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ABRAHAM PALATNIK: A LUZ COMO EXPRESO PLÁSTICA
Abraham Palatnik: light as plastic expression
Abraham Palatnik: la luz como expresión plástica
*Almerinda da Silva Lopes é Professora e Pesquisadora dos Programas de Pós-Graduação em Artes (PPGA) e em História (PPGHIS) da
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: almerindalopes579@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5075-
7843 0000-0001-5075-7843
Almerinda da Silva Lopes (Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil)*
RESUMO O texto reflete sobre a criação do Aparelho Cinecromático de autoria do brasileiro Abraham
Palatnik (1925-2019) e sua participação na I Bienal Internacional de São Paulo (1951), bem como a dificul-
dade da crítica brasileira em dialogar com o inusitado objeto dotado de luz em movimento, por se distanciar
do tradicional duopólio artístico, embora o mesmo não deixasse de se insinuar simultaneamente como objeto
escultórico e pictórico. Embora esse pioneiro objeto cinético não deixasse de se mostrar tributário do Mod-
ulador de Espaço-Luz (1930), de autoria do artista húngaro Moholy-Nagy, o brasileiro Abraham Palatnik
revelou ousadia e perseverança ao criar sua primeira obra luminocromática em um país que, na época, era
muito defasado tecnologicamente.
PALAVRASCHAVE arte cinética; Abraham Palatnik; aparelho cinecromático; arte e tecnologia; relação es-
paço/luz/tempo
LOPES, Almerinda da
Silva. Abraham Palatnik:
a luz como expressão
plástica. Revista Poiésis,
Niterói, v. 23, n. 39,
p. 170-186, jan./jun.
2022. [DOI: https://
doi.org/10.22409/
poiesis.v23i39.50822]
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da da Silva Lopes.
Submetido:
13/7/2020; Aceito:
31/8/2021
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 170-186, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.50822]
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ABSTRACT The text reflects on the creation of the Cinechromatic Apparatus authored by the Brazilian
Abraham Palatnik (1925-2020) and his participation in the 1st São Paulo International Biennial (1951), as
well as the difficulty of Brazilian critics to dialogue with the unusual object endowed with light in movement,
for distancing itself from the traditional artistic duopoly, although it did not fail to insinuate itself simultane-
ously as a sculptural and pictorial object. Although this pioneering kinetic object was still a tributary of the
Space-Light Modulator (1930), by the Hungarian artist Moholy-Nagy, the Brazilian Abraham Palatnik
showed boldness and perseverance when creating his first lumino-chromatic work in a country which, at the
time, was very technologically outdated.
KEYWORDS Kinetic Art; Abraham Palatnik; kinechromatic apparatus; art and technology; space/light/
time relation
RESUMEN El texto reflexiona sobre la creación del Aparato Cinecromático, del brasileño Abraham Palat-
nik (1925-2019) y su participación en la I Bienal Internacional de São Paulo (1951), así como la dificultad
de la crítica brasileña para dialogar con el objeto insólito dotado de luz en movimiento, por alejarse del
tradicional duopolio artístico, aunque no deja de insinuarse a la vez como objeto escultórico y pictórico.
Aunque este objeto cinético pionero era todavía afluente del Space-Light Modulator (1930), del artista
húngaro Moholy-Nagy, el brasileño Abraham Palatnik mostró audacia y perseverancia al crear su primera
obra lumino-cromática en un país que, en ese momento, estaba muy desactualizado tecnológicamente.
PALABRAS CLAVE arte cinético; Abraham Palatnik; aparato cinecromático; arte y tecnología; relación espacio/
luz/tiempo
LOPES, Almerinda da Silva. Abraham Palatnik: a luz como expressão plástica.
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INTRODUÇÃO
A Revolução Industrial instaurou um processo de
crise e de ruptura com os valores espirituais e os
paradigmas estéticos do passado. Gerou, ainda, um
clima propício ao capitalismo, ao racionalismo e à di-
fusão da ideia de progresso, associados a uma nova
ordem social e econômica pautada no funcionalis-
mo da máquina, que assumia o papel de libertadora
do trabalhador moderno. A eficiência da máquina
possibilitaria o aumento da produção e estimularia o
consumo, que trariam mudanças na estrutura urba-
na, no pensamento e nos modos de vida.
A esse “espírito positivo”, de base instrumental e
pragmática, vinculava-se, ainda, a ideia de auto-
nomia do fenômeno criativo e de um novo estatuto
da arte. Os artistas passariam, então, a dialogar
mais efetivamente com a ciência e a recorrer às
novas tecnologias disponíveis. Buscariam, ainda,
angariar melhor posição social competindo livre-
mente no mercado e comercializando os objetos
artísticos com quem tivesse interesse e recursos
para adquiri-los.
