A mulher, pra ser ouvida, precisa gritar muito alto

The woman, to be heard, needs to scream very loudly

La mujer, para ser escuchada, necesita gritar muy fuerte

Resumo A entrevista, realizada em 13/ 7/2018 na varanda da biblioteca da Escola de Artes Visuais do Parque Lage no âmbito do projeto Arte Sonora, é o ponto de partida para o ensaio que aborda como a condição de mulher e as questões geracionais impactaram a produção, a dimensão sonora e a noção de “tempo não estruturado” desta artista singular que é Jocy de Oliveira.
Palavras-chave Jocy de Oliveira; arte contemporânea; arte sonora; multimídia

Abstract The interview, held on 07/13/2018 at the Parque Lage School of Visual Arts's library, part of the Arte Sonora [Sound Art] project, is the starting point for the essay that addresses how the condition of women and generational issues impacted production, the sound dimension and the notion of “unstructured time” by this singular artist who is Jocy de Oliveira.
Keywords Jocy de Oliveira; contemporary art; sound art; multimedia

Este documento é distribuído nos termos da licença Creative Commons Atribuição-Não Comercial 4.0 Internacional (CC-BY-NC)

© 2022 Franz Manata, Jocy de Oliveira

Submetido: 25/10/2021

Aprovado: 4/5/2022

* Franz Manata é artista, pesquisador e professor. Doutorando em Tecnologias da Comunicação e Estética, na Escola de Comunicação da UFRJ e professor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro. E-mail: franzmanata@gmail.com; Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4851-1550

** Jocy de Oliveira é compositora, pianista, escritora e artista multimídia brasileira, pioneira na música eletrônica no Brasil.

Franz Manata*
(Universidade Federal do Rio de Janeiro e Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Brasil)

Jocy de Oliveira **

(Artista independente, Brasil)


Resumen A entrevista, realizada el 13/07/2018 en el balcón de la biblioteca de la Escuela de Artes Visuales del Parque Lage como parte del proyecto Arte Sonora, es el punto de partida para el ensayo que aborda cómo la condición de la mujer y las cuestiones generacionales tuvieron efectos en la producción, en la dimensión sonora y en la noción de “tiempo desestructurado” de esta singular artista que es Jocy de Oliveira.
Palabras clave Jocy de Oliveira; arte contemporáneo; arte sonoro; multimedia

Jocy de Oliveira é uma compositora, pianista, escritora e artista multimídia brasileira, que desenvolve uma obra que mistura música, teatro, cinema, instalações, textos e vídeos.

Ainda jovem, iniciou uma carreira de pianista bem-sucedida (Jocy passou por sólida formação por aqui e fora do Brasil. Estudou piano com José Kliass, em São Paulo, e Marguerite Long, em Paris. Recebeu o título de Master of Arts pela Washington University em St. Louis, Missouri, EUA), e hoje ocupa a Cadeira no 32 da Academia Brasileira de Música. Já recebeu vários prêmios, como Guggenheim Foundation (2005), Rockefeller Foundation (1983 e 2007), Bogliasco Foundation e New York Council on the Arts, e segue com atividade intensa de criação em sua própria companhia, o Ensemble Jocy de Oliveira.

Pioneira na música eletrônica no Brasil ao apresentar sua primeira obra eletroacústica multimídia — Apague meu spotlight, de 1961, na Semana de Música Eletrônica, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro e em São Paulo —, Jocy compôs a ópera que integra a peça em parceria com Luciano Berio, um dos nomes mais representativos da música eletroacústica à época. Sua apresentação foi um momento transgressor por vários aspectos: o próprio festival, organizado por Jocy e pelo maestro Eleazar de Carvalho, iria influenciar vários artistas, a ponto de estimular, por exemplo, Jorge Antunes, depois de assistir David Tudor apresentar Kontakt de Stockhausen, a produzir o disco Música eletrônica, pioneiro no Brasil.

Jocy é considerada uma das maiores intérpretes da obra de Olivier Messiaen, compositor, organista e ornitologista francês, cuja produção, de inspiração mística, tem a linguagem musical caracterizada por um ritmo novo com elementos exóticos, como o canto dos pássaros, presente em sua impressionante coleção de treze peças para piano — Catalogue d'oiseaux, concluída em 1958. Jocy teve a oportunidade de gravar sete discos com sua obra pianística para o selo Vox (EUA) e quatro para Philips (Brasil). Ao todo, entre discos autorais e como intérprete, gravou 19 discos no Brasil e no exterior.

Intérprete virtuosa e compositora precoce, aos seis anos teve suas primeiras composições publicadas pela Vitali; em 1959, aos 23 anos, lança A música do século XX, disco bossa-novista que, de acordo com André Kangussu, “se posiciona de modo ambíguo em relação à bossa: ora se conforma a ela, ora a toma como um estilo a ser revisto, parodiado e deformado”1. Mas foi em 1981, ao lançar Estórias para voz, instrumentos acústicos e eletrônicos pela Fermata — um disco autoral e pioneiro, ignorado por aqui à época, e só revalorizado quando prensado em 2017 pelo selo inglês Blume — que Jocy se mostrou uma compositora inovadora. Nesse disco, ela apresenta dois aspectos importantes em seu trabalho: primeiro, uma outra noção do entendimento acerca do tempo da execução da peça musical. Afirma ela, “o disco gravado tem 22 minutos, mas poderia ser executado em 40 minutos ou em 10 minutos”. E, segundo, o disco apresenta algumas histórias não lineares que investigam a semântica e a fonética da voz humana, e sua manipulação por processamentos eletrônicos. Dois entendimentos que marcaram seu percurso.

Jocy se notabilizou muito cedo como intérprete como uma pianista virtuosa de sólida formação, fato que a fez conviver pessoalmente e trabalhar com alguns dos mais influentes artistas do século XX, dentre eles Cláudio Santoro, Iannis Xenakis, Igor Stravinsky, John Cage, Karlheinz Stockhausen, Luciano Berio e Olivier Messiaen. Alguns, inclusive, criaram peças para ela. Seu intenso circuito internacional lhe permitiu estabelecer parcerias musicais e afetos que se estenderam por anos através de encontros pessoais, cartas correspondidas e telefonemas.

