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IMAGEM TRANS : TRANSE, FABULAÇÃO E
SOBREVIVÊNCIAS NA FRONTEIRA
trans image: trance, fabulation and survival at the borderland
imagen trans: transe, fabulación y sobrevivencias en la frontera
Camila Freitas [Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil]*
José Miguel Olivar [Universidade de São Paulo, Brasil]**
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 18-54, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52941]
19
*Camila Freitas é mestranda em Linguagens Visuais pela Escola de Belas Artes da UFRJ.
**José Miguel Olivar é doutor em antropologia social e professor nas áreas de antropologia, gênero e sexualidade, e estudos sociais
da ciência e da técnica na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.
RESUMO Em uma encruzilhada de confluências e divergências entre cinema, antropologia e artes
visuais, o objeto deste texto se articula com o desenvolvimento de um longa-metragem sobre a rede de
filhos e filhas de santo e o terreiro do Pai Jairo, e a
fronteira
na cidade de Tabatinga (AM), entre Brasil,
Peru e Colômbia. Temos como base uma experiência híbrida de pesquisa junto à rede de jovens
gays
e
trans
atuantes na produção local de Umbanda mais ou menos próximos do mercado do sexo nesta tríplice
fronteira. Apostamos nas potências da
imagem
e do ato narrativo e fabulativo enquanto chaves para
habitar e transitar por mundos hostis e fazer emergir contrapoderes para transformar o real. O território
especulativo ocupa um lugar especial na criação de mundos dessa rede, e os espaços de partilha
narrativa marcam o seu cotidiano. Os nossos encontros com ela são atravessados pelas performances
narrativas das jovens e de suas entidades companheiras. Com base nessas interações, pudemos também
inventar e propor dispositivos metodológicos de "contação de estórias". Para sustentar nossas análises,
apresentamos aqui algumas das muitas sequências narrativas íntimas que emergiram desses encontros.
PALAVRASCHAVE Umbanda; juventude; contação de histórias; Amazônia; gênero; fronteira; sobrevivência
FREITAS, Camila;
OLIVAR, José Miguel.
imagem trans: transe,
fabulação e sobre
vivências na fronteira.
Revista Poiésis, Niterói,
v. 23, n. 39,
p. 18-54, jan./jun.
2022. [DOI: https://
doi.org/10.22409/
poiesis.v23i39.52941]
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NC) © 2022 Camila
Freitas e José Miguel
Olivar.
Fig. 1 [página anterior]
- Camila Freitas e João
Vieira Torres,
BABADO
,
longa-metragem em
desenvolvimento, 2022.
FREITAS, Camila; OLIVAR, José Miguel. imagem trans: transe, fabulação e sobre vivências na fronteira.
E-mail: camilasfreitas@gmail.com. Orcid: 0000-0002-5963-8944
E-mail: jose-miguel@usp.br. Orcid: 0000-0002-7648-7009
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ABSTRACT At a crossroads of confluences and divergences between cinema, anthropology and visual
arts, the objective of this text is articulated with the development of a feature film on the network of sons
and daughters of santo and the terreiro of Pai Jairo, and the
border
in the city of Tabatinga (AM) -between
Brazil, Peru and Colombia. We are based on a hybrid experience of research with the network of young
gays
and
trans
people acting in the local production of Umbanda and more or less engaged with the
sexual markets in this triple border. We bet on the power of the
image
, the narrative and fabulation act as
keys to inhabit and transit through hostile worlds and make counterpowers emerge to transform the real.
The speculative territory occupies a special place in the creation of worlds of this network, and the spaces
of narrative communion mark its ordinary. Our encounters with this network are traversed by the narrative
performances of the young participants and their companion entities. Based on these interactions, we were
also able to invent and propose methodological devices for storytelling. To support our analysis, we present
here some of the many intimate narrative sequences that emerged from these encounters.
KEYWORDS Umbanda; youth; storytelling; Amazon; gender; border; survival
RESUMEN En una encrucijada de confluencias y divergencias entre el cinema, la antropología y las
artes visuales, el objetivo de este texto se articula con el desarrollo de un largometraje sobre la red de hijos
e hijas de santo y el terreiro de Pai Jairo, y la
frontera
en la ciudad de Tabatinga (AM), entre Brasil, Peru y
Colombia. Tenemos como base una experiencia híbrida de investigación junto a la red de jóvenes
gays
y
trans
actuantes en la producción local de la Umbanda y más o menos cercanos a los mercados sexuales
en esta triple frontera. Apostamos en las potencias de la
imagen
y del acto narrativo y fabulativo como
llaves para habitar y transitar por mundos hostiles y hacer emerger contrapoderes para transformar lo real.
El territorio especulativo ocupa un lugar especial en la creación de mundos de esta red, y los espacios
de comunión narrativa marcan su cotidiano. Nuestros encuentros con esta red son atravesados por las
performances narrativas de las jóvenes y de sus entidades compañeras. Con base en estas interacciones,
pudimos también inventar y proponer dispositivos metodológicos para contar historias. Para dar soporte a
nuestro análisis, presentamos aquí algunas de las muchas secuencias narrativas íntimas que emergieron de
estos encuentros.
PALABRAS CLAVE Umbanda; juventud; contar historias; Amazonía; género; frontera; supervivencia
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 18-54, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52941]
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Su cuerpo es una bocacalle.
[Anzaldúa,2012[1987]]: 80]
Sobrevida não é apenas aquilo que resta,
ela é a vida mais intensa possível.
[DERRIDA, 2005, p. 55-56]
Les images sont trans-genre, queer parfois,
transgénériques toujours.
[MONDZAIN, 2012, p. 101]
MACUMBA, CRESCIMENTO E SOBREVIVÊNCIA:
QUINHO/TILINHA
Certa noite, Quinho teve um sonho com uma
mulher loira e alta em uma encruzilhada. Ela lhe
apresentava dois caminhos: um limpo e outro cheio
de espinhos. No sonho, ela escolheu o caminho
mais difícil. Na época, havia perdido a mãe e pas-
sava por um longo processo depressivo. Sua família
repudiava o fato de Quinho ser uma mulher trans e
a renegou. Uma tia que vivia em Manaus convidou-
-a a morar com ela. Preocupada com seu estado
psicológico, apresentou-lhe um hospital espírita.
A partir dali, Quinho foi também apresentada a
um terreiro de Umbanda, onde teve contato com
caboclos e erês, pombagiras e exus. Em uma de
suas idas iniciais a um terreiro, conheceu Jairo, que
também vivia em Manaus naquele momento e co-
meçava a se iniciar como pai de santo. Lá mesmo,
tomou a decisão de acompanhá-lo, tornando-se
uma de suas primeiras filhas de santo.
Antes da
macumba
1, Quinho - apelido que rece-
bera da mãe quando criança - foi evangélica e
adorava a igreja. Em um dos primeiros encontros
que fizemos para a realização do filme
Babado
[ver nota #9], pediu para falar para a câmera sobre
um episódio violento que marcou sua infância e
se interpôs entre ela e a fé cristã. Sua mãe tinha
uma relação próxima com o pastor, que chama-
va o então Ely de 10 anos para brincar com seus
filhos em casa. Quinho recebia visitas noturnas
do sacerdote, que o pastor dizia serem ordenadas
por Deus. Os estupros se prolongaram por mais
ou menos dois anos. O menino não queria vol-
tar àquela casa, mas a mãe o obrigava. Quando
finalmente tomou coragem para relatar o acon-
tecido, ninguém acreditou; apenas um tio decidiu
averiguar os fatos. Após confirmação, toda a igreja
soube, mas o caso foi abafado. Sua mãe finalmen-
te o acolheu, conferindo-lhe proteção. Quando
ela faleceu, no entanto, Quinho já havia feito sua
transição, e a família a renegou: os irmãos, após o
enterro, barraram sua entrada em casa.
Em Manaus, encantada com suas amigas “travas”
lindas e maravilhosas, Quinho “se libertou” e se
FREITAS, Camila; OLIVAR, José Miguel. imagem trans: transe, fabulação e sobre vivências na fronteira.
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descobriu travesti. Em função de sua irmã mais
velha, a Tila, também uma mulher trans, ganhou o
nome de Tilinha. A prostituição era o meio de vida
da maioria das amigas
que, como ela, vinha do
interior para crescer e tentar a vida na capital. Ela
tentou, mas não gostou, e faz questão de marcar
uma posição diferenciada em relação à maioria das
pessoas de seu círculo. Quinho escolheu a outra
profissão mais comum para as mulheres trans da
região: cabeleireira.
Dona Tatá, a pombagira2 na cabeça de Quinho - a
mulher bonita do sonho -, também transita pela
rua, pela putaria,
pela encruzilhada
e pela
calunga
3.
“Uma vez, vi uma
senhora num
cemitério. Depois,
numa gira, in-
corporei, e Dona
Tatá disse que
tinha me visto e
me chamado no
cemitério.” Outra
vez, fez um traba-
lho [de
macumba
]
para conseguir um
trabalho [na vida],
porém não pagou a obrigação e logo foi demitida.