O desenvolvimento das tecnologias e de materiais
industriais possibilitou a descoberta da fotografia,
da luz elétrica e do cinematógrafo, fenômenos que
fascinaram os artistas e lhes impuseram novos
desafios, entre eles a possibilidade de solucionar
duas antigas aspirações: pintar com a luz e demover
a arte de sua característica imobilidade. Com base
na tecnologia e nos conhecimentos científicos, as
vanguardas mais radicais formularam novos para-
digmas para a arte, subvertendo o antigo sistema de
representação e os valores estéticos passadistas.
A arte deixava de pautar-se numa ordem espiri-
tual, para inserir-se como meio de expressão, co-
nhecimento específico e bem de mercado. Com os
avanços tecnológico e industrial, a arte deixava de
ser produto executado exclusivamente de maneira
manual e até individual. Os artistas passam a le-
gar a execução de determinadas obras a terceiros
ou aos operários das fábricas, prática essa ado-
tada pela Bauhaus, no início do século passado,
instituição que propugnou abolir a fronteira entre
o artista e o artesão, criador e executor, e que tam-
bém contribuiu para os primórdios da arte cinética
na Europa, como veremos.
Ao vincularem a praxe artística ao espírito funciona-
lista da vida moderna, os artistas passam a investir
em dispositivos tecnológicos, objetivando imprimir
dinamismo às formas, linhas e cores. Os antigos
efeitos gráficos obtidos com hachuras e sombrea-
dos, para simular o movimento de cabelos, roupas,
volume do corpo humano e outros entes da natu-
reza, passam a ser questionados e rejeitados por
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 170-186, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.50822]
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seu caráter ilusório, sendo substituídos por artifícios
eletromecânicos e materiais industriais.
Se a invenção da fotografia não solucionara essa
aspiração, logo surgiriam outras experiências arti-
culadas na simbiose arte/ciência, visando demover
os objetos artísticos da imobilidade. Essas pesqui-
sas implicaram o surgimento de novos dispositivos
tecnológicos e o aperfeiçoamento dos processos
fotográficos, possibilitando gerar imagens dotadas
de luz e movimento, pôr em xeque o espaço eucli-
diano, a perspectiva linear e desmontar algumas
concepções da pintura retiniana. O processo mimé-
tico ou representativo do mundo objetivo ou analó-
gico seria ironizado e confrontado, abrindo espaço
à experiência criativa e ao pensamento científico.
OS NOVOS MECANISMOS PARA IMPRIMIR
MOVIMENTO ÀS FORMAS
Alguns investimentos científicos e a fotografia mos-
traram que o mundo é dinâmico, modificando-se
constantemente, o que contribuiu para repensar
os processos de criação em vigor. A fotografia,
além de modificar a geração de imagens e instigar
o estatuto de arte, imporia mudanças na maneira
de compreender e representar o mundo, espe-
cialmente a partir do impressionismo, quando a
“representação imutável das coisas era abalada e
relativizada” e sua “aparência passava a ser deter-
minada pelo Tempo, pela Luz e pelo Movimento
[BIHALJI-MERIN, 1970, p. 60-61].
O advento da luz elétrica, na segunda metade
do século XIX, possibilitou a criação do cinema,
solucionando, finalmente, a dificuldade de impri-
mir movimento às imagens. Embora esse movi-
mento fosse apenas ficcional, o cinema iludiria o
olho, fazendo-o acreditar que tudo é instável ou se
movimenta. Na verdade, é a projeção sequencial e
simultânea de uma mesma imagem que gera essa
percepção postiça de mundo dinâmico, levando o
olho a visualizar as imagens como se dotadas de
movimento real. O cinema criava, assim, uma nova
subjetividade e um novo conceito de verdade, que
emerge da imaginação e impede distinguir o falso
do verdadeiro, a cópia do original, a realidade da
ilusão”. Além disso, o tempo no movimento do ci-
nema transcorre de maneira “muito mais rápida ou
mais lenta do que aquele que vivemos” [PARENTE,
1993, p. 16-20].
O caráter enunciativo do cinema e seu princípio de
homogeneização fascinaram os artistas vanguar-
distas, em especial cubistas, futuristas e cons-
trutivistas. Esses exaltaram, em seus respectivos
programas teóricos e estéticos, a velocidade da
máquina, o cinema, a indústria e as massas urba-
nas em movimento, em ambientes de diversão ou
LOPES, Almerinda da Silva. Abraham Palatnik: a luz como expressão plástica.
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rumando para o trabalho nas efervescentes metró-
poles modernas. O cinema transforma-se, assim,
na expressão do futuro, desbancando a pintura e a
escultura, que deixariam de ser meios privilegiados
de informação e de representação visual. Tornou,
ainda, os artistas conscientes da impossibilidade
de criar obras em movimento se não recorressem a
artifícios eletromecânicos, o que lhes impôs inevitá-
veis desafios técnicos para desenvolverem expe-
riências nesse âmbito. Isso não impediria, porém,
que um número significativo de signatários de-
senvolvesse, individualmente ou em parceria com
técnicos e engenheiros, ainda no início do século
XX, experiências no campo artístico e cinemato-
gráfico, recorrendo a inusitadas engenhocas me-
cânicas com tal finalidade, que levariam à criação
dos primeiros objetos cinéticos, palavra derivada
do inglês
Kinetic
[ou do grego
Kinetiké
=cinemático].