Em 1983, Jocy ganhou uma bolsa da Rockefeller Foundation e, em 2007, ganhou novamente para uma residência na Itália, no Bellagio Center (pertencente à fundação), que lhe permitiu selecionar 111 correspondências dentre algumas centenas. O resultado desses encontros é seu livro Diálogo com cartas2 — uma cuidadosa edição lançada em 2014, que venceu o Prêmio Jabuti (o mais prestigioso prêmio brasileiro no campo editorial e literário) —, no qual apresenta o fac-símile das cartas, fotos de personagens históricos, partituras, momentos compartilhados, programas, imagens dos espetáculos e diálogos transcritos.

Sua prosa afetiva e confessional extrapola o âmbito pessoal e se assenta no universal ao apresentar questões que não somente nortearam sua geração, mas que nos acompanham desde sempre. Jocy nos alerta em seu Prólogo que, quando editou o material, já não era mais a mesma pessoa que olhava aquelas fotos e cartas esmaecidas, o que lhe impôs uma “visão mais objetiva” no trato da informação. Tal fato, ainda assim, lhe criou poucas facilidades, pois, segundo ela, “traduzir períodos intensos de descobertas artísticas, emocional ou poética, tornam-se vivências difíceis de serem reconstruídas e reveladas”3. O resultado é um belo livro ilustrado, densamente informado, com um texto que foge do formato epistolar convencional.

Questão geracional

Se é possível falar em espírito de um tempo, naquilo que move uma geração, podemos identificá-lo na obra de Jocy de Oliveira na “mistura que é nosso povo”, na “condição de mulher”, e no “orientalismo” que, para ela, são realmente questões “geracionais” e de “direito”.

Jocy afirma que “nosso povo é esse caldeirão de mistura, essa miscigenação em todos os sentidos”, e justifica, citando nossas influências trazidas pelos portugueses de Costa do Malabar (sudoeste da Índia) e pelos sírios a partir do século XIX. E sentencia: “Então nós temos uma cultura miscigenada, nós temos esse direito. Afinal, nós não somos alemães”.

Sua maturidade artística se dá no contexto da women's lib4 que a influencia, mas não a ponto de assumir militância ou o uso panfletário em suas obras. Seu interesse recai sobre a “atemporalidade dos mitos” e nas “sociedades matriarcais das antiguidades”. Isso lhe permite abordar o preconceito, a intolerância, a negação do outro, o cancelamento da mulher e de seu imaginário mitológico, abordado de forma atemporal em várias de suas obras.

O tempo não estruturado

Jocy gosta de afirmar que seu interesse é “absorver o tempo em sua essência não estruturada”. Seu entendimento acerca do tempo extrapola o estrito campo da música e se expande para a dimensão vivida, que segundo ela “tem várias raízes”, das quais ressalto três:

(a) Ao questionar se o uso da linguagem musical é realmente baseado no tempo — porque, conforme Jocy, quando se pensa em música, se pensa em andamento, e “andamento não é noção do tempo” —, é levada ao “tempo intuitivo”, aquele que não obedece ao metrônomo;

(b) Entendendo o tempo do intérprete, ela chega àquele que ouve e que age por conta própria. O tempo da escuta é algo que a preocupa; de acordo com a artista, “nós estamos perdendo essa qualidade, que é de ouvir o outro”. Esse entendimento se converte em método de trabalho ao abolir a figura do regente em favor da escuta do intérprete, subvertendo completamente a hierarquia. “Quando você diz para o regente que ele não deve pensar e que o músico deve pensar, dá um curto-circuito. Ele deve pensar de outra maneira”;

(c) Seu interesse pelo orientalismo lhe possibilitou aproximar do tempo meditativo dos indianos do sul. Algo que, segundo ela, chega de maneira intuitiva, mas que se torna parte de seu método, algo que lhe possibilitou procurar outros meios de expressão em diferentes culturas, criando uma linguagem multicultural inteligível. Algo que vai ocorrer em várias fases de seu trabalho.

Sobre o tecido sonoro

O material sonoro produzido por Jocy soma elementos da experiência musical e da vida da artista. Fato que lhe permite, por exemplo, associar sua impressão sobre um sadhu (homem santo) cantando uma raga à Shiva, em um templo de Nova Déli, a reminiscência de um contraponto renascentista ou uma cantilena associada a sons gerados por computador.

Nas palavras de Jocy, “este tecido sonoro pode se desenvolver de séries múltiplas, nuvens de sons em constante transformação de texturas, uma tala, a tradição pós-serial europeia, a não periodicidade oriental, a atemporalidade da natureza, o acaso, ou nossas raízes culturais antropofágicas. É a integração de todos esses elementos e minha visão do mundo, que toma forma a partir de mais de trinta anos de vida em diferentes países e do convívio com alguns dos maiores mestres do século XX”.5

Outro aspecto importante de seu material sonoro é o uso da voz. Em suas óperas multimídia, a escrita para voz é intrinsecamente ligada às técnicas vocais estendidas e a processos eletrônicos de manipulação. Diz a artista: “o texto sempre é criado concomitantemente com a música e a imagem cênica. Não acredito em escrever um libreto para uma ópera ou musicar um texto: a utilização de vários idiomas para o texto cantado tem em vista a questão sônica/musical”.6

Óperas cinemáticas

Foi um desenvolvimento espontâneo, o corpo que tomou a manipulação da voz, na procura de uma nova linguagem cênico/musical que pudesse transformar o conceito tradicional de “ópera” ou “música-teatro”, no que a artista chamou de “ópera cinemática”.

Em 1961, Jocy já estava escrevendo uma peça teatral como um drama eletrônico, em que vozes humanas “dialogavam” com vozes eletrônicas, e assim nasceu Apague o meu spotlight, concebido sem uma sequência linear, como um teatro de imagens e sons.

Desde então, realizou nove óperas em que conduziu não só o processo de composição das músicas, do roteiro e da concepção visual, mas também sua direção, de modo integrado e simultâneo, construindo uma obra particular que, desde o início, colocou uma importante discussão a respeito da posição da mulher na sociedade.

A questão da mulher

Jocy conseguiu construir uma carreira artística de forte protagonismo, sendo mulher e artista oriunda do hemisfério sul, cujo início se deu nos idos anos de 1960, em um ambiente constituído e regido majoritariamente por homens.