Deu de comer à sua pombagira e foi recontratada
em seguida. Para agradar a sua senhora, oferece-
-lhe champanhe, maçã, velas: “quando se agrada a
Exu4, Exu é riqueza, Exu é força”, ela diz. “Exu é tem-
peramental, com ele não se brinca e nem se bate
cabeça, tampouco se abaixa a cabeça”. As leis de
Exu são as leis da rua. Medo, não; respeito.
Exu é moço Branco/ E é faceiro no andar/
Quem não paga pra Exu/ Exu dá e torna a tirar.5
Fig. 2 – Camila Freitas e João Vieira Torres,
BABADO
, longa-metragem em desenvolvimento, 2022.
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 18-54, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52941]
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INTRODUÇÃO: IMAGENS EM REDE
Desenvolvemos este trabalho a partir de uma ex-
periência híbrida de pesquisa junto a uma rede de
jovens
gays
e
trans
atuantes na produção local de
Umbanda e mais ou menos próximos do mercado
do sexo na Tríplice Fronteira amazônica, entre Brasil,
Peru e Colômbia.6 Nele, apostamos nas potências
da
imagem
e do ato narrativo e fabulativo enquanto
chaves para habitar e transitar por mundos hostis e
fazer emergir, “no extracampo da ordem dominante”,
os contrapoderes a partir dos quais se pode transfor-
mar o real [MONDZAIN, 2012, p. 101].
Inicialmente atravessada pela rua e pela intensi-
dade dos mergulhos quase diários das
gays
7 na
noite da Fronteira - em busca de encontros, álcool,
curtição, sexo e dinheiro -, a etnografia de Jo
Miguel Olivar8, base desta experiência, passou aos
poucos a ser afetada pela
macumba
, na medida
em que seus rituais e gestos passaram a compor
uma “espiritualidade” e, com ela, a ocupar cada vez
mais espaço nas vidas/corpos dessa rede, em suas
cabeças e noites.
Em uma encruzilhada de confluências e divergên-
cias entre cinema, antropologia e artes visuais, o
objeto deste texto se articula com o processo de
desenvolvimento de um longa-metragem9 sobre
a
fronteira
, a rede de filhos e filhas
de santo e o
terreiro de Jairo. O terreiro é o chão, o assentamen-
to material e o nó da
encruzilhada
cosmopolítica10
a partir da qual cresce e floresce essa rede “muito
jovem e muito
gay
11 entre a
macumba
, as sexuali-
dades intensivas e as múltiplas
fronteiras
, entre a
rua e a
rua
, a noite e a
noite
, a fluidez e a contraefe-
tuação das normas de gênero-e-sexualidade.
O território especulativo e suas potencialidades
ocupam um lugar especial na criação de mundos
dessa rede, e os espaços de partilha narrativa
marcam o seu cotidiano. Os nossos encontros com
elas, incluindo os momentos após as
giras
no ter-
reiro, são atravessados pelas performances narra-
tivas das
gays
e de suas entidades companheiras,
que nos dispomos a presenciar como ouvintes
participativos. Com base nessas interações, pude-
mos também inventar e propor dispositivos nar-
rativos - durante as filmagens e em encontros que
chamamos de oficinas de “contação de estórias”.12
Esses dispositivos eram, de forma geral, menos
propensos a documentar estórias individuais do
que criar um tipo de escrita
performativa e coletiva,
na efervescência da oralidade e na presença da
câmera, em um certo dispositivo “mediúnico” em
que umas emprestam seus corpos e vozes para
contar as estórias das outras.13 Apresentamos aqui
algumas das muitas sequências narrativas íntimas
que emergiram desses encontros.
FREITAS, Camila; OLIVAR, José Miguel. imagem trans: transe, fabulação e sobre vivências na fronteira.
24
A partir do conjunto dessas imagens fixas e au-
diovisuais, cuja matéria-prima principal é uma
tessitura de estórias e performances entremeadas
com a dinâmica do terreiro, da noite e da rua, re-
fletimos sobre o estatuto da
imagem
e sua produ-
ção, inseparável de gestos de tomada de posição
e transformação política que nos conectam em
rede. Com essas imagens, que pensamos então
como
imagens trans,
refletimos sobre dispositivos
de
narrativização
, fabulação e outras produções
estéticas e performativas capazes de tecer alian-
ças, redes e familiaridades14 entre existências que,
desde a diferença, persistem contra-ameaças e
perigos constantes.
Fig. 3 – Camila Freitas e João Vieira Torres,
BABADO
, longa-metragem em desenvolvimento, 2022.
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 18-54, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52941]
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ESCURIDÃO COMO POTÊNCIA: TATA MOLAMBO
Durante uma gira “de esquerda”, em uma pausa do
tambor, várias pombagiras estavam sentadas, be-
bendo, após horas de cantos e giros no salão. Seu
Tatá Caveira, um exu incorporado por pai Jairo, ra-
lhou com elas dizendo que, se não se levantassem,
fecharia logo o tambor: “pombagira é
povo da rua
,
que anda a noite toda”. Incisivo, instou dona Tatá
Molambo, na cabeça de Quinho, a puxar um ponto.
Tatá cantou, com o entusiasmo que lhe é peculiar,
acompanhada dos tambores dos ogãs:
O Diabo está no inferno, a pombagira está no congá/
Cuidado Macho safado que eu posso te matar.15
Após a gira, Tatá Molambo conversou co-
nosco e com a câmera. Entre muitas bafo-
radas de charuto, iniciou
a conversa afirmando que
andou muito na escuri-
dão, e que esse foi o seu
melhor caminho. A escuri-
dão é, em suas palavras, o
que lhe confere força para
ser uma mulher guerreira.
Tatá nasceu na Espanha,
filha única de pais ricos.
Quando moça, se apaixonou por um camponês
que trabalhava no castelo da família, para o des-
gosto de seus pais. Ela amou esse homem como
ninguém, mas ele a deixou. Triste por ter perdido a
única felicidade que já tivera, terminou mergulhan-
do na noite e passou a andar de cabaré em cabaré
para buscar o seu amor. Um dia, ela o encontrou
num bordel com muitas mulheres e tentou levá-lo
embora. O ex-amante a embriagou, a seguiu e ter-
minou enterrando-a viva, ébria.
O homem que ela amava a matou. Durante sua vida
em Terra, não encontrou felicidade. Ogum, patrão
de Exu, fez com que ela voltasse como pombagira
e, uma vez assim, Tatá passou a gostar de frequen-
tar cabarés de luxo. Apesar de todo infortúnio, seu
caminho foi marcado pelo amor.
Eu amei alguém, mas esse alguém não ama ninguém
Eu amei o sol, eu amei a lua, na encruzilhada eu amei Seu Tranca-Rua.16
Fig. 4 – Camila Freitas e João Vieira
Torres,
BABADO
, longa-metragem
em desenvolvimento, 2022.
26
TERREIROFRONTEIRA: ESPAÇO
NARRATIVO INCOMUM
A casa de Jairo habilita a existência do terreiro, da
macumba
e da rede, a partir de onde se produz uma
experiência particular dessa Tríplice Fronteira e da
Amazônia como Fronteira, em meio a seus com-
plexos processos de normatização, militarização,
mobilidade, circulação de pessoas, dinheiro e tráfico
[OLIVAR, 2019]. Ali e desde ali, médiuns, pai e filhos
de santo
coabitam
os espaços de dentro [a casa, a
seara
, o
congá
, o corpo, a intimidade] e fora [a rua, a
noite, o
close
17, o cemitério, a encruzilhada, a Fron-
teira]. Parte integrante dos ritos religiosos da Umban-
da e do Tambor de Mina praticados ali, a partilha - de
experiências, aprendizados, alegrias, violências,
durezas, feitiçarias e receitas de resistência18 - é um
aspecto constitutivo desse terreiro e dessa rede.
Ao final dos rituais, uma vez o tambor fechado e a
gira oficialmente terminada, todos se reúnem em
Fig. 5
– Camila Freitas e João Vieira Torres,
BABADO
, longa-metragem em desenvolvimento, 2022.
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 18-54, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52941]
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roda para beber e papear, seguir trocando conse-
lhos, causos, piadas ou sermões, fazer consultas
informais e batalhas de pontos entre pombagiras,
filhos de santo e assistência, “tudo junto e mistura-
do”. Ali se pode falar virtualmente de tudo, dos fun-
damentos da religião até os mais diversos assuntos
da vida e do cotidiano, em um clima de embate
jocoso e pleno de zoeira, sarcasmo e obscenida-
des que envolvem a personalidade de várias das
entidades do
povo da rua
. Em certos momentos e
relações, as fronteiras hierárquicas e carnal-espiri-
tuais parecem bastante fluidas.
Ao se perguntar sobre o papel das narrativas na
materialização dos espíritos enquanto sujeitos,
na medida em que eles são, no imaginário e na
prática cotidiana da
macumba
, ao mesmo tempo
objetos e sujeitos das estórias que contam, Vâ-
nia Zikán Cardoso reflete sobre a emergência do
sujeito narrador como um efeito da própria perfor-
mance.19 Os conhecimentos e poderes compar-
Fig. 6
– Camila Freitas e João Vieira Torres,
BABADO
, longa-metragem em desenvolvimento, 2022.