Vale citar, entre outras, as pesquisas experimentais
realizadas por Léger, Picabia e Duchamp, respecti-
vamente em
Ballet Mécanique
,
Entr´acte
e
Anémic
Cinéma
, entre 1924 e 1926. Léger já havia realizado,
em conjunto com Abel Gance, o filme
La Roue
[
A
Roda
, 1922] e publicado textos reveladores de seu
fascínio pela máquina e pela vida moderna.
O aumento da produção de materiais industriais e
de novas tecnologias, a partir dessa mesma déca-
da, possibilitou o desenvolvimento de engenhocas
artísticas pioneiras, dotadas de luz e movimento.
Consistiam em objetos movidos por pequenos
motores, como os de autoria de Naum Gabo, Mar-
cel Duchamp e Moholy-Nagy. Quando acionados,
alguns componentes desses objetos esculturais se
movimentavam, produzindo algum tipo de ação,
efeito visual, luminoso ou sonoro.
Em colaboração com um engenheiro, Marcel Du-
champ construiu seu primeiro mecanismo ótico, as
Placas de vidro
rotativas [1923], seguido de outra
proposta mais sofisticada, a
Semi-esfera Rotativa
[
Ótica de Precisão
, 1925]. Trata-se de objeto-máqui-
na de pequenas dimensões, dotado de uma forma
circular de madeira, pintada de branco, contendo
uma incisão no centro, sobre a qual o artista dese-
nhou círculos concêntricos pretos. Essa peça foi
montada “sobre um disco de cobre, e escondida
em uma redoma de vidro coberta de veludo preto”.
Impulsionado por pequeno motor, o disco girava,
fazendo com que as linhas das circunferências
concêntricas pintadas em sua superfície “pareces-
sem mover-se para frente e para trás no espaço”
[TOMKINS, 2004, p. 284].
O húngaro Lászlo Moholy-Nagy [1895-1946] desen-
volveu, nessa época, pesquisas em diferentes linhas
de investigação: pintura, escultura, fotografia, cine-
ma,
design
. Os conhecidos fotogramas criados pelo
artista, resultantes do posicionamento de objetos so-
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bre superfícies de papel fotossensível, concretizaram
sua vontade de desenhar com a luz. Esses desenhos
fotográficos redimensionaram seu interesse por
materiais industriais e processos artísticos inusita-
dos, e desencadearam o desenvolvimento de novas
experiências artísticas, quando se declarou também
instigado pela pintura
Quadrado branco sobre fundo
branco
[1918], de Malevich, e pela atmosfera criada
pela luz elétrica sobre a paisagem urbana. As experi-
mentações com luz, cor, forma e movimento levaram
Moholy-Nagy a profetizar, ainda, sobre a mudança
de postura do espectador, mencionando em mani-
festo lançado em parceria com Alfred Kemeny, em
1922, que o público passaria de contemplador pas-
sivo à posição de participante ativo da obra de arte
[BARRET, 1991, p. 153].
As experiências artísticas e concepções teóricas de
Moholy-Nagy foram explicitadas no livro
The New
Vision
[1928], desenvolvidas enquanto era profes-
sor da Bauhaus [1923-1928], em que refletiu sobre
espacialidade, luminosidade e desmaterialização,
sobre os efeitos do movimento e da luz sobre a
percepção e a recepção dos novos objetos artísti-
cos, que o levaram à criação da primeira escultura
cinética:
Modulador de Espaço-Luz
[
Light-Space
Modulator
, 1922-1930].
Essa complexa estrutura rotativa reuniu variados
objetos e materiais: prismas, espelhos, cerca de 70
lâmpadas elétricas, brancas e coloridas, refletores,
discos perfurados de metal polido, grades arama-
das, esfera de madeira, motor elétrico escondido na
base circular da escultura, correntes e rolamentos.
O motor fazia a peça girar e as lâmpadas acende-
rem, emitindo luz que reverberava sobre as super-
fícies metálicas, criando sombras misteriosas e
curiosos efeitos luminoespaciais.
O Modulador foi exibido pela primeira vez na expo-
sição da Federação Alemã de Trabalho, em Paris
[1930]. Os efeitos luminosos produzidos pelo objeto-
-máquina foram registrados, no mesmo ano, no filme
dirigido pelo artista,
Light Display Black-White-Grey
[16 mm]. O aparelho foi utilizado, depois, para produ-
zir efeitos luminosos e ritmos dinâmicos e esfuzian-
tes em fachadas de edifícios, salas de teatro, ópera e
balé, obtendo maior impacto com a sala inteiramen-
te escura, pois as sombras assumiam configurações
espetaculares, resultantes da combinação de luz
branca e colorida provenientes das lâmpadas elétri-
cas. Moholy-Nagy teria se inspirado no romantismo
alemão para propugnar o conceito de arte total, com
a integração de todas as artes, no que chamou de
Teatro da Totalidade
, em que os efeitos de luz toma-
riam todo o espaço, projetando-se sobre os atores
e o público. Nesse processo, todos os elementos
teriam a mesma importância, eliminando as hierar-
quias e outorgando a substituição dos atores pelo
LOPES, Almerinda da Silva. Abraham Palatnik: a luz como expressão plástica.