Podemos dizer que sua condição de mulher e transgressora a fez apontar o foco para o feminino, e expor o preconceito, a intolerância, a negação do outro, da mulher e de seu imaginário mitológico.

Sua militância nunca foi programática ou panfletária, mas existencial, algo que nasceu no contexto das conquistas feministas da década de 1960, e que se tornou decisivo para o seu entendimento do feminino; algo que ela efetivamente encontrou na atemporalidade dos mitos e nas sociedades matriarcais das antiguidades.

Sobre nosso encontro

Em uma sexta-feira de outono em 2018, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no âmbito do programa Arte Sonora, conheci pessoalmente Jocy de Oliveira. Nosso encontro se deu com a escola quase sem movimento. Todos que chegavam seguiam diretamente para a varanda da biblioteca, que ficou lotada. Só se ouvia a floresta, o vento e os murmúrios. Antes de começarmos, em uma mesa no canto da biblioteca, ela me “sabatinava”, como verdadeira autora e matriarca. Jocy queria saber tudo: quem éramos, qual a natureza do programa, como “transpor” esse encontro para um podcast e, por fim, o que seria abordado.

É claro que em apenas um encontro, mesmo mediado por vídeos e áudios de seus trabalhos, não seria capaz de dar conta de tamanha complexidade e abrangência que é a obra de Jocy de Oliveira; por isso, a necessidade de editá-lo para a forma escrita que, certamente, nos ajudará a compreender algumas questões esboçadas até aqui.

Jocy de Oliveira: É um prazer estar aqui nessa casa que para mim é histórica. Porque traz uma lembrança de uma grande cantora: a Gabriella Besanzoni, e também porque eu fiz uma de minhas óperas aqui, em 1994, Illud Tempus, ali na piscina, foi absolutamente mágico.

Franz Manata: Quero começar nossa conversa propondo um exercício: olhando de forma retrospectiva, como foi construir uma carreira artística de forte protagonismo, no ambiente constituído e regido majoritariamente por homens?

Jocy de Oliveira: Essa é uma pergunta que é sempre instigante; o caso do gênero e da mulher, principalmente em países como o nosso, que são países machistas. Mais ainda em certas profissões, como é o caso da composição que, por uma razão muito estranha, a mulher compositora é sempre marginalizada. Estatísticas nos provam que apenas 2% das mulheres compositoras figuram na programação mundial de música erudita... não é só no Brasil. Agora, imagina aqui. A mulher, para ser ouvida, precisa gritar muito alto.

Franz Manata: Podemos dizer que sua condição de mulher e transgressora a fez apontar o foco para o feminino, o preconceito, a intolerância, a negação do outro, da mulher e de seu imaginário mitológico?

Jocy de Oliveira: Eu comecei muito cedo com essas questões já na década de 60, que foi uma década extremamente estimulante, instigante. Eu acho que os anos de 1960 foram o novo dadaísmo. Eu morava nos Estados Unidos e tinha muito contato com vários dos grandes compositores e autores, como John Cage e outros. Eu sentia essa dificuldade mesmo nos Estados Unidos. Entretanto, eu tinha uma carreira como pianista e tocava pelo mundo afora como intérprete, e não existe isso. Porque a cantora, por exemplo, soprano, tem que ser mulher, porém até uma certa época, não era nem isso, era o castrato que cantava. Nem essa posição ela tinha. Então eu comecei, não obviamente a usar essa questão de forma panfletária de que na época foi um pouco o women's lib, mas introduzi na minha obra todos esses traços da mulher, dos valores do feminino, buscando isso na atemporalidade dos mitos. Das sociedades matriarcais das antiguidades. E, de maneira sutil, passando essa importância que estava dando para a questão da mulher. Por ter nascido mulher e por opção ser mulher.

Franz Manata: Em 1981 você lança o vinil Estórias para voz, instrumentos acústicos e eletrônicos, um disco prensado pela Fermata e relançado, em 2017, pelo selo inglês Blume. Como foi produzir esse disco e qual foi sua repercussão?

Jocy de Oliveira: Esse disco é interessante porque foi feito realmente em uma época em que foi considerado internacionalmente como pioneiro. Aqui no Brasil, foi ignorado. Absolutamente ignorado. Mas ele se tornou, desde o advento da internet, principalmente, um disco muito pirateado. Era uma peça que já questionava o tempo, uma nova noção do tempo. A gravação do disco tem 22 minutos, mas ela poderia ser executada em 40 minutos ou em 10. E foi bastante executada nos EUA, eram instrumentos acústicos, baixo e guitarra elétrica, eu usava o EMS Synthi AKS (analógico), inglês, e que podia processar o som em tempo real. O que fizemos também, que era curioso, foi o uso de duas vozes de uma soprano, que no caso dessa gravação era a Martha Herr, e a minha voz era usada em tempo real para processar, manipular os fonemas cantados por ela. Eu nunca fui cantora, mas essa inserção da minha voz interferia no canto dela e, além disso, eu estava usando um synth em tempo real. Eu tinha percussão usando instrumentos étnicos e um violino também muito interessante, que era um violino eletrônico, que foi construído especialmente para nós — Vitar —, em Boston, para o violinista Ayrton Pinto, que foi um grande violinista brasileiro que morava no EUA e tocava com a Boston Symphony. Nós fizemos parcerias de muitos anos, tocando em vários lugares. O violino tinha cinco cordas, ele tinha o dó da viola, então quando se ouve, às vezes, parece um trompete; é muito curioso o instrumento. É uma peça que ficou cult. Hoje em dia esses grupos de rock mais progressivos aqui no Brasil é que despertaram para essa gravação. Tem uma onda que os tocam muito, e falam muito, e estão muito ligados a isso. É interessante, porque os chamados músicos da música erudita ignoram, não existe.

Franz Manata: O disco traz algumas histórias não lineares que investigam a semântica e a fonética da voz humana e sua manipulação por processamentos eletrônicos, outro eixo que atravessa seu trabalho. O que me faz lembrar uma afirmação sua: “meu interesse é absorver o tempo em sua essência não estruturada”. Você pode comentar isso?