FREITAS, Camila; OLIVAR, José Miguel. imagem trans: transe, fabulação e sobre vivências na fronteira.
28
tilhados pelas entidades, suas
histórias de vida
e
identidades, não são reveladas e sistematizadas
de forma unificada, mas compõem um “narrar ao
mesmo tempo disperso e coletivo” [CARDOSO,
2007a, p. 201] de
estórias de vidas
, continuamente
narradas e recontadas pelos filhos e filhas de san-
to e assistência. Essa “narrativa em
performance
[CARDOSO, 2007b, p. 208], sua partilha e reconhe-
cimento pela rede
macumbeira
, é o que constitui
as entidades enquanto “diversas formas de sujei-
tos”, que podemos entender, junto com a autora,
como “diversos modos de
experienciar
e de estar
no mundo” [CARDOSO, 2007b, p. 207].
A ideia de
performatividade
- enquanto ação da
linguagem sobre o mundo e invenção de “ficções
vivas que permitem resistir à norma”20 [PRECIADO,
2019, p. 97] - se afirma entre os membros dessa
rede de forma bastante fluida e horizontal. Narrar
aqui é
narrar-com
, narrar em rede, inventar,
lidar
com
o Mundo, e se afirma como instrumento para
tecer alianças entre ideias, entre estórias e pala-
vras, entre ontologias e diversos. O terreiro constitui
um espaço [in]comum de
narrativização
21 que se
produz através do ritual e reverbera para além dele,
desde onde se fabulam, se contam e se cantam
dissidências e
sobrevivências
para caminhar pelo
Mundo-como-Ameaça e para criar e transformar
outros mundos possíveis [mundo-pra-nós].22
Nos trânsitos fabulativos entre vida e transe, o
assunto da violência está sempre latente - seja ela
sob a forma da violência urbana associada com
reconfigurações recentes do tráfico translocal de
drogas, seja a violência de gênero-e-sexualidade
que permeia a maioria das trajetórias das
gays
e,
ainda, que perpassa as narrativas “biográficas”
das pombagiras. Dentro dessa rede, não há uma
“naturalização” de fortes ou dramáticas violências;
não se lida com a violência bruta como algo “nor-
mal”; no entanto, ela faz parte da vida de múltiplas
formas e permeia o ordinário como marcas de
[quase] extraordinariedade [DAS, 2007]. A violência
se encara, se atravessa, se pratica, se compreen-
de e se traduz nas linguagens disponíveis do coti-
diano - da homofobia ao narcotráfico, passando
pela cosmopolítica da Umbanda. Na contramão
da assepsia burguesa em que “a morte é cada vez
mais expulsa do mundo dos vivos”, o que se per-
cebe aqui é uma onipresença de fatos violentos e
suas narrativizações, que pode ser pensada como
forma de reivindicar agência sobre eles, ou ainda,
de recuperar a autoridade narrativa que “mesmo
um pobre diabo possui ao morrer” e que, segundo
Benjamin, está “na origem da narrativa” [BENJA-
MIN, 1987 [1936], p. 207].
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 18-54, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52941]
29
BELEZA, NOITE E PUTARIA IRRADIADAS: CRIS
Cristielly habita este mundo na corporalidade mediú-
nica feminina que sonha com um corpo em São Pau-
lo - implantes de silicone e possíveis cirurgias que ela
espera alcançar um dia - e com o espectro fabulativo
de uma maternidade uterina.23
Hoje, na casa dos
30, segue sendo uma referência transfronteiriça de
beleza
trans
e continua intensamente engajada no
mercado sexual de Tabatinga. Cris é uma “moça de
família”, muito conectada à sua irmã mais velha,
Eliane, e à sua mãe, que ela teme deixar sozinha. Por
essa razão, Cris até hoje não migrou para “tentar a
vida” em Manaus, em São Paulo ou no Peru - cami-
nho corriqueiro para as putas da Fronteira, trilhado
por tantas outras amigas e parentes.
Muitas meninas
trans
de sua geração foram renega-
das pela família; a mãe de Cris, ao contrário, sem-
pre a defendeu e protegeu em sua reelaboração de
gênero, por volta de seus 14 anos, diante de um pai
que abandonou a família na recusa de conviver com
o que ele próprio denominou “uma aberração”.
Em contraste com a figura do pai “de carne”, violen-
to e ausente, Cris prefere pensar em pai Jairo como
o seu pai de verdade”. Ela é uma de suas filhas
de santo mais antigas: começou a “desenvolver
o santo” em 2011 no terreiro ainda em formação e
sem assentamento material fixo, o que só se deu
em 2013. Conheceu pai Jairo em sua “fase travesti”,
quando ele ainda era Hannah, “a ‘ploc’24 que agora
só baixa uma vez por ano na parada gay”.
Na religião, para aqueles que nasceram em corpo de
homem, é obrigatório usar cueca e roupas mascu-
linas durante os rituais, mas ela não se sente bem e
desvia essa regra: “o pai libera, ele é
babado
...”. Cris
fala do terreiro como lugar de acolhida e identificação,
de onde emergem outras noções de família:
Ele foi meu porto seguro, ele me acolheu [...]. Todos nós
fomos acolhidas pela Umbanda e pelo terreiro... Ele me deu
força em tudo. Zoro, Alisson, Quinho, já eram filhos do pai
[...]. Eu era visitante, bebia com os caboclos, mas eu falava
mal. Eu ia por curiosidade, aí uma vez comecei a me sentir
mal, tremer, tremer... saí na carreira, mas não consegui fugir...
Veio a cabocla Jacira, eles pensaram que era Jandira... [...]Aí
girou pra esquerda, e de novo... Dama da Noite. Ela nasceu
meia noite, na Festa das Dores [...]. Eu amo a minha religião.
Mamãe foi crente, eu também... só que não prestou!25
Agora, já há quase uma década, ela compreende
a sua existência no mundo como constantemente
acompanhada -
irradiada
- pela entidade que lhe faz
frente. Deslizando pela noite feito vagalume, ela se de-
tém, canta e chama por sua Dama da Noite, a quem
pede o
agô
para seguir caminhando sozinha - e nun-
ca
- pelos becos e ruelas mais escuras da cidade.
Em uma dança nebulosa em que desejo, devoção e
afetação se comunicam e se confundem, as estórias
FREITAS, Camila; OLIVAR, José Miguel. imagem trans: transe, fabulação e sobre vivências na fronteira.
30
e
performances
de filhos de santo e entidades pare-
cem constituir um campo de forças compartilhado.
Chega segunda-feira e eu fico louca, quero rua, quero noite,
quero ‘piroca’. Não sei o que faço, levanto, vou dar uma
volta, ando pela noite sozinha, não consigo dormir. A rua é
minha casa, aqui eu venho pra dormir e por causa da ma-
mãe, claro, mas é na rua que eu me sinto bem.26
A Dama teria sido, segundo algumas versões,
prostituta por opção, e conta-se que seu tempo em
Terra foi, como a maioria das biografias de pomba-
giras, marcado por episódios de violência de gêne-
ro - abusos, violência física, traições, escravização,
feminicídio - a depender da estória.27 Do lado dos
cavalos
, o sofrimento dos corpos atravessa tudo
em suas causas e suas curas, e diante dos impon-
deráveis da noite - sob o espectro onipresente da
brutalidade cisheteropatriarcal de cada dia - a pre-
sença das Entidades parece muito mais concreta e
acessível do que qualquer outra.
Fig. 7
– Camila Freitas e João Vieira Torres,
BABADO
, longa-metragem em desenvolvimento, 2022.
31
ACORDAR A BESTASOMBRA28: ESCRITA E
STORYTELLING
Em
Falando em línguas: uma carta para as mulhe-
res escritoras do terceiro mundo [
ANZALDÚA, 2000
[1980]], Gloria Anzaldúa, escritora chicana, feminis-
ta, lésbica e ativista, conclama outras “mulheres de
cor, companheiras no escrever” a exercitar a escrita
como estratégia de
sobrevivência
e, ao mesmo
tempo, a
atravessar
as próprias limitações para
conseguir fazê-lo. “Esqueça o quarto só para si:
escreva na cozinha, tranque-se no banheiro.29 Ao
fazê-lo, forma-se uma rede, uma teia que fortalece
e torna possível as suas práticas conectadas.
