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© 2022 Hito Steyerl, Amanda Pietroluongo, Beatriz Pimenta Velloso, Gabriel de França Caetano

Submetido: 19/11/2021 Aceito: 4/5/2021

Um excesso de mundo: a internet está morta?

Too Much World: Is the Internet Dead?

Un exceso de mundo: ¿Internet ha muerto?

Resumo Desconstruindo a expectativa de que a Internet seria um grande vetor de democratização do conhecimento, o texto revela de forma sarcástica a expansão de antigos monopólios midiáticos dentro das redes sociais. O crescimento de ideologias, o surgimento de fake news e os ataques intempestivos à opinião de usuários não seriam atitudes espontâneas, mas procedimentos planejados para assegurar o poder a poucos privilegiados.

Palavras-chave internet; cinema; produtivismo; circulacionismo; arte contemporânea

Abstract Deconstructing expectations that the internet would be a vector for the democratization of knowledge, the essay sarcastically reveals the expansion of old media monopolies within social networks. The growth of ideologies, the appearance of fake news and unexpected attacks at users' opinions, far from being spontaneous attitudes, are instead planned procedures to secure the power of a privileged few.

Keywords internet; cinema; productivism; circulationism; contemporary art

* Hito Steyerl é artista, cineasta e escritora. Participou como artista da Documenta 12 e da 32a Bienal de São Paulo.

** Amanda Pietroluongo é artista e graduanda do Curso de Artes Visuais-Escultura da EBA/UFRJ. E-mails: amanda.pietroc@gmail.com.

*** Beatriz Pimenta Velloso é artista e professora associada do Departamento de Artes Visuais-Escultura da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: biapimentav@eba.ufrj.br. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9571-0616.

**** Gabriel de França Caetano é artista e graduando do Curso de Artes Visuais-Escultura da EBA/UFRJ. E-mail: gabrieldfranca07@gmail.com.

Hito Steyerl*(cineasta, Alemanha)
TRADUÇÃO: Amanda Pietroluongo**; Beatriz Pimenta Velloso*** (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
REVISÃO: Gabriel de França Caetano**** (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)

A internet está morta?1 Não se trata de uma pergunta metafórica. Nem que a internet esteja disfuncional, inútil ou fora de moda. Pergunta-se o que aconteceu com a internet depois que ela deixou de ser uma possibilidade. Literalmente, se ela está morta, como foi que morreu e quem foi que a matou.

Mas como alguém pode pensar que a internet acabou, quando ela está cada vez mais potente? Quando não apenas incita, mas captura inteiramente a imaginação, a atenção e a produtividade das pessoas, em maior intensidade que em qualquer outro momento de sua história? Nunca houve tantas pessoas dependentes, imbricadas, vigiadas e exploradas pela rede. A internet hoje parece esmagadora, espetacular e sem nenhuma outra alternativa imediata. Provavelmente a internet não está morta. Ela parece ter se totalizado. Ou mais precisamente: ter se espalhado por toda parte!

Diferentemente do que se pensa, a internet implica uma dimensão espacial. Seu sinal não está em todos os lugares. Hoje, mesmo quando as redes parecem se multiplicar exponencialmente, muitas pessoas ainda não possuem acesso à internet ou simplesmente não fazem uso dela. Mesmo assim, a rede continua se expandindo em outra direção. Ela começa a circular no modo offline. Mas como isso começou?

Se lembram do levante romeno em 1989, quando manifestantes invadiram estúdios de TV para fazer história? Naquele momento, as imagens mudaram de função.2 Transmissões em estúdios de TV ocupados tornaram-se eventos cataclísmicos – extrapolando registros ou documentos.3 Desde então, tornou-se claro que imagens não são interpretações objetivas ou subjetivas de uma condição pré-existente ou meramente aparências falaciosas. Imagens são como nós, enlaçamentos de energia e matéria que migram entre diferentes suportes4, moldando e afetando pessoas, paisagens, políticas e sistemas sociais. As imagens adquiriram uma estranha habilidade de proliferar, transformar e ativar. Por volta de 1989, as imagens de televisão começaram a caminhar através das telas, em direção à realidade.5

Esse desenvolvimento foi acelerado quando a infraestrutura da internet começou a suplementar as redes de TV com seus circuitos de circulação de imagens.6 De repente, os pontos de transferência se multiplicaram. Telas se tornaram onipresentes, para não falar das próprias imagens, que podem ser copiadas e dispersadas com o toque de um dedo.

