre em
um “brilho enevoado”. Com um discurso satírico
endereçado a George, o poema termina culmi-
nando no trocadilho com a palavra “general”
[
general fear
].
Marjorie Perloff, Poeta entre pintores.
204
Não atire até que, o branco da liberdade brilhando
no cano da espingarda, você veja o medo em todos.
[O’HARA, 1971, 234]
Embora o poema de O’Hara seja especialmente
sagaz quando lido em conjunto com a pintura de
Rivers, compreendê-lo como a reescritura de um
dos grandiosos eventos na história dos Estados
Unidos – uma visão irônica do “Querido pai de
nosso país” com “seu nariz/ sacudindo como uma
bandeira num tiroteio” – também pode acontecer
de forma independente.
Seja com sua resposta poética à pintura de Larry
Rivers, ou na celebração lírica de Graça Hartigan,
O’Hara parecia sentir-se mais à vontade com pintu-
ras que guardavam pelo menos algum resquício fi-
gurativo do que com a pura abstração. Pollock, Kline
e Motherwell podem até ter sido os grandes ídolos
de O’Hara, mas, em termos práticos, era compli-
cado, por exemplo, transportar a total abstração
de
Blue Territory
em Frankenthaler para a poesia.
De um jeito ou de outro, as palavras carregam
significados, e no fim das contas as implicações
temáticas sempre arrumam um jeito de se anun-
ciar. No próximo capítulo, quando abordaremos os
poemas mais emblemáticos de O’Hara, veremos
que o poeta empregou alguns dos maiores concei-
tos do Expressionismo Abstrato, tais como o
push-
-and-pull
; a pintura
all-over
– onde a composição
aparece como um
continuum
sem fim ou começo
–; e a famosa observação de Harold Rosenberg de
que, na
Action Painting
, a tela deixa de ser espaço
de reprodução para se tornar uma arena sobre a
qual agir. Como poeta, no entanto, O’Hara demons-
tra certa ambivalência em relação aos grandes
nomes do Expressionismo Abstrato, ambivalência
que produz tensões interessantes em sua crítica de
arte, ponto sobre o qual me debruçarei a seguir.
SENTADO EM UM CANTO DA GALERIA
– Eu visto pano oleado e leio música
no candelabro de barro de Guillaume Apollinaire
21
.
[O’Hara, 1971, p. 18]
Quando se trata de seu trabalho como crítico,
surpreendentes pontos de encontro podem ser
traçados entre O’Hara e o seu maior herói, Guillau-
me Apollinaire
22
. LeRoy Breuning, na introdução à
coletânea de poetas franceses na crítica de arte,
escreve: “O dom que Apollinaire possuía, sua intui-
ção, seria capaz de provocar inveja na maioria dos
críticos profissionais. Ele sabia como reconhecer
uma grande obra quando via uma. Dentre o enxame
de pintores desconhecidos nos salões e galerias de
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 191-245, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.50654]
205
sua época, ele conseguia reconhecer, através de
um olhar apurado e de sua fé na ‘nobreza’ da arte,
aqueles que estavam destinados a perdurar”.
23
Em
sua resenha do
Salon d’Automne
de 1911, o primeiro
Salon
em que participam os cubistas, encontramos
um bom exemplo da abordagem pouco ortodoxa de
Apollinaire na crítica de arte: “Na minúscula Sala 8
encontram-se as obras de alguns pintores conheci-
dos como cubistas. Contrariando o senso comum,
o cubismo não se trata da arte de pintar tudo e qual-
quer coisa na forma de um cubo” [APOLLINAIRE,
1971, p. 183]. Depois de fornecer um breve histórico
sobre as primeiras pinturas cubistas de Picasso e a
relação entre o Cubismo e o Fauvismo, Apollinaire
tece um comentário perspicaz:
Num primeiro momento, o público, no entanto, acostumado do jeito que estava aos borrões
brilhantes, todavia quase disformes, das pinceladas impressionistas, se recusou a reconhecer
a magnitude das concepções formais dos cubistas. As pessoas se chocaram com as formas
escuras e os segmentos luminosos contrastados, porque já estavam com um olhar totalmente
domesticado às pinturas sem sombras. No surgimento monumental de composições que vão
além das superficialidades da arte contemporânea, o público se negou a perceber o que
realmente estava lá: uma arte nobre e comedida, preparada para dar conta da vastidão te-
mática sobre a qual o impressionismo deixou seus pintores totalmente desprevenidos. Quer as
pessoas gostem ou não, o cubismo é uma reação necessária que fará com que grandes obras
sejam criadas. [APOLLINAIRE, 1971, p. 183]
Mesmo que Apollinaire não nos forneça nenhuma
teoria da pintura Cubista ou uma análise prática de
trabalhos individuais, hoje, olhando em retrospecto
para 1911, nós sabemos como essa declaração foi
profética. As mesmas características podem ser
encontradas na crítica de arte de O’Hara: ausência
de discurso teórico – e, exceto em alguns casos, de
análise técnica rigorosa – contrabalançada pela
fantástica capacidade de reconhecer grandeza e
de distinguir entre aquilo que é incomparável e o
que é quase tão bom quanto. Da mesma forma que
acontecia com Apollinaire, O’Hara possuía a astú-
cia inata de reconhecer de prontidão a pintura ou
as pinturas que se destacariam em meio a grandes
mostras coletivas instauradas em galerias.
Em nenhum lugar este caráter peculiar se manifes-
ta de forma mais evidente do que nas três
Art Chro-
nicles
que O’Hara escreveu em 1962 e 1963 durante
o período que foi editor
de arte da revista
Kulchur
. Analisando a
retrospectiva de Mark
Tobey no Museu de
Arte Moderna em sua
terceira
Chronicle
,
O’Hara conclui: “à sua
maneira, Tobey criou
coisas ótimas... mas da mesma forma que Redon
jamais será comparável a Renoir, elas nunca serão
mais que isso ... Não enquanto Willem de Kooning
e Barnett Newman estiverem dando pinta por aí”.
24
Marjorie Perloff, Poeta entre pintores.
206
Certamente esta é uma sentença válida. Hoje em
dia, é difícil escutarmos o nome de Tobey, já De
Kooning segue a pleno vapor, sendo, quiçá, cada
vez mais reconhecido como o maior dos pintores de
sua época. Na mesma
Chronicle
, O’Hara menciona
Andy Warhol e Robert Indiana – artistas da
Pop Art
que “tendem
a extrair
sua arte da vulgaridade [no
sentido cotidiano] de objetos, imagens e emble-
mas” – diferenciando-os de Claes Oldenburg – que
com a ajuda de papel machê, tecido, madeira,
cola, tinta e quaisquer outros materiais que possam
estar dentro ou acima de suas esculturas,
transfor-
ma
os próprios objetos e emblemas em arte” [O’HA-
RA, 1975b, 141]. Sob a luz privilegiada do afastamen-
to temporal que o final dos anos 70 oferece sobre
o movimento da
Pop Art
, tal distinção
entre o que poderíamos chamar de
Pop
Art
comercial e o brilhante ilusionismo
de Oldenburg com
seven-foot pistachio
icecream cone
ou
monstrous wedge of
chocolate and vanilla layer cake
parece
se tornar ainda mais valiosa.
Os grandes nomes do Expressionismo
Abstrato costumavam ocupar o lugar de prota-
gonistas nas
Art Chronicles
, mas como O’Hara
sempre se importou mais com indivíduos do que
com movimentos, ele foi um dos primeiros críticos
a reconhecer a singularidade de Alex Katz, cujas
flat sculptures
realistas eram pintadas, por assim
dizer, na contramão das tendências estilísticas de
sua época
25
. O’Hara percebeu que as “figuras pin-
tadas em escala não tradicional”, “ao enfatizarem,
de maneira quase inconsciente, a ausente espa-
cialidade que as permeia, são modernas em seu
ethos
[...] sem jamais serem silhuetas, não deixam
de emitir um certo ar onipresente” [O’HARA, 1975b,
p. 136] Publicada na edição de
Art Chronicles
do
verão de 1962, essa observação sobre o trabalho
de Katz ganha corpo em um dos melhores ensaios
críticos de O’Hara,
Alex Katz
, escrito para a
Art and
Literature
pouco antes de sua morte. O mundo
pictórico de Katz é definido por ele como
Certamente, o retrato
flat
que Katz realizou do
próprio O’Hara atesta a curiosa sensação de uma
presença
que lá está
, presença à qual o poeta se
refere. [O’HARA, 1975a, 146]. Talvez seja em meio à
discussão sobre a recepção da arte nesses anos
“um ‘vácuo’ de cores pintadas suavemente […] onde as figuras bastante
reais existem [mas não repousam] em um espaço sem chão, sem paredes,
sem fonte de luz, sem perspectiva […]. Em Katz, as pessoas simplesmente
existem em algum lugar. Elas permanecem nos retratos não por questões
existenciais ou por desorientação, mas como soluções de um problema
formal […]. Sem que pareça existir uma razão ou intenção aparente para
que habitem seus quadros, elas configuram um mistério de origem totalmen-
te pictórica. Elas sabem que estão lá.” [O’HARA, 1975a, p. 145]
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 191-245, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.50654]
207
fervorosos que a versão mais incisiva de O’Hara se
manifeste em suas
Art Chronicles
. Por exemplo, a
exposição
Abstract Expressionists and Imagists
or-
ganizada pelo Guggenheim em 1962 e concebida,
evidentemente, como uma grande miscelânea, na
concepção de O’Hara se deu como “uma situação
efervescente”, cuja “imperativa indeterminação” “te
deixa querendo ver mais” [O’HARA, 1975b, p. 128].
Mas em sua ânsia pela previsibilidade, o público de
arte não foi capaz de conter a indignação.
“Infelizmente, muitas pessoas queriam se ver legitimadas por uma justificativa,
embalada em um novo container da Sherry, que atestasse: ‘essa mostra permi-
te que você continue a admirar a pintura abstrata’. Prova disso são as críticas
sobre a qualidade da exposição – algumas delas beirando a histeria – que
o Guggenheim tem recebido: “COMO ELES OUSAM! UM HOFMANN
EM SEU PIOR!” Parece que nenhum dos críticos pensou: “Como ele ousou!”
[O’HARA, 1975b, p. 128].
Uma deflação tão espirituosa como essa é típica de
O’Hara. Para encerrar, ele lança o golpe final perfei-
to: “Muita gente amaria ver a arte morta e acabada,
mas elas não estão sendo vistas lendo latim lá no
Cloisters
”. Em seu cômico, porém assumidamente
maldoso ataque aos dois grandes críticos de arte
de sua época, John Canaday e Emely Genauer
26
,
O’Hara rememora o irônico ensaio
Watch Out for the
Paint!
de Apollinaire, onde o poeta conta a anedo-
ta sobre a senhora burguesa que se endereçou a
Mallarmé, então professor de liceu, implorando que
dispensasse o seu filho das horas de castigo depois
da aula, porque ela queria levá-lo à exposição de
Manet. “Paris inteira”, disse a senhora, “está marcan-
do presença para rir de suas pinturas. Se meu filho
for privado de um entretenimento como esse, que,
além de tudo, tem uma função educativa no desen-
volvimento de seu bom gosto, nunca conseguirei me
perdoar”. Foi assim que Mallarmé dobrou a punição.
“É nítida a prudência”, conclui Apollinaire, “que se
deve tomar antes de sair vociferando julgamentos
precoces. Errar é tão fácil; e não é
todo dia que um Mallarmé vai apare-
cer para duplicar a punição que uma
risada profana merece”.
27
O’Hara, assim como Apollinaire,
sempre tentava combater a “risada
profana”, evidenciando a mente fe-
chada dos resenhistas e o desdém
dos críticos. Contrastar o pano de fundo de Apolli-
naire com a crítica de arte de O’Hara se torna es-
pecialmente útil porque nos ajuda a compreender
o que ele não era e quais exigências não podemos
fazer às suas resenhas, ensaios e catálogos de
museus. Com a publicação do
Art Chronicles
em
1974, vários resenhistas reclamaram que O’Hara
era um crítico muito “subjetivo” e “impressionista”,
que não ofereceu ao movimento
28
do Expressionis-
mo Abstrato nenhum pensamento genuíno, tendo
Marjorie Perloff, Poeta entre pintores.
208
simplesmente adotado para si a perspectiva já
corrente de teóricos como Harold Rosenberg.
Essas reduções não estão totalmente erradas. A
versão mais fraca de O’Hara aparece quando tenta
conceitualizar sobre abstrações como Arte, Beleza,
Realidade ou Natureza.