Em
Manifesto Ciborgue
[HARAWAY, 2019 [1991]],
Donna Haraway recupera Anzaldúa e convida ati-
vamente as mulheres a outra escrita: ser ciborgue
no controle/apropriação do código, em uma lógica
em que a fabulação, o pensamento especulativo e
o
storytelling
se tornam instrumentos privilegiados
para “fazer com”, “pensar com” e “ficar com o pro-
blema” [HARAWAY, 2016]. Aprendemos com essas
autoras que
escrever
[cartas, literatura, ciência ou
código no circuito integrado] é ao mesmo tempo
um ato literal e uma parcialidade de outras formas
de respiração. Em seu processo de autoexperi-
mentação e mutação, Paul Preciado retoma essas
questões fundamentais para a produção de vidas e
lutas desde os feminismos e nos permite entender a
escrita
e a
palavra
como
hackeamento
do gênero-
-e-sexualidade, da farmacopolítica, dos biocódigos
[PRECIADO, 2018];
escrever
é se encontrar, poten-
cializar e compartilhar conhecimentos para atra-
vessar a grande noite.30
Enquanto lugar conceitual desde onde se elabo-
ram
sobrevivências
e se [re]criam, experimentam
e produzem corpos e modos de habitar o mundo
em
indeterminação,
nos perguntamos de que
formas materiais e relacionais se pode habitar a
fronteira -
bem como
o
problema
, a
norma
ou a
violência - para além da ideia primordial de linha de
cisão e de corte que acompanha essas noções. A
ideia de
sobrevivência
, aqui, vem atravessada pela
Fronteira, um território geográfico massivamente
chamado assim, habitado, produzido e governado
sob, apesar e através da premissa mito-conceitual
desse nome, mas sobretudo pela noção de
frontei-
ra
enquanto recurso conceitual apreendido espe-
cialmente do feminismo da terceira onda.31
Habitar a
fronteira
como arame farpado - “
not
comfortable but home
” [ANZALDÚA, 2012, p. 3] - é
habitar um território de contradições e conflitos
pleno de “ódio, raiva e exploração” e, ao mesmo
tempo, inventar um modo de existir
entre lugares
de
onde emerge uma nova consciência, uma que inclui
o corpo - sua dimensão sobrenatural e profana -, e
FREITAS, Camila; OLIVAR, José Miguel. imagem trans: transe, fabulação e sobre vivências na fronteira.
32
modos dissidentes de estar no mundo. A
fronteira
é
um constante estado de transição.32
A escuridão, para Anzaldúa, é um elemento cons-
titutivo dos corpos e psiques de um “povo que salta
no escuro”33 e desafia a despossessão colonial.
Enquanto alguns irão se conformar a tais valores,
jogando “as partes inaceitáveis para as sombras”,
outros irão tomar outra direção e “tentar acordar a
Besta-Sombra” dentro de si. Desde a margem, mas
também atravessando para a outra margem dos
combates identitários e políticos que marcam a ex-
periência
transfronteiriça
, se ultrapassam as noções
de luz e escuridão, bem e mal, e se inventam outras
formas de caminhar pelo mundo, “[...]no ato de juntar
e unir que não apenas produz uma criatura tanto da
luz como da escuridão, mas também uma criatura
que questiona as definições de luz e de escuro e lhes
dá novos significados.” [ANZALDÚA, 2019 [1987]].
MUTÃO, EXPERIMENTÃO E
SOBREVIVÊNCIA: LAICON
Laicon é um dos filhos de santo de Jairo que, como
Quinho, vive em sua casa. Com Quinho também par-
tilha o trabalho em um salão de beleza. O dono do
salão, Angel, um homem gay de cerca de 40 anos, é
conhecido por ter formado muitas meninas
trans
e
meninos
gays
da cidade nos ofícios da beleza. Quan-
do Laicon chegou, cerca de dez anos atrás, ele havia
há pouco readotado seu nome de nascença, Erivel-
ton. Angel, que também usa um codinome, lhe disse
que o seu nome de batismo era muito “pobre” para
que fizesse uma carreira de sucesso como cabelei-
reiro, e o rebatizou Laicon.
Antes disso, por volta de 2007, Laicon/Erivelton se
chamava Jamile, e era uma jovem travesti. Após a
primeira parada LGBT de Tabatinga, ele conta que
todas as
gays
estavam bebendo e dançando no
Lua Nova. A certa altura, Jamile endoidou e quis ir
embora sozinha, apesar do acordo tácito entre elas
de sempre voltar para casa com companhia. No
caminho, foi surpreendida por um dilúvio amazô-
nico, desses que começam repentinamente e dão
a impressão de que o mundo vai acabar. Abrigada
sob uma marquise do comércio fechado às três
da manhã, viu uma camionete parar, e um homem
que ela reconheceu como policial civil da cidade [à
paisana] lhe oferecer carona. Ela aceitou, mas ao
entrar no carro percebeu que não havia apenas um,
mas três policiais. Dentro do veículo, eles começa-
ram a lhe dizer insultos e provocações. Suas rezas
não a impediram de ser arrastada para o interior
de uma famosa ruína no centro de Tabatinga, em
frente a um terreno baldio, onde os três policiais a
espancaram e torturaram. Laicon, então Jamile,
conta que os policiais colocaram uma arma em sua
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 18-54, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52941]
33
boca e, aos gritos, diziam que ela tinha HIV e que
eles iriam “apagar uma aberração” de que o mundo
não sentiria falta. Ele conta que foi salvo, em uma
cena épica, por Nena Machuda, uma amiga traves-
ti, que viu a cena de longe e gritou.
Laicon ficou em choque, marcado pelo trauma
por muito tempo. Ao chegar em casa, o tio, uma
figura conhecida na cidade, o puniu com uma
surra e, no dia seguinte, levou-o à Polícia Civil
para fazer um boletim de ocorrência. Com a
mediação dele e de um escrivão importante para
o mundo
gay
de Tabatinga, Laicon pôde ter uma
sessão de reconhecimento dos suspeitos do cri-
me. Durante o processo, o escrivão aconselhou
que ele aceitasse a indenização que permitiria ar-
quivar o processo. “Era aceitar ou morrer, pois se
não aceitasse os policiais podiam fazer alguma
coisa”. Os agentes foram afastados para outro
município, mas não foram presos. Como efeito
traumático da forte violência, Laicon associou a
própria sobrevivência a uma mudança de rumos
radical: parou de sair à noite por bastante tempo
e, em seguida, deixou de se travestir, voltando a
ser Erivelton.
Laicon deixou de ser travesti “porque queria viver”. E
nesse novo jeito de encarar o “viver”, foi transitando
um outro caminho de corpo, de trabalho, de reli-
gião, de gênero-e-sexualidade. Durante muito tem-
po, ao voltar a ser um homem cis, só tinha encon-
tros com parceiros heterossexuais35
que, para ele, tinham uma relação
objetificante e egoísta com o seu
corpo: “Eles me comiam, gozavam e
tchau. Só vim a ter prazer quando passei a sair com
homens
gays
e entendi como duas pessoas podem
ter prazer juntas”.
IMAGEM TRANS: SOBREVIVÊNCIAS
E REVERSIBILIDADES
Contrariando os polos opostos de apocalipse e
redenção da tradição judaico-cristã ocidental, as
sobrevivências
se distanciam do horizonte da sal-
vação - que “nos promete a grande e longínqua luz
[
luce
]” [DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 85] - e se afirmam
nas potencialidades
menores
- “pequenas luzes”36
que se apreendem, sobretudo, desde a escuridão.
De maneira análoga, a
imagem
, em vez de manifes-
tação de visibilidades onipresentes e programáticas,
se constitui através da falha, nas frestas e fissuras
do tempo que permitem a sua aparição e desapari-
ção, na intermitência de vagalume para reaparecer
Aí quando eles olharam pra ela, eles me soltaram, só que como eu tava com
um perucão, o policial rodou a mão no meu cabelo, ele me puxou... no que ele
me puxou, ele ficou só com a peruca na mão, e eu dá-lhe correndo!34
FREITAS, Camila; OLIVAR, José Miguel. imagem trans: transe, fabulação e sobre vivências na fronteira.
34
e sobreviver.37 A
imagem
se torna perceptível no
espaço “das aberturas, dos possíveis, dos lampejos,
dos
apesar de tudo
”, onde os gestos menores dos
contrapoderes reinventam as formas do possível e
criam “zonas ou redes de sobrevivências no lugar
mesmo onde se declaram sua extraterritorialidade,
sua marginalização, sua resistência, sua vocação
para a revolta.” [DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 42]
A
imagem
que emerge dessa escuridão constitutiva
habita um território de
fronteira
ou, para Marie-Jo
Mondzain, uma
zona
- um
no man’s land
ou terreno
baldio, lugar fora de toda topologia - que designa
uma “forma de habitar o mundo para um sujeito
nômade, clandestino, ilocalizável e cuja identida-
de fugidia escapa a qualquer controle, a qualquer
determinação de residência e de identidade.38 O
Fig. 8 – Camila Freitas e João Vieira Torres,
BABADO
, longa-metragem em desenvolvimento, 2022.
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 18-54, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52941]
35
sujeito da
zona
, tal qual a própria
imagem
, habita o
coração do visível e dos dispositivos sociopolíticos
de poder, ao mesmo tempo em que borra os seus
contornos. [MONDZAIN, 2012, p. 84-85] As opera-
ções imagéticas portam em si a energia de inde-
terminação que nos permite agir apesar e através
das epistemologias racionalistas do ocidente que
delimitam o visível e as formas de ver, habilitando-
-nos a ver no escuro e a mergulhar nas sombras
que conferem à
imagem
seu aspecto furtivo, inde-
cifrável, indecidível - que estão, para a autora, no
cerne de nossa liberdade de ver.