Dados, sons e imagens agora estão rotineiramente transitando para além das telas, em um estado bruto diferenciado.7 Superam os limites dos canais de dados e materializam-se. São encarnadas como protestos ou produtos, como reflexos de lentes, arranha-céus ou tanques pixelados. Imagens tornam-se desplugadas e desequilibradas, e começam a se aglomerar no espaço fora da tela. Elas invadem cidades, transformando espaços em sites e realidade em bens imóveis. Elas se materializam como um junkspace8, invasões militares e cirurgias plásticas mal feitas. Elas se alastram por e para além das redes, contratam e expandem, atrasam e tropeçam, disputam, abominam, surpreendem e atraem.

Olhe ao seu redor: ilhas artificiais imitam plantas geneticamente modificadas. Consultórios odontológicos se vendem como sets de filmagem de comerciais de carro. Maçãs dos rostos são retocadas da mesma maneira que cidades inteiras fingem ser tutoriais do CAD no YouTube. Obras de arte são enviadas por e-mail para aparecer em lobbies bancários criados em softwares de aviões de caça. Nuvens gigantes de armazenamento se precipitam como horizontes em locais desertos. Entretanto ao se tornarem reais, a maioria das imagens é substancialmente alterada. Elas são traduzidas, torcidas, feridas e reconfiguradas. Elas mudam de disposição, entorno e giro. Um clipe pintando as unhas torna-se um protesto no Instagram. Um upload desce como uma shitstorm9. Um gif animado se materializa como um pop up em uma fila de aeroporto. Em alguns lugares, parece que arquiteturas inteiras de sistema NSA10 foram construídas – mas somente depois que o Google as traduz, vemos estoques de carros onde janelas espelhadas em um único sentido estão voltadas para dentro. Ao sair da tela, as imagens são distorcidas, dilapidadas, incorporadas e reorganizadas. Elas erram seus alvos, entendem mal seu propósito, erram suas formas e cores. Elas caminham, caem e voltam a aparecer nas telas.

Corporate Cannibal (2008), videoclipe em preto e branco de Grace Jones, descrito por Steven Shaviro como um exemplo fundamental do afeto pós-cinemático, é um caso a ser pensado.11 A essa altura, a fluidez descontraída e a modulação da figura pós-humana de Jones já está fixada como um modelo de austeridade infraestrutural. Eu poderia jurar que os cronogramas de ônibus de Berlim seguem esse modelo com consistência – eternamente esticando e forçando o espaço, o tempo e a paciência humana. Os destroços do cinema se rematerializam como investimentos em ruínas ou “Centros de Dominação Informacional”.12 Mas se o cinema estourou no mundo moderno para se tornar parcialmente real, também é preciso reconhecer que ele realmente explodiu. E provavelmente também não sobreviveu a essa explosão.

Pós-Cinema

Já faz muito tempo que as pessoas sentem que o cinema está um tanto sem vida. O cinema hoje é acima de tudo um estímulo para se comprar novas televisões, sistemas de projeção caseira e iPads com tela retina. Já faz muito tempo que ele se tornou uma plataforma para vender produtos franqueados – passando longas-metragens de futuros jogos de PlayStation em cinemas sanitizados. Se tornou aquilo que Thomas Elsaesser chama de complexo militar-industrial de entretenimento.

Todo mundo tem sua própria versão de quando e como o cinema morreu, mas eu pessoalmente acredito que ele foi estilhaçado quando, no curso da guerra da Bósnia, um pequeno cinema em Jajce foi destruído por volta de 1993. Lugar onde a República Federal da Iugoslávia foi fundada durante a 2ª Guerra Mundial, pelo Conselho Antifascista para a Libertação Nacional da Iugoslávia (AVNOJ). Eu tenho certeza de que o cinema também foi apunhalado em muitos outros momentos e lugares. Ele foi baleado, executado, morto de fome, foi sequestrado no Líbano e na Argélia, na Chechênia e na República Democrática do Congo, assim como em muitos outros lugares de conflito no pós-Guerra Fria. Não somente se retraiu como se tornou indisponível e, depois da superação do desastre, se estabilizou como obra de arte, como escreveu Jalal Toufic.13 Foi morto, ou pelo menos entrou em coma permanente.