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movimento dinâmico da projeção, reflexões essas
explicitadas no livro
Vision in Motion
[1947], publica-
do logo após a morte do artista.
O Modulador tornou a luz matéria escultural e
princípio de dissolução da forma, pondo em crise a
resistência e a perenidade dos materiais. A luz que
emanava do objeto dissolvia a rigidez de suas es-
truturas metálicas, tornando a matéria translúcida
e reverberante, gerando efeitos simultâneos no es-
paço. O funcionamento do objeto com a utilização
de pequeno motor, o aprisionamento de lâmpadas
elétricas num compartimento/caixa e a ideia de luz
como moduladora do tempo e do espaço pautaram
as experiências desenvolvidas cerca de vinte anos
depois pelo brasileiro Abraham Palatnik, que certa-
mente conhecia o Modulador, como veremos.
MOLDAR O TEMPO, ORGANIZAR O CAOS,
PINTAR COM A LUZ
Abraham Palatnik [1928-2020], ao retornar de Tela-
viv [Israel] e se fixar no Rio de Janeiro [1947], era um
jovem de dezenove anos, pintor de retratos, natu-
rezas mortas e paisagens de tendência expressio-
nista, como atestam as telas que enviou à Divisão
Moderna do Salão Nacional de Belas Artes [1948].
Rapidamente se integrou ao ambiente artístico ca-
rioca, aproximando-se de artistas da nova geração,
como Almir Mavignier, que o apresentou a Mário
Pedrosa. Convidado pelo amigo para conhecer o
ateliê de arte do Centro Psiquiátrico D. Pedro II, em
Engenho de Dentro [RJ] – atual Instituto Municipal
Nise da Silveira –, Palatnik se revelou impactado pe-
los trabalhos dos alienados, passando a questionar
seu próprio processo expressivo. Numa das reuni-
ões na casa de Mario Pedrosa, em que se refletia
sobre arte, o crítico sugeriu-lhe a leitura de livros so-
bre a Teoria da Gestalt e a realização de pesquisas
aplicando os conhecimentos de matemática, física
e tecnologia adquiridos em Telaviv. Sem abandonar
definitivamente a pintura, o jovem realiza expe-
rimentações, visando encontrar novos meios de
expressão sem recorrer “à instrumentária clássica,
isto é, pincel, tinta, cavalete”, como declarou ao
jornal
Tribuna da Imprensa
[1951]. Depois de quase
dois anos de tentativas insatisfatórias, Palatnik con-
cluiu um inusitado objeto construído com materiais
industriais, que pintava com a luz, concretizando
assim um antigo sonho. Tratava-se de uma caixa de
madeira, com uma das faces revestida por tecido
de
nylon
, no interior da qual inseriu lentes, cilindros
de madeira, com faixas de várias cores, inúme-
ras lâmpadas elétricas, de diferentes voltagens,
conectadas a 600 metros de fio e pequeno motor
extraído de um ventilador doméstico, que ligava as
lâmpadas e fazia girar os cilindros. A luz que emana
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das lâmpadas incide sobre os carretéis e sobre a
superfície refratária das lentes, mudando de dire-
ção, o que provoca uma mistura ótica de cores-luz
no interior da caixa, que projetada na tela ou écran
de
nylon
sugere uma pintura abstrata mutante, cujo
movimento e duração temporal são controlados por
contatos elétricos.
O objeto, concluído no início de 1950, é apresen-
tado pelo artista a Mário Pedrosa, que o batizou
de
Aparelho Cinecromático
[PALATNIK, 1951, p. 5].
Fascinado com a invenção, o artista teria declarado
ao crítico: “O que o pintor faz com a tinta eu faço
com a luz”, além de preconizar também a partici-
pação público/obra, ideia que, no entanto, parece
ter sido também apropriada de Moholy-Nagy. A
duração da projeção desse primeiro aparelho foi
programada para durar quinze minutos, desligan-
do-se automaticamente ao final do ciclo, cabendo
aos espectadores decidirem ligá-lo novamente ou
não, para reverem a repetição do evento perfor-
mático da máquina. Como ocorre no cinema, ao
toque do interruptor instalado na lateral externa da
caixa, tornava-se possível ligar o
Cinecromático
e
rever a repetição do espetáculo pictórico de formas
e cores/luz em movimento, durante o tempo pro-
gramado pelo artista por meio do pequeno
timer
,
numa alusão ao “eterno retorno”. O processo inte-
rativo, embora exija algum tipo de ação e reação
do interlocutor, não interfere no desempenho da
máquina, pois tudo está previamente programado
pelo artista. Embora a ideia de participação ou de
interação público/obra, tivesse sido preconizada
por Moholy-Nagy na década de 1930, difundiu-se
apenas na década de 1960, cabendo a Palatnik
destacado papel nesse quesito entre sua geração
de artistas cinéticos.