Nature and the New Pain-
ting
[1954], um de seus primeiros ensaios, oferece
uma amostra interessante dessa interseção, por-
que ilustra tanto os momentos radiantes do poeta
quanto suas fraquezas como crítico. Grande parte
deste ensaio é composta por descrições especí-
ficas sobre o trabalho de Graça Hartigan [citado
anteriormente neste capítulo], Robert di Niro e Larry
Rivers, e as contribuições de O’Hara a respeito de
suas obras podem ser aplicadas de maneira con-
sistente. Já quando aborda “natureza”, as palavras
ficam mais nebulosas. Ele diz, por exemplo: “Nos
tempos passados existia a natureza e a natureza
humana; diante da ferocidade da vida moderna,
humanidade e natureza se tornaram uma única
entidade [...]. Percebemos nas abstrações e figuras
femininas de Willem de Kooning estruturas de um
rigor clássico: as identificações inexoráveis entre
humanidade e natureza. Isso não é simbólico. Isso
está pintado” [O’HARA, 1975b, p. 42]. Consequen-
temente, a
natureza
é absorvida tão integralmente
pela pintura na arte expressionista abstrata que
a tela se torna a união perfeita das duas. Uma ou
duas páginas depois, porém, O’Hara explica como
a abstração foi deixada de lado por Graça Harti-
gan para “retornar à natureza” – isto é, às imagens
figurativas – uma mudança de estilo que “introduziu
uma paixão que aparecia apenas de relance em
seus primeiros trabalhos” [O’HARA, 1975b, p. 45].
Mas, se é disso que se trata, onde vai parar a inte-
gração perfeita entre arte e natureza nas abstra-
ções de Kooning?
Na pioneira e quase sempre brilhante monografia
sobre Jackson Pollock, encontram-se generali-
zações praticamente tão questionáveis quanto.
Contrapondo o cubismo e o surrealismo – “O Sur-
realismo explodiu aquilo que o Cubismo conseguiu
apenas minar”; “O Cubismo foi uma revolução, o
surrealismo um aperfeiçoamento” –, O’Hara de-
clara: “Junto da libertação, o surrealismo impôs a
responsabilidade de dizer o que você quer dizer e
de querer dizer o que você diz, para além de qual-
quer apego pela fala ou pelo significado” [O’HARA,
1975a, p. 18]. Mesmo que pareça profundo, o que
O’Hara realmente está dizendo? Ele parece sugerir
que, em algum nível, o Surrealismo é mais literal
do que outras escolas de arte, contudo, os próprios
surrealistas viam no seu trabalho o extremo oposto:
a corporificação dos sonhos, alucinações, imagens
inconscientes – a arte da associação livre e dos
significados eróticos ocultos.
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 191-245, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.50654]
209
Desse modo, a importância de O’Hara como crítico
de arte não desponta a partir de seus ensaios for-
mais ou
set pieces
29
, como as introduções escritas
para os catálogos das exposições que organizou no
Museu,
New Spanish Painting and Sculpture
[1960];
Franz Kline
[1960];
Motherwell
[1962];
Nakian
[1964];
ou
David Smith
[1966]. No que concerne aos traba-
lhos individuais, esses ensaios reluzem com
aper-
çus
brilhantes, contudo, são muitas as vezes em
que encontramos frases como essas: “se podemos
dizer que
Make it new
é o lema da arte estaduniden-
se dos últimos tempos,
Make it over
é o da espanho-
la”.
30
Ou então: “nas camadas subterrâneas de toda
grande obra do Expressionismo Abstrato e, de fato,
florescendo dentro dela, encontramos a consciên-
cia traumática da urgência e a crise experimentada
como acontecimento de ordem pessoal” [O’HARA,
1975a, p. 67]. Ou ainda: “seja na estilização arcaica
das esculturas de
Manship
– uma espécie de idea-
lização heroica fajuta do proletariado – ou na tardia
estilização
Art Nouveau
de formas humanas e ani-
malescas, a estilização segue como pauta principal
[...]” [O’HARA, 1975a, p. 82]
Contudo, se voltarmos para algumas críticas de
O’Hara – suas resenhas para a
Art News
e
Kulchur
,
suas entrevistas e biografias – uma perspicácia
crítica bem diferente vem à tona. As primeiras rese-
nhas [1953-54] são peculiarmente literárias; nelas,
o recém graduado em Harvard ainda faz um uso
mais explícito do seu aprendizado. Assim, lança-se
sobre as figuras na pintura de Kenneth Callahan:
suas anatomias podem ser à la El Greco, mas não
é na pintura que encontram seu habitat, e sim na
poesia romântica, onde as figuras ganham vida
através das névoas peroladas de Shelley – o que às
vezes na pintura é apenas cinza sobre tela”.
31
Em
Kees Van Dongen, os seios das mulheres “apare-
cem e desaparecem como em algum dos momen-
tos mais reveladores de Proust”.
32
As “densas ima-
gens pintadas” de Helen Frankenthaler possuem
a sordidez condensada de um daqueles capítulos
indizíveis
33
de Henry James”.
34
Paralelamente, no
entanto, quando escreve sobre a exposição de
Adolph Gottlieb em abril de 1954 na Kootz Gallery,
O’Hara tece um comentário sofisticado a respeito
da “multiplicidade de matrizes e situações alocadas
tanto entre elas quanto atrás delas” e pontua que
“na superfície, as espessas pinceladas são menos
um indício em direção a significados particulares do
que a velocidade que se origina tanto na vitalidade
como na alegria”.
35
Com seu ingresso em 1955 como Assistente Espe-
cial do Programa Internacional no Museu de Arte
Moderna de Nova York, O’Hara se manteve tão
ocupado organizando as exposições itinerantes
durante os anos seguintes que sua produção crítica
Marjorie Perloff, Poeta entre pintores.
210
foi mais escassa. No entanto, esses foram anos de
intenso contato com o mundo da pintura e escultu-
ra contemporâneas e, no final dos anos 50, quando
O’Hara estava no auge de seu domínio poético, ele
também se dedicava de forma muito mais casual e
espontânea aos escritos sobre arte, e ainda assim
com maior seriedade. Somente entre 1958 e 1960
O’Hara publicou os seguintes títulos: o livro sobre
Jackson Pollock para a série
Great American Artist
da editora Braziller; as entrevistas conceituadas
com Franz Kline e Larry Rivers; um ensaio engenho-
so e perspicaz sobre a tela
Next to Last Confederate
Soldier
de Rivers; e diversos textos curtos sobre
Pollock, Cavallon, Norman Bluhm ou que diziam
respeito, como já mencionado, a temas como arte
estadunidense vs. arte não estadunidense.
Em 1959, quando
Jackson Pollock
foi publicado,
Hilton Kramer chamou o livro de um exemplo de
escola ‘poética’ da crítica”, e vários críticos de
arte foram contrários à prosa pretensiosa e à res-
posta intensamente pessoal do poeta ao pintor
36
.
Mesmo assim, a publicação acabou se tornando
um imenso sucesso e, apesar dos deslizes men-
cionados anteriormente, segue sendo até hoje
uma célebre análise do trabalho de Pollock. As
proposições sobre os conceitos gerais da
Action
Painting
podem até não ser mais do que uma rea-
firmação do que já havia sido cunhado por Harold
Rosenberg: por exemplo, a concepção da “parede”
em oposição ao “cavalete”; a pintura como campo
de energia no qual o poeta adentra; a rejeição da
metáfora e do símbolo em privilégio da própria
materialidade – tinta como tinta, malha de arame
como malha de arame. No entanto, os comen-
tários paterianos de O’Hara são extremamente
valiosos quando abordam certas pinturas em
particular, porque fazem com que o leitor dedique
a tela um segundo olhar, encarando-a novamente
como se a visse pela primeira vez.
A pintura
White Light
de Pollock, por exemplo,
“possui um glamour de tipo lendário, ardente,
amargo e perigoso, algo semelhante às histórias
de vulcões que seduzem os nativos até a borda da
cratera, deixando que se atirem pelo fascínio de
suas vibrações e pela magnitude de suas ondas
de vapor” [O’HARA, 1975a, p. 29]. Já em
Number 1,
1948
, extrai sua potência de uma estratégia bem
diferente: o langor inquietante de
White Paint
é
substituído por “um vigor extasiante, irritável e
exigente. Em seu traço, uma velocidade fantásti-
ca aliada a uma legibilidade frenética; e as mãos
aparentemente ensanguentadas do pintor, atra-
vessando a parte superior da tela, logo depois da
área principal do desenho, sugerem o epílogo de
uma experiência terrível” [O’HARA, 1975a, p. 31].
É interessante acompanhar a variação do estilo
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 191-245, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.50654]
211
formal, distante e de alguma forma
até comportado no ensaio sobre
Pollock – um estilo regido, pelo
menos em parte, pelas convenções
do que seria a escrita de um “livro
de arte” – para o tom muito dife-
rente empregado nos ensaios relacionados à obra
de Larry Rivers. O trabalho de O’Hara como crítico
parece ter sido mais fortuito quando teve a liberda-
de de escrever sobre um pintor que também era um
grande amigo. Para além disso, os textos dedicados
a Rivers compõem em forma de prosa uma parti-
tura complementar aos seus poemas
I do this, I do
that
, como
A Step Away from Them
ou
Joe’s Ja-
cket
”.
Assim como todas as entrevistas de O’Hara,
Larry
Rivers:
Why I Paint as I Do | Larry Rivers: porque pin-
to como pinto
é notável devido ao apagamento da
própria presença do poeta
37
. As perguntas de O’Ha-
ra são curtas e objetivas: ele possui, obviamente, o
completo domínio do que vai falar, mas não se afo-
ba em um exibicionismo do próprio conhecimento.
Por outro lado, o Rivers que se desenha na entrevis-
ta acaba por soar como o próprio O’Hara, de forma
que, por uma via mais tortuosa, o poeta revela-se
afinal ali. Curiosamente, a doutrina expressa no
manifesto
Personism
é então encarnada na en-
trevista: as palavras estão achatadas no espaço
preciso entre duas pessoas, de forma que poeta e
pintor se tornam um. Uma descrição imagética do
ateliê de Rivers precede o diálogo:
Depois de descrever os agregados do lar da famí-
lia Rivers, incluindo “Amy, uma adorável e frenéti-
ca pastor-alemão”, e mencionar as pinturas que
habitavam as paredes do ateliê naquele momen-
to, O’Hara complementa:
Outra parede comporta a gigantesca tela Journey of
1956, que parece até menor quando alocada no es-
paço do ateliê; próximo a ela, atrás do vaso de plan-
ta, a figura de Psiquê ou Afrodite em gesso comercial
resgatada por Rivers de uma boate; pendurada na mão
suspensa da estátua, uma lâmpada laranja que é tam-
bém a luz noturna de Rivers [O’HARA, 1975a, p. 107]
A conversa que se segue vem permeada pelo tom
versátil e cômico dessas observações. Mesmo
que venham de contextos muito diferentes, Rivers
e O’Hara acabaram compartilhando estéticas
surpreendentemente similares. Rivers, nascido
em uma família judia sem posses, cresceu “nas
Durante o dia, três claraboias são responsáveis pela entrada de luz, mas
no cair da noite, o espaço é vasto e sombrio, iluminado por sete lâmpadas
penduradas lá no alto, próximas do teto. Na luz noturna, o ateliê se assemelha
bastante ao cenário de Samuel Beckett em Endgame; é difícil acreditar que
alguma coisa do mundo lá fora possa ser vista sem a ajuda de uma escada; as
janelas são tão altas. [O’HARA, 1975a, p. 106]
Marjorie Perloff, Poeta entre pintores.
212
ruas do [...] Bronx” [O’HARA, 1975a, p. 109]. No co-
meço, era músico de jazz, depois, tendo passado
um período no posto de entregador numa loja de
materiais artísticos, passa a trabalhar com Hans
Hofmann e a frequentar a Universidade de Nova
York [NYU] pela noite, iniciando seus estudos em
pintura. Durante todo o tempo, Rivers contou com
o suporte de Mrs. Bertha Burger, sua ex-sogra e
uma de suas principais modelos, que cuidava da
casa e de seus dois filhos para ele, ajudando-o a
se sustentar
38
. É nítido que suas vivências eram
bem distantes do meio católico provinciano de
Baltimore e Grafton, Massachusetts, no qual
Frank foi criado, ou da Harvard
de John Ashbery e Kenneth
Koch, ou mesmo do mundo
sofisticado do Museu de Arte
Moderna de Nova York.
No entanto, para qualquer pes-
soa que tenha lido O’Hara, a visão
de Rivers sobre arte é imediata-
mente reconhecível. Ele rejeita a primazia do tema
na pintura, insistindo que a forma [o
como
] suplanta
o conteúdo [o
quê
]. Assim como O’Hara, ele enfa-
tiza o valor do “acontecimento presente” [O’HARA,
1975a, p. 108], da energia, do papel do “acidente”
na arte [O’HARA, 1975a, p. 117], e a necessidade de
expurgar “os desconfortos do tédio”. “Uma das mi-
nhas teorias”, diz ele, soando igualzinho a O’Hara,
sobre a arte dos últimos cem anos é que o tédio,
a insatisfação e a perversidade do artista, mais do
que qualquer outra coisa, foram as causadoras de
grande parte das alterações na imagem da pintura”
[O’HARA, 1975a, p. 113]. Com O’Hara, ele também
divide a predileção por um certo tipo de humor
exagerado, como o que se apresenta na pintura
de George Washington. Para Sam Hunter, essa é
capaz de agregar “historicidade e nostalgia à di-
mensão dos objetos e emblemas do senso comum”
numa assimilação do “folclore popular ao alto estilo
de arte sofisticada”.