Mas vamos voltar à pergunta inicial. Nos últimos anos muitas pessoas – praticamente todo mundo – têm percebido que a internet está estranha. Está obviamente completamente vigiada, monopolizada e sanitizada pelo senso comum, direitos autorais, controle e conformismo. Parece tão vibrante quanto um novo cinema multiplex nos anos noventa passando Star Wars Episódio 1 repetidamente. A internet foi atingida por um franco-atirador na Síria, um drone no Paquistão ou uma granada de gás lacrimogêneo na Turquia? Está em um hospital em Port Said com uma bala em sua cabeça? Ela cometeu suicídio pulando de uma janela de um Information Dominance Center? Mas não há nenhuma janela nesse tipo de estrutura. E não há paredes. A internet não está morta. Ela está morta-viva e está em todos os lugares.

Eu sou um computador de redstone do Minecraft

Então, o que quero dizer com a internet ter se mudado para o offline? Instantaneamente, ela cruzou a tela, multiplicou displays, transcendeu redes e cabos para se tornar inerte e inevitável. Alguém poderia imaginar o desligamento geral de todos os acessos online ou de todas as atividades de usuários. Nós podemos até estar desplugados, mas não significa que estamos a salvo. A internet persiste offline como um modo de vida, vigilância, produção e organização – uma forma de voyeurismo intenso somada com opacidade máxima. Imagine uma internet cheia de objetos sem sentido que se “curtem” uns aos outros, reforçando as regras de poucos que compõem quase-monopólios. Um mundo de conhecimento privatizado, patrulhado e defendido pelas empresas avaliativas. De máximo controle somado com intenso conformismo, onde carros inteligentes fazem compras de mercado até um míssil vir e acabar com tudo. A polícia bate à sua porta para lhe prender por um download – após lhe “identificar” no YouTube ou em uma câmera de segurança. Eles o ameaçam colocar na prisão por propagar conhecimento de investimento público? Ou talvez implorem que você faça o Twitter cair para impedir uma insurgência. Aperte suas mãos e deixe-os entrar. Eles são a internet de hoje em dia em 4D.

A condição totalizadora da internet não é uma interface, mas um ambiente. Mídias mais antigas, assim como pessoas imageadas, estruturas imageadas e objetos-imagem, são inscritos como temas nas redes. O espaço das redes é em si um médium, ou o que quer que queiram chamar de médium, no estado promíscuo e póstumo em que se encontra hoje em dia. É uma forma de vida (e morte) que contém, assimila e arquiva todas as formas prévias de mídia. Nesse espaço midiático fluido, imagens e sons se transformam em diferentes corpos e aparelhos, adquirindo cada vez mais problemas e hematomas ao longo do caminho. Além disso, não são somente as formas que migram pelas telas, mas também as funções.14 Computação e conectividade permeiam a substância e a transformam em matéria-prima para previsões algorítmicas, ou para formar potenciais blocos de construção em redes alternativas. Assim como os computadores de redstone do Minecraft15 são capazes de usar minerais virtuais para calcular operações, materiais vivos e mortos estão cada vez mais integrados com a performance da nuvem, lentamente transformando o mundo em uma placa mãe multiníveis.16

Mas há também nesse espaço uma esfera de liquidez, de tempestades iminentes e climas instáveis. É o reino que vai da complexidade à loucura, rodando estranhos loops de feedback. Uma condição em parte criada por humanos, mas somente em parte controlada por eles, indiferente a qualquer coisa, a não ser seu movimento, energia, ritmo e complicação. É o espaço dos ronin da antiguidade, samurais sem mestres, freelancers apropriadamente chamados de “homens e mulheres onda”, que flutuam em um mundo fugaz de imagens, estagiários da deep web imersos em soap lands17. Nós achávamos que era um problema no sistema de encanamento, mas então como esse tsunami entupiu minha pia? Como que esse algoritmo secou o campo de arroz? E quantos trabalhadores estão desesperadamente escalando essa nuvem ameaçadora que flutua no horizonte agora, tentando espremer alguma qualidade de vida, tentando apalpar a neblina que a qualquer momento pode se transformar tanto em uma instalação artística imersiva quanto em uma demonstração política ensopada em gás lacrimogêneo de alta qualidade?

Pós-Produção

Mas se as imagens começaram a transbordar pelas telas invadindo sujeitos e objetos, a maior e bastante negligenciada consequência disso é que a realidade agora consiste amplamente de imagens; ou melhor, de coisas, constelações e processos previamente evidenciados como imagens. Isso significa que não é possível entender a realidade sem entender cinema, fotografia, modelagem 3D, animação e outras formas de imagens estáticas ou em movimento. O mundo está imbuído dos cacos de imagens prévias, assim como imagens editadas, photoshopadas, agrupadas nas pastas de spam e na lixeira. A realidade em si é pós-produzida e roteirizada, afetos renderizados como efeitos de pós-produção. Longe de serem opostos separados por um intransponível abismo, imagem e mundo são em muitos casos somente versões um do outro.18 Entretanto eles não são equivalentes, mas deficientes, excessivos e desiguais em relação um ao outro. E essa lacuna entre eles abre espaço para especulações e intensa ansiedade.