Incentivado por Mavignier, o
Cinecromático
foi
enviado pelo autor à I Bienal Internacional de São
Paulo, mas por não se enquadrar em nenhuma das
tradicionais categorias artísticas previstas no regu-
lamento, o júri, impedido de premiá-lo, sugeriu sua
aquisição para o acervo do Museu de Arte Moderna.
[PEDROSA, 1975, p. 288-289].
Estranho à crítica, o que explica a escassez de
textos referentes à proposta de Palatnik, a maioria
ignorou a obra na abertura da Bienal, assunto que
discutiremos adiante. Mas chamou atenção dos
articulistas da imprensa, que, despreparados para
refletir sobre algo inteiramente inusitado no mundo
da arte, recorreram ao artista para conceder-lhes
entrevistas e responder às inquirições sobre o
Cine-
cromático.
Em depoimento concedido ao jornal
Tribuna da
Imprensa
[1951, p. 5], Palatnik esclarecia que ini-
ciou a pesquisa almejando “fugir do determinismo
LOPES, Almerinda da Silva. Abraham Palatnik: a luz como expressão plástica.
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que padroniza a atividade artística”, sem ter ideia
precisa de como atingir tal objetivo. Construiu,
inicialmente, um caleidoscópio, que observou e
manipulou exaustivamente, até se certificar das
limitações do objeto para obter algum resultado
satisfatório. Destacava, entretanto, que, por sua
arbitrariedade, o caleidoscópio o colocou diante
de vários problemas, como o jogo combinatório
e a questão “estético-perceptiva” do objeto, pois
independem do artista:
Cheguei à conclusão de que nem sempre os fatores pessoais vão
decidir a estética visual – há outros elementos que participam, por
exemplo: certa organização do espaço, as possibilidades da forma
e da cor, as proporções em geral etc. Sabemos que é uma esfera ou
um quadrado, mas o que necessitamos compreender é a proporção
e o significado de tais formas em certa periferia, em certo espaço
[PALATNIK, 1951, p. 5]
Afirmava, ainda, que ao pôr o caleidoscópio no es-
paço: “me deparei com problemas reais: o do movi-
mento, o da ordem e o da cromática luminosa, que
consegui [solucionar], depois, através da refração
da luz pelo prisma” [PALATNIK, 1951, p. 5].
O objeto cinético dotado de luz/cor em movimento,
graças à expertise do artista no emprego de re-
cursos eletromecânicos, demoveu as formas e as
cores de sua característica imobilidade e confina-
mento, para mostrá-las em permanente dissolução,
expansão, explosão e transmutação, gerando mati-
zes voláteis de cor-luz se propagando no espaço.
Nos inúmeros
Cinecromáticos
que o artista elabo-
rou nos anos subsequentes, passou a construir os
próprios motores elétricos com dimensões cada
vez menores, para obter diferentes efeitos cam-
biantes e luminosos e uma gama mais variada de
cores e formas, que promovem verdadeira dança
no écran. Se o resultado final não deixa de remeter,
de alguma maneira, à pintura abstrata, por ser ge-
rada com pinceladas de luz e por “outorgar
predominância à construção de estruturas
em que o exercício da razão se impõe sobre
a subjetividade” [BÉRTOLA, 1973, p. 122], se
distanciava do processo pictórico conven-
cional. E para além da geração de estímulos
visuais e luminocromáticos misteriosos e
fascinantes [formas instáveis e jogos cambiantes
de cores], a arte cinética propõe “uma relação com-
plexa entre mensagem visual e informação estéti-
ca” [PIERRE, 2005, p. 27].
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 170-186, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.50822]
Fig. 1: - Abraham Palatnik. Aparelho Cinecromático, 1955.
[Fonte: Galeria Nara Rosler [SP]]
LOPES, Almerinda da Silva. Abraham Palatnik: a luz como expressão plástica.
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DO ESTRANHAMENTO INICIAL À
RECEPÇÃO TARDIA DA CRÍTICA
Se a obra de Palatnik despertou interesse e curiosi-
dade do público visitante da I Bienal, a reação da crí-
tica brasileira seria de perplexidade, não revelando
grande entusiasmo ou empatia pelo
Cinecromático
.
Isso explica por que apenas dois críticos mais fami-
liarizados com as novas experimentações se incum-
biram de esclarecer sobre as premissas estéticas e o
funcionamento do aparelho luminocromático.