39
Eu posso ver uma coisa – digamos, uma fita que resolvo usar para dinamizar
uma área de aproximadamente 7 centímetros da tela. Essa mesma fita pode
acabar se transformando em um pote de leite, uma cobra ou um retângulo.
[...] Pode até ser que eu chegue a desenvolver as minhas próprias associa-
ções sobre ela, mas não quero interpretar essa associação. [...] Não tenho o
menor pudor em me apropriar da aparência dessas coisas – aquele pedaço
de fita – sem definir qualquer significado específico a elas enquanto objetos.
[O’HARA, 1975a, p. 118]
“Um
self-service
sem balança
40
daquilo que é reco-
nhecível” – para Rivers, essa seria a melhor defini-
ção da pintura.
E quando Frank lhe pede para aplicar esses prin-
cípios na tela recém pintada
2nd Avenue with THE
,
Rivers explica:
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 191-245, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.50654]
213
O que você vê é a vista de um ateliê na Second Avenue
– um ateliê no último andar – olhando em direção aos
prédios do outro lado. Na tela apresento uma pequena
seleção de objetos escolhidos dentre todos os outros
que podiam ser vistos a partir da minha perspectiva. Os
retângulos são os reflexos emitidos pelas janelas de vidro
do outro lado da rua. As linhas verticais escuras são as
tábuas do assoalho do estúdio. Eu olhei para baixo, notei
que estavam ali e as pintei. As linhas horizontais são os
parapeitos das janelas. À direita, os semicírculos são os
pratos de uma bateria. Os quadrados brancos pequenos
em linha são as teclas brancas de um piano que eu tinha lá
no ateliê. E quanto à figura da mulher-foguete, ela também
estava dentro do estúdio e entrou no meu campo de visão.
Lá em cima, as letras THE num formato diminuto – logo à
esquerda delas tem uma mulher se inclinando para fora da
janela do prédio em frente. Eu deveria ter incluído o letrei-
ro ALPINE lá em cima
também. Foi assim
que algum construtor
resolveu chamar um
daqueles prédios
—chique esse nome,
não é? [O’HARA,
1975a, p. 118]
“E qual a história
dessas letras THE?”
– Frank
pergunta. Rivers
responde: “essas
letras foram cola-
das na janela do ateliê por algum diretor de cinema
que quis fotografá-las para o fim de seu filme. A outra
parte END acabou desaparecendo” [O’HARA, 1975a,
p. 118].
Cito essa passagem extensamente porque ela
evidencia as estreitas conexões entre a pintura
de Rivers e o poema
Second Avenue
de O’Hara,
escrito alguns anos antes no ateliê do pintor
41
.
Assim como Rivers se apropria de objetos familia-
res [as tábuas do assoalho, o parapeito da janela,
a mulher e o letreiro colado na janela do espaço]
e os desloca – criando uma nova tensão entre
detalhes ilusionistas e configurações abstratas –
O’Hara extrai suas imagens das cenas de rua da
Com candura. O passado, as sensações do passado. Agora!
a escrita cuneiforme dos guarda-sóis de sátrapas carroças de cachorro quente
e maionese caseira, da areia ornando o prepúcio nas sungas, das
lojas de revelação Fujifilm, da Mesbla,
do Kenneth em uma gôndola abandonada no domingo cortando ainda mais
sugerindo lobotomias de um ainda-por-vir-mais-dócil mundo
de ouvidos, do sambista recobrando a voz na roda de partido alto, Bill, de “Faz amor comigo até o dia
clarear!” “Lá lá ia lá ia lá ia lá ia!...”, de uma mão frouxa maior que o joelho, que parece dizer “Addio”
e é capaz de renunciar ao desastre que ela mesma provocou em terra.
Acres de vidro não deixam mais claro o sinal da paisagem
menos enluarada que na pré-história, ainda assim menos distante, ávida, morta!
42
[O’HARA, 1971, p. 146]
Marjorie Perloff, Poeta entre pintores.
214
Second Avenue
, cortando, distorcendo e realo-
cando os elementos de modo que sua versão
final não absorva mais do que “rastros” daquilo
que está sendo representado:
A ambiguidade no referencial criada pelo isola-
mento da expressão “com candura”; o desloca-
mento de “o passado” para “agora”; as imagens de
fachadas comerciais e carrinhos de mão “dissol-
vendo” em pensamentos sobre Kenneth Koch; as
memórias de um show; as alusões ridículas ao
poema
The Waste Land
na linha 8; a controversa
imagem final de uma paisagem azulada
43
ainda
assim menos distante, ávida, morta!” – assim
como Rivers descreve a entrada de fragmentos
similares na sua pintura, é a partir da invasão ale-
atória do fluxo de consciência do artista que todos
esses elementos encontram um lugar no poema.
Desse modo, O’Hara é o intérprete ideal para o
trabalho de Rivers, que assim como Graça Harti-
gan, foi um pintor que rejeitou, de um lado, a pura
abstração e, de outro, a pintura figurativa “dire-
ta” – o que Rivers costumava chamar de “realis-
mo afetado” [O’HARA, 1975a, p. 119]. Ambos os
artistas expandem o potencial significativo dos
objetos comuns; as teclas brancas do piano e o
parapeito da janela em
Second Avenue with THE
de Larry Rivers correspondem a imagens como a
antiga moeda romana”, a “cabeça de parafuso”,
ou “os construtores civis com seus capacetes
prateados” no
Poema Pessoal
de O’Hara [O’HA-
RA, 1971, p. 235].
No livro de memórias de 1965, intitulado
Larry
Rivers
, O’Hara relembra os pontos de contato entre
o poeta e o pintor. A chegada de Rivers à cena da
pintura nova-iorquina é ironicamente comparada
ao aparecimento de “um telefone demente. As
pessoas não sabiam se o deixavam na biblioteca,
na cozinha ou no banheiro. Mas ele estava sem-
pre ligado” [O’HARA, 1971, p. 512]. Como o próprio
O’Hara, Rivers era “inquieto, impulsivo e compulsi-
vo”, não conseguindo tolerar a existência de uma
estética que separasse as artes visuais do jazz e da
poesia, suas duas outras paixões. “Seu trabalho”,
diz O’Hara, “é muito mais como um diário de suas vi-
vências. Enquanto boa parte da arte de nosso tem-
po se envolveu em reflexões explicitamente concei-
tuais ou éticas, Rivers, de forma desautomatizada,
escolheu trabalhar sobre aquilo que o preocupava
e o entusiasmava” [O’HARA, 1971, p. 514]. Creio que
O’Hara quis dizer com isso que em determinado
momento da nossa história, quando o Expressionis-
mo Abstrato corria o risco de caminhar em direção
à mera padronização e repetição, Rivers, que assim
como De Kooning nunca abriu mão da presença de
alguns elementos figurativos – contornos de seus
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 191-245, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.50654]
215
próprios dedos, letras escritas, a silhueta do rosto
de uma mulher, além de outros gestos ilusionistas
, mudou o rumo da pintura em Nova York. É nesse
sentido que sua arte está especialmente próxima
do estilo lírico de O’Hara. Não à toa, uma parceria
entre duas sensibilidades tão afins só poderia gerar
bons frutos.
POEMAPINTURAS
A colaboração entre poetas e pintores é em grande
parte um fenômeno do século XX. Mas a colabo-
ração genuína – ao contrário da ilustração que é,
por definição,
ex post facto
– é algo raro em todos
os tempos, dada a dificuldade para encontrar o
equilíbrio entre dois gêneros aparentemente tão
antagônicos. Seja ele realizado por um único artista
ou como fruto de colaboração, um poemapintura
tende a se tornar uma pintura com um punhado
de palavras distribuídas como parte do esquema
visual, ou inversamente, um poema ilustrado no
qual imagens visuais encontram-se subordinadas
ao sentido verbal. Todavia, sob as circunstâncias
adequadas, o poemapintura, fruto da colaboração
entre artistas, apresenta grande potencial. Como a
ópera, o ballet, a mascarada e o cinema de anima-
ção, poemapinturas são capazes de proporcionar o
prazer particular gerado pela interação de meios e
técnicas sem relação aparente.
Assim como no caso de sua crítica de arte, o con-
ceito de poemapintura em O’Hara remonta a Apolli-
naire, que escreveu poemas “seguindo” pinturas
44
[colando o poema
Les Fenêtres
no verso da pintura
homônima de Delaunay, a fim de criar uma espécie
de imagem dupla], e cujos
Caligramas
contêm expe-
rimentos fascinantes de composição verbo-visual.
Em
Il Plêut
, por exemplo, as palavras escorrem pela
página da esquerda para a direita como gotas de
chuva; em
La Cravate et la Montre
, a disposição das
palavras imita os dois objetos nomeados pelo título;
e em
Visée
[Alvo], as variações de posição das linhas
correspondem às atitudes cambiantes do poeta
45
.
Mas nenhum destes exemplos constitui, em um
sentido estrito, poemapinturas. Um modelo mais
próximo das colaborações de O’Hara pode ser en-
contrado no Dadaísmo e no Surrealismo, ainda que
a
peinture-poésie
de Picabia, Schwitters, Magritte ou
Ernst quase nunca tenha resultado de colaborações.
Uma pintura como a famosa
M’Amenez-Y
[1919-1920]
de Picabia é um bom exemplo da experimentação
conduzida pelos dadaístas em torno dos padrões
verbais e visuais
46
. Suas formas mecânicas banais
[dois semicírculos, um cilindro e um parafuso] são
justapostas ao título que se baseia em um dos
rea-
dy-mades
verbais de Marcel Duchamp:
M’Amenez-Y
[“me traga lá”] é uma substituição para a formulação
Marjorie Perloff, Poeta entre pintores.
216
correta
Amenez-y-moi
, e também uma brincadeira
com a palavra
amnésie
[amnésia]. Na parte superior
da tela, Picabia anuncia em tom cômico se tratar de
um retrato pintado em óleo de rícino [
l’huile de ricin
] e
dentro dos círculos encontramos as palavras
peintu-
re crocodile
[pintura crocodilo] e
ratelier
[dentadura]
d’artiste
– num divertido jogo de palavras. No canto
inferior direito, a assinatura do artista é destacada;
do lado esquerdo, a referência sem sentido a
Pont-
-L’Evêque
[uma pequena cidade produtora de queijos
na Normandia] como o lugar em que
M’Amenez-Y
teria sido executada. Sem dúvida, as palavras de
Picabia não são um poema, mas a sua composição
depende de uma conjunção particular de imagens
verbais e visuais.
Nesse mesmo período, as colagens de Kurt Schwit-
ters constituem um tipo diferente de poemapintura.
Em seu ensaio
Merz
[1920], Schwitters declara: “O
meu desejo não era o de ser um especialista em um
único ramo da arte, mas sim o de ser um artista. O
meu objetivo é a
Merz
[uma peça sobre a merda]
enquanto composição artística. Primeiro eu combi-
nei categorias individuais de arte. Eu juntei palavras e
frases em poemas de maneira a produzir um de-
sign rítmico. Revertendo o processo, colei imagens
e desenhos de forma que neles fosse possível ler
frases”.
47
Exemplos desses dois processos podem
ser encontrados em
Collage
[1920] e
Sonata
[1923],
ambas reproduzidas no livro
The Dada Painters and
Poets
, de Motherwell, que O’Hara conhecia e ama-
va
48
.
Sonata
é sobretudo verbal: palavras curtas e
sem sentido encontram-se dispostas em colunas
segundo variadas configurações fonéticas, e a
pequena colagem retangular no canto inferior direito
desempenha um papel subordinado. O trabalho é
um exemplo precoce da poesia concreta. Em
Colla-
ge
, por outro lado, recortes de jornais e posters são
reunidos de forma que pedaços de manchetes, pa-
lavras, frases e partes de frases apresentam-se dis-
persas pela superfície, de baixo para cima e de cima
para baixo. Essas duas colagens são experimentos
interessantes, mas a relação entre palavra e imagem
visual parece ser fundamentalmente arbitrária.
A
peinture-poésie
de René Magritte acena para a
Pop Art.
Uma pintura como
A Traição das Imagens
[1928-1929]
contém o que parece ser uma réplica
realística de um grande cachimbo contra um fundo
em branco. Abaixo da tela aparece a legenda
Ceci
n’est pas une pipe
49
. Mas, como argumenta William
Rubin, a pintura não é tão simples como parece à
primeira vista, pois “a mera reprodução de qual-
quer objeto tridimensional em uma superfície plana
delimitada – ou seja, sua transposição em imagem
– engendra automaticamente uma série de asso-
ciações estéticas que não guardam relação direta
com o significado daquele objeto enquanto objeto
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 191-245, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.50654]
217
[RUBIN, 1967, p. 94]. Em outras palavras, a imagem
do cachimbo não equivale a um cachimbo real. A
legenda didática
Ceci n’est pas une pipe
complexi-
fica o esquema, pois a palavra
pipe
libera diferentes
sinais em relação à imagem do cachimbo e ao ca-
chimbo real. Embora limitada, uma ressonância se
estabelece, portanto, entre imagens verbal e visual.