Nessas condições, a produção se transforma em pós-produção, agora que o mundo pode ser não apenas entendido, mas também alterado por suas ferramentas. As ferramentas da pós-produção: edição, correção de cor, filtragem, cortes e afins não almejam a representação. Elas se tornaram meios de criação, não somente de imagens, mas também do mundo e seus rastros. Uma hipótese: com a proliferação digital de todo tipo de imagem, de repente um excesso de mundo ficou disponível. O mapa, para usar a famosa fábula de Borges, não somente se tornou equivalente ao mundo, mas o excedeu.19 Uma quantidade vasta de imagens cobre a superfície do mundo – literalmente no caso da fotografia aérea – em uma confusa pilha de camadas. O mapa explode em um território material que está cada vez mais fragmentado e também emaranhado com ele: em uma instância, a cartografia do Google Maps quase levou a um conflito militar.20

Enquanto Borges apostou que o mapa poderia se definhar, Baudrillard, por outro lado, especulou que a realidade estava se desintegrando.21 Na verdade, as duas possibilidades se multiplicaram e agora se confundem uma com a outra: em aparelhos portáteis, postos de controle e entre edições. Mapa e território encontram-se um ao outro para realizar traços em painéis táteis, como parques temáticos ou arquiteturas setorizadas. Camadas imagéticas são fixadas como estratos geológicos enquanto equipes da SWAT patrulham carrinhos de compra da Amazon. A questão é que ninguém consegue aguentar isso. Essa bagunça extensa e exaustiva precisa ser editada em tempo real: filtrada, escaneada, sortida e selecionada ‒ em diferentes versões da Wikipédia, em geografias estratificadas, libidinais, logísticas e desequilibradas.

Esse processo assinala um novo papel para a produção de imagens e, consequentemente, também para as pessoas que lidam com elas. Trabalhadores de imagem agora lidam diretamente com um mundo feito de imagens, e possivelmente podem fazer tudo muito mais rápido do que antes. Mas a produção também se misturou com circulação ao ponto de se tornarem indistinguíveis. A difusão da fábrica/ateliê/Tumblr22 com as compras online, coleções oligárquicas, empresas imobiliárias e arquitetura de vigilância. Hoje, o local de trabalho pode acabar se tornando um algoritmo rebelde que comanda seu disco rígido, seus olhos e seus sonhos. E amanhã talvez você tenha que dançar até a insanidade.

À medida que a rede transborda para uma nova dimensão, a produção de imagens se transporta para muito além do confinamento de campos especializados. Tornando-se pós-produção em massa em uma era de criatividade de multidão. Hoje, quase todo mundo é artista. Estamos argumentando, fraudando, enviando spams, curtindo em corrente ou subalternizando as diferenças. Estamos com tique nervoso, tuitando e brindando por uma forma de arte relacional solo, por um alto processamento dual e uma taxa fixa para smartphones. A circulação de imagem hoje em dia funciona pela propagação de pixels em órbita através do compartilhamento estratégico de conteúdo absurdo, neo-tribal, majoritariamente produzido nos EUA. Objetos improváveis, gifs de celebridades felinas e um aglomerado de imagens anônimas nunca vistas proliferam e flutuam através de corpos humanos via wi-fi. Poderíamos pensar nos resultados como uma nova forma vital de arte folclórica, se houvesse alguém preparado para revisar em sua totalidade a definição de folclore e também a de arte. As novas formas de contar histórias usando emoji e as ameaças de estupro tuitadas estão ambas criando e rasgando comunidades frouxamente conectadas por um déficit de atenção compartilhado.

Circulacionismo

Contudo essas coisas não são tão novas quanto parecem. Aquilo que a vanguarda soviética do século XX chamou de produtivismo – que marcou a entrada da arte no ciclo produtivo da fábrica – poderia agora ser substituído pelo circulacionismo. Circulacionismo não é sobre a arte de criar uma imagem, mas de pós-produzir, lançar e acelerar a imagem. É sobre as relações públicas das imagens através de redes sociais, sobre propaganda e alienação, sobre ser vazio do jeito mais suave possível.

