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Pisar em folhas secas: gesto de colocar as
memórias para que tomem sol. Derretendo como
a pele dos velhos, as folhas vão aos poucos caindo
das copas. Vingativas, forçam a memória à custa
de seu próprio fim, quando pressionadas pela sola
calejada dos pés, estalam. Mas... de que pés? Dos
pés do sambista Nelson Cavaquinho [1973], por
exemplo, que de tanto subir e cantar o morro da
Mangueira sob o calor quente do sol, vai aos pou-
cos se acabando até que, um dia, não reste mais
que folhas secas, saudades de sua mocidade. Ao
escutar o samba que dá o título deste dossiê, o
ouvinte menos empático poderia argumentar que
enquanto o sambista acaba pouco a pouco – der-
retido pelo calor do sol, pelo trabalho extenuante
e pelo sobe-e-desce diário morro-asfalto – haverá
sempre outras folhas e mangas para cair de cima,
sustentadas pela seiva que une as raízes aos frutos,
os jovens aos anciãos.
Não é o que tem acontecido, entanto, por essas
paragens. Como lembra outro compositor, “o galo
já não canta mais no Cantagalo/ a água não corre
mais na Cachoeirinha/ menino não pega mais
manga na Mangueira/ e agora que cidade grande
é a Rocinha” [PINHEIRO, 2003]. Versos como os de
Pinheiro e Cavaquinho parecem revelar que aqui
os frutos têm escasseado, e as raízes, quando não
arrancadas do solo infértil, já não podem fornecer
senão o som seco das folhas. Em um segundo nível,
eles nos fazem pensar sobre o que nos permite
comungar de um “aqui”, desenhar uma topogra-
fia capaz de unir o que a violência colonial dividiu
segundo os binarismos do morro e do asfalto, da
mata e da cidade, do sertão e do litoral, da colônia
e da metrópole. Um desenho que só pode ser feito
por pés como os de Cavaquinho, pés de poetas,
trabalhadores, negros e indígenas, que escutam
a cada pisada o barulho ensurdecedor das folhas.
Enquanto as árvores queimam, a marcha disso-
nante desses pés calejados é hoje o tronco que nos
resta, nossa esperança de um outro comum que
não a morte. Tronco sonoro, porque feito do estalar
das folhas secas em revolta, dos cantos de sau-
dade e de fúria em nome daqueles que não querem
ir-se daqui. Pela poesia dos nomes da floresta.
“Ivo Azevedo dos Santos, Ribeirinho, Coari-AM,
11/1/2000 / Trabalhador rural desconhecido, Santa-
na do Araguaia-PA, 31/5/2000 / Neuci Barbosa da
Silva, Liderança, Parauapebas, 30/5/2000...” – em
Memorial Da Terra: AMZ.21
, Hugo Nascimento cole-
ta 420 nomes de pessoas – ambientalistas, indí-
genas, sindicalistas, quilombolas e trabalhadores
sem-terra – vítimas diretas dos conflitos fundiários
na Amazônia brasileira a partir dos anos 2000. Em
meio aos nomes, encontramos fotocópias produzi-
das através de emulsões fotossensíveis de jenipapo
Ana Carolina Prudente Nascimento e Augusto Melo Brandão, Quando piso em folhas secas... [apresentação do dossiê].