Contudo, os poemapinturas mais interessantes do
Surrealismo são os de Max Ernst, nos quais palavra
e imagem não se encontram meramente justapos-
tos como nas colagens de Magritte ou Picabia, mas
fundidos de maneira a formar o que Lucy Lippard
descreveu como uma “afirmação genuinamente
intermediária
50
”. Em um ensaio denominado
Para
além da pintura
, escrito em meados dos anos 1930,
Ernst define a colagem como uma “composição
alquímica de dois ou mais elementos heterogêneos
cujos resultados de sua inesperada reconciliação
caminham [...] em direção à confusão sistemática
e à ‘desordem dos sentidos’ [Rimbaud], ao acaso
ou ao desejo do acaso
51
”. A “palavra colagem”
favorita de Ernst [a palavra-chave que o artista
utilizava como guia para o processo de execução
da colagem] é
phallustrada
, que ele definiu como
“um produto alquímico composto dos seguintes
elementos: uma
autoestrada
, uma balaustrada, e
um certo número de falos”. Assim, a colagem Dada
O Chapéu faz o homem
[Fig. 2] é, nas palavras de
Lippard, uma “
phallustrada
em todos os sentidos,
o jogo visual prolongado através dos jogos verbais
na inscrição que acompanha a imagem: “
Bedeckt-
samiger stapelmensch nacktsamiger wasserformer
[‘edelformer’] kleidsame nervatur auch UMPRESS
NERVEN! [C’est le chapeau qui fait l’homme, le style
c’est le tailleur
]”
52
.
É praticamente impossível traduzir o trecho para o
português, uma vez que cada palavra é um trocadi-
lho ou apresenta um duplo sentido:
Bedecktsamiger
significa “coberto” mais “semeado” [“coberto de
sementes?”];
edelformer
combina o sentido de
edel
[elevado, nobre, precioso, aristocrático] com cono-
tações eróticas pois “edle Teile” são partes íntimas,
e portanto “edelformer” pode dar a entender tanto
aquele/a que tem elegantes genitais” como a pes-
soa que observa as formas ou que cria elegância.
A colagem em si é uma página de um catálogo de
chapéus, transformada através de aquarela, lápis,
tesoura e cola em uma série de vinhetas esculpidas
com características mecânicas, orgânicas, cartu-
nescas e até mesmo narrativas. Nessa engenhosa
e intrincada
phallustrada
, “palavras e formas sal-
tam e ricocheteiam umas sobre as outras em uma
ação transdisciplinar e referências cruzadas, que
continua a oferecer surpresas muito tempo depois
da decodificação inicial” [LIPPARD, 1970, p. 13].
Ernst levou essa espécie de “arte literária” [obser-
Marjorie Perloff, Poeta entre pintores.
218
va-se que não se trata de uma ilustração no sentido
convencional] ainda mais longe em
La Femme 100
têtes
[A Mulher Cem Cabeças], uma “novela-cola-
gem” na qual o artista coleta uma série de xilogra-
vuras encontradas em revistas e as corta de forma
a descobrir uma nova “realidade” figurativa através
do encontro ao acaso de imagens previamente não
relacionadas. A cada imagem resultante do pro-
cesso foi atribuída uma legenda poética. Tomadas
isoladamente, nem a imagem nem a legenda são
capazes de
transmitir o “en-
redo”: na verda-
de, nas pala-
vras de Lucy
Lippard, elas
oferecem “um
duplo ponto de
vista que forma
uma unidade
estereofônica.
O leitor deve
literalmente ler
entre as linhas
da interação
verbo-visual,
projetando-se a
si mesmo no es-
paço intermediário entre imagem e legenda”. Aliás,
a novela-colagem possui uma estrutura análoga ao
filme: “o deslocamento pictórico da ação e da se-
quência justapostas contra as legendas ambíguas,
aparentemente fora de sintonia, sugere um filme
silencioso com legendas numa língua estrangeira.
De forma impressionante, a mixagem é feita na
mente do leitor” [LIPPARD, 1970, p. 13].
O uso que Ernst faz da novela-colagem e da
phallustrada
, portanto, olha para o futuro, num
aceno aos
poemapintu-
ras de nosso
tempo. Mas
é importante
lembrar que
Ernst era, em
primeiro lugar,
um artista visu-
al, de maneira
que até mesmo
suas colabora-
ções com Paul
Éluard em
Re-
petitions
[1921]
e
Les Malheurs
des Immortels
[1922] não são
Fig. 2. Max Ernst. O Chapéu faz o homem. 1920. Colagem com lápis, tinta e aquarela,
14 x 18 polegadas. Museu de Arte Moderna, Nova York.
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 191-245, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.50654]
219
colaborações verdadeiras, conquanto nesses
livros, Ernst toma um poema de Éluard já previa-
mente escrito para ilustrá-lo. Faltava dar o próximo
passo: que um poeta e um pintor trabalhassem
simultaneamente na mesma área espacial, jogan-
do com palavras e imagens visuais a fim de pro-
duzir novas formas. É o que acontece em
Stones
| Pedras
, a série de litografias feitas por O’Hara e
Rivers entre os anos de 1957 e 1960.
Em um ensaio muito divertido chamado
Vida
entre as pedras
53
[1963], Rivers descreve a origem
dessas litografias. O pintor
relembra que “tudo começou
com essa moça siberiana
chamada Tanya, que veio à
minha casa no verão de 1957.
Naquele momento, sua vida
lhe exigia que se ocupasse de
uma atividade. Ela encontrou
essa atividade e passou a se
dedicar com uma fúria delicada à produção de lito-
grafias... Ela queria que eu trabalhasse em pedras
litográficas com um poeta. Ela tinha a devoção, o
meio e o desejo de imprimir” [RIVERS, 1963, p. 91].
“Tanya, a moça siberiana”, como Rivers a chama
comicamente, era na verdade Tatyana Grossman,
cuja oficina gráfica em West Islip, Long Island, é
hoje em dia internacionalmente conhecida. “Tanto
em termos técnicos quanto em termos estéticos”,
observa Calvin Tompkins em seu estudo das téc-
nicas contemporâneas de impressão, “as publica-
ções da
Universal Limited Art Editions
de Tatyana
Grossman [que contam em seu acervo com mais de
cem litografias de Jasper Johns, além da intrigante
série de litografias em plexiglas
Shades
, de Robert
Rauschenberg] são geralmente reconhecidas por
serem iguais ou superiores a qualquer publicação
que tenha sido feita na Europa ou em qualquer ou-
tro lugar”
54
[TOMPKINS, 1976, p. 58].
Eu fui ver [...] Barney Rosset na Groove Press para perguntar se ele poderia sugerir
um poeta para a realização de um livro como esse [das pedras litográficas] e ele
sugeriu Frank O’Hara. Bom, eu havia lido alguns dos poemas de O’Hara, mas eu
não os entendi muito bem, eram muito abstratos. Alguns dias depois [...] eu fui até
o ateliê de Larry Rivers em Southampton para conversar com Larry sobre essa ideia
de um livro que fosse uma fusão real entre poesia e artes visuais, uma colabora-
ção verdadeira, não apenas desenhos para ilustrar poemas. Depois de ouvir, Larry
gritou “Hey, Frank!” e descendo as escadas apareceu um jovem homem em jeans
azuis. Era Frank O’Hara. [GROSSMAN apud TOMPKINS, 1976, p. 61]
Tatyana Grossman recorda que a escolha de Frank
O’Hara como colaborador de Rivers foi o resultado
de uma série de coincidências oportunas:
Rivers estava maravilhado que aquela “moça siberia-
na não encontrara apenas um pintor e um poeta que
topassem trabalhar juntos, mas dois homens que
realmente conheciam os trabalhos um do outro e
suas trajetórias de vida” [RIVERS, 1963, p. 92]. Apesar
de seus “egos terrivelmente inflados e super-sérios”,
Marjorie Perloff, Poeta entre pintores.
220
Rivers e O’Hara viram o que tinha de ser feito: “Frank
O’Hara não ia escrever um poema ao qual eu acres-
centaria uma imagenzinha bacana depois. Tampou-
co tínhamos a expectativa de que o mundo estivesse
aguardando pela sua poesia e pelo meu desenho,
como as “colaborações” do passado agora parecem
ter feito” [RIVERS, 1963, p. 93].
Trabalhar na pedra litográfica revelou-se um novo
desafio para O’Hara e Rivers, que se viam como
herdeiros da tradição de “Picasso, Matisse, Miró,
Apollinaire, Eluard e Aragon” [RIVERS, 1963, p. 92].
Rivers descreve as dificuldades impostas pela
mídia em questão:
A superfície da pedra litográfica é muito suave. As marcas que vão nela podem ser feitas
com um lápis pastel difícil de manusear, ou com um líquido preto chamado Touche. [...]
Tudo aquilo que você faz é impresso de forma espelhada, oposta à maneira que você
desenhou na pedra. Para que a escrita pudesse ser lida, ela precisava ser feita de trás
pra frente. É quase impossível rasurar, uma das minhas muletas mais importantes. Tecnica-
mente era uma tarefa realmente trabalhosa, que demandava a paciência de uma outra
época. Mas a nossa ignorância e entusiasmo nos permitiu mergulhar nisso sem pensar
sobre os detalhes e as dificuldades. [RIVERS, 1963, p. 93]
A primeira das doze
Stones
foi chamada
US
[Fig.
3]. A descrição detalhada de Rivers sobre a criação
desse trabalho nos ajudará a entender melhor o
processo de colaboração:
Cada vez que nos juntávamos decidíamos escolher um
assunto bem definido e como não havia nada a que
tivéssemos mais acesso do que a nós mesmos, a primei-
ra pedra seria chamada “us”. Ah sim! O título sempre
aparecia primeiro. Era o único jeito que tínhamos para
começar, ‘u’ e ‘s’ foram escritos no centro superior da
pedra de trás para frente. Eu não sei se foi Frank quem
escreveu as letras, mas lembro de decorá-las para que
parecessem algum tipo de bandeira, aproximando-as
das letras do nosso país
55
. Depois coloquei alguma coisa
a ver com a testa de amolar faca e o nariz torto do Frank
e parei. Com a ajuda de um espelho de mão redondo fiz
alguns rabiscos para representar a minha cara. A com-
binação do ‘u’ e do ‘s’ decorados com os nossos rostos
[ver o canto esquerdo superior da imagem] fizeram Frank
escrever “... eles nos chamam os peidões
56
do nosso
país...”. Onde eu podia, fazia alguma coisa que tivesse
relação com o título da pedra e ele ou comentava sobre
o que eu havia feito ou levava isso para um outro lugar.
Por vezes eu indicava uma
área que eu tinha certeza que
iria deixar vazia para que
ele escrevesse ali. Em outros
casos, colocava alguma
coisa na pedra e pedia que
ele escrevesse o que quer
que desejasse, pedindo no
entanto que começasse numa
parte específica da pedra
e terminasse formando um quadrado ou retângulo de
palavras, de maior ou menor tamanho, sobre ou em volta
das minhas imagens. [RIVERS, 1963, p. 93]
Rivers enfatiza o caráter improvisado da colabo-
ração, sua qualidade de evento ou
happening
, em
detrimento de uma “obra de arte” pré-determinada
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 191-245, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.50654]
221
Fig 3. Larry Rivers e Frank O’Hara.
US
, Primeira pedra de
Stones
, 957-60.
Litografia, 19 x 23 ¼ polegadas. Museu de Arte Moderna, Nova York. Doação do Sr. e da Sra. E. Powis Jones.
222
ou planejada. Mas isso não quer dizer que vale tudo:
o relato deixa claro que a cada etapa do trabalho,
os dois artistas dependiam da reação um do outro.
É por isso que constitui um equívoco denominar
Stones
, como faz um crítico do trabalho, “não mais
que frufru para sustentar as brincadeiras de uma
festa avant-garde de duas pessoas, endereça-
da somente àqueles que pudessem reconhecer
nomes, alusões e eventos, bem como o espírito de
exclusividade que eles exaltam
57
” [TILLIN, 1959, p.
62]. Pois, embora
US
não seja uma das melhores
litografias da série – a superfície é um tanto desor-
denada e O’Hara ainda não dominara a técnica do
lettering
, tornando penosa a tarefa de escrever de
trás para frente a menos que se tenha em mãos um
espelho –, ela tem uma estrutura nítida.
O motivo visual predominante é o rosto de Frank de
perfil, com seu nariz torto e sua testa volumosa. Ele
aparece no canto superior esquerdo, próximo ao
esboço de Rivers visto frontalmente; então nova-
mente ao contrário [em uma imagem espelhada
ampliada] no canto superior direito, dessa vez
sombreada e sobreposta a outras formas; nova-
mente no canto inferior esquerdo, onde a cabeça é
virada para baixo, unida a um torso contorcido cuja
pose remete às figuras da
Guernica
de Picasso; e
finalmente, no canto inferior direito encontramos,
incorporada a uma forma de cartão de namorados,
a face do poeta colada à face de Rivers, novamente
vistas de frente e coladas bochecha com boche-
cha. Os rostos são colocados contra um fundo de
garatujas, algumas delas lembram mãos, pernas,
falos e formas animais; outras parecem remeter a
ideogramas chineses.