Lembram como os artistas produtivistas Mayakovsky e Rodchenko criavam cartazes publicitários de produtos adocicados para a NEP23? Seriam os comunistas entusiastas do fetichismo de commodities?24 Crucialmente, se o circulacionismo fosse reinventado, surgiria a partir de curtos-circuitos em redes pré-existentes, contornando e driblando amizades corporativas e monopólios de discos rígidos. Ele poderia se tornar a arte de recodificar ou reconfigurar o sistema pela exposição da escopofilia estatal, da conformidade do capital e da vigilância varejista. Claro que o circulacionismo atual poderia dar tão errado quanto seu predecessor, por se alinhar com o culto stalinista de produtividade, aceleração e exaustão heroica. O produtivismo histórico foi – vamos ser honestos – totalmente inefetivo e derrotado precocemente por um aparato burocrático sobrecarregado de vigilância e dispositivos de fomento empregatício. E é bem provável que o circulacionismo – em vez de reestruturar a circulação – pode acabar sendo apenas um ornamento para uma internet que parece cada vez mais com um shopping center vazio, com nada além de franquias do Starbucks pessoalmente gerenciadas por Joseph Stalin.

Será que o circulacionismo pode alterar o disco rígido e o software da realidade; seus afetos, sentidos e processos? Enquanto o produtivismo deixou poucos rastros em uma ditadura sustentada pelo culto ao trabalho, poderia o circulacionismo mudar a condição de globos oculares, insônia e exposição pessoal em uma fábrica algorítmica? Estariam os stakhanovistas25 do circulacionismo atual em fazendas bangladeshianas,26 minando ouro virtual em campos prisionais chineses27 ou produzindo consentimento corporativo em série sobre esteiras rolantes digitais?

Livre Acesso

No livre acesso está a consequência definitiva da internet se mover offline.28 Se imagens podem ser compartilhadas e circuladas, por que não poderia todo o resto ser disponibilizado também? Se dados podem se mover pelas telas, também podem suas encarnações materiais se moverem pelas vitrines e outros invólucros. Se os direitos autorais podem ser driblados e questionados, por que a propriedade privada não pode? Se alguém pode compartilhar um prato em jpeg no Facebook, por que não uma refeição real? Por que não aplicar o uso justo para espaços, parques e piscinas?29 Por que reivindicar livre acesso ao JSTOR e não ao MIT – ou qualquer outra escola, hospital ou universidade? Por que invasões a supermercados não descarregam como nuvens de dados?30 Por que não abrir as fontes de água, energia e champanhe Dom Perignon?

Se o circulacionismo vier a gerar algum sentido, ele deve se mover para o mundo offline de distribuição, de disseminação de recursos 3D, de música, terra e inspiração. Por que não se abster lentamente de uma internet morta-viva para construir algumas outras ao seu lado?

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 216-229, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.52323]

Resumen Deconstruyendo la expectativa de que Internet sería un gran vector para la democratización del conocimiento, el texto revela con sarcasmo la expansión de los viejos monopolios mediáticos dentro de las redes sociales. El crecimiento de las ideologías, la aparición de fake news y los ataques intempestivos a las opiniones de los usuarios serían actitudes no espontáneas, sino procedimientos destinados a asegurar el poder de unos pocos privilegiados.
Palabras clave internet; cine; productivismo; circulacionismo; arte contemporáneo

Hito Steyerl, How Not to Be Seen: A Fucking Didactic Educational.MOV File, 2013. Vídeo em HD de canal único, ambiente. 15’52”. Vista da instalação no Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia, Madri, 2015. Disponível em https://issuu.com/bienal/docs/32bsp-catalogo-web-pt/194. Acesso em 7/1/2022.

STEYERL, Hito; PIETROLUONGO, Amanda; VELLOSO, Beatriz Pimenta; CAETANO, Gabriel de França. Um excesso de mundo.

Hito Steyerl, Hell Yeah We Fuck Die, 2016. Baseando-se nas cinco palavras mais populares em títulos de músicas na língua inglesa desta década (inferno, sim, nós, foda e morrer), Steyerl chama atenção para uma espécie de hino do nosso tempo, acompanhado por trilha sonora. Disponível em http://www.32bienal.org.br/pt/participants/o/256. Acesso em 16/1/2022.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 216-229, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.52323]

Hito Steyerl, Hell Yeah We Fuck Die, 2016. A videoinstalação, comissionada para a 32ª Bienal de SP, se assemelha a um módulo de treinamento de parkour – esporte dedicado à superação de obstáculos – através de imagens coletadas de diversas fontes online, robôs são provocados e enxotados de diversas formas em ambientes de teste de qualidade de produto. Disponível em http://www.32bienal.org.br/pt/participants/o/2560. Acesso em 16/1/2022.