Em vez de [apenas] representação, energia: “As
operações imagéticas são gestos energéticos que
podem se apropriar de todos os materiais e signos.
Pintar, cantar, filmar, dançar” [MONDZAIN, 2012,
Fig. 9 – Camila Freitas e João Vieira Torres,
BABADO
, longa-metragem em desenvolvimento, 2022.
FREITAS, Camila; OLIVAR, José Miguel. imagem trans: transe, fabulação e sobre vivências na fronteira.
36
p. 95] - ao que podemos aqui acrescentar fabular,
transitar, incorporar, se montar, inventar, brincar,
gozar, dar
close
, curtir -, são gestos que ativam no
real a energia revolucionária das imagens. [MON-
DZAIN, 2012, p. 100] Contaminar o cotidiano das
forças contra-hegemônicas é, seguindo as pistas
da autora, criar um lugar de acolhida ao outro, uma
zona que nos permite operar pela força das ener-
gias ficcionais e trazer para o horizonte dos possí-
veis a subversão de todas as hierarquias violentas,
a descolonização do pensamento, a feminização
do poder, e a redescoberta do transe. [MONDZAIN,
2012, p. 95] Apostamos, junto com ela, na potên-
cia da imagem, da poesia e de outras linguagens
artísticas rumo a um devir
zoneiro
que ultrapassa as
fronteiras do impossível para criar e transformar o
mundo. Como dizia Audre Lorde, “a poesia faz algu-
ma coisa acontecer” [LORDE, 2020, p. 106].
RETOMANDO A NOSSA EPÍGRAFE:
Les opérations imageantes connaissent toutes les
permutations, renversements, réversibilités qu’il s’agisse
du sexe, du genre, de la place sociale, du partage des
pouvoirs et des forces. Les images sont trans-genre, queer
parfois,
transgénériques
toujours [MONDZAIN, 2012, p.
102, grifo da autora].
O território
entre lugares
que se cria entre
macumbeiros
e espíritos, em que a lógica e um
certo
ethos
do ritual e do transe transbordam
para além de seu próprio espaço-tempo, pode
ser pensado como uma
zona
de reversibilidade.
Nela, indefinição e ambivalência são condições
de possibilidade da
coabitação
transgenérica
e transontológica que se realiza por meio da
produção de imagens num sentido amplo - entre
performatividades,
narrativização
, sonho, transe,
sexualidades e religião. Em uma superposição
nebulosa de dimensões espirituais, materiais,
afetivas, estéticas e políticas, as margens dessa
coabitação não constituem, porém, uma linha
estanque de separação entre mundos que pode
ser simplesmente “atravessada”; pensando com
Vincent Capranzano, imaginamos que a
fronteira
,
aqui, atua como uma chave produtora de uma
“mudança de registro ontológico” que postula “um
além que é, por sua natureza íntima, inacessível
de fato e de representação”, a partir de onde os
horizontes se alargam e se descolam da “insistente
realidade do aqui e agora” para acessar o espaço
do imaginário [CRAPANZANO, 2005, p. 367].
Este, enquanto espaço do sonho, da fantasia e do
transe, mas também como terreno de ficcionalida-
des ancoradas no real -
fabulações -
é preenchido
por uma matéria narrativa ilocalizável - “atópica,
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 18-54, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52941]
37
louca, extravagante e hipertópica”, em que o irre-
presentável opera através de “sobreimpressões” e
“invaginações” narrativas [
double bind/ band/ blind
]
[DERRIDA, 2003, p. 149]. Derrida nos fala da “voz
narrativa” que, segundo Maurice Blachot, está “tanto
dentro quanto fora e não pode se encarnar”; “lugar
sem lugar” que nos convoca à fantasia espectral,
fantasmática, e à suspensão do tempo no espaço
intersticial entre vida e morte, tempo próprio da
so-
brevivência
[DERRIDA, 2003, p. 149].
A
fronteira
aqui, acreditamos, se manifesta em
um espaço de permeabilidade narrativa entre
mundos, atravessado pelo
invisível
, e pode ser
pensada como um espaço-tempo de
sobrevivên-
cia
-
survivance et revenance
39- na medida em que
vida e morte estão implicadas em um
arrêt
, uma
suspensão que dá lugar a um presente “pleno de
agoras”, e rompe com o tempo histórico linear,
progressivo e teleológico dos vencedores da vez
[FACINA; SILVA, LOPES; 2019, p. 19]. Do lado dos
Fig. 10
– Camila Freitas e João Vieira Torres,
BABADO
, longa-metragem em desenvolvimento, 2022.
FREITAS, Camila; OLIVAR, José Miguel. imagem trans: transe, fabulação e sobre vivências na fronteira.
38
contrapoderes, avistamos um emaranhado inter-
seccional em que pessoas LGBTQ+, mulheres e
praticantes de religiões de matrizes africanas são
agências
sobrescritas
pelas vozes insurgentes
do
povo da rua
, que retornam
do reino da morte
para suspender o tempo e gozar da vida em sua
máxima potência - bebendo, dançando, girando,
dançando, cantando e contando.
CINEETNOTRANSE: FABULAÇÕES
NA ENCRUZILHADA
À imagem da ambivalência e da indecidibilidade
características de Exu40, a encruzilhada, lugar privi-
legiado de atuação do orixá, é, tal qual a
fronteira
,
um espaço de hibridizações através das quais se
subvertem fronteiras de subalternização. Na con-
cepção filosófica nagô/iorubá e na cosmovisão
banto, trata-se do “lugar sagrado de intermedia-
ções entre sistemas e instâncias de conhecimentos
diversos”, constituindo, na esfera do rito e da perfor-
mance, um “lugar radial de centramento e des-
centramento” onde se travam confrontos, desvios,
confluências e divergências de saberes diversos e
sentidos plurais [MARTINS, 2003, p. 70].
Na
encruzilhada
de saberes, modos de existência,
encontros e choques cosmológicos em que busca-
mos fazer
sentidos
e fabricar mundos junto com elas,
nós-cineastas, nós-etnógrafos e nós-personagens
nos disponibilizamos a um estado de transição cons-
tante, a tornar-nos
outros
juntos. Em uma busca por
atingir “não um cinema da verdade, mas a verdade
do cinema”41, é necessário filmar a própria
fronteira
entre o real e o ficcional, onde reside o que Deleuze
chamou de
função de fabulação
, não para apreender
a identidade de uma personagem, real
ou
fictícia”,
mas “o devir da personagem real quando ela própria
se põe a ‘ficcionar’, quando entra ‘em flagrante delito
de criar lendas’, e assim contribui para a invenção de
seu povo.” [DELEUZE, 2005, p. 183]. O cineasta, a seu
tempo, torna-se
outro
na medida em que vira médium,
mediador, quando toma “personagens reais como
intercessores, e substitui suas ficções pelas próprias
fabulações deles [...]” [DELEUZE, 2005, p. 185].
As múltiplas dimensões das imagens com as quais
lidamos neste trabalho - imagens que emanam das
estórias
das
Entidades e as habitam, imagens en-
quanto performances de um imaginário cosmopo-
lítico, imagens que encarnam/iconizam o substrato
imaterial do transe e da fé, imagens
de imagens
produzidas por nós - delineiam um objeto de pes-
quisa de difícil apreensão, em constante constru-
ção e sem perspectiva de assentamento completo,
que se constitui em meio a uma série de processos
cognitivos, perceptivos, sensoriais, espirituais e
artísticos em curso.
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 18-54, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52941]
39
Segundo uma certa perspectiva da etnografia per-
formativa42, o objeto enquanto “ação performativa”
leva em conta os seus deslocamentos e processos
na própria constituição e transmissão do mesmo.
Enquanto “ato performativo de reapropriação ou
de reescrita”, o processo etnográfico não mais se
contenta em construir uma análise para “decifrar
as significações culturais do objeto” [MARGEL, 2017,
p. 159]; este, por sua vez, passa a ser entendido
como “um observatório, etnográfico ou artístico” e se
constitui na hipótese de que a “observação
do
objeto
restitui alguma coisa
ao
objeto, um saber, uma
história, uma guerra, uma destruição, que vale como
sobrevida para o objeto.” [MARGEL, 2017, p. 161].
A diferentes alturas do processo, uma série de pergun-
tas nos interpelam: de que formas se pode filmar o ri-
tual e o transe, respeitando o “sítio de indeterminação
invisível” [MONDZAIN, 2012, p. 90] da
zona
? De que
formas é possível criar imagens sem fechar sentidos
ou determinar causalidades, agindo na
fronteira
das
ficções, da voz e da palavra performativas [PRECIADO,
2019, p. 96]? Se certas práticas e ritos desempenham
funções no seio de uma determinada comunidade -
dentre as quais podemos ler mecanismos de
sobrevi-
vência
, tecnologias de cura ou redução de danos -, em
que medida pode fazer sentido criar e lançar imagens
- reflexos ou
duplos -
das mesmas para fora dela?