As imagens verbais de O’Hara estão intimamente
relacionadas a essa paisagem de posturas e ges-
tos. A brincadeira com a palavra
US
não é apenas
uma piada local – “Eles nos chamam os peidões do
nosso país” –, mas o tema de todo o poemapintura,
que retrata o heroísmo e anti-heroísmo de muitas
formas. Assim, bem no centro da composição,
O’Hara coloca uma carta de James Dean [o herói
de Hollywood como uma vítima] a Jane [a pintora
Jane Freilicher], estupidamente vazia: “Tudo óti-
mo por aqui. Como você está?”. A carta é vista de
cabeça para baixo, quase como se tropeçasse na
placa: “Um herói dos anos 50 está chegando em
Hollywood”. Os próprios artistas se veem comica-
mente em descompasso com o seu tempo.
A poesia estava em declínio
A pintura avançava
A gente resmungava
Eram os anos 50
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 191-245, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.50654]
223
Os historiadores da literatura estadunidense são
unânimes em apontar que os anos imediatamente
após a Segunda Guerra Mundial foram um período
fraco para a poesia. O tom do período é transmiti-
do pelas referências que O’Hara faz à discussão
mesquinha – “A Poesia pertence a Mim, Larry, e a
Pintura a você” – e à insinuação fofoqueira – “foi
isso que G disse a P e...”, evidentemente Gertrude
Stein e Picasso
58
, numa linha levando ao balão,
veja aonde isso levou eles”. Os jovens artistas são
presunçosos: “Davam-se festas/ a gente ia” é
ironicamente colocado logo abaixo do que deno-
minamos ‘torso de Guernica’. No centro inferior da
figura, O’Hara insere as frases:
Um chuvisco suave
Nos sentávamos nas escadas
A absoluta simplicidade dessas palavras em que
poeta e pintor se tornam dois seres humanos ordiná-
rios compartilhando um momento de afeto cria um
contraste eficaz com toda a bravata das primeiras
linhas. O mesmo ocorre com a “cena dos namora-
dos” que se encontra justo ao lado desses versos, no
canto inferior direito, e cujo desenho se contrapõe
aos dois retratos de aspecto formal e contornos
agudamente definidos no canto superior esquerdo.
Dessa forma, a composição de
US
revela-se ao
mesmo tempo complexa e engenhosa, palavras e
imagens se fundindo de forma a criar tensões espa-
ciais interessantes. Um poemapintura ainda mais vi-
goroso encontra-se na
Stone
de número 3, intitulada
Rimbaud & Verlaine
[Fig. 4]. Nessa peça, a grafia das
letras está muito mais precisa que em
US
, O’Hara
já havia dominado com maestria a arte da “escrita-
-espelhada”. O relato de Rivers sobre a composição
dessa litografia é particularmente valioso:
Havia uma foto de Rimbaud e seu parceiro depressivo
Verlaine no ateliê. Eu comecei a desenhar olhando para
aquela imagem, quando recordamos uma noite no ballet do
City Center. Durante um intervalo do espetáculo, descemos a
longa escadaria dos assentos baratos ao mezanino, quando
nosso amigo em comum e meu galerista John Myers, queren-
do ser engraçado, gritou para todo mundo ouvir “ali estão
eles todos cobertos com sangue e sêmen”. Essa é uma alusão
a algo dito sobre Rimbaud e Verlaine com o que a esposa
de Verlaine o perseguiu pelo resto de sua vida. Depois de se
lembrar disso, Frank decidiu usá-lo, e em uma delicada série
de duas linhas ele começou a escrever... Suas primeiras duas
linhas tinham a ver com a poesia de Rimbaud e Verlaine. Ele
trouxe as linhas para cima do meu desenho e parou... Então
ele seguiu com alguma coisa sobre a escadaria e o balé.
Eu esperei até ele terminar e no espaço restante [eu dirigi o
espaço entre as linhas e a distribuição geral da composição]
tentei desenhar uma escadaria... não serviu. Aqui eu descobri
o quão difícil era apagar qualquer coisa – para apagar, é
preciso raspar a área com uma lâmina. Por fim, comecei a
fazer balas que também eram pênis com pernas. Uma simples
resposta do Simon ao que Frank havia dito sobre a compa-
nhia de balé. Se existe alguma “arte” nessa litografia, sua
presença continua um mistério. [RIVERS, 1963, p. 94]
Marjorie Perloff, Poeta entre pintores.
224
Fig. 4. Larry Rivers e Frank O’Hara.
Rimbaud & Verlaine
. Pedra 3 de
Stones
, 1957-60. Litografia,
19 x 23 ¼ polegadas. Museu de Arte Moderna, Nova York. Doação do Sr. E da Sra. E. Powis Jones
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 191-245, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.50654]
225
É claro que existe muita “arte” ali. O rascunho de Rim-
baud e Verlaine, um contraste de luzes e sombras,
é brilhantemente representado: um belo Rimbaud
de cabelos claros e olhos visionários é contrastado
à figura um tanto mesquinha, pequena e oriental de
Verlaine. Rimbaud claramente domina a cena, como
ele fez na vida real. As linhas de O’Hara, “O fim de
todas as existências/ é uma caneca de sangue no /
parapeito da janela” são uma alusão à terrível novela
de Bruxelas, quando Verlaine atirou em Rimbaud,
oferecendo um comentário irônico para o retrato
estático e discreto dos dois poetas. O motivo de
sangue retorna então na referência à frase maliciosa
de Myers feita no ballet, um comentário que relacio-
na O’Hara e Rivers a Rimbaud e Verlaine. A imagem
de balas [pênis com pernas] é especialmente eficaz:
essas formas se relacionam não apenas com as
frases “batidas / da companhia de balé”, e os movi-
mentos do poeta e do pintor descendo a escadaria
do City Center
,
mas igualmente com a relação de
Rimbaud e Verlaine, que culminou no episódio dos
tiros. Outros detalhes visuais aparecem: observe a
forma semelhante a uma cadeira no canto esquerdo
da composição, sugerindo o assento de uma galeria,
e a silhueta de uma pessoa sentada logo ao lado, na
plateia. As manchas pretas espalhadas pela super-
fície, por outro lado, lembram manchas de sangue.
Uma quantidade relativamente pequena do espaço
disponível na litografia é utilizada, de forma que
predominam os espaços em branco, reforçando a
referência de O’Hara ao “ar branco” na última linha.
Rimbaud e Verlaine em um poemapintura no sentido
pleno da palavra.
Amor
[Fig. 5], uma das melhores litografias da sé-
rie, relaciona palavra e figura de forma diferente.
“Decidimos”, lembra Rivers, “fazer uma pedra so-
bre o amor. Eu distribuí homens e mulheres sobre
a superfície com algumas genitálias pelo sexo da
coisa. Ele escreveu entre e sobre os desenhos e
nunca sequer mencionou as palavras homem,
mulher, corpos ou sexo” [RIVERS, 1963, p. 97]. A
descrição é bastante precisa. Nos espaços entre
as silhuetas de Rivers de corpos atléticos e mas-
culinos e formas fálicas, O’Hara coloca as pala-
vras de um poema cujo tom rebaixa totalmente a
impressão visual:
Amor
Perder-se
estrelas trepam uma cadeira rota
rubra nas sombras um tesão fraco
e agita uma planta enrugada pela
chuva
Marjorie Perloff, Poeta entre pintores.
226
Fig. 5. Larry Rivers e Frank O’Hara.
Love | Amor
. Pedra 4 de
Stones
, 1957-60. Litografia, 19 x 23 ¼ polegadas. Museu de Arte
Moderna, Nova York. Doação do Sr. E da Sra. E. Powis Jones.
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 191-245, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.50654]
227
Fig. 6. Larry Rivers e Frank O’Hara.
Música
. Pedra 6 de
Stones
, 1957-60. Litografia, 19 x 23 ¼ polegadas.
Museu de Arte Moderna, Nova York. Doação do Sr. e da Sra. E. Powis Jones.
228
Como de costume, aqui O’Hara corta os versos
em junções estranhas, de forma que “um tesão
fraco” pertence a “nas sombras” ao invés de “se
agita uma planta”. O tom é melancólico, triste,
resignado. Essa estrofe, por sua vez, modula
duas passagens escritas em dicção paródica:
onde a penumbra / cresce até feder / como a
terra na lua”, e “sem luz a flecha veste seu suspiro
de abismo e suas mágoas de neve”. A estranha
tensão entre o verbal [“belas” imagens, rimas,
sonoros sons vocais] e o visual [super homens de
ombros largos, genitália gigante, um chapéu alto]
cria uma visão delicadamente ambígua de
Amor
.
O leitor-observador é confrontado por sinais con-
traditórios que capturam a atenção.
Nem todas as
Stones
são tão interessantes
como as três que eu abordei aqui.
Springtemps
,
a segunda da série, consiste em um autocontido
poema de O’Hara para Joseph Rivers à esquerda,
e imagens borradas, semi-abstratas de flores,
borboletas e corpos humanos à direita; nem a
imagem nem o poema parecem ganhar muito
com essa justaposição. Novamente,
Música
, a
sexta pedra [Fig. 6] é, estritamente falando, um
poema ilustrado, ao invés de um poemapintura. A
metade inferior desta litografia reproduz o poema
Students
de O’Hara [1971, p. 290]; acima do texto,
Rivers coloca o que ele chama de “sua própria
versão do Batman:
Violino-man
”. O próprio pintor
pontua prudentemente que essa pedra “é um
pouco mais à moda antiga: nosso estilo não inte-
grado”. Nesse caso, Frank já havia escrito o po-
ema e pediu a Larry que respondesse. “Um bom
poema”, disse Rivers, “mas para o tipo de mente
que eu tenho, inútil” [RIVERS, 1963, p. 96].
A questão aqui não é tanto saber se Rivers gostou
do poema, mas de que se tratava de uma obra
já finalizada, condição que deixa o pintor sem
qualquer outro papel que não o de um ilustra-
dor. A verdadeira colaboração artística deve, no
entanto, envolver simultaneidade. Uma das mais
encantadoras
Stones
é
Melancolia Café
[Fig. 7],
que contém imagens semi-abstratas de itens do
café da manhã como ovos, torradeira, queima-
dores a gás, frigideiras e uma mesa. Essas ima-
gens são distorcidas como se sua visão tivesse
sido borrada pela sonolência ou pela ressaca.
Tudo na cena parece desconexo: nas palavras
de O’Hara, “o ovo silencioso pensa / o ouvido da
torradeira espera”. A última linha resume tudo:
os elementos de descrença são muito fortes pela
manhã”. Aqui, poeta e pintor parecem estar na
mesma frequência.
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 191-245, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.50654]
229
Fig. 7. Larry Rivers e Frank O’Hara.
Melancholy Breakfast
|
Melancolia Café
. Pedra 7 de
Stones
, 1957-60.
Museu de Arte Moderna, Nova York Doação do Sr. e da Sra. E. Powis Jones.
230
Passar de
Stones
a
Poemapinturas
– conjunto de
colaborações realizadas por O’Hara e Norman
Bluhm em 1960
59
– é dar um salto rumo a um mun-
do pictórico muito mais lírico, delicado, efêmero,
mas igualmente interessante. Bill Berkson descreve
a gênese dos
Poemapinturas
da seguinte forma:
Em uma triste tarde de domingo em outubro de 1960, o pintor Norman Bluhm e
Frank O’Hara, poeta e autoconfesso balayeur des artistes, encontraram-se no ateliê
de Bluhm no velho Edifício Tiffany da Park Avenue South, e como o péssimo tempo
não estava ajudando nem os humores nem a conversação, decidiram embarcar em
um projeto do qual já haviam conversado há algumas semanas. Horas depois, eles
haviam feito esses 26 poemapinturas. [LOEB STUDENT CENTER
60
, 1967]
Em uma crítica de
Poemapinturas
para a revista
Art News,
John Perreault sugere que os dois artis-
tas criaram a série “de uma única tacada, em um
frenesi de criatividade semelhante a dois monges
Zen em uma extravagante dança das estações
61
[PERREAULT, 1967, p. 11]. Na verdade, não foi bem
assim que aconteceu. Em uma entrevista, Norman
Bluhm me contou uma versão bem menos român-
tica: poeta e artista demoraram muitos dias [e não
apenas algumas horas!] para completar a série de
Poemapinturas
. Em seguida transcrevo o seu relato:
Frank e eu gostamos de música. Costumávamos nos encontrar
nos domingos pela manhã no meu ateliê, escutar música e
conversar olhando para as pinturas, e então ir para a mi-
nha casa e escutar gravações. Um dia, ouvindo uma ópera
[Toti del Monte, a famosa soprano de 300 libras, cantando
Madame Butterfly], eu disse a Frank: “Eu tenho todo esse
papel, vamos colocá-lo na parede”. Foi então que decidimos
que gostaríamos de ouvir música e brincar com palavras e
pintura. Mas não era um projeto sério. Apenas queríamos
fazer alguma coisa enquanto a música rolava. Por exemplo,
se ouvíamos uma sinfonia de Prokofiev, você poderia sentir as
botas na minha pintura. [BLUHM, 1975]
Bluhm insiste que a música
era a força motriz por trás da
colaboração. Italiano pelo
lado materno, Bluhm quise-
ra ser um cantor de ópera
quando criança. Frank, por
sua vez, quisera ser um pianista em uma or-
questra. Para ambos os artistas, a música era
extremamente importante: eles acreditavam que
todas as artes se relacionam e viam a separa-
ção moderna dos gêneros artísticos como algo
desesperadoramente limitante.