Jocy de Oliveira: É exatamente o que eu comecei a dizer um pouco nessa peça. Eu acho que ela estabelece, nesse sentido, uma partida, uma procura, que é curioso porque quando se fala em música, se pensa que nós estamos usando uma linguagem que é realmente baseada no tempo, mas na verdade seria o tempo? Não. Porque nós estamos pensando em andamento; andamento não é noção do tempo; aqui, então, eu comecei a usar esse tempo intuitivo. Quer dizer, o tempo do intérprete, daquele que ouve. É a questão da escuta que me preocupa muito; nós estamos perdendo essa qualidade, que é de ouvir o outro. Um músico que toca, digamos, no conjunto de câmera: que ele se ouça, que ele ouça o próximo. Isso vai interferir com a interpretação dele, por mais que seja escrito. Mas aquilo que está escrito já existe em alguns parâmetros que são indeterminados e que preveem, digamos, esse ajuste. E isso é uma maneira de se pensar totalmente diferente, que talvez eu tenha sentido intuitivamente e que depois fui encontrar muito no sul da Índia. Nós, aqui do Ocidente, estamos mais voltados para ler a música, falar sobre ela, analisar a música, e no Oriente, não. Todo esse desenvolvimento é oral, vem do mestre ao discípulo e esse desenvolvimento vai sendo processado pouco a pouco. Eu estive certa vez em Nova York procurando tomar algumas aulas com o guru de música carnática, a música clássica do sul da Índia, chamado Pandit Pran Nath7. E eu fui lá e disse: — Olha, eu estive na Índia; passei três meses no sul da Índia, pesquisei muito todos os Shruti (Śruti)8, que são os intervalos microtonais. Coisa que o nosso ouvido não sente. Eles sentem. Porque eles desenvolvem essa questão de ouvir o outro. Quando eles tocam, por exemplo, uma raga, algo que ouvia em vários lugares. Primeiro, que o conceito não é de um concerto, ninguém paga ingresso. Você é levado por alguém que seja iniciado e que te leva porque você também está apto a ouvir aquilo. É quase um ritual, no sentido espiritual de você se sentar ali… Isso quando cheguei na Índia, faz mais de 20 anos. Lá nós sentávamos no cimento, em um galpão no meio de uma favela, um labirinto que você não saía dali sozinho, porque você não acertava de jeito nenhum. E você tinha que se sentar na posição de lótus, porque não tinha outro jeito. E começava aquelas ragas compostas para serem tocadas em uma hora específica, a raga da noite, da manhã, da tarde etc. E aquilo não tem um tempo definido. Depende de um ouvir o outro e desenvolver técnicas estruturais que são passadas de mestre para discípulo por centenas de anos, ou seja, é algo muito rígido e ao mesmo tempo muito aberto. No final, você chegava para ver a raga das 7 horas da noite e saía às 7 horas da manhã, e você se sentia anestesiado, ninguém sentia cansaço nem frio nem nada, absolutamente nada. É coisa que aqui no Ocidente não conseguimos. Essa é a questão que foi se desenvolvendo em várias peças ao longo dos anos até hoje. Claro que eu fui aperfeiçoando técnicas, inclusive hoje tenho usado até para peças para orquestra, mas aí a coisa complica um pouco. Porque a questão do tempo intuitivo de cada músico, quando você toca com orquestra, você precisa de um regente.

Todas as minhas peças camerísticas, eletrônicas, tudo misturado, porque uso sempre música mista; eu não tenho um regente, eu nunca rejo, eu não quero que ninguém reja, e os músicos que trabalham comigo há mais de 20 anos não querem nem saber disso. Claro que o trabalho demora muito mais para você chegar lá. Muitas pessoas me dizem assim: “escuta, minha filha, você pega um regente, ele bota isso perfeitamente bem para ser executado em poucos ensaios”. Sem regente você vai demorar porque até um ouvir o outro e se ajustar é um exercício da percepção. Hoje, eu ainda continuo fazendo e com orquestra é muito difícil, porque o regente é quem pensa, o músico não pensa. Ele está ali para tocar e executar o pensamento do regente. Quando você diz para o regente que ele não deve pensar e que o músico deve pensar, aí dá um curto-circuito... ele deve pensar de uma outra maneira.

E essa questão da noção tempo... tem várias raízes de onde surge isso, por exemplo, uma das coisas que também me influenciaram muito a pensar nisso foi a obra do Messiaen. Eu passei sete anos da minha vida estudando, tocando e gravando a obra do Messiaen.

Franz Manata: Você é considerada a maior intérprete desse gênio que é o Olivier Messiaen. Como foi executar Catalogue d'oiseaux, que é uma das obras mais importantes e complexas, concebida como um catálogo dos pássaros, cuja composição é toda feita a partir de seus cantos?

Jocy de Oliveira: O Messiaen criou uma linguagem única, usando o canto dos pássaros, mas não especificamente de uma maneira simbólica. Ele pensa também em transformá-los musicalmente nesses intervalos microtonais que os pássaros usam; usando a música indiana, os ritmos que são Talas9, usando a temporalidade da natureza, usando os cantos gregos, usando linguagem tonal, atonal, politonal, polimodal. Ele fez realmente um caldeirão de mistura; é o Messiaen. E aí ele conseguiu uma completa assimetria, a obra se tornou amétrica com canto dos pássaros, como a natureza, porque os sons da natureza são amétricos. Totalmente caótico, livre, sem uma pulsação rígida, fixa. Digamos que ele teria incorporado o que um Liszt faria hoje, misturado a um Debussy, ele dá um passo adiante. Em várias fases do meu trabalho, eu sempre volto a isso, sempre tenho peças, inclusive ainda hoje; a mulher árabe é totalmente isso, quer dizer, são peças que são meditativas, que têm essa questão sobre uma nova noção do tempo que tem um certo orientalismo. Muita gente pergunta o porquê do orientalismo. Pensando bem, temos esse direito aqui, porque os cantadores do Nordeste assimilaram perfeitamente esse orientalismo, que foi trazido dos portugueses de Malabar, que estavam em Goa e que receberam uma influência também da comunidade síria do século XVI e chegou lá e foi esse caldeirão de mistura, que é o nosso povo. Miscigenação em todos os sentidos e que se sente traços nos cantadores. Nós temos uma cultura miscigenada, nós temos esse direito. Nós não somos alemães.