É possível criar visibilidades integrando a escuridão
constitutiva que as resguarda da luz encegueirante do
pensamento unívoco?
Tais questionamentos e buscas não se exaurem e não
poderiam, no escopo deste experimento em pro-
cesso, levar a respostas definitivas. No entanto, em
campo, tentamos formulá-las de diferentes maneiras.
Uma delas foi por meio do diálogo com filhos
de santo
e Entidades sobre o processo de filmá-las, dentro e
fora dos rituais do terreiro. Ao final da primeira gira a
que comparecemos juntos e com a câmera, em um
ritual para “caboclo”, Dona Herondina43, na cabeça do
pai Jairo, nos convidou a nos apresentar. José Miguel
foi o primeiro a ir à frente do
congá
para explicar que,
dessa vez, vinha acompanhado para tentar fazer um
filme com os filhos e filhas, as Entidades e o terreiro.
Em seguida, Camila e João se apresentaram, agra-
decendo a acolhida do pai de santo e reverenciando
as entidades, e pedindo ao conjunto de médiuns e
às entidades o
agô
para estarmos ali - filmando - no
meio da gira. Ao final da apresentação, Dona He-
rondina falou de José Miguel às entidades presentes
como um velho amigo que já anda por ali há muitos
anos, definindo-o, debochada, como pesquisador de
tudo o que não presta”: “ele pesquisa os
adés
, que na
língua são as ‘florzinha’, os ‘viados’... pesquisa travesti,
pesquisa prostituta, pesquisa macumba, o caralho a
quatro!”. E perguntou: “Cê não tem não alguma coisa
pra mostrar aí pro povo da
macumba
?”.
FREITAS, Camila; OLIVAR, José Miguel. imagem trans: transe, fabulação e sobre vivências na fronteira.
Fig. 11 – Camila Freitas e João Vieira Torres,
BABADO
, longa-metragem em desenvolvimento, 2022.
Fig. 12 – Camila Freitas e João Vieira Torres,
BABADO
, longa-metragem em desenvolvimento, 2022.
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 18-54, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52941]
41
Os espíritos pediram para
ver
. Assim, com o compu-
tador apoiado em um tambor, mostramos um trecho
de 3’ que havíamos editado a partir das imagens feitas
por José Miguel nos anos anteriores. Os cerca de vinte
presentes - entre Entidades, seus
cavalos
e assistên-
cia - assistiram com entusiasmo, reconhecendo uns e
outros entre zoação, gargalhadas e reflexões políticas
sobre o estatuto dessa
macumba
feita por “florzinhas”
e sua inserção na sociedade cristã-patriarcal. Dona
Herondina concluiu que esses trabalhos poderiam ser
úteis para “mostrar pro povo lá fora o que é a
macum-
ba
”, em vista de tantos preconceitos enfrentados
pelos filhos e filhas de santo.
Dentro e fora das impossíveis margens rituais e de
virtualidade/atualização, o objeto desta pesquisa
emerge e se constitui, tal qual os sujeitos, através da
criação desse espaço narrativo e performativo que se
partilha entre nós e elas. Assim, nossa presença não
repousa sobre uma observação neutra, produzindo
efeitos sobre nossos corpos e subjetividades, mas
também sobre os corpos e performances oferecidas
à câmera, sobre o ritual e as entidades. Hóspedes in-
trusos dessa
coabitação
, vamos buscando encontrar
os nossos papéis dentro de um jogo de implicações
mútuas, construído e negociado em diferentes e in-
sondáveis instâncias materiais e espirituais, de forma
a integrar a performance ritual no momento em que a
filmamos, editamos e projetamos.
Em um célebre ensaio sobre o que ele mesmo cha-
mou de
cine-transe
[ROUCH, 2003 [1973], p. 87-126.],
Jean Rouch reflete acerca dos estados de possessão
e transe, pensando o lugar do cineasta-etnógrafo em
meio aos rituais em que esses acontecem. Segundo
ele, na cosmovisão dos Songhay-Zarma, da região do
Níger, o mundo e tudo o que ele contém é duplicado
em um universo paralelo povoado de duplos ou
bias
.
O duplo -
bia -
, conceito nebuloso que designa “ao
mesmo tempo ‘sombra’ [literalmente significa escu-
ro], ‘reflexo’ [em um espelho ou poça d’agua], e ‘alma’
[princípio espiritual de todos os seres animados]”
[ROUCH, 2003 [1973], p. 89], acompanha o corpo
do indivíduo todo o tempo de sua vida, deixando-o
definitivamente no momento de sua morte para seguir
seu curso na eternidade, ou apenas temporariamente
durante as crises de possessão. O “dançarino” para
os Songhay - que nós conhecemos por
cavalo
ou
médium - é quem, sob o ritmo dos tambores sagra-
dos, será “montado” pela entidade enquanto o seu
duplo
permanece protegido até que o transe cesse
e ele possa retomar o seu lugar junto ao corpo da
pessoa. O mundo dos
bias
é, segundo Rouch, “a casa
permanente do imaginário [sonhos,
reveries
, refle-
xos]”, e o transe uma das conexões possíveis entre os
dois mundos, que se interlaçam de tal maneira que
se torna quase impossível para pessoas exteriores
distinguirem o “real” do “imaginário”.44
FREITAS, Camila; OLIVAR, José Miguel. imagem trans: transe, fabulação e sobre vivências na fronteira.
42
A estranha coreografia de que fala Rouch é a
dança das permissões e do acolhimento que irá
habilitar, na
zona
própria ao ritual, as figuras dos
cineastas-artistas-etnógrafos, munidos de seus
apetrechos de gravação - em acoplamentos pro-
téticos que permitem alcançar um outro estado
de presença através da escuta e da visão cine-
matográficas - a abandonarem o status de ob-
servadores neutros ou invisíveis para se tornarem
participantes dele e, como todos os outros presen-
tes, submeterem-se a uma alteração do
self
e da
identidade pelo fenômeno de possessão.45
Os rituais de umbanda, neste terreiro e para esta
rede em particular, são marcados por uma mirí-
ade de efeitos e produções estético-sensoriais e
performativas, portal através do qual somos con-
vidadas a adentrar aquilo que não se vê: matéria
Fig. 13 – Camila Freitas e João Vieira Torres,
BABADO
, longa-metragem em desenvolvimento, 2022.
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 18-54, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52941]
43
espectral, fabulada e imaginada sob fusionantes
matizes de cor, luz e sombra que a inscrevem no
espectro visível, é também matéria-prima de um
certo
ciné-transe
que invocamos para dançar jun-
to aos corpos dos médiuns e adentrar, cada um/a
à sua maneira, a
encruzilhada
de reflexos e duplos
antropofágicos onde emerge o
invisível
. Ao dispo-
nibilizar os nossos corpos a esse estado alterado
de [
cine
] visão e [
cine
] escuta, podemos tentar, tal
como Rouch preconizava, nos libertar do “peso
das teorias cinematográficas e etnográficas” e
“redescobrir a
barbárie da invenção”
.46
CONSIDERAÇÕES FINAIS: FORMAS DE PRODU
ZIR E ATRAVESSAR O MUNDO NA FRONTEIRA
Como experiências de contato direto e cotidiano
com múltiplas violências informam a ontologia e as
condições de persistência de um corpo, de uma rede
inteira e de um
mundo
que se produz contra-hege-
Fig. 14
Camila Freitas e João Vieira Torres,
BABADO
, longa-metragem em desenvolvimento, 2022.
44
mônico? Ainda que fora de contextos de guerra fran-
ca ou institucionalizada, a ação insidiosa, velada e
permanente de estruturas de poder normativo contra
corpos/existências tais como os de Quinho/Tilinha/
Tatá Molambo, Jamile/Erivelton/Laicon e Cris, mobi-
lizam um estado permanente de risco e precarização
intensificada.47 Da mesma forma, a resistência e a
persistência dos mesmos estão intimamente rela-
cionadas ao conjunto de relações que cada corpo
encontrará com a norma que o circunda, bem como
as formas de
hackeamento
da mesma.48
Se esquivar da violência é tarefa cotidiana, a produ-
ção de novas fronteiras e novas alianças é vital para
garantir a persistência - não apenas física, mas tam-
bém a beleza, o prazer e a “curtição”, aspectos cen-
trais e constitutivos para essa rede.
No fluxo narrativo
e fabulativo de Laicon, é através do reenquadramen-
to do prazer sexual e da afetividade homossexual
que vai se construindo a
evasão
da experiência
traumática, ou a capacidade de ler e escrever em
novas chaves a história vivida. Já para Cris e Quinho,
a
sobrevivência
está assegurada na medida em que
elas consideram ultrapassada a opressão com base
na abjeção [BUTLER, 2019 [1996]] que perpassa suas
experiências de gênero-e-sexualidade. Enquan-
to Laicon costura sua identidade de gênero
entre
lugares
como forma de habitar sua sexualidade
plenamente, Cris, por sua vez, evoca em suas falas o
sonho de ser “100% mulher”. Entendemos que essa
meta diz respeito, para além de um ideal de cisgene-
ridade, à aquisição de uma série de direitos - como ir
ao banheiro no bar sem ser agredida pelos homens
ou rejeitada pelas mulheres e ter a seu lado um par-
ceiro que a assuma “em plena luz do dia”, sem abrir
mão do trânsito entre a beleza feminina que brilha
na noite e se esgueira através dos intervalos escuros,
aonde ela encontra a própria força.