Bluhm recorda que o trabalho com os
Poemapin-
turas
foi um evento fantástico, um
happening
e
uma forma de nos divertirmos. Eles foram feitos
como um evento de duas pessoas que guarda-
vam um sentimento especial uma pela outra e
pela arte, pela música e pela literatura”. Quanto à
técnica, “as palavras são mais importantes que os
gestos, então basicamente tentamos manter as
artes como meros gestos [daí a decisão de utilizar
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 191-245, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.50654]
231
apenas o preto e o branco], não uma ilustração do
poema. A ideia era que o gesto se relacionasse,
de forma abstrata, à ideia do poema. Raramente
fazíamos uma coisa
à la Dali
, onde você recolhe o
drip
e joga ele no mundo”.
Fig. 8. Norman Bluhm e Frank O’Hara.
Homenagem a Kenneth Koch
.
1960.
Guache e nanquim, 19 ½ x 14 polegadas. Coleção Universidade de
Nova York.
Às vezes Bluhm fazia um desenho e O’Hara inven-
tava um conjunto de palavras para aquele dese-
nho; em outros casos, o procedimento era inver-
tido. Mas cada
poemapintura
, Bluhm me contou,
surgiu de uma relação cômica com pessoas que
conhecíamos, a partir de situações particulares.
O tom era cômico ou satírico, numa espécie de
ópera-bufa. Nós pensamos nossa colaboração
como um evento teatral, um passatempo. Fize-
mos isso por diversão, esquecendo das misérias
e dos casos amorosos – nossos problemas mais
sérios”. Vejamos, por exemplo,
Homenagem a
Kenneth Koch
[Fig. 8]. A imagem dispõe uma lon-
ga forma abstrata gravada com tinta preta, com
um
drip
espesso de tinta branca atravessando
sua extensão. No canto direito, na bela caligrafia
de O’Hara, lemos o seguinte poema:
Parado de pé
do lado de fora da sua janela
que sorte a minha
você tinha acabado de abri-la
mais tarde pensei em você
no estacionamento,
minha cabeça dentro do capô
fazia muito calor
você também estava dentro do capô?
Marjorie Perloff, Poeta entre pintores.
232
Esse poema encantadoramente absurdo, no qual
dois amantes anseiam por um encontro dentro
do capô escaldante de um carro, foi inspirado, de
acordo com Bluhm, pelo seguinte incidente: “uma
vez, nós [Kenneth Koch e eu] buscamos duas ga-
rotas em uma festa. Ele terminou com a mais bela
das duas, mas ela tinha pés grandes. Eu contei
a Frank sobre isso e desenhei a forma de um pé
[a grande forma abstrata em tinta preta]”. Frank
respondeu escrevendo um tolo poema de amor,
apropriado para a ocasião.
Ou de novo,
Bem vindo a Kitty Hawk
[Fig. 9] evi-
dentemente surgiu de uma conversa sobre aviões.
“Meu pai”, lembra Bluhm, “era um aviador, e eu
contei para o Frank uma história de um mecânico
que construiu seu próprio avião e quando ele atin-
giu 200 pés, a engrenagem partiu e o avião bateu”.
Essa não é exatamente uma história feliz, mas a
forma negra que Bluhm desenha [ele a chama de
um mau avião] parece um falcão. Da mesma for-
ma, o texto de O’Hara é muito divertido.
Poucos dos
Poemapinturas
contêm poemas de
fato. O
Poemapintura n. 3
ostenta a única pala-
vra
Busto
; o n.6 apresenta as letras b-a-n-g nos
quatro cantos da tela, ao redor de uma figura que
parece um cômico falo peludo. Muitos
Poema-
pinturas
não são mais que piadas internas: o n.
19 se refere a Chicago por se tratar do local de
nascimento de Bluhm; n. 13 contém a frase “ven-
de-se morbidade”, que como Bill Berkson afirma,
se refere à década em que Bluhm viveu em Paris.
O
Poemapintura n. 5
, que não contém imagens
visuais, é praticamente uma transcrição direta
de uma conversa de O’Hara: as palavras “estou
tão cansado de todas as festas, parece janeiro
e suas ressacas à beira da praia” encontram-se
rabiscadas pela superfície da imagem.
Individualmente, esses
Poemapinturas
podem
parecer irrelevantes – uma ou duas pinceladas
Fig. 9. Norman Bluhm e Frank O’Hara.
Welcome to Kitty Hawk
. |
Bem-vindo a Kitty Hawk
1960. Guache e nanquim, 19% x 14”. Coleção Universidade de
Nova York.
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 191-245, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.50654]
233
Você come toda hora,
você até sabe como usar
os hashis
então porque você não me escreve
uma carta
esquece
de tinta, algumas linhas e jatos recurvados, e
uma frase como “colhendo e plantando/plantan-
do e colhendo... Skylark”, como no de número 1.
Mas John Perreault está certo ao comparar essas
colaborações às “pegadas de um ballet selva-
gem”
63
[PERREAULT, 1967, p. 11]. Como desenhos
nanquim chineses, a série possui um charme líri-
co um tanto diferente do tom sutil e complexo de
Stones
. Por um lado, O’Hara agora tem a chance
de apresentar sua bela caligrafia, aspecto que a
técnica de produção de litografias havia tornado
impossível, forçando o poeta a utilizar letras de
imprensa. A combinação das letras cursivas de
O’Hara com os desenhos ondulados, com formas
de ferradura e densas manchas de tinta branca
de Bluhm – sugerindo gestos fugazes – fazem
da série de
Poemapinturas
verdadeiras obras de
arte mesmo se suas mensagens dificilmente os
qualificam como “poemas”.
Mão
, por exemplo
[Fig. 10], apresenta a forma de um punho fecha-
do, contornado por grossas camadas de preto,
com um respingo de branco na parte central da
tela. A palavra
hand
aparece no canto superior
esquerdo. Cada um dos cinco “dedos” contém
uma pequena e delicada escrita:
O “esquece” que fecha o poema é posicionado
dentro do polegar, de forma que ao chegarmos ao
último dedo, também chegamos ao final do peque-
no poema Dada de O’Hara com seu endereçamen-
to ingênuo à mão de alguém. Tomado em si mes-
mo, trata-se de um poema trivial, mas a disposição
de palavras e frases dentro dos grossos contornos
pretos em forma de dedos e o contraste entre preto
e branco criam uma interessante configuração
espacial. De fato, as 26 colaborações deveriam ser
tomadas antes como partes de um todo integrado
– um evento total – do que como pinturas separa-
das. Sua inventividade, sagacidade e encanto vão
aparecendo à medida que estudamos a relação do
gesto ao gesto, da pegada à impressão digital, da
frase lírica à palavra de quatro letras, do provérbio à
insinuação sexy, dos respingos brancos sobre a tela
às negras letras em nanquim, e assim por diante.
Marjorie Perloff, Poeta entre pintores.
234
Fig. 10. Norman Bluhm e Frank O’Hara.
Hand
|
Mão,
960. Guache e nanquim. 19 ¼ x 14 polegadas. Coleção Universidade de Nova York.
Fig. 11. Joe Brainard e Frank O’Hara.
Sem título
. 1964. Colagem e nanquim sobre papel, 10 x 8 polegadas. Coleção do Espólio de Frank O ‘Hara.
As “colaborações” dos anos 1960 com artistas
como Joe Brainard e Jasper Johns não são, em
sentido estrito, poemapinturas. A colagem em
papel e tinta sem título [Fig. 11], por exemplo, é uma
da série de vinte e poucos quadrinhos Pop que
O’Hara fez com Joe Brainard entre 1963 e 1966
64
.
Ela combina papéis de parede cafona nas cores
azul-e-branco com pedaços de uma nota de um
dólar com a figura de George Washington, um ticket
para o Metrô de Paris, uma peça de bloco de notas,
cartas com o endereço da 9
th
Street, e bem no
centro, uma página dos quadrinhos Nancy com
um balão onde se lê: “quer uma coca?” Embora
divertidas, as justaposições são bastante óbvias.
Perde-se aqui intrincado contraponto verbo-visual
de Stones ou o frágil lirismo dos Poemapinturas.
Nesses quadrinhos, voltamos ao mundo de Picabia
e Schwitters: a Colagem Nancy é uma montagem
interessante, mas que tenta e alcança menos do
que as colaborações anteriores de O’Hara.
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 191-245, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.50654]
235
Fig. 12. Jasper Johns.
Skin with O’Hara Poem
|
Pele com Poema de O’Hara.
1963-1965.
Litografia, impressão em tinta preta, 22 X 34 polegadas. Museu de Arte Moderna, Nova York.
Doação da Fundação Celeste e Armand Bartos.
236
A conhecida obra de Jasper Johns Pele com Poe-
ma de O’Hara [1963-65] nos retira definitivamente
do campo dos poemapinturas [Fig. 12]. A litografia
contém as impressões digitais de duas mãos,
uma de cada lado. No centro, encontram-se duas
formas escuras borradas, sugerindo contornos
faciais; borrões pretos atravessam a superfície
conectando as mãos às formas faciais. Sobre a
mão direita, Johns reproduziu o texto de As nuvens
amolecem [O’HARA, 1971, p. 474], datilografado em
escala menor. Os últimos versos aparecem leve-
mente recobertos por manchas pretas. O poema
toma parte no jogo de achado-e-perdido: ora o
vemos [embora à primeira vista o observador mal
se dê conta da sua existência] ora não o vemos
mais. É uma composição excitante, combinando
a figuração realista e o jogo Dada, mas trata-se
de uma tela elaborada por Jasper Johns, não uma
colaboração. Previamente executado, o poema é
usado como parte de uma estrutura espacial
65
.
Podemos então concluir que o poemapintura, no
sentido de uma colaboração genuína, apresenta
desafios e dificuldades incomuns para o artista.
Peter Schjeldahl
66
o chama de um “exótico híbri-
do de dois dos mais solitários e tradicionalmente
‘belos’ gêneros das artes”, e Bill Berkson
67
observa:
colaboração entre dois artistas sérios [mesmo no
melhor dos espíritos] envolve sempre algum tipo de
competição. A tarefa pode pouco a pouco desan-
dar em uma corrida para estar sempre um passo à
frente. Pintando uma grossa linha preta no meio da
folha, o artista A dá a entender ao artista B que ele
sabe o que a musa de B está aprontando e lhe pede
desculpas pela sujeira” [BERKSON, 1960].
O presente capítulo concentrou-se na produção
de O’Hara enquanto “poeta entre pintores”. Para
dar cabo desta tarefa, acabei negligenciando suas
colaborações com compositores, coreógrafos e ci-
neastas. Sem dúvida, filmes como
A última camisa
limpa
[
The Last Clean Shirt
], de Alfred Leslie, para
o qual O’Hara escreveu legendas a fim de criar um
duplo cenário, ou o texto que ele providencia para
os
Quatro Diálogos
[
Four Dialogues
]
de Ned Rorem
merecem estudos aprofundados. Mas a pintura
possui um lugar especial no universo poético de
O’Hara, de forma que busquei enfatizar seu lugar
no desenvolvimento artístico do poeta. O próprio
O’Hara traçou as distinções cruciais em uma carta
escrita a Gregory Corso em 1958:
Muitas pessoas que você conhece andam por perto
ultimamente, Kerouac – que eu só vi uma ou duas vezes,
mas de quem gostei muito – Howard Hart e [Philip]
Lamantia estão lendo com um trompetista francês e se
chamam de Jazz Poetry Trio... Eu não entendo bem o
seu estímulo pelo jazz, mas é provavelmente o mesmo
que sinto pela pintura... quero dizer, você não pode
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 191-245, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.50654]
237
estar dentro o tempo todo, fica tudo muito chato e
você não pode se dar ao luxo de ficar entediado com
poesia, então você arranja um entusiasmo secundário
como símbolo do primeiro – por exemplo, percebo que
o que Kerouac e “eles” sentem como o conteúdo do
jazz em relação ao seu próprio trabalho [aspirações],
eu sinto pela pintura com a diferença correspondente
em termos de aspiração. Quero dizer que onde eles
têm o Bird [Charlie Parker] como inspiração, eu tenho
Bill de Kooning: em parte porque sinto que o jazz é
bonito o bastante ou até bonito demais, mas não cruel
o suficiente; em parte porque onde o jazz é fugaz [no
tempo] e portanto comovente, de K é derradeiro, e
portanto trágico... Além disso, eu não preciso ver o que
eu admiro enquanto eu escrevo e também preferiria não
ouvi-lo, o que parece ser inevitável com o jazz uma vez
que mesmo que eles não assoviem enquanto trabalham
eles leem com jazz. Talvez eu devesse tentar fazer uma
leitura em algum lugar de frente para um Pollock ou
um de K... Acho que meu ponto é que a pintura não se
intromete na poesia
68
. [O’HARA, 1958]
Ler um poema de frente para um De Kooning: esse
é o tipo de aspiração que esperamos de O’Hara.