STEYERL, Hito; PIETROLUONGO, Amanda; VELLOSO, Beatriz Pimenta; CAETANO, Gabriel de França. Um excesso de mundo.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 216-229, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.52323]

STEYERL, Hito; PIETROLUONGO, Amanda; VELLOSO, Beatriz Pimenta; CAETANO, Gabriel de França. Um excesso de mundo.

Banner em protesto no Rio de Janeiro, em 17 de junho de 2013, “Nós somos a rede social!”. Os protestos começaram em 13 de junho de 2013, na cidade de São Paulo, com uma convocatória pública para reduzir as tarifas do transporte público e se fizeram ouvir em toda a internet. Disponível em https://es.globalvoices.org/2013/07/01/brasil-una-cobertura-de-protestas-fortalece-internet-como-espacio-para-la movilizacion-ciudadana/. Acesso em 16/1/2022.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 216-229, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.52323]

STEYERL, Hito; PIETROLUONGO, Amanda; VELLOSO, Beatriz Pimenta; CAETANO, Gabriel de França. Um excesso de mundo.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 216-229, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.52323]

STEYERL, Hito; PIETROLUONGO, Amanda; VELLOSO, Beatriz Pimenta; CAETANO, Gabriel de França. Um excesso de mundo.

Notas

1 É isso que o termo “pós-internet” – cunhado há alguns anos por Marisa Olson e subsequentemente citado por Gene McHugh – pareceu sugerir depois que a internet perdeu seu inegável valor de uso pelo crescente valor de câmbio privatizado que possui agora.

2 Cf. Peter Weibel, Medien als Maske: Videokratie in Von der Bürokratie zur Telekratie. Rumänien im Fernsehen, ed. Keiko Sei. Berlim: Merve, 1990, p. 124-149.

3 Cătălin Gheorghe, The Juridical Rewriting of History in Trial/Proces, ed. Cătălin Gheorghe. Iaşi: Universitatea de Arte “George Enescu” Iaşi, 2012, p. 2-4. (https://www.arteiasi.ro/ita/publ/Vector_CercetareCriticaInContext-TRIAL.pdf)

4 Ceci Moss e Tim Steer, anunciaram esplendidamente durante uma exposição: “O objeto que existe em movimento gera diferentes pontos, relações e existências, mas sempre permanece a mesma coisa. Como a pasta digital, a cópia pirata, o ícone, ou Capital, que ele reproduz, viaja e acelera, constantemente negociando com os diferentes suportes que permitem seu movimento. À medida que ocupa esses diferentes espaços e formas está sempre se reconstituindo. Não possui uma existência singular autônoma; é somente ativado dentro de uma rede de nós e canais de transporte. Duplamente um processo distribuído e uma ocorrência independente, é como um objeto expandido, circulando incessantemente, montando e dispersando. Freá-lo seria quebrar inteiramente o processo, infraestrutura ou corrente que o propaga e reproduz”. (http://www.seventeengallery.com/exhibitions/motion-ceci-moss-tim-steer/)

5 A instância de um fenômeno político mais amplo chamado de transição. Criada para situações políticas na América Latina e depois aplicada aos contextos do Leste Europeu pós 1989, essa noção descreveu um processo teleológico que consiste no alcance impossível de países “atrasados” que buscam alcançar a democracia e mercados de livre concorrência. A transição implica um processo de mutação contínua, que em teoria, e em última instância, faria qualquer lugar parecer como o ego idealizado de qualquer nação ocidental genérica. Como resultado, regiões inteiras foram sujeitas a makeovers radicais. Na prática, essa transição de modo geral significou uma expropriação desenfreada, somada a um decréscimo radical na expectativa de vida. Na transição, um brilhante futuro neoliberal marchou para fora da tela, para ser realizado como uma falta de saúde pública somada à falência pessoal. Bancos ocidentais e empresas de seguros não somente privatizaram pensões, mas também as reinventaram em coleções de arte contemporânea.

6 Claro que a migração de imagens por diferentes suportes não é nada de novo. Esse processo tem sido aparente no fazer artístico desde a Idade da Pedra. Mas a facilidade que muitas imagens têm de morfar na terceira dimensão está a léguas de distância de quando um desenho tinha que ser esculpido no mármore manualmente. Na época da pós-produção, quase tudo que foi feito foi criado por meios de uma ou mais imagens, e qualquer mesa da IKEA é copiada e colada em vez de projetada e construída.