Em Introito à Bienal, publicado no jornal
Tribuna da
Imprensa
[1951], Mário Pedrosa referia-se à recusa
inicial da obra de Palatnik pelo júri da Bienal e fazia
uma série de considerações sobre as experiências
pioneiras dos artistas internacionais com a tec-
nologia e a luz, destacando Moholy-Nagy, cujas
experimentações e os estudos da física moderna
abriram novos caminhos para a arte. Discorria
também sobre a especificidade funcional e estética
do
Cinecromático
, projetando numa tela semi-
transparente um universo de formas abstratas e
cores em movimento aparentemente arbitrário, que
remetiam ao caleidoscópio e aos “afrescos de luz”
de Moholy-Nagy.
Embora reconhecesse a ousadia e a originalidade
do objeto cinético palatnikiano, Pedrosa referia-se
à herança do artista húngaro, artista referência tan-
to para os pioneiros da arte cinética, como para os
críticos que dialogaram com ela, o que leva a crer
que Palatnik tivesse sido apresentado por Pedrosa
à referida obra do artista húngaro:
Abandonando o pincel e o figurativo, decidiu-se [Palatnik],
após um estágio abstracionista, a pintar com luz numa au-
daciosa tentativa de realizar uma das mais velhas “utopias
artísticas”, na expressão de Moholy-Nagy. [...].
O artista não se pode contentar com o velho métier
pictórico, o pincel e as cores químicas pigmentárias. Para
controlar, dirigir, plasmar a luz são necessários novos
instrumentos e a familiaridade com as conquistas da ótica
moderna, desde os problemas de colorometria até as
virtualidades da luz artificial.
Palatnik está na linha dos pesquisadores de plástica de luz,
isto é, dos efeitos de espaço-tempo sobre nossa sensibili-
dade. [PEDROSA, 1951, p. 7].
O crítico relacionava as cores da luz que emana do
objeto cinético com certos matizes da pintura con-
vencional, mesmo reconhecendo nelas qualidades
próprias, o que as diferenciava da gama variada de
tons obtidos com pigmentos minerais. Concluía a
reflexão observando que, se Moholy-Nagy profeti-
zou que o dinamismo plástico de seus “afrescos de
luz iria animar edifícios inteiros ou as paredes das
casas do futuro”, esse prognóstico se tornou reali-
dade com o advento dos aparelhos domésticos de
televisão [PEDROSA, 1951].
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No artigo
A máquina de Abrahão Palatnik
, publicado
no
Diário Carioca
, também na inauguração da Bienal
[20 de outubro de 1951], Antonio Bento se mostrou
bem mais modesto em sua abordagem. Repetindo
palavras do próprio artista, o crítico referia-se ao
Apa-
relho Cinecromático
como uma máquina de projeção
do tipo
sui generis
, o que permitia associá-lo ao cine-
ma, à lanterna mágica e ao caleidoscópio”. E justifi-
cava a recusa da obra pelo júri da Bienal, do
qual ele foi um dos integrantes, afirmando
que a comissão, em mensagem escrita, re-
feria-se ao objeto como “importante mani-
festação da arte moderna” e considerava-a
digna de figurar no Museu de Arte Moderna
de São Paulo”, deferência que, segundo o crítico, equi-
parava-se ao prêmio, pois o objeto acabou adquirido
pelo Museu patrocinador do evento.
No texto publicado alguns meses após o encerramen-
to da I Bienal,
Uma nova técnica na pintura moderna
[1952], Walter Zanini refletia sobre o que chamou de
sentido estético-perceptivo” do objeto palatnikiano,
afirmando que ele solucionou o problema da “cromáti-
ca luminosa”, por meio de “um sistema mecânico que
transmite a luz movimentando-a na direção deseja-
da”. Estabelecia, ainda, analogia entre a pesquisa do
artista brasileiro e as proposições dos futuristas italia-
nos, e refletia sobre a contribuição de teóricos como
Wertheimer à teoria da Gestalt e à percepção, base
da pesquisa desenvolvida por Palatnik, enredamento
teórico que atestava a sólida formação intelectual do
historiador. Zanini concluía ressaltando o esforço do
jovem artista brasileiro em diversificar a experiência
estética, ironizando a oposição que lhe faziam aque-
les que, comodamente, não se propunham instaurar
nenhum tipo de dúvida, preferindo repetir velhas e
gastas formulações pictóricas:
Os discursos dos citados críticos não encontraram
grande interlocução, nem conseguiram dirimir a
aversão ou a dificuldade de compreensão da arte
cinética pela crítica conservadora, o que explica a
lacuna e a quase completa ausência de reflexões
sobre essa vertente artística no período que vai do
término da I Bienal até quase o final da década de
1970. Basta citar que a primeira individual de Palatnik,
realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janei-
ro [1960], angariou a publicação do
Jornal do Brasil
de uma sequência de notas institucionais não assi-
nadas, cuja função era divulgar a mostra, mas que
pouco contribuiriam para alargar a visada cognitiva
sobre as obras e a relação entre arte e tecnologia.