Mas note que ele não deseja que a pintura “se intro-
meta na poesia”, permanecendo como seu “entu-
siasmo secundário”. Quando perguntado por Lucie-
-Smith se ele alguma vez já quis ser pintor, O’Hara
respondeu que não, mas admitiu “brincar” com a
pintura toda vez que se encontrava esperando por
alguém em um ateliê. “Eu posso fazer alguma coisa
pequena, sabe? Mas eu nunca fiz algo realmente
sério porque... me parece que a pintura e a escultu-
ra exigem tanta concentração durante um período
tão grande de tempo que não tenho certeza se eu
posso fazer isso, ao passo que é possível escrever
relativamente rápido” [O’HARA, 1975, p. 21].
O que isso significa? Nada além do fato de que o
talento particular do poeta não estava para a pintu-
ra. Certamente a afirmação de que a pintura é mais
difícil e consome mais tempo que a escrita poética
é irônica, pois muitos pintores do Abstracionismo e
da
Pop Art
com quem O’Hara convivia dificilmente
exerciam a “concentração” durante longos períodos
de tempo à qual ele se refere aqui. E em todo caso,
a pergunta “Por que você não é um pintor?” deve ter
soado maravilhosamente absurda a O’Hara. Sua
pseudo-resposta a essa pergunta sem sentido se
tornou o tema de um de seus maiores poemas:
PORQUE EU NÃO SOU UM PINTOR
Não sou pintor, e sim poeta.
Por quê? Acho que eu preferiria
ser pintor, só que não sou. Bem,
por exemplo, o Mike Goldberg
está começando um quadro. Vou lá.
“Senta e bebe alguma coisa”, ele
Marjorie Perloff, Poeta entre pintores.
238
diz. Bebo. Bebemos. Eu olho
pro quadro. “Você escreveu SARDINHAS.”
Tinha que pôr alguma coisa ali.”
Ah.” Os dias passam e eu
vou lá de novo. O quadro avança,
eu vou embora, e os dias vão
passando. Eu volto. O quadro está
pronto. “Cadê SARDINHAS?”
Só ficaram umas
letras. “Era demais”, diz Mike.
Mas e eu? Um dia eu penso numa
cor: laranja. Escrevo um verso sobre
laranja. E logo é uma página
inteira de palavras, não versos.
Depois outra página. Devia
haver muito mais, não laranja, mas
palavras, sobre o horror do laranja e
da vida. Os dias passam. Está até
em prosa, sou poeta mesmo. Meu poema
está pronto, e ainda nem falei em
laranja. Doze poemas, e o nome é
LARANJAS. E um dia numa galeria
vejo o quadro do Mike: SARDINHAS.
Com alguma frequência, as leituras desse poe-
ma costumam supor que O’Hara está enfatizando
diferenças: um pintor como Mike Goldberg está
constantemente “retirando”, até que nada reste das
sardinhas a não ser as letras, ao passo que o poeta
continua “acrescentando”. Mas numa segunda lei-
tura, torna-se evidente que o poema é uma grande
piada. Se alguém faz uma pergunta estúpida, O’Ha-
ra sugere que merece uma resposta estúpida. Pois
de fato, a arte de Frank revela-se igual à de Mike. Se
a pintura de Mike não contém sardinhas ao final,
também as “Laranjas” de Frank nunca mencionam
a palavra “laranja”. Em ambos os casos, a pala-
vra ou imagem original é o mero gatilho para uma
cadeia de associações que em último caso levam
diretamente à sua própria destruição. O’Hara é um
poeta e não um pintor por nenhuma outra razão
senão a de que é isso que ele é. Mas, sem dúvida,
o poema também diz que a poesia e a pintura são
partes do mesmo espectro, que em uma análise
final sardinhas e laranjas são uma mesma coisa.
É por isso que o dispositivo retórico governando o
poema é a repetição [“Bebo. Bebemos”; “Eu vou em-
bora e os dias vão passando”; “Eu vou lá de novo; Eu
volto”]. Se a arte não tolera divisões, é porque deve
ser vista como processo, não como produto.
[O’HARA, 2017, p. 19]
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 191-245, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.50654]
239
NOTAS
1
Art in America
, v. 53, Out./Nov. 1965, p. 24.
2 Cf. Prefácio de
In Memory of My Feelings. A Selection of
Poems by Frank O’Hara, ed. Bill Berkson,
Nova York: Museum of
Modern Art, 1967.
3 Cf.
Art News
, 66 [jan. 1968], 68. Cf. John Button, “Frank’s
Graça,” Panjandrum, 2 & 3 [1973]: “O seu trabalho no MoMA
foi tirando cada vez mais do seu tempo livre, tempo esse que
poderia estar se dedicando à poesia”.
4 “Four Apartments,” p. 291. Cf. James Schuyler,
Art News
, 73,
maioe 1974, 45: “Frank precisava de um trabalho e sua paixão
pelo museu não tinha ressalvas… além disso, ele era extrema-
mente organizado, com uma memória exemplar”.
5 Em diversos poemas, O’Hara faz alusões à Cedar Tavern,
bar e restaurante da região de Greenwich Village, Nova York,
que servia como local de encontro entre artistas de vanguarda
e escritores da cidade, em especial pintores do Expressionismo
Abstrato e poetas da geração Beat. [Nota da Tradução].
6 Graça Hartigan escreve em uma carta à Bruce Boone, editor
do número especial da Panjandrum dedicada à O’Hara: “O fato
de Frank ser homossexual sempre foi algo compreensível para
mim – eu amo os homens, porque ele não amaria? Isso nunca
interferiu – o que poderia interferir? – no amor que sentíamos um
pelo outro. Não sou a primeira pessoa a dizer que sexo não é
necessariamente amor, ou viceversa”. Em uma entrevista ao mesmo
autor conduzida em 25 de novembro de 1975, Graça Hartigan
deu o mesmo argumento. Entre 1951 e 1960, ela e Frank se viam
ou falavam pelo telefone praticamente todos os dias.
7 A tradução para o português dos poemas ainda inéditos
de O’Hara citados por Perloff se deu, sempre que possível e
respeitando as interpretações da autora, como um exercício
de transcriação. Se por um lado era o nosso desejo enquanto
tradutores aproximar o universo O’Hariano do leitor bra-
sileiro, por outro, interessa apostar na potência da tradução
como dispositivo de endereçamento. Acreditamos que isso se
encontra em consonância com a proposta poética de O’Ha-
ra, marcada pela ênfase no procedimento e na imbricação
entre arte e vida. Assim, seguindo a doutrina do Manifesto
Personism
it puts the poem squarely between the poet and
the person
– tentamos colocar a tradução no espaço preciso
entre nós e o poeta. Quando possível, utilizamos traduções
já publicadas dos poemas, sempre com os créditos devidos.
Os poemas originais em inglês encontram-se nas notas de fim.
[Nota da Tradução]
8 No original:
Grace, / you are the flowergirl on the candled
plain / with fingers smelled of turpentine
9 No original:
Grace destroys/ the whirling faces in their
dissonant gaiety where it’s anxious,/ lifted nasally to the heavens
which is a carrousel grinning/ and spasmodically obliterated with
loaves of greasy white paint and this becomes like love to her,
is what I desire/ and what you, to be able to throw something
away without yawning/ “Oh Leaves of Grass! o Sylvette! oh
Basket Weavers’ Conference!”/ and thus make good our promi-
se to destroy something but not us.
10 Nesse ponto, a autora faz uma alusão ao ensaio
Eros the
Bittersweet,
de Anne Carson. [Nota da Tradução].
11 Tradução de Ricardo Domeneck publicada na revista
Modo de Usar. Disponível em: http://revistamododeusar.blog-
spot.com/2010/03/frank-ohara-1926-1966-postagem.html
Acesso em: 20/06/2021.
Marjorie Perloff, Poeta entre pintores.
240
12 Em uma carta ao autor em 10 de fevereiro de 1976, Graça
Hartigan identifica a primeira pintura como
Ocean Bathers
[1953], coleção de Muriel Newman, Chicago, e a segunda
como
Frank O’Hara and the Demons
[1952], coleção particular
de Graça Hartigan. Hartigan percebe que ambas as pinturas
tentam captar a “postura habitual do corpo de Frank”.
13 No original:
Yes/ like the still center of a book on Joan
Miró/ blue red green and white/ a slightly over-gold edition
of Hart Crane/ and the huge mirror behind me blinking, paint-
-flecked/ they have painted the ceiling of my heart/ and put in
a new light fixture/ and Arte Contemporáneo by Juan Eduardo
Cirlot/ and the Petit Guide to the Musée National Russe/ it is
all blankly defending its privacy/ from the sighing wind in the
ceiling/ of the old Theatre Guild building/ on West 53d Street
/ near the broken promises of casualness/ to get to the Cedar
to meet Grace/ I must tighten my moccasins/ and forget the
minute bibliographies of disappointment/ anguish and power/
for unrelaxed honesty/ this laissez-passer for chance and misery,
but taut/ a candle held to the window has two flames/ and
perhaps a horde of followers in the rain of youth/ as under the
arch you find a heart of lipstick or a condom/ left by the parade/
of a generalized intuition/ it is the great period of Italian art when
everyone imitates Picasso
afraid to mean anything/ as the second flame in its happy reflec-
ting ignores the candle and the wind
. A tradução do poema no
corpo do ensaio limitou-se aos versos citados pela autora.
14 No original:
Why do you play such dreary music/ on
Saturday afternoon, when tired/ mortally tired I long for a little/
reminder of immortal energy?// All/ week long while I trudge
fatiguingly/ from desk to desk in the museum/ you spill your
miracles of Grieg/ and Honegger on shut-ins. // Am I not/ shut
in too, and after a week/ of work don’t I deserve Prokofieff?//
Well, I have my beautiful de Kooning/ to aspire to./ I think it has
an orange/ bed in it, more than the ear can hold.
15 No original:
The eyelid has its storms. There is the opaque
fish-/ scale green of it after swimming in the sea and then sud-/
denly wrenching violence, strangled lashes, and a barbed/ wire
of sand falls to the shore.
16 Em 8 de abril de 1957, O’Hara escreveu para Helen
Frankenthaler em uma carta não publicada: Eu estou finalizando
um poema que escrevi recentemente e queria saber se posso
usar o seu título nele [Blue Territory]. Mas, por favor, se você não
gostar ou se a associação te incomodar de alguma forma...por
favor, me diga e eu posso mudar para “Boo Titulary” ou algo do
gênero… também sempre posso recorrer simplesmente à “Poem”,
como já fiz no passado. Em 25 de setembro de 1964, numa ses-
são de leitura de poesia no Buffalo, gravada por Donald Allen,
antes de ler “Blue Territory”, O’Hara conta que a ideia do poe-
ma surgiu quando viu no Whitney a enorme pintura abstrata de
Helen Frankenthaler de mesmo nome, embora ele não soubesse
muito bem porque isso aconteceu.
17 Preferimos manter como no original
tone poem
, por acredi-
tamos que a possível tradução de poema sinfônico/musical
poderia indicar outros sentidos [Nota da Tradução].
18
Dada, Surrealism, and Their Heritage
[Nova York: Museu
de Arte Moderna, 1968], p. 148. Ver também Diane Waldman,
Joseph Cornell
[Nova York: Braziller, 1977].
19 No original:
Now that our hero has come back to us/ in his
white pants and we know his nose
trembling like a flag under fire,/ we see the calm cold river is
supporting/ our forces, the beautiful history.// To be more revo-
lutionary than a nun/ is our desire, to be secular and intimate/
as, when sighting a redcoat, you smile/ and pull the trigger.
Anxieties/ and animosities, flaming and feeding// on theoretical
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 191-245, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.50654]
241
considerations and/ the jealous spiritualities of the abstract/ the
robot? they’re smoke, billows above/ the physical event. They
have burned up./ See how free we are! as a nation of per-
sons.// Dear father of our country, so alive/ you must have lied
incessantly to be/ immediate, here are your bones crossed/ on
my breast like a rusty flintlock,/ a pirate’s flag, bravely specific//
and ever so light in the misty glare of a crossing by water in winter
to a shore/ other than that the bridge reaches for./ Don’t shoot
until, the white of freedom glinting/ on your gun barrel, you see
the general fear.
20 Tradução de Adelaide Ivánova publicada no Suplemento
Pernambuco. Disponível em: http://www.suplementopernam-
buco.com.br/edi%C3%A7%C3%B5es-anteriores/78-tradu-
cao/1679-dois-poemas-pol%C3%ADticos-de-frank-o-hara.html.
Acesso em: 20/06/2021.
21 No original:
— I dress in oil cloth and read music/ by Gui-
llaume Apollinaire’s clay candelabra.
22 Ver, por exemplo,
Design Etc.
, [O’HARA, 1975, p. 33] e
Apollinaire’s Pornographic Novels
[O’HARA, 1975, p. 156-159].
Nessa entrevista, de 25/11/1975, Grace Hartigan me confessou
que Frank costumava dizer que ele não queria viver mais do que
Apollinaire havia vivido. O poeta francês morreu aos 40 anos, e,
numa estranha coincidência, o mesmo aconteceu com O’Hara.