7 Como o Tumblr New Aesthetic [nova estética] demonstrou brilhantemente para coisas e paisagens (https://new-aesthetic.tumblr.com/), e como o Tumblr Women as Objects [mulheres como objetos] tem feito para ilustrar a encarnação da imagem no corpo feminino (https://womenasobjects.tumblr.com/). Igualmente relevante em relação a isso é o trabalho de Jesse Darling e Jennifer Chan.

8 N. de T.: Em referência ao ensaio "Junkspace" (2001), de Rem Koolhaas, que apresenta uma paisagem contemporânea genérica, preenchida de mensagens subliminares e ideológicas diluídas em uma amálgama caótica, a qual é ordenada aparentemente através da ubiquidade da globalização.

9 N. de T.: Shitstorm, termo traduzido normalmente como "tempestade de indignação", é usado para descrever campanhas difamatórias de grandes proporções na internet contra pessoas ou empresas, feitas devido à indignação generalizada com alguma atitude, declaração ou outra forma de ação tomada por parte delas. Originalmente, o termo em inglês é apenas um disfemismo vulgar para uma situação extremamente desagradável ou caótica. (Trecho retirado do livro No enxame, de Byung-Chul Han, Editora Vozes, 2018).

10 N. de T.: National Security Agency nos EUA é uma agência que emprega profissionais cibernéticos para proteger e defender os sistemas do Governo.

11 Ver a análise maravilhosa de Steven Shaviro em "Post-Cinematic Affect: On Grace Jones, Boarding Gate and Southland Tales", Film-Philosophy, v. 14, n. 1, 2010, p. 1-102. Ver também seu livro Post-Cinematic Affect. Londres: Zero Books, 2010.

12 Greg Allen, The Enterprise School, org. Greg, 13/9/2013 (https://greg.org/archive/2013/09/13/the-enterprise-school.html)

13 Jalal Toufic, The Withdrawal of Tradition Past a Surpassing Catastrophe (2009) (https://jalaltoufic.com/downloads/Jalal_Toufic,_The_Withdrawal_of_Tradition_Past_a_Surpassing_Disaster.pdf).

14 The Cloud, the State, and the Stack: Metahaven in Conversation with Benjamin Bratton (https://mthvn.tumblr.com/post/38098461078/thecloudthestateandthestack).

15 Agradecimentos ao Josh Crowe por chamar minha atenção para isso.

16 The Cloud, the State, and the Stack.

17 N. de T.; Soapland, termo construído a partir de duas palavras em inglês, é usado no Japão para designar lugares onde os clientes se envolvem com mulheres em relações sexuais sem penetração, a fim de atingir o orgasmo. Sob o aspecto da lei esses clubes fazem negócios onde os clientes são apenas banhados e massageados.

18 Oliver Laric, Versions (2012) (http://oliverlaric.com/vvversions.htm).

19 Jorge Luis Borges, On Exactitude in Science in Collected Fictions, trans. Andrew Hurley. Nova York: Penguin, 1999, p. 75-82. “‘Naquele Império, a Arte da Cartografia alcançou tal Perfeição que o mapa de uma única Província ocupava uma Cidade inteira, e o mapa do Império uma Província inteira. Com o tempo, esses Mapas Desmedidos não bastaram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império que tinha o tamanho do Império e coincidia com ele ponto por ponto. Menos Dedicadas ao Estudo da Cartografia, as gerações seguintes decidiram que esse dilatado Mapa era Inútil e não sem Impiedade entregaram-no às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos Desertos do Oeste perduram despedaçadas Ruínas do Mapa habitadas por Animais e por Mendigos; em todo o País não há outra relíquia das Disciplinas Geográficas’. Suárez Miranda, Viajes de Varones Prudentes, Libro IV, Cap. XIV, Lérida, 1658“.

20 L. Arlas, Verbal spat between Costa Rica, Nicaragua continues, Tico Times, 20 set 2013. Agradecimentos ao Kevan Jenson por mencionar isso para mim.

21 Jean Baudrillard, Simulacra and Simulations in Jean Baudrillard: Selected Writings. ed. Mark Poster. Stanford: Stanford University Press, 1988, p. 166-184.

22 N. de T.: Tumblr é uma plataforma de blogging que permite aos usuários publicarem textos, imagens, vídeos, links, citações, áudios e "diálogos".