Já a “libertação” à qual Quinho se refere, no momen-
to em que ela se descobre travesti e encontra aceita-
ção de suas pares, após romper com as instituições
que a oprimiram e silenciaram por anos - a família
e a igreja -, coincide com a sua conexão à umban-
da, outro evento que, em sua vida, aparece como
libertador. Ainda que, ao entrar na religião, ela passe
a compreender o seu lugar no mundo a partir de uma
série de novos preceitos, regras e hierarquias, o seu
lugar de sujeito das margens passará a coincidir
com aquele de boa parte dos membros de sua famí-
lia escolhida, sendo eles encarnados ou entidades.
O terreiro, um “simples montículo de terra”, na
Terra, nessa terra fronteiriça, é produzido por e
produz todo um sistema tecnológico de crescimen-
to, de relação e de atravessamento do Mundo, ou
das “fronteiras sociais”, como sugere Vânia Zikán
Cardoso. Um dispositivo material e coletivizante de
indeterminação
e
sobrevivência
que favorece en-
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 18-54, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52941]
contros e acolhe materialmente corpos, entidades
e conhecimentos para tornar possível atravessar
os problemas, os obstáculos, a violência e a norma.
Encruzilhada
de intensidades, afetos e encontros,
o terreiro é o chão [in]comum sobre o qual enti-
dades e
cavalos
produzem imagens e narrativas
de si, e fabulam sobre uns e outros. É a casa sob
a qual crescem e que no crescer se transforma,
por enquanto, sem sossego; ali se encontram, ali
se cuidam, ali buscam refúgio em noites duras, ali
bebem, ali aprendem sobre
macumba
e tantas
coisas... ali a galinha ou a cabra sacrificial tor-
nou-se sacerdotisa bicha, sacerdotisa prostituta,
entidade-povo, cabocla-ciborgue cosmopolítica e
transfronteiriça [
macumbeira
], sem deixar de ser
galinha, cabra ou, claro, “cegonha” monstruosa.49
Fig. 15 – Camila Freitas e João Vieira Torres,
BABADO
, longa-metragem em desenvolvimento, 2022.
FREITAS, Camila; OLIVAR, José Miguel. imagem trans: transe, fabulação e sobre vivências na fronteira.
Fig. 16 – Camila Freitas e João Vieira Torres,
BABADO
,longa-metragem em desenvolvimento, 2022.
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 18-54, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52941]
47
NOTAS
1 Vânia Zikán Cardoso explica como, apesar dos usos pejo-
rativos e acusatórios que levaram a um certo descrédito políti-
co-acadêmico da palavra
macumba
, ela mantém sua vitalidade
polissêmica e vigência positiva em diversos âmbitos das religiões
afro-brasileiras. O termo emerge como conceito ressignificado
e reterritorializado em função de práticas racializadas e de re-
sistência, associadas a uma cosmovisão marcada pela presença
dos espíritos. [CARDOSO, 2007a, p. 340].
2 Neste trabalho, dedicamos especial atenção à porção da
prática umbandista denominada “de esquerda”, isto é, ligada
aos fundamentos de Exu, orixá que rege o
povo da rua
- pom-
bagiras e exus
.
Segundo Vânia Zikán Cardoso, trata-se de uma
falange de “espíritos de malandros e de prostitutas, personagens
que em vida teriam ocupado espaços socialmente marginaliza-
dos”. [CARDOSO, 2007a, p. 1].
3 No uso corrente da Umbanda, o termo de origem banto
ca-
lunga
[pequeno] significa cemitério, enquanto
Calunga
[grande]
é o mar.
4 Como recurso linguístico distintivo, nos referimos ao orixá
Exu
e às entidades nomeadas
exus
com uso de maiúsculas e
minúsculas.
5 Ponto de exu.
6 Formada pelas cidades de Tabatinga/Brasil, Santa Rosa/
Peru e Letícia/Colômbia, essa tríplice fronteira localiza-se na
região do Alto Solimões, extremo oeste do Amazonas.
7 “As
gays
” é como os meninos e meninas LGBTQ+ da rede
em questão se referem a si próprias, no coletivo e no feminino,
ainda que seu fluxo inclua tanto mulheres transgênero quanto
meninos [e mais raramente meninas]
gays
cisgênero.
8 Durante dez anos, a partir de 2010, José Miguel Olivar
desenvolveu esses e outros temas a partir do terreiro de pai Jairo,
seus filhos e filhas de santo, em Tabatinga, no Amazonas. Pesqui-
sas realizadas principalmente com financiamento da Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo [FAPESP],
através de três apoios sucessivos: processos 2010/50077-10,
2013/26826-2, e 2019/01714-3, sendo este último sediado
na Faculdade de Saúde Pública da USP. Por sua vez, a pesqui-
sa teórico-prática de mestrado de Camila Freitas, na linha de
linguagens visuais da EBA/UFRJ e com orientação de Tadeu
Capistrano e coorientação de José Miguel Olivar, articula-se à
realização do filme
Babado
e à escritura deste texto.
9
Babado
é um projeto de longa-metragem entre o doc-
umentário criativo, a ficção e o filme-ensaio, codirigido por
Camila Freitas e João Torres, e com colaboração integral de José
Miguel Olivar. Em 2018 e 2020, a equipe visitou a Fronteira no
quadro da realização do filme. O projeto de filme obteve o apo-
io do Institut Français em 2020 e, em 2021, o apoio do Fundo
de Gotemburgo [
Development Support
]. Para um primeiro
teaser
https://vimeo.com/448164053. Acesso em 5/12/2021.
10 Compreendemos “a noção
cosmopolítica
como uma in-
tervenção disruptiva e conectiva de habilitação do múltiplo para
atravessar e compor o
mundo comum
”. [OLIVAR, 2019].
11 Nas palavras de um conhecido pai-de-santo de Manaus e
mentor de Jairo [OLIVAR, 2019].
12 Durante alguns dias em 2020, realizamos oficinas
de
contação de estó
rias junto à rede. Nesses encontros, propuse-
mos jogos e interações a partir de temas pré-determinados que
lançávamos ou que surgiam das conversas delas. Os dispositivos
eram livremente inspirados do jogo de
cadavre exquis
: um deles
convidava todas as presentes a contarem uma experiência pes-
soal como, por exemplo, a do primeiro amor, em que a “pessoa
FREITAS, Camila; OLIVAR, José Miguel. imagem trans: transe, fabulação e sobre vivências na fronteira.
48
amada” era chamada por um só nome por todas as narradoras,
formando uma grande estória de amor desigual e sem fim; em
outro, duas pessoas trocavam estórias em torno de seus nomes e
nascimentos e, numa etapa seguinte, cada uma ia à frente para
narrar a estória da outra em primeira pessoa, se apropriando e
fabulando sobre a mesma [e assim criando uma estória es-
trangeira às duas primeiras].
13 Seguimos Vânia Zikán Cardoso [2007a] em sua opção
pelo vocábulo “estória”, pelo fato deste se relacionar às ideias
de fabulação, narrativa, ficção. Tal como a autora explica, essa
escolha não nega o caráter documental ou “real” dessas narrati-
vas, mas explicita o caráter de invenção e criação implicado em
todo ato narrativo, e o terreno de ambiguidade e tensão entre
“real” e “imaginário”.
14
Relatedness,
nos termos de Carsten [2000].
15 Ponto de pombagira, cantado por Dona Tata Molambo no
terreiro de pai Jairo, fevereiro/2020.
16 Ponto de pombagira, cantado por Dona Tata Molambo na
ocasião de sua conversa conosco, setembro/2018.
17 Na gíria das
gays
: “balada”, curtição, saídas noturnas
envolvendo
glamour
e “montação”.
18
cf.
SZTUTMAN, 2018.
19 As discussões de Judith Butler acerca da performatividade
- para pensar a relação entre gênero e sexo -, em que a autora
argumenta, segundo Vânia Zikán Cardoso, que “o performativo
não é meramente um ato utilizado ou realizado por um sujeito
dado a priori, mas uma parte crucial tanto da formação do
sujeito quanto da contínua contestação política e reformulação
do sujeito”, são retomadas por esta última para pensar sobre o
papel das
estórias
e performances narrativas na constituição do
sujeito narrador na
macumba
. [CARDOSO, 2007b, p. 209].
20 Tradução Nossa.
21 A noção de
narrativização
vem inspirada pela abundante
obra de Vânia Zikán Cardoso sobre a produção narrativa e per-
formativa no contexto das
macumbas
cariocas, em “um espaço em
que vidas são narradas e estórias são vividas [...] Aqui, a
narrativi-
zação
não se refere a um mundo a ser revelado pela interpretação
do que é contado, não expressa apenas uma prática, mas constitui
a própria prática por ela significada. Esta prática narrativa, na qual
estórias são contadas de maneira dispersa e fragmentada, abre um
espaço interpretativo no qual os sujeitos da experiência — tanto “es-
pírito” quanto “macumbeiro” — são engendrados através do próprio
ato narrativo.” [CARDOSO, 2007a, p. 318].