Franz Manata: Voltando um pouco no tempo, gostaria de conversar sobre Apague meu spotlight, de 1961, apresentado na Semana de Música Eletrônica, no Theatro Municipal do Rio e de São Paulo, e que foi a primeira performance de música eletrônica encenada no Brasil. Foi um momento transgressor por vários aspectos, o próprio festival, organizado por você e pelo maestro Eleazar de Carvalho — seu marido à época —, influenciou e foi impactante para vários artistas, a ponto de estimular Jorge Antunes, por exemplo, a produzir o disco Música eletrônica, pioneiro no Brasil, depois de assistir David Tudor apresentar Kontakt de Stockhausen. Conta para a gente como foi a experiência de produzir e vivenciar esse momento.

Jocy de Oliveira: Eu estive em Tanglewood, nos Estados Unidos, no Festival de Música de Tanglewood10 em 1960, e lá eu conheci Luciano Berio, que talvez seja melhor eu falar sobre isso depois, mas eu estava naquela época escrevendo uma peça teatral que eu queria que fosse um drama eletrônico. Aqui no Brasil, não se tinha absolutamente condições de fazer música eletrônica, aí eu encontrei o Berio — era um “papa” da música eletrônica da época. Conversei muito com ele; disse olha, eu estou escrevendo isso, eu queria esses diálogos, que seriam feitos pelo Teatro dos Sete11, que é uma grande companhia de teatro com a Fernanda Montenegro, que continua até hoje me acompanhando em várias de minhas peças. Foi uma parceria, assim, maravilhosa que surgiu naquela época junto com o Sérgio Brito. Eu queria que essas vozes em cena dialogassem com as vozes eletrônicas; Apague o meu spotlight nasceu assim. Mas eu não podia fazer isso sozinha e o Berio disse para fazermos isso no Studio di Fonologia Musicale di Radio Milano12. Foi um processo lento de um ano, entre estadas no Brasil e compromissos na Europa. Quando chegava aqui, gravava as vozes na Rádio MEC, aí, eu mandava para Milão. Mas mandar naquela época era complicadíssimo, você tinha que pedir auxílio de diplomata e do consulado. Fui para Milão algumas vezes, depois ele me mandava material junto com cartas — que publiquei no livro Diálogo com cartas —, em que diz: “recebi aqui, agora eu tô te mandando um trecho, veja o que se deve colocar, edite como você achar melhor”; quando voltava o material, eu editava na Rádio MEC. Ele veio depois e ficou quase um mês aqui no Brasil, nos ensaios finais. É interessante que tanto a Fernanda [Montenegro] como o Sérgio Britto, a princípio os dois que eu sempre tive mais contato, eles se deram conta — isso dito pela própria Fernanda em depoimento — do valor histórico daquele momento. Nós fizemos a primeira apresentação da peça Apague meu spotlight, com música eletrônica, no Theatro Municipal do Rio. Tudo veio da Holanda, eu consegui que a Philips trouxesse um equipamento de primeira que tinha sido utilizado na exposição de Bruxelas. Eles trouxeram tudo, quer dizer, nós tivemos, inclusive, doze caixas no Theatro Municipal, coisa que o Berio dizia, “bom eu vou pra aí, mas veja bem o que vão me apresentar”, porque ele achava que teríamos umas quatro caixas furadas, e que não teríamos equipamentos aqui. Porque era difícil; na Europa também eram pouquíssimos estúdios de música eletrônica. Quando ele chegou aqui, ficou espantado. Por exemplo, uma mesa, mixer, não existia neste país, como você vai fazer música eletrônica se não se tem nem ao menos um mixer? Eles trouxeram tudo. Foi fantástico, cheio de gente, pessoas sentadas no chão — eu não sei como é que permitiam isso — de pé, em todos os lugares. Depois fizemos em São Paulo pela Bienal, no Theatro Municipal de São Paulo. Eu tentei fazer com que a Philips deixasse todo esse equipamento aqui no Brasil para se formar o primeiro estúdio de música eletrônica, mas eles não toparam e levaram tudo de volta.

Franz Manata: Apague meu spotlight foi concebido sem uma sequência linear, como um teatro de imagens e sons. A peça traz, já naquela época, uma discussão importante a respeito da posição da mulher na sociedade, certo?

Jocy de Oliveira: Eu acho que nesse sentido foi um pouco intuitivo, não acho que eu tivesse realmente me posicionado, porque era muito cedo para pensar nisso. Mas, ao mesmo tempo, existe essa questão de que eu comecei uma carreira muito cedo, eu tinha uns 20 anos. O problema era que eu sentia na pele, obviamente, que eu andava com pessoas 20 anos a mais que eu, sempre homens. Às vezes, claro, existia aquela coisa um pouco paternalista de que a mulher quando é muito jovem, é perigoso ela ser tomada como objeto sexual e ainda mais, bonitinha e tal, é um problema para a mulher se impor, ser respeitada por o que ela pensa, por o que ela é. Depois que envelhece, daí é lixo; a mulher segue carregando esses estigmas. Mas eu tenho impressão de que é até melhor com mais idade, porque com mais idade, pelo menos, a gente pode dizer o que pensa. Muito jovem e no meio de mestres não dá para se dizer o que pensa.

Franz Manata: Seguindo nessa direção, gostaria de falar um pouco sobre seu livro Diálogo com cartas, lançado em 2014, no qual você aborda sua relação com grandes compositores do século XX, como Igor Stravinsky, Iannis Xenakis, Luciano Berio, John Cage, Claudio Santoro e Karlheinz Stockhausen. Como foi revisitar essas memórias e transformar esse material em um objeto tão especial que, inclusive, venceu o Prêmio Jabuti?