Dá gosto ver um moço como Palatnik buscando, aflito, caminhos novos
de expressão nos espaços sidéreos, enquanto os limitados acadêmicos
ficam repintando pela multimilionésima vez os seus cachinhos de uva,
bem bonitinhos, bem arranjadinhos, bem capazes de dar bom aspecto à
casa onde o espírito é eterno ausente. [ZANINI, 1952, p. 6].
LOPES, Almerinda da Silva. Abraham Palatnik: a luz como expressão plástica.
182
A reflexão mais elucidativa sobre as obras de Pa-
latnik apresentadas nessa exposição viria nova-
mente de artigo de autoria de Mário Pedrosa,
Arte
e invenção
[1960]. Chamava-as de “pintura de luz”,
geradoras de relações cromáticas que se diferen-
ciavam dos preceitos teóricos e dos resultados
pictóricos obtidos com pigmentos. Ressaltava o
avanço das pesquisas do artista, por conseguir
aperfeiçoar “o mecanismo das projeções”, o que
permitia iluminar, agora, mais homogeneamente
todo o écran. O crítico concluía a reflexão desa-
fiando o artista a diversificar seus inventos, recor-
rendo a novos dispositivos tecnológicos, embora
isso já ocorresse desde o ano anterior:
Quando será que Palatnik, com o gênio inventivo que Deus lhe deu nos
trará nova revolução técnica e estética, assenhoreando-se da eletrô-
nica para ganhar melhor liberdade e variação nas suas experiências
cinecromáticas? Se já se faz música eletrônica, porque esse talentoso
não se decide a palmilhar o terreno inexplorado daquela ciência para
criar também a pintura ou o cinecromatismo eletrônico? Já está na hora.
[PEDROSA, 1960, p. 6].
O convite para a individual no MAM carioca coinci-
dia com o aumento da circulação internacional da
obra de Palatnik por instituições culturais estran-
geiras, angariando também notória receptividade
e interlocução da crítica. Claramente influenciado
pelos escritos de Pedrosa, Jayme Maurício publi-
cava, poucos dias depois da inauguração dessa
mostra, na coluna que assinava no
Correio da
Manhã
, denominada
Itinerário das Artes Plásticas
,
uma sequência de tímidas notas sobre as obras
expostas, não restritas às propostas cinéticas. Em
matéria mais extensa, publicada pouco depois,
Palatnik e a Antiteoria do Cinecromatismo
[1960],
o crítico não parecia devidamente preparado para
aprofundar a reflexão sobre as obras. Limitou-se a
fornecer informações sobre a formação do expo-
sitor e a transcrever trechos de depoimentos do
próprio Palatnik a respeito de suas investigações
estéticas, com destaque para o conceito de
antiteo-
ria
. Embora afirmasse concordar apenas parcial-
mente com a visão do artista, transcreveu no texto o
pensamento de Palatnik sobre a questão,
sem pontuar em que consistia sua diver-
gência desse conceito:
Antiteoria é a concretização da expressão na
obra de arte. É aquilo que realmente se realiza
no quadro, na escultura [...]. É aquilo que
para ser percebido não precisa ser lembrado,
indicado, sugerido, explicado ou teorizado pelo artista
ou o crítico. O homem tem que ser estimulado a perceber
por conta própria o que existe. O hábito de teorização é
negativo, pois o ser inteligente tem habilidade intelectual
suficiente para compreender qualquer teoria. Esta com-
preensão lhe dá uma segurança e tranquilidade mental
tamanha que aceita mesmo as coisas que instintivamente
não percebeu por si mesmo [PALATNIK apud MAURÍ-
CIO, 1960, p. 2].
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 170-186, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.50822]
183
O crítico francês Michel Ragon, depois de ver as
obras cinéticas do brasileiro na VI Bienal de São
Paulo [1961], publicou em Paris o texto
Le mouvement
dans l´art actuel
[1962]. Começava por traçar um
panorama da evolução e significado da Arte Ciné-
tica em todo o mundo, para depois referir-se aos
Cinecromáticos
de Palatnik como obras que nasce-
ram da mesma vontade que alimentou os quadros
luminosos movidos por mecanismos eletrônicos, de
autoria de dois reconhecidos expoentes do gênero
em todo o mundo: o franco-húngaro Nicolas Schö-
ffer [1912-1992] e o engenheiro americano Frank
Malina [1912-1981]. O crítico reconhecia, ainda, que
os
Aparelhos Cinecromáticos
anteciparam em sete
anos as experiências luminodinâmicas, apresenta-
das por Schöffer em Nova York [1957].
Entretanto, nem o aval do teórico francês à ousadia
criativa do brasileiro ampliou o interesse da crítica
local por suas obras cinéticas que, além de
cinecro-
máticos
, exibia na Bienal um naipe mais diversifica-
do de objetos dotados de movimento.