22 Em outro lugar, Olivar desenvolve uma descrição detal-
hada do terreiro desde as suas materialidades e suas relações.
Argumenta-se que o terreiro do pai Jairo funciona como um dis-
positivo central para uma tecnologia de fabricação de um m
f
#
[mundo-pra-nós], apesar e através do Mundo-como-Ameaça
[M
fA
], fazendo então emergir uma relação maior com o Mun-
do-como-embate [M/e] [OLIVAR, 2019].
23 Em 2011, na ocasião de uma oficina sobre gênero-e-sexu-
alidade ministrada por José Miguel Olivar em Tabatinga, quan-
do ele conheceu e se aproximou da rede, Cris se definia como
“menina”, distinguindo-se da nominação exógena “travesti” ou
“transgênero”. Em muitas conversas entre 2018 e 2020, ela rela-
cionou uma suposta “incompletude” da sua condição de mulher
à impossibilidade de gerar e parir. Segundo ela, se pudesse,
teria muitos filhos. Por outro lado, chama por esse nome os seus
quatro sobrinhos, filhos de Eliane.
24 “Puta”, na gíria local.
25 Fala de Cris em setembro/2018, gravada em um bar,
durante a pesquisa para o filme
Babado.
26 Fala de Cris em setembro/2018, gravada em sua casa,
durante a pesquisa para o filme
Babado.
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 18-54, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52941]
49
27 “Tanto estórias como espíritos deslocam-se entre enqua-
dres, presentificando assim a própria passagem entre o ‘ritual’
e o ‘mundano’, entre o ‘extraordinário’ e o ‘cotidiano’. Iconica-
mente representadas pela encruzilhada enquanto morada do
‘povo da rua’, as estórias narram não só um entrecruzamento de
tempo e espaço, mas também uma abertura de possibilidades
interpretativas.” [CARDOSO, 2007a, p. 324].
28 “
To avoid rejection some of us conform to the values of the
culture, push the unacceptable parts into the shadows. […] Yet still
others of us take another step: we try to waken the Shadow-Beast
inside us
.” [ANZALDÚA, 2012, p. 19].
29 “O ato de escrever é um ato de criar alma, alquimia. É a
busca de um eu, do centro do eu, o qual nós mulheres de cor
somos levadas a pensar como “outro” — o escuro, o feminino.
[…] A escrita é uma ferramenta para penetrar naquele mistério,
mas também nos protege, nos dá um distanciamento, nos ajuda
a sobreviver.”
[ANZALDÚA, 2000 [1980], p. 232-233].
30 Referência à exposição
online
da artista Jota Mombaça,
Atravessara GrandeNoiteSemAcendera Luz
, junto ao Centro
Cultural São Paulo, em 2021. Disponível em http://www.centro-
cultural.sp.gov.br/jota-mombaca/. Acesso em 4/12/2021.
31
cf.
BUARQUE DE HOLLANDA, 2019.
32 “
A border is a dividing line, a narrow strip along a steep
edge. A borderland is a vague and undetermined place created
by the emotional residue of an unnatural boundary. It is in a
constant state of transition. The prohibited and forbidden are
its inhabitants. Los atravesados live here: the squint-eyed, the
perverse, the queer, the troublesome, the mongrel, the mulato,
the half-breed, the half dead; in short, those who cross over, pass
over, and go through the confines of the “normal
”. [ANZALDÚA,
2019 [1987], p. 3]
33 “Somos o povo que salta no escuro, somos o povo no colo
dos deuses”. [ANZALDÚA, 2019 [1987], p. 327]
34 Gravação de relato oral de Laicon no terreiro, fe-
vereiro/2020.
35 Categoria corrente na cena LGBT local, que abarca
homens
gays
“não efeminados” e que são, supostamente, ape-
nas “ativos”, ou ainda homens heterossexuais que somente têm
relações com outros homens às escondidas, não afetando o seu
estatuto social
hétero
.
36 Retomando Deleuze e Guattari - que falam de “uma
literatura menor” a respeito de Kafka -, Didi-Huberman postula a
existência de uma “
luz menor
” que possuiria os mesmos aspec-
tos filosóficos, notadamente o seu aspecto político, imanente e
desterritorializante [DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 52].
37 “A imagem é lucciola das intermitências passageiras; o
horizonte banha na luce dos estados definitivos, tempos paralisa-
dos do totalitarismo ou tempos acabados do Juízo Final. [...] Os
pequenos vagalumes dão forma e lampejo a nossa frágil imanên-
cia, os “ferozes projetores” da grande luz devoram toda forma e
todo lampejo - toda diferença - na transcendência dos fins derra-
deiros. Dar exclusiva atenção ao horizonte é tornar-se incapaz de
olhar a menor imagem.” [DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 115]
38 Tradução nossa do original: “
[...]une façon d’habiter le
monde pour un sujet nomade, clandestin, irrepérable et dont
l’identité fugitive échappe à tout contrôle, à toute assignation à
résidence et à identité.
” [MONDZAIN, 2012, p. 84]
39 Do original: “
Survivance et revenance. Le survivre déborde
à la fois le vivre et le mourir, les suppléant l’un et l’autre d’un sur-
saut et d’un sursis, arrêtant la mort et la vie à la fois, y mettant fin
d’un arrêt décisif, l’arrêt qui met un terme et l’arrêt qui condamne
d’une sentence, d’un énoncé, d’une parole ou d’une surparole.
[DERRIDA, 2003, p. 153]
FREITAS, Camila; OLIVAR, José Miguel. imagem trans: transe, fabulação e sobre vivências na fronteira.
50
40 “Exu é o orixá iorubano que versa sobre os princípios
da mobilidade, da transformação, das imprevisibilidades, das
trocas, das linguagens, das comunicações e toda forma de ato
criativo”. [RUFINO, 2019, p. 115-116]
41 Sobre a concepção de Jean Rouch ao falar em “cine-
ma-verdade” [DELEUZE, 2005, p. 183].
42
cf
. SERGE MARGEL, 2017, p. 141-170.
43 No terreiro de Jairo, além da umbanda, também é pratica-
do o tambor de mina, religião afro-brasileira que cultua
voduns
-
forças da natureza e antepassados humanos divinizados -, orixás
e encantados ou caboclos, que são espíritos de reis, nobres
indígenas, turcos, boiadeiros, marinheiros etc. Diz-se que os
encantados foram pessoas que, ao morrer, desapareceram, isto
é, “se encantaram”. Herondina, uma cabocla de origem turca, é
uma das entidades de frente do terreiro e do pai de santo.
44 Tradução nossa, a partir da versão em língua inglesa
[ROUCH, 2003 [1973], p. 96].
45 Serge Margel reflete sobre o cinema “protético e não mais
mimético, que produz um fenômeno de transe, que Rouch nomeia
justamente ‘cine-transe’”, relacionando-o à ideia de antropofa-
gia [MARGEL, 2017, p. 95].
46 “
I have been able to free myself of the weight of filmic and
ethnographic theories necessary to rediscover the barbarie de
l’invention.”
[ROUCH, 2003 [1973], p. 100].
47 O Brasil é o país com o quinto maior número de assassi-
natos por homo e transfobia do mundo, e aqui a expectativa de
vida de uma mulher trans gravita em torno dos 35 anos.
48 “[…] Assim, as normas de gênero mediante as quais com-
preendo a mim mesma e a minha capacidade de sobrevivência
não são estipuladas unicamente por mim. Já estou nas mãos
do outro quando tento avaliar quem sou. Já estou me opondo
a um mundo que nunca escolhi quando exerço minha agência.
Infere-se daí, então, que certos tipos de corpo parecerão mais
precariamente que outros, dependendo de que versões do
corpo, ou da morfologia em geral, apoiam ou endossam a ideia
da vida humana digna de proteção, amparo, subsistência e luto.”
[BUTLER, 2018, p. 85]
49 Referência a uma cena do filme em realização, presente
no
teaser
[nota #9]: as
gays
estão juntas, bebendo e conversan-
do, como quase todas as noites na frente do terreiro. Quinho,
cujas habilidades fabulativas se destacam no grupo, rouba o
caderno de uma delas e inventa uma história sobre uma
bixa
feia
[Laicon] que pede ajuda a uma cegonha para ir embora de seu
povoado [Tonantins], pedindo que ela a leve para algum lugar
fino, como Cancun ou Dubai. A cegonha se dispõe a ajudá-la,
mas por ser muito velha e ter apenas três penas, elas acabam
caindo num macaxeiral. Diante da frustração, a
bixa
resolve ficar
com o problema e diz: “Quer saber, então vou pra Tabatinga, lá
vai ser minha vida, ali vou fazer fama!”.
Revista Poiésis, Niterói, v. 23, n. 39, p. 18-54, jan./jun. 2022. [DOI: https://doi.org/10.22409/poiesis.v23i39.52941]
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