23 N. de T.: A NEP (Nova Política Econômica), lançada em 1921 pelo governo bolchevique de Lênin na Rússia, consistiu num recuo estratégico caracterizado pelo restabelecimento da livre iniciativa e da pequena propriedade privada, admitindo o apoio de financiamentos estrangeiros.

24 Christina Kiaer, “‘Into Production!’: The Socialist Objects of Russian Constructivism”, Transversal, set. 2010 (https://transversal.at/transversal/0910/kiaer/en). “Os slogans publicitários de Mayakovski dirigiam-se aos consumidores soviéticos da classe trabalhadora diretamente, e sem ironia; por exemplo, um anúncio de um dos produtos da Mosselprom, a empresa agrícola estatal, dizia: ‘Óleo de cozinha. Atenção, massas trabalhadoras. Três vezes mais barato que manteiga! Mais nutritivo do que outros óleos! Você só o encontrará em Mosselprom’. Não é de surpreender que os anúncios construtivistas falassem essa linguagem pró-bolchevique e anti-NEP, mas acontece que as imagens produzidas pela publicitária Reklam-Konstruktor são mais complicadas. Uma parte importante de seus gráficos de negócios vai além da linguagem direta sobre diferenças de classe e necessidades utilitárias para oferecer uma teoria do objeto socialista. Em contraste com a afirmação de Brik de que nesse tipo de trabalho eles estavam apenas ‘ganhando tempo’, o que quero propor é que seus anúncios procuravam desenvolver uma relação com rigor teórico entre as culturas materiais do passado, o presente da NEP e o novyi byt do futuro. Eles se depararam com a questão que surge da teoria de Borís Arvatov: O que acontece, depois da revolução, com as fantasias e desejos individuais que sob o capitalismo são organizados pelo fetichismo da mercadoria e do mercado?”.

25 N. de T.: O stakhanovismo ou estacanovismo foi um movimento que nasceu na União Soviética por iniciativa do mineiro Alexei Stakhanov, que defendia o aumento da produtividade operária com base na própria força de vontade dos trabalhadores.

26 Charles Arthur, “How low-paid workers at ‘click farms’ create appearance of online popularity”, The Guardian, 2 ago. 2013 (https://www.theguardian.com/technology/2013/aug/02/click-farms-appearance-online-popularity).

27 Harry Sanderson, “Human Resolution”, Mute, 4 abr. 2013 (https://www.metamute.org/editorial/articles/human-resolution).

28 E absolutamente não se está falando de esculturas derivadas de dados, exibidas no cubo branco.

29 “Spanish workers occupy a Duke’s estate and turn it into a farm”, Libcom.org, 24 ago 2012. (https://libcom.org/article/spanish-workers-occupy-dukes-estate-and-turn-it-farm) “No início da semana em Andaluzia, centenas de trabalhadores rurais desempregados romperam uma grade que circulava uma propriedade do Duque de Segorbe, clamando esta como sua. Essa é a mais recente em uma série de ocupações de fazendas ocorridas na região no último mês. Seu objetivo é criar um projeto agrícola comum, similar ao de outras fazendas ocupadas, com o intuito de respirar uma nova vida em uma região que tem uma taxa de desemprego acima de 40 por cento. Para os ocupantes, segundo Diego Canamero, membro da União Andaluza de Trabalhadores, ‘estamos aqui para denunciar uma classe social que desperdiça um local assim’. Como o Duque mora em Sevilha, a mais de 60 milhas de distância, os belos jardins, a casa e a piscina são deixados a maior parte do tempo vazios”.

30 Thomas J. Michalak, “Mayor in Spain leads food raids for the people”, Workers.org, 25 ago. 2012. (https://www.workers.org/2012/08/3561/) “Na Marinaleda, pequena cidade espanhola, localizada na região sul da Andaluzia, o prefeito Juan Manuel Sanchez Gordillo tem uma resposta para a crise econômica do país e a fome que a acompanha. Ele organizou e direcionou os residentes da cidade a invadirem supermercados e pegar a comida necessária para sobreviver”. (https://theextinctionprotocol.wordpress.com/2012/08/25/economic-crisis-riots-food-raids-and-the-collapse-of-spain/)

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 216-229, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.52323]

STEYERL, Hito; PIETROLUONGO, Amanda; VELLOSO, Beatriz Pimenta; CAETANO, Gabriel de França. Um excesso de mundo.

Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 40, p. 216-229, jul./dez. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i40.52323]