23 APOLLINAIRE, Guillaume.
Apollinaire on Art, Essays and
Reviews
1901-1918
,
Coleção
The Documents of 20th Century Art
.
Nova York: Viking, 1971, p. xxix.
24 Ensaio publicado na revista
Kulchur
, v. 3, no. 9 [Primavera
1963]. In: O’HARA, Frank.
Standing Still and Walking in New
York
. Bolinas, Calif.: Grey Fox Press, 1975, p. 140.
25 O conceito de
flat sculptures
diz respeito às icônicas pintu-
ras de Alex Katz, realizadas geralmente em fundos monocromáti-
cos, sejam eles brancos ou em cores vivas, e na ausência de
tridimensionalidade nos retratos e paisagens, enfatizando o es-
quema de estrutura plana da composição. [Nota da Tradução]
26 John Canaday era crítico de arte do Times; Emily Genau-
er escrevia para o Herald Tribune. Sobre ambos, O’Hara
escreveu: “[...] em todas as temporadas, ambos reservavam
uma semana, no mínimo, para se dedicarem à escrita de
colunas inteiras que falassem sobre suas dificuldades físicas
de locomoção até as galerias. O senhor Canaday nitidamente
não se cansava de lamentar o transporte público da Madison
Avenue e a senhora Genauer, à procura do Delancey Street
Museum, sendo auxiliada pelo serviço de táxi e dos balconi-
stas das lojas de delicatessen em sua franca apreciação de
um safari tão distante quanto a Houston Street. Nenhum deles
parece ter um senso de direção melhor do que o artístico. Junto
disso a especialidade do senhor Canaday tem sido a sagaz
desconfiança da estratégia de lobo em pele de cordeiro, uma
estratégia destinada exclusivamente aos expressionistas-abstra-
tos que possuem a mesma crença simplista, de que, aparente-
mente, nenhum artista figurativo jamais tenha desejado vender
uma pintura” [O’HARA, 1975, p. 144-145].
27 Cf. APOLLINAIRE, Guillaume. “Watch Out for the Paint! The
Salon des Independants. 6,ooo Paintings are Exhibited” [1910],
In: APOLLINAIRE, Guillaume.
Apollinaire on Art, Essays and
Reviews
1901-1918
,
Coleção
The Documents of 20th Century Art
.
Nova York: Viking, 1971, pp. 64-65.
28 Ver Amy Golden,
Art in America
, v. 63, mar.-abr. 1975, p.
41; Eleonor Dickinson,
San Francisco Review of Books
, v. 1, n. 4 [A
1975], 6, p. 18-19. Eu parto da opinião inversa em minha resenha
de
A Cin The New Republic
, v.1, mar. 1975, p.23-24.
29
Set piece
se refere à composição artística, literária ou não
que possui atribuições ordenadas e especificadas numa estrutura
fixa. [Nota da tradução]
Marjorie Perloff, Poeta entre pintores.
242
30 Cf. Introdução ao catálogo da exposição
New Spanish
Painting and Sculpture
. Nova York: Museu de Arte Moderna,
1960, p. 10.
31 Cf.
Art News
, v. 52, dez. 1953, p. 42.
32 Cf.
Art News
, v. 53, jan. 1954, p. 64.
33 Indizível –
unspeakable
– é termo utilizado de forma
recorrente na crítica literária norte-americana para se referir à
obra do escritor Henry James. Em livros como
A outra volta do
parafuso
, o estilo do prosador – reconhecido por suas histórias
de terror – se caracteriza por limitar o relato ‘físico’ dos eventos
da narrativa, de forma a dar espaço para que a imaginação do
leitor possa cocriar as cenas de horror, imaginando o indizível.
[Nota da Tradução]
34 Cf.
Art News
, v. 54, fev. 1955, p. 53.
35 Cf.
Art News
, v. 53, abr. 1954, p. 47.
36 Ver, por exemplo, Allen Weller, Art Journal, 20 [Outono
1960], 52-56. Ressalvas semelhantes podem ser feitas sobre
o curto ensaio de O’Hara “Jackson Pollock 1912- 1956”. Em
New Images of Man
, O’Hara chama as pinturas preto-e-bran-
co de Pollock feitas em 1951 de “ideografias de um mundo
subjetivo que não conhecemos [...] os Cantos de Maldoror da
arte norte-americana”. Cf.
New Images of Man
, ed. Peter Selz
[Nova York: Museu de Arte Moderna, 1959, p. 123-128].
37
Horizon
, de Set. 1959, publicado também em
Art Croni-
chles
, 106-120. Em entrevista televisiva de O’Hara com David
Smith, o poeta identifica na vida de Smith “a tragédia ameri-
cana ao contrário” porque Smith foi “um herói à la Henry James
que ao invés de ter sido corrompido pela Europa, conseguiu
influenciá-la”, um “Thomas Wolfe, cujos sonhos estranhamente
se realizaram.” A entrevista sugere que Smith não via nada de
abstrato” em suas esculturas. Ele as entende como “femininas”,
dizendo “Eu gosto da presença desse ar feminino, por isso não
faço figuras masculinas”. O’Hara, então, lhe responde: “elas
parecem amigas que vieram para Nova York. Estão aliviadas só
de não estarem mais no meio do caminho.” Barnett Newman foi
entrevistado para a mesma série.
38 Cf. Sam Hunter,
Larry Rivers
, com uma
Memória
por Frank
O’Hara e uma
Declaração do Artista
, exposições do Poses
Institute of Fine Arts, Brandeis University, Waltham, Mass., 1965.
Hunter traça uma breve cronologia [p. 45-46], e sua introdução
é bastante útil.
39 Cf. Sam Hunter,
Larry Rivers
, p. 20.
40 Rivers utiliza a expressão
smorgasbord
, uma espécie de
buffet livre sueco em que uma refeição inteira é servida em vários
pratos.
41 Larry Rivers escreveu: “seu longo e maravilhoso poema
Second Avenue, de 1953, foi escrito no meu ateliê de gesso,
olhando essa avenida de cima. Uma madrugada eu estava tra-
balhando em uma escultura dele. Entre as poses, ele terminava o
seu longo poema. Três policiais gordos viram a luz acesa e sub-
iram para fazer aquela cena ‘você chama isso de arte? o que
você tá fazendo aqui?’ que todo artista de Nova York já deve
ter vivenciado.” Cf.
Life Among the Stones
, Location [Primavera,
1962]; e também em
The Collected Poems of Frank O’Hara
,
[O’HARA, 1971, p. 529].
42 No original:
Candidly. The past, the sensations of the
past. Now!/ in cuneiform, of umbrella satrap square-carts with
hotdogs/ and onions of red syrup blended, of sand bejewelling
the prepuce/ in tank suits, of Majestic Camera Stores and
Schuster’s,/ of Kenneth in an abandoned storeway on Sunday
cutting even more/ insinuating lobotomies of a yet-to-be-mo-
re-yielding world/ of ears, of a soprano rallying at night in a
cadenza, Bill, of/ “Fornications, la! garumph! tereu! lala la!
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 191-245, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.50654]
243
vertigo! Weevy! Hah!”,/ of a limp hand larger than the knee
which seems to say “Addio”/ and is capable of resigning from
the disaster it summoned ashore./ Acres of glass don’t make the
sign clearer of the landscape/ less blue than prehistorically, yet
less distant, eager, dead!
43 No último verso do poema original –
less blue than prehis-
torically, yet less distant, eager, dead!
– a palavra
blue
remete
tanto à cor azul – predominante na
2nd Avenue de Rivers
, a
que a autora se refere – como à tristeza da paisagem. [Nota da
tradução]
44 A autora sugere uma brincadeira entre os sentidos do ter-
mo
after
, que pode ser tanto um indicativo de tempo – poemas
depois de pinturas – como de sequencialidade – poemas em
seguida a pinturas – ou de homenagem – poemas em homena-
gem a pinturas [Nota da Tradução].
45 Ver Roger Shattuck,
Guillaume
Apollinaire
[Nova York:
New Directions, 1971], p. 18-20.
46 Reproduzido em Rubin,
Dada, Surrealism and their Herita-
ge
, 1967, p. 27-28.
47 Motherwell,
The Dada Painters and Poets
,
An Anthology,
tradução de Ralph Manheim. Nova York: Wittenborn, Schultz,
Inc., 1951, p. 62.
48 Ibid., p. 56, 274. Em
The Grand Manner of Motherwell
[1965], O’Hara escreve: “Eu conheci
Motherwell pela primeira vez em East Hampton, provavelmente
no ano de 1952. Quando conversamos mais tarde, era sempre
sobre poesia: Apollinaire, Baudelaire, Jacob, Reverdy, Rilke [não
muito], Lorca [um monte], e também chegamos a conversar sobre
Wallace Stevens e William Carlos Williams. Eu ficara extrema-
mente impressionado pela série de Documentos da Arte Mod-
erna [
Dada Painters
é o nº 8 da série] que Motherwell havia
editado [na verdade, eles eram o meu evangelho e o de muitos
outros poetas]”. O’Hara, Frank.
Standing still and walking in New
York
. Bolinas, Califórnia: Grey Fox Press, 1975, p. 176.
49 Rubin.
Dada, Surrealism
, 1967, p. 96, prancha 129.
50 Conforme o artigo de Lippard “
Max Ernst: Passed and
Pressing Tensions”
,
Hudson Review
, 23 [Inverno 1970-71]; rpt.
Art
Journal
, 33 [Outono 1973], 12.
51 Trecho citado por Lippard em
Max Ernst
, 1970, p. 12.
52 Lippard, 1970, p. 14.
53 RIVERS, Larry.
Location: Spring 1963
. New York: Longview
Foundation, 1963.
54 Em
The Skin of the Stone
, ensaio do livro
The Scene, Reports
on Post-Modern Art
, Tompkins oferece um esboço biográfico
muito interessante de Tatyana Grossman e discute
Stones
assim
como outras colaborações realizadas em sua oficina. Para mais
informações ver também GRAY, Cleve. “
Tatyana Grossman’s
Workshop
”. In:
Art in America
, 53, Dez./Jan. 1965-1966, p. 83;
e MITGANG, Herbert, “
Tatyana Grossman, the inner light of 5
Skidmore Place
”, In:
Art News,
73, Mar. 1974, p. 29-32.
55 Em inglês, ‘
us
pode significar tanto os pronomes ‘nosso’
ou ‘conosco’, como ser a abreviação de Estados Unidos [
United
States
] [Nota da Tradução].
56 O’Hara faz uma corruptela da expressão “
fathers of our
country
” [os pais da nação] com a gíria
farter
[peidão].
57 Sidney Tillin,
Arts Magazine
, 34 [dez. 1959], 62.
58 Ver
Everybody’s Autobiography
, de Gertrude Stein [STEIN,
1973, p. 15].
59 Em entrevista a Lucie-Smith, O’Hara sugere que sua única
verdadeira colaboração foi
Stones
[O’HARA, 1975, p. 4]. Com
razão, ele pontua que seu trabalho com pintores como Mike
Goldberg e Graça Hartigan não se tratava de uma colabo-
ração, pois eles utilizavam seus poemas. Mas ele parece ter
esquecido
Poemapinturas
, fruto do verdadeiro esforço colabora-
tivo de dois artistas trabalhando simultaneamente.
Marjorie Perloff, Poeta entre pintores.
244
60 Notas do catálogo da exposição
Poemapinturas
realizada
no Loeb Student Center da Universidade de Nova York de 9 de
janeiro a 5 de fevereiro de 1967.
61 PERREAULT, John.
Art News
, v. 65, 1967, p. 11.
62 Entrevista com Norman Bluhm realizada em 2 de dezem-
bro. de 1975, em Nova York.
63 Conforme artigo publicado na revista
Art
News
, 65, fev.
1967, p. 11.
64 A série de quadrinhos criada por O’Hara e John Brain-
ard foi originalmente desenvolvida para o portfólio de arte
canadense C Comics [1964-65]. Uma série desses quadrinhos é
reproduzida na revista
Panjandrum, 2 & 3
[1973].
65 Um exemplo semelhante pode ser encontrado no trabalho
de Franz Kline. Kline tomou o poema de
“Eu sempre vou te amar…” escrito em 1957, e o incorporou à
caligrafia do próprio O’Hara em uma gravura feita para o
portfólio 21 Gravuras e Poemas, publicado pela Galeria Morris
em 1960. Para mais, conferir as Notas aos
Collected Poems
[O’HARA, 1971], p.
539.
66
Poets and Painters and Painters and Poets
, artigo publi-
cado no jornal
The New York Times
, 11 de agosto de 1968,
Seção II, p. 24.
67 Cf. Notas ao catálogo de
Poempaintings
, por Bill Berkson.
68 Carta não publicada de O’Hara para Gregory Corso, 15
de março de 1958.
Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 191-245, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.50654]
245
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
APOLLINAIRE, Guillaume.
Apollinaire on Art, Essays and Reviews
1901-1918
,
Coleção
The Documents of 20th
Century Art
. Nova York: Viking, 1971, p. xxix.
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