Jocy de Oliveira: Uma grande honra ter recebido esse prêmio, porque, de certa forma, foi um reconhecimento talvez até maior do que eu tenho tido na minha área, que realmente é a música. Bem, esse livro surgiu porque eu tive uma bolsa, um prêmio da Rockefeller Foundation, para passar um tempo em residência na Itália, no Bellagio Center, da Fundação Rockefeller. Eu me propus então a escrever um livro sobre as cartas; tenho centenas de cartas; escrevi esse livro baseado em 111 cartas, mas ainda tem mais cento e tantas, porque naquela época se escrevia cartas, simplesmente por isso. Isso é muito diferente. A questão de você escrever uma carta, existe toda uma reflexão, existe uma expectativa em receber uma carta, coisa que não existe mais hoje. Eu levei essas cartas xerocadas e lá pensei no que fazer com elas, resolvi compilar em um livro, mas não apenas as cartas; o mais importante, situá-las em sua época, em relação a outros compositores, em relação a outros artista da época, o que acontecia nas entrelinhas das cartas, porque as cartas nem sempre contam tudo, mas determinam um momento na vida daquele que escreveu, a obra que estava compondo, qual era a influência daquela época. Todos esses comentários são muito importantes, porque enriquecem historicamente todo esse universo dos maiores mestres do século XX, e eu tive essa felicidade e a oportunidade de conviver com eles, de exercer uma parceria, uma colaboração; ter executado as músicas de vários deles em primeiras audições mundiais, de ter trabalhado com eles, como foi o caso do Berio, uma relação de muitos anos. Com Stravinsky, por exemplo, de ter sido solista sob sua regência, com as obras deles. Isso tudo foi muito enriquecedor e, naturalmente, me deu um repertório de informações, de experiências, absolutamente único. O livro é isso; são cartas de primeira mão, quer dizer, cartas que nunca tinham sido publicadas, a maioria delas escritas a mão, são todas fac-símiles: Stockhausen, Berio, Xenakis, Santoro, Messiaen, todos esses.

Franz Manata: Em 2010 e 2012 você produziu dois espetáculos que recuperaram elementos de sua trajetória como intérprete e sua vida afetiva em Revisitando Stravinsky e Berio sem censura...

Jocy de Oliveira: Revisitando Stravinsky é uma obra de 80 minutos. Foi feita no Theatro Municipal do Rio e extraída do capítulo “Revisitando Stravinsky”, do livro. Desse capítulo, eu fiz um roteiro para essa ópera, em que eu mostro algumas peças de Stravinsky e uso a mesma instrumentação para algumas peças que compus especialmente para essa cena dos interlúnios, a fase escura da Lua. Eu chamei assim porque eu digo que eu seria a fase escura da Lua, e o Stravinsky, a fase luminosa da Lua. Como vocês podem observar, foi o mesmo tipo de formato que eu fiz tanto para o Stravinsky quanto para o Berio. Uma atriz que me representa com 20 anos; foi a época que eu conheci todos eles. E eu participo com a veracidade das minhas palavras e as minhas observações hoje, com o meu olhar de hoje que é diferente daquele que eu tinha com 20 anos. A peça sempre transcorre assim contando esse encontro, entremeado de peças do compositor e minhas. Embora Berio sem censura tenha sido também concebido no mesmo formato de Revisitando Stravinsky, foi um pouco diferente no sentido de que eu usei um ator para fazer o Berio. Para fazer Stravinsky eu não usei, era impossível. Acho que isso é um dado diferente porque tem questões humorísticas e questões de linguagem que ele levanta, e que eram pertinentes. Além disso, também tem uma diferença: é que a minha obra, minha música, tem uma afinidade grande com a obra do Berio. Escolhi peças minhas que tivessem afinidade com algumas peças dele. É claro que uma peça de 85 minutos você não pode botar a peça inteira. Escolhi pequenos trechos. Foi diferente no [Revisitando] Stravinsky, porque eu não usei esse tipo de analogia. Chama Berio sem censura, porque foi contando uma história que era desconhecida. Foram várias apresentações dessa peça; por exemplo, a sequência IV para piano, que foi composta para mim, eu toco em público durante a ópera e ele fez três versões. A primeira foi pra mim e eu fiz a primeira audição mundial. Ele mandou página por página, chegou com a última página de noite e era para tocar no dia seguinte; eu passei a noite inteira estudando. É uma coisa assim absolutamente louca, porque é uma peça muito difícil. Depois ele fez uma segunda versão, que eu toquei na Califórnia (a primeira foi em Saint Louis), e a terceira é a única conhecida hoje. O editor dele em Viena só conhece a versão editada. Isso é uma coisa historicamente muito importante. Depois da apresentação da obra, o editor nos dificultou muito. Embora a filha dele, que mora em Los Angeles, tenha vindo para assistir, os netos dele também adoraram, assim como foi a família do Stravinsky e Robert Craft, que me deram todo o apoio. Mas o editor do Berio, não. Foi realmente muito rígido e implicou que a obra dele não podia ser dramatizada, o que significa que ninguém pode fazer um filme sobre a obra dele, sobre a vida dele... olha que absurdo. Isso não existe. Então eu chamei Berio sem censura, e foi feito.

Franz Manata: Gostaria de continuar com a questão da mulher em sua obra. Você sempre se interessou por uma visão atemporal da mitologia feminina, abordando em várias de suas óperas, como em Inori, à prostituta sagrada, de 1993; a mulher nos contos de fada em Illud tempus, de 1994; a “diva” fadada da tragédia As malibrans, de 2000; mas quero conversar sobre Kseni — a estrangeira, de 2007, que resgata o mito de Medeia sob o ângulo político da mulher desterrada, transgressora, discriminada.

Jocy de Oliveira: Só acrescento alguma coisa de que eu acho que essa Medeia não é a do Eurípides. Eu parti do mito de Medeia. Para mim, esse mito foi abordado de maneira diferente, porque ele foi abordado como a mulher política, não me interessou a questão dela com Jasão. Foi pela política, a questão da mulher, a mulher discriminada que acho que aqui é pertinente para nós hoje; a Medeia é uma figura, hoje, como um mito importante. Em segundo lugar, também há a questão dos filhos, na minha Medeia ela não assassina seus filhos, ela liberta seus filhos. Os gregos que representavam o mundo civilizado não a aceitaram. Ela foi excluída, ela era uma excludente daquele mundo, como bárbara, como terrorista, hoje. Ela não quis deixar nesse mundo inóspito seus filhos e os carrega em uma “carruagem de fogo”. Esses dois ângulos são importantes, porque são abordados de uma maneira diferente. O texto todo é muito forte nesse sentido.