Na França, a
Arte Cinética
foi exibida e incorporada
definitivamente ao vocabulário artístico somente
após a exposição
Le Mouvement
[1955] na Galeria
Denise René, em Paris, com curadoria do sueco
Pontus Hultén, denominação que rapidamente se
universalizou. Nessa mostra, lançou-se um folder,
cujos textos se tornaram conhecidos como
Mani-
festo Jaune
. Mas ao apresentar a arte cinética à
capital francesa, exibiu-se na mostra tanto obras
dotadas de movimento real quanto pinturas óticas
de artistas como Victor Vasarely, que apenas suge-
riam efeitos dinâmicos.
Como na época os
Aparelhos Cinecromáticos
de
Abraham Palatnik ainda não haviam circulado no
exterior, o artista não integrou a mostra internacio-
nal. Apenas em 1966, quando da participação do
brasileiro da mostra
Kunst-Licht-Kunst
, no Museu de
Arte de Eindhoven, Holanda, é que, no texto introdu-
tório do catálogo, o conhecido crítico e historiador
da arte cinética, o franco-britânico Frank Popper,
confirmava o pioneirismo de Palatnik na produção
de “móbiles luminosos”, posição que reafirmaria no
livro
Naissance de l´Art Cinetique
[1967], incluindo
nosso artista no rol dos pesquisadores de “obras lu-
minocinéticas”. A deferência ocorreu por o brasileiro
participar da 32ª Bienal de Veneza [1964] e de outras
mostras internacionais, entre elas
Le Mouvement
II
, na citada Galeria Denise René [1964], que teria
formulado o convite ao artista depois que a própria
galerista viu as obras do brasileiro naquela Bienal.
Repercussão não menos significativa foi o ensaio,
de autoria também de Frank Popper, denominado
Arte cinética
[1968], publicado na revista paulista
Artes
[n. l5], em que relacionava os estudos da física
e da ótica moderna com as novas pesquisas com a
LOPES, Almerinda da Silva. Abraham Palatnik: a luz como expressão plástica.
184
luz e o movimento. Os textos de autoria dos críticos
europeus, decorrentes da ampla circulação da obra
de Palatnik por vários países, começariam a romper
lentamente a barreira da rejeição aos objetos ciné-
ticos, sendo que o reduto da crítica brasileira ainda
não havia se posicionado favorável a esse gêne-
ro de trabalhos artísticos. Confirmava, assim, a
dificuldade de compreender e dialogar com objetos
construídos com materiais industriais e sofisticada
tecnologia, que subvertiam o conceito tradicional
de escultura e até de obra de arte.
Na década de 1970, quando a Arte Cinética dava
sinais de ter cumprido seu ciclo no mundo e a obra de
Palatnik já havia transitado por importantes institui-
ções culturais de todos os continentes, continuava
despertando pouco interesse no Brasil, posição que
se manteve praticamente inalterada até a década
seguinte. Curiosamente, apenas em 1977 é que o artis-
ta realiza, na Galeria Bonino do Rio de Janeiro, talvez
sua mais significativa exposição comercial, sendo
que a crítica praticamente a ignorou. Coube a Roberto
Pontual publicar no
Jornal do Brasil
[1977] o texto mais
elucidativo sobre a exposição, embora a reflexão se
respaldasse em falas do artista. O crítico iniciava o
discurso destacando a importância da mostra, cujo
artista não lhe era inteiramente desconhecido:
Se me perguntasse que retrospectiva de artistas brasilei-
ros julgo de realização mais urgente e oportuna, neste
momento, eu não relutaria em colocar entre elas a de
Abraham Palatnik. [...]. A certeza da necessidade de abor-
dar e compreender panoramicamente a obra de Palatnik
não é, para mim, coisa de hoje; veio-me desde que o
visitei pela primeira vez no seu apartamento de Botafogo,
em 1972 [PONTUAL, 1977].
Entretanto, logo em seguida fazia uma espécie de
mea culpa
, ao afirmar que a atenção sobre a ex-
posição foi despertada por carta que lhe enviou de
Hamburgo Almir Mavignier, ressaltando o significa-
do da obra e da trajetória de Palatnik, entre outros
aspectos, como o de ser ele
[...] um dos primeiros brasileiros dispostos a absorver a
rigorosa disciplina da linguagem construtivista entre nós,
ao fim da década de 40. Esta menção e a presença da
individual de Palatnik, atualmente na Galeria Bonino, do
Rio, indicam os marcos extremos, até aqui, de uma carreira
e de uma obra que o público precisa ver e conhecer me-
lhor [PONTUAL, 1977].
Apenas da década de 1980 até o início deste século
é que a produção de Palatnik – em seus diferentes
suportes e modalidades – passou a angariar maior
espaço na mídia e nas instituições culturais brasilei-
ras. Entretanto, sua obra ainda é pouco conhecida e
estudada, sem contar que não se publicou, até então,
um estudo acadêmico refletindo exclusivamente
sobre sua produção cinética. Assim, este texto presta
tributo ao artista, falecido em 2020, vítima de Covid-19.
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 170-186, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.50822]
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