Franz Manata: Vamos falar agora sobre Noturno de um piano (2005), que parte de uma música / vídeo / performance que se torna uma instalação.

Jocy de Oliveira: É uma peça conceitual, não foi absolutamente gratuito lançar um piano ao mar. Teve uma razão. São duas, as razões. Do ponto de vista social é uma denúncia do que está acontecendo com a cultura ocidental, digamos, a alta cultura, na qual um piano é um ícone que está submergindo, que está acabando; ele representa uma era; representa, por exemplo, a música erudita, que está sendo absolutamente marginalizada, desvirtuada nos dias de hoje. A segunda razão é pessoal. Eu vivi num piano, nasci num piano, toquei piano no mundo inteiro, estudava oito horas por dia, porque eu tocava música de vários compositores que estavam escrevendo naquele momento para mim. Eu tinha que estudar sempre, mesmo; não era como realejo a repetir as mesmas obras, era aprendendo e tocando novas obras também. E isso chegou a um ponto da minha vida que eu disse: o piano tem que submergir, ele tem que terminar. Tenho que ter tempo da minha criação e me livrar disso. Apesar de que o estudo de um instrumento como o piano é quase como uma meditação, mas é um aprisionamento do intérprete. Ele fica horas, horas e horas alienado do mundo. Pode cair a casa, você está estudando e naquele momento você não ouve o resto do mundo, você não ouve mais nada. Então, isso também foi uma questão pessoal, que entendi posteriormente. Eu não percebia quando estava fazendo isso, quando estava fazendo meu intuito era social, era uma denúncia. Claro que existem todas as complicações para se fazer um vídeo desses, mas foi feito um piano em nosso sítio. Ele foi feito como se fosse um barco, ele flutuava e foi lançado em mar aberto, ali é mar aberto, até que ele afundou. Ele afundou, ele ficou lá no fundo do mar, juntou craca etc. e depois nós resgatamos esse piano, mas, na verdade, o resgatamos para fazer dele uma instalação. Daí foi recriado no outro conceito da instalação, no Oi Futuro [em 2008], que ficou dois meses em cartaz. Para mim, as instalações precisam ter interferências; essa instalação tinha interferências musicais, cênicas etc., dentro dela, e voltou para casa. Mas ele estava lá, pendurado, não dava mais, ele tinha que realmente acabar, daí surgiu essa minha ideia que é uma “ópera cinemática”; é o que eu estou realmente trabalhando hoje e que é uma ficção que eu acordei com essa ideia, de uma diva, uma pianista, uma cantora, uma mulher famosa pelo mundo inteiro que embarca em uma trágica viagem com o seu único companheiro de vida, o piano. É uma ficção, porém eu o situei em evento factual da Segunda Guerra Mundial. Eu fui procurar, então, que navio seria esse, porque foi uma viagem sem retorno que ela entrou. Eu encontrei um navio pouquíssimo conhecido, que saiu de Constanta na Romênia, que se chama Struma e que foi o último navio a zarpar da Europa, em 1941, com 778 refugiados judeus e 22 tripulantes; o percurso dele é incrível porque a meta era a Palestina, que era o sonho dos judeus, e tem que ir pelo Bósforo. Essas pessoas compraram esses bilhetes caríssimos, custaram mil dólares, para a época uma fortuna, sem direito de conhecer o barco. Isso é verídico. O navio que trouxeram tinha sido usado no Danúbio para transportar gado e era um navio que estava avariado, em petição de miséria, o navio só comportava 200 e poucas pessoas e eles puseram 700 e tantas. Por si só foi uma viagem absolutamente terrível, por doenças, falta de comodidade, de mantimentos, não tinha nada. Eles chegaram na Turquia, ficaram dois meses de quarentena porque o governo não permitiu que ninguém descesse e, para encurtar essa história, a fixação é dessa mulher, essa cantora como é que ela está nesse navio. Ela canta para entreter e amenizar os sentimentos desses refugiados e ela conta a sua história. Esse navio que sai do Bósforo nunca chega à Palestina, é torpedeado por um submarino russo. Ficção: vinte anos depois ele é encontrado na costa de Siles, por um pescador árabe. Esse pescador árabe ouve as vozes que vêm junto com esse piano. Esse piano, então, se torna a caixa-preta e vai contar o naufrágio; é o piano que conta a história, é a caixa-preta. Eu acredito que em qualquer caixa-preta de desastre aéreo veem fantasmas também. Então, veem o espectro dela, Mathilda Segalescu, que é essa diva, que aparece todas as noites para contar sua história e cantar para esse pescador árabe. Ele fica fascinado por ela e se apaixona por esse espectro, e faz tudo para realmente conquistá-la, mas eles estão em dimensões diferentes. Ele é um árabe e diz para ela que tanto faz se ela é judia ou árabe. Porque o sonho da Palestina é tanto dos árabes quanto dos judeus, como é de toda a humanidade. E aí não vou contar o final, mas essa é a história de Mathilda Segalescu que eu estou fazendo um filme, de 85 minutos, um longa-metragem. Foram feitos dois roteiros, simultaneamente, uma para teatro e um para cinema. O roteiro de teatro levamos a São Paulo no Sesc, em 2017, e a montagem para o cinema nós estamos tentando conseguir verba para terminar. Estamos em uma fase de pós-produção, edição, mas cinema é uma coisa demorada, lenta. Foi filmada nas ruínas do cassino da Urca, porque obviamente eu não queria nada naturalista, se fosse isso teria que fazer um filme de bilhões de dólares na Turquia, com navio e naufrágio. Então, eu escolhi a destruição da humanidade, porque o enfoque do filme realmente são os refugiados, imigrantes, são os estigmas contra etnias e perseguições. Que é uma história desde a Idade Média.

Franz Manata: Você me parece ainda muito inquieta nesse momento. Por que caminhar em direção a esse cinema expandido, produzindo isso que chama de uma “ópera cinemática”?

Jocy de Oliveira: É difícil, realmente, estabelecer fronteiras; eu preferiria não estabelecer essas fronteiras, é claro. No caso aqui, eu chamo de ópera cinemática porque alguém de cinema vai dizer que não é cinema; isso é teatro ou ópera. Ok. E alguém de ópera vai dizer: isso não é ópera, é cinema. Na verdade, teatro ou ópera, por mais que você tenha um teatro tipo o Metropolitan ou Covent Garden, que você tenha recursos cênicos incríveis, técnicos, você não pode usar locações diferentes como se usa no cinema. Aqui foi pensado para cinema. São diferentes locações nesse fantástico Cassino da Urca, com salas imensas. A linguagem foi toda decupada, cenas de dois minutos, um minuto, um minuto e meio… Cinema. Não se pensa assim no teatro. E isso é uma coisa que eu realmente gostaria de fazer. É mostrar o filme quando pronto e mostrar a obra teatral em um teatro. Realmente, é diferente e nós podemos testar porque fizemos em São Paulo. É um novo formato, eu não sei se existe ópera cinemática, eu nunca vi, mas já que eu tô chamando, então existe [risos].

Franz Manata: Eu quero agradecer profundamente a presença de vocês mais uma vez, à Escola e toda a equipe e, particularmente, à Jocy de Oliveira que, generosamente, dispôs de seu tempo para estar aqui conosco.

Jocy de Oliveira: Queria aproveitar para dizer que todas essas óperas não seriam possíveis se eu não tivesse um grupo de artistas que tem trabalhado comigo há mais de 20 anos. Como, por exemplo, a soprano Gabriela Geluda e todos os instrumentistas. Tem gente que mora em Estocolmo, gente que mora em Berlim, aqui na maioria, e todos vêm, se reúnem e trabalham, e isso é importantíssimo, justamente pelo que tratamos no começo, por essa linguagem que não é qualquer um que chega e assimila. Eu queria aproveitar para apresentar para vocês Bernardo Palmeiro, que é também meu parceiro por mais de 15 anos e tem filmado todas as minhas óperas, além de aguentar todas as minhas chatices; é uma equipe, e é uma equipe muito importante para mim. Existe uma ligação, uma compreensão de muitos anos, tem gente que trabalha há 30 anos comigo. Boa noite, foi um prazer!

Notas

1 Blog do IMS, https://blogdoims.com.br/um-disco-que-nao-existiu/. Consultado em 14/4/2021.

2 Oliveira, Jocy de. Diálogo com cartas. São Paulo; Rio de Janeiro: Sesi; Oi Futuro, 2014.

3 Oliveira, Jocy de. Diálogo com cartas. São Paulo; Rio de Janeiro: Sesi; Oi Futuro, 2014, p. 11.

4 Women's Liberation Movement (WLM) ou Movimento de Libertação das Mulheres foi um alinhamento político das mulheres e do intelectualismo feminista que emergiu no final dos anos 1960 e continuou na década de 1980, principalmente nas nações industrializadas do mundo ocidental, que efetuou grandes mudanças (políticas, intelectuais, culturais) em todo o mundo. [Fonte: Wikipédia]

5 Vice, consultada em 15/4/2021, https://www.vice.com/pt/article/a33m75/jocy-de-oliveira-fala-sobre-o-classico-eletroacustico-estorias-para-voz.

6 Vice, consultada em 15/4/2021, https://www.vice.com/pt/article/a33m75/jocy-de-oliveira-fala-sobre-o-classico-eletroacustico-estorias-para-voz.

7 Pandit Pran Nath foi um cantor clássico indiano e professor do estilo de canto Kirana Gharana. Promovendo os princípios tradicionais do raga, Nath exerceu uma influência sobre notáveis músicos minimalistas e de jazz americanos, incluindo La Monte Young, Terry Riley e Don Cherry. [Fonte: Wikipedia]

8 Shruti ou śruti é uma palavra sânscrita, encontrada nos textos védicos do hinduísmo, onde significa letra e “o que é ouvido” em geral. Também é um conceito importante na música indiana, significando o menor intervalo de altura que o ouvido humano pode detectar e um cantor ou instrumento musical pode produzir. O conceito musical shruti é encontrado em textos sânscritos antigos e medievais, como o Natya Shastra, o Dattilam, o Brihaddeshie o Sangita Ratnakara. Chandogya Upanishad fala da divisão da oitava em 22 partes. [Fonte: Wikipedia]

9 A Tala (IAST tāla), às vezes soletrado Titi ou Pipi, significa literalmente uma “palma, batendo a mão no braço, uma medida musical”. É o termo usado na música clássica indiana para se referir à métrica musical, ou seja, qualquer batida ou batida rítmica que mede o tempo musical. A medida é normalmente estabelecida batendo palmas, acenando, tocando os dedos na coxa ou a outra mão, verbalmente, batendo em pequenos címbalos ou um instrumento de percussão nas tradições subcontinentais indianas. Junto com a raga, que forma o tecido de uma estrutura melódica, a tala forma o ciclo de vida e, portanto, constitui um dos dois elementos fundamentais da música indiana. [Fonte: Wikipedia]

10 O Festival de Música de Tanglewood é realizado todo verão na localidade de Tanglewood, Lenox, em Berkshire Hills, no oeste de Massachusetts.

11 Teatro dos Sete é uma companhia de teatro fundada no Rio de Janeiro, em 1959, pelo diretor Gianni Ratto e pelos atores Fernanda Montenegro, Sérgio Britto, Ítalo Rossi e Fernando Torres.

12 O Studio de Fonologia Musical da Radio Milano foi fundado em 1955 em Milão, após uma iniciativa conjunta de Luciano Berio e Bruno Maderna.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 141-157, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.52052]

MANATA, Franz; OLIVEIRA, Jocy de. A mulher, pra ser ouvida, precisa gritar muito alto.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 141-157, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.52052]

MANATA, Franz; OLIVEIRA, Jocy de. A mulher, pra ser ouvida, precisa gritar muito alto.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 141-157, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.52052]

MANATA, Franz; OLIVEIRA, Jocy de. A mulher, pra ser ouvida, precisa gritar muito alto.

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MANATA, Franz; OLIVEIRA, Jocy de. A mulher, pra ser ouvida, precisa gritar muito alto.

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MANATA, Franz; OLIVEIRA, Jocy de. A mulher, pra ser ouvida, precisa gritar